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‘ato Internacionas de Catalogagto na Publicagto (CTP) {Camara Braalera do Livro, SP, Brasil vt, Michel de, 1920-1986. nvengio do cotidiano : 2, mora, cozinat / Michel oe cate ee Gat, Piere Mayo: tadac de Ephraim F. Alves cee dich Orth, ~ Petsbpolis, RI: Voues, 1996. titulo original L'lnvention du quotiien ~ 2.Morar, cozinhar biog TIN 85326-1669. | J 3 Big 1, onuta de vida 2. Calta 3 Histéria socal 4. Vie ‘Tradugio de: Poe Girard, Luce, I. Mayol, Pere. 1 Titulo. sbi [Bpheaim P, Alves e Liicia Endlich Orth baad Sune | Feita a partir da nova edicao francesa Anvtices para catilogo sistemsticn: revista e ampliada | ute de over Calica Sodoloa 3084 Mi cla Sexolga 3064 Seen Cultura Sociologia 1064 PMS aninna: Ctra Seta 964 y EDITORA VOZES Petropolis 2000 savqidiolagia, 0 trafico do crer, 281 il” & oposigho de escuerda, 284 do real, 286 ‘narrada, 289 ‘AV, 0 INOMINAVEL: MoRRER, 298 ‘Utna pratica impensavel, 294 Dior ¢ erer, 296 esorever, 298 0 pwier terapeutico e seu duplo, 299 O perecivel, 302 INDETERMINADAS, 305 Lares estratificados, 309 © twinpo acidentado, 311 Notas, 313 SUMARIO DO TOMO II es ae ‘Momentos lugarey, (eu Gard 7 Introito Michel de Certeau ANAIS DO COTIDIANO, 31 PRIMEIRA PARTE MORAR Pierre Mayol 1.0 BAIRRO, 37 Probleméticas, 33 O que € um bairgp, 41 TA CONVENIENC A, 45 A obrigacio © 0 reconhecimento, 46 Acconveniéneia, 4g Conveniéncia © sexuatidade, 56 IL O BAIRRO DA cRorX-ROUSSE, 70 Madame Marguerite, 171 Blementos historicos, 70 Apontamentos de Madame Marguerite, 180 A Croix Rousse hoje, 72 ‘A familia R, no seu bairvo, 74 ‘A populacio do primeiro distrito, 76 A tradigao operéria da familia, 81 [As relagées familiares no terreno, 84 * Nota complementar:desemprego dos jovens de 15 a 24 anos, * Nota complementar: a Croix-Rousse interrogada, 98 Bairro da Croix Rousse: plano simplificado, 105 0 airro estudado: plano detalhado, 106 0s arredores da rua Rivet, 106 0 duplo apartamento da familia R,, 108 Plano do duplo apartamento dos R. , 109 Entremeio Michel de Certeau e Luce Giard VIIL OS FANTASMAS DA CIDADE, 189 Um fantastico do "j4 do lado de La", 189 Uma populagiio de objetos “lendarios”, 192 Uma politica de autores: os habitantés, 195 ‘Uma mitica da cidade, 199 IX. ESPAGOS PRIVADOS, 203 0 habitat se revela, 203 Lugar do corpo, lugar de vida, 205 0 jardim fechado povoado de sonhos, 207 IV, OS ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS DA RUA, 115 Avua Rivet, 115 Robert. o comerciante, 117 SEGUNDA PARTE, Germaine, 121 COZINHAR Luce Giard Robert, 0 confidente, 122 X. ARTES DE NUTRIR, 211 V.0 PAO E 0 VINHO, 131 0 pio, 133 Intrdito, 212 0 vinho, 135 © andnimo inominvel, 216 Dom e contradom, 143 Voues de mutheres, 292 © vinho e 0 tempo, 146 VIO FIM DE SEMANA, 150 Sabadodomingo, 150 [As grandes lojas (shopping), as grandes dreas (supermercados), 152 0 mercado, 158 VIL “ENTAO, PARA AS COMPRAS HA 0 ROBERT, NAO E?", 166 Madame Marie, 167 ‘Navios saberes, 279 0 paspadonpresente, 283 AINLAS REGRAS DA ARTE, 287 in dicionsrio de quatro entradas, 287 A lingua das receitas, 292 ‘Aimposigio do nome, 294 XIV. "NO FUNDO, A COZINHA ME INQUIETA..”, 298 ‘Mensagem Michel de Certeau e Luce Giard UMA CIENCIA PRATICA DO SINGULAR, 335 A oralidade, 336 A operatividade, 339 0 ordinavio, 341 Notas, 343 Michel de Certeau nasceu em Chambéry, em mato de 1925. Dotado de inteligencia brilhante e nao conformista, nele habi- tavam milhares de curiosidades. Depois de uma s6lida formacio ‘em filosofia, letras cléssicas, histéria e teologia, ingressa na Companhia de Jesus em 1950, é ordenado sacerdote em 1956, vive como jesuita até a morte. Historiador dos textos misticos, da Renascenca até a era cléssica, interessa-se ndo sé pelos métodos da antropologia e da lingitistica, mas também pela psicanilise. Despertador de espititos, este viajante do pensamento rministra uma formacio de pesquisador a numerosos estudantes em Paris, na Europa, e nas duas Américas. Em julho de 1984, regressa de uma temporada de seis anos na Universidade da Califérnia para ocupar uma cdtedra de “Antropologia Historica das Crencas” na Bole des Hautes Etudes em Ciéncias Sociais. Morre em Paris, de céncer, no dia 09/01/1986. Deixa uma obra original e vigorosa, coerente na diversida- de dos seus objetos, e perpassada de ponta a ponta pelo mesmo nr de pensamento, quer se ocupe com a epistemologia da historia, quer estude a “fabula mistica” e o ato de crer ou as praticas culturais contemporaneas. Ele inverteu, als, o postu. lado usual de interpretacdo destas tiltimas. Em vez de uma suposta passividade dos consumidores, ele esta convicto (e fundamenta com argumentos esta conviceio) da criatividade das pessoas ordindrias. Uma criatividade que se esconde num emaranhado de asticias silenciosas e sutis, eficazes, pelas quais cada um inventa para si mesmo uma “maneira propria” de ‘caminhar pela floresta dos produtos impostos. 3 CAPITULO I O BAIRRO Este estudo sobre as maneiras de morar na cidade visa clucidar as praticas culturais de usuarios da cidade no espaco do seu baitro, No ponto de partida, légico ou talvez cronolégi- o, hd pelo menos duas problematicas que se abrem & pesq 1.4 sociologia urbana do Bairro. Privilegia dados quanti- tativos, relativos ao espaco e & arquitetura; realiza medi (superficie, topografia, fluxo dos deslocamentos etc.) e analisa a imposigdes materiais e administrativas que entram na def nigdo do bairra 2. A analise sécioetnogratica da vida cotidiana, que enfeixa desde as pesquisas eruditas dos folcloristas e dos historiadores da “cultura popular’, até aos imensos painéis poéticos, quase miticos, que a obra de James Agee representa de maneira exemplar’. Nasce assim um rebento de inesperada vitalidade, que talvez se pudesse chamar de hagiografia do pobre, género literdrio de considerével sucesso, cujas “vidas” mais ou menos 37 Hem transeritas pelos autores da pesquisa dio a ilusto doce ‘Amari de encontrar um povo para sempre extinto”. ius duns perspectvasantagénicasimplieavam orsco de ‘emburalhar as cartas da nossa pesquisa arrastando-nos atras de dois discursos indefinidos: 0 da lamentacdo, por nao poder Propor um método de “fabricagdo” de espacos ideais onde enfim 0s usuarios pudessem inserirse Plenamente no seu ambiente urbano; e 0 do barutho do cotidiano em que se pode. indefinidamente multiplicar os lances de sonda sem jamais. encontrar as estruturas que o organizam, 0 método escolhido consiste em unir essas duas vertentes de uma mesma abordagem com vista a estabelecer um sistema de controle que permita evitar a discursividade indefinida: trabalhar a matéria objetiva do bairro (imposigées externas, isposicdes etc.) apenas até o ponto onde ele a terra eleita de uma “encenagao da vida cotidiana”. E trabalhar esta dltima enquanto ela tem algo a ver com 0 espaco piblico onde se desenrola. Logo surgiram problemas precisos: nao estamos mais trabalhando em cima de objetos recortados no campo social de maneira somente especulativa (o bairro, a vida coti- diana...), mas em cima de relacdes entre abjetos, bem exatamen te estudando 0 vinculo que une o espaco privado ao espaco pablico. 0 dominio dessa separacao pelo usuario, aquilo que implica como agdes especificas, como “*taticas", fundamenta no essencial esta pesquisa. Bis ai uma das condigées de possibil dade da vida cotidiana no espaco urhano, que molda de maneira decisiva a nogao de bairro. A organizacdo da vida cotidiana se art. Problemdticas cua a0 menos segundo dois registros: 1. Os comportamentos, cujo sistema se toma visivel no espaco social da rua e que se traduz pelo vestuétio, pela aplicacio mais ou menos estrita dos cédigos de cortesia (saudacdes, palavras “amisto- sas", pedido de “noticias”), ritmo do andar, o mado como se evita ou ao contraio se valoriza este ou aquele espaco piiblico, 2. Os beneficios simbélicos que se espera obter pela maneira de “se portar” no espaco do bairro: o bom comporta- 38 jie”, mas o que traz de bom? A analise tem aqui dade: nao depende tanto da descricao, mas iferprotacdo. Esses beneficios deitam suas raf W cultural do usuétio, ndo se acham jamais ncia. Aparecem de mancira no modo como caminha, ou, de maneira -através do modo como “consome" o espaco puiblico. ihm elucidé-los através do discurso de sentido pelo lilo relata a quase totalidade de suas iniciativas. O jafece assim como o lugar onde se manifesta um igito” social ou, noutros termos: uma arte de conviver eros (vizinhos, comerciantes) que estdo ligados a voce eoncreto, mas essencial, da proximidade e da repeti- ste uma regulacdo articulando um ao outro esses dois i due descrevi e analisei com 0 auxilio do conceito de infencia. A conveniéncia € grosso modo comparavel a0 ia de “caixinha” (ou “vaquinha’}: representa, no nivel dos jortamentos, um compromisso pelo qual cada pessoa, lunciando & anarquia das pulsdes individuais, contribui com {cota para a vida coletiva, com o fito de retirar dai beneticios, bslicos necessariamente protelados. Por esse “preco a pa y" (saber “comportarse”, ser “conveniente"), 0 usurio se na parceiro de um contrato social que ele se obra a respei- para que seja possivel a vida cotidiana. “Possivel” deve ser entendido no sentido mais trivial do te'mo: nao tornar “a vida impossivel” por ruptura abusiva do gontrato implicito sobre o qual se fundamenta a coexistencia tle baitro. A contrapartida desse tipo de imposigio € para 0 Uisuatio a certeza de ser reconhecido, “considerado” por seus pares, e fundar assim em beneficio proprio uma relagéo de forcas nas diversas trajet6rias que percorre. Podese entio compreender melhor o conceito de(“pratica cultural” esta & a combinacdo mais ou menos coerente; mais ‘ou menos fluida, de elementos cotidianos concretos (menu gastronémico) ou ideoldgicos (religiosos, politicos), ao mesmo ‘tempo passados por uma tradicao (de uma familia, de um grupo social) ¢ realizados dia a dia através dos comportamentos que 39 > {yadusem em uma visibilidade social fragmentos desse disposi fivo cultural, da mesma maneira que.a efunciagao traduz na palavra fragmentos de discurso, “Pratico” vem a ser aquilo que @ decisivo para a identidade de um usuario ou de um grupo, \) ni mhedida em que essa identidade Ihe permite assumir o seu lugar na rede das relacGes sociais inscritas no ambiente, Ora, 0 bairro é quase por defini¢ao, um dominio do \) ambiente social, pois ele constitui para o usuario uma parcela conhecida do espaco urbano na qual, positiva ou negativamen- te, ele se sente reconhecido. Podese portanto aprender 0 bairro como esta porcio do espaco publico em geral (andnimo, de todo o mundo) em que se insinua pouco a pouco um espaco privado particularizado pelo fato do uso quase cotidiano desse espaco. A fixidez do habitat dos usuarios, o costume reciproco do fato da vizinhanga, os processos de reconhecimento - de identificacdo - que se estabelecem gracas a proximidade, gracas a coexistencia concreta em um mesmo territério urbano, todos esses elementos “priticos" se nos oferecem como imensos ‘campos de exploracao em vista de compreender um pouco melhor esta grande desconhecida que é a vida cotidiana, Tendo precisado esses elementos de anilise, dediqueime a0 estudy munugidfico de uma familia que mora em um bairro de Lido, a Croix Rousse. Eu mesma sou originaria desse bairro, A partilha entre os dados objetivos da pesquisa e os dados pessoais do enraizamento nao ¢ evidente. Deliberadamente se excluiu, na pesquisa, o estudo da personalidade dos membros dessa familia, das relagdes que mantém entre si, ¢ isto na medida em que estas nao diziam respeito ao objetivo deste trabalho: a descricdo e a interpretagao dos processos de apro- priagao do espago urbano no bairro, em relagao as quis as consideracies biogréficas ou psicolégicas tem apenas uma pertinéncia reduzida; eu descrevi menos uma familia que as trajetérias que ela realiza no seu bairro, ea maneira como essas trajetérias sio confiadas a este ou aquele, conforme as neces: sidades. Mais ainda, s6 conservei algumas personagens: Mada- me Marie, entio com a idade de oitenta e trés anos, que antigamente trabalhara em uma confeccio de espartilhos, uma grande casa do centro’, e vitva desde 1950; Maurice, seu ‘ls Velho, com sessenta anos, operdrio de construgio won ovste da cidade, pai de dois filhos, divorciado; tho mais novo, com cingiienta anos, celibatério, ope WonePoulenc, na zona sul de Liao (Saint-Fon: ico anos, um dos netos, ex operdrio dourador emn uma ‘durante muito tempo batalhando no mercado infor- {rabalho, como muitos de sua geracao, esmagalos pela egondmica. Seria necessirio evocar também Michéle, ine, Benoit, Gérard, e muitos outros ainda’. Com ou sem razao, achei por bem confiar apenas a algumas Hnadens os elementos essenciais da pesquisa, acumulando jis deles os frutos de uma prospeccio em uma drea de Jagdes muito mais ampla. Procurei, nesta reconstrugao, res- iar na medida do possivel o discurso das diversas geracdes, Drivileiando claramente as pessoas de mais idade e os adultos, “hin medida em que o tempo investido no espaco facilitava um dos eixos da investigacao, polarizado pelo problema, temporal no caso, da apropriacao. Para essa pergunta embaracosa os tra- O que éum balhos dos socidlogos sugerem intime- bairro? ras respostas, das quais retiramos aqui preciosas indicagoes sobre as dimensoes que definem um baitro, sobre as suas caracteristicas histdricas, estéticas, topograficas, sécio-profissionais etc.’ De todas elas ‘vou reter sobretudo a proposta, capital para a nossa empreita- da, de Henri Lefebvre, para 0 qual “o bairro é uma porta de entrada ¢ de saida entre espacos qualificados ¢ 0 espago quantifcado”. 0 bairro surge como 0 dominio onde a relagao espaco/tempo € a mais favordvel para um usuério que deseja deslocarse por ele a pé saindo de sua casa, Por conseguinte, €0 pedaco de cidade atravessado por umm limite distinguindo 0 espaco privado do espago piiblico: é o que resulta de uma caminhada, da sucessao de pasos numa calcada, pouco a pouco significada pelo seu vinculo organico com a residen- cia Diante do conjunto da cidade, atravancado por cédisgos que ‘0 usuario nao domina mas que deve assimilar para poder viver A Ai, wh face de uma configuracio dos lugares impostos pelo Auhanismo, diante dos desniveis sociais intemos ao espago ‘isbano, usudrio sempre consegue criar para si algum lugar ‘iconchego, itinerérios para 0 seu uso ou seu prazer, que silo as marcas que ele soube, por si mesmo, impor ao espaco Urbano, 0 bairro é uma no¢ao dinémica, que necessita de uma |, Prowtessiva aprendizagem, que vai progredindo mediante a ||tepeticdo do engajamento do corpo do usudrio no espaco piiblico até exercer ai uma apropriacao. A trivialidade cotidiana esse processo, partilhado por todos os cidadios, torna inapa- rente a sua complexidade enquanto pritica cultural e a sua uurgéncia para satisfazer 0 desejo “urbano" dos usuérios da cidade. Pelo fato do seu uso habitual, o bairro pode ser considera. do como a privatizacao progressiva da espaco public. Trata-se de um dispositive pritico que tem por funedo garantir uma solugio de continuidade entre aquilo que é mais intimo (0 espaco privado da residéncia) e 0 que mais desconhecido (0 Conjunto da cidade ou mesmo, por extensio, o resto do mundo): “existe uma relagao entre a apreensio da residéncia (um “dentro") a apreensio do espago urbano ao qual se liga (“um tora")”. O bairvo constitu’ o termo médio de uma dialética existencial entre 0 dentro e o fora. E é na tensao entre esses dois termos, um dentro e um fora, que vai aos poucos se tornando 0 prolongamento de um dentro, que se efetua a apropriagao do espaco. Um bairro, poder-seia dizer, & assim uma ampliacio do habiticulo; para o usudrio, ele se resume & soma das trajetérias inauguradas a partir do seu local de habitagdo. Nao € propriamente uma superficie urbana transpa- rente para todos ou estatisticamente mensuravel, mas antes a possibilidade oferecida a cada um de inscrever na cidade um semmntimero de trajetérias cujo micleo irredutivel continua sendo sempre a esfera do privado, Essa apropriagio implica agdes que recomponham o espa- 0 proposto pelo ambiente a medida do investimento dos sujeitos, e que so as pecas mestras de uma pritica cultural espontnea: sem elas, a vida na cidade seria impossivel. Existe, em primeiro lugar, a elucidacdo de uma analogia formal entre 42 via) cada umn deles tem, com os limites que lv als ala tax de controle pessoal possivel, skomo esta sio 0s cinicos “lugares” vazios “diferente, se pode fazer aquilo que se quiser. ilo do espaco vazio interno as disposicoes irias ~ as paredes de um apartamento, as pridios - 0 ato de controlar o sew interior é {40 de controlar as trajet6rias no espaco urbano do 4 dois atos sio fundadores, no mesmo grau, da ha em meio urbano: tirar um ou 0 outro é 0 mesmo ras condicdes de possibilidade dessa vida. Assim, 0 ico/privado, que parece ser a estrutura fundadora para a pritica de um usuétio, no € apenas uma 0, mas constitui uma separacao que une, O puiblico ¢ 9 no sio remetidos um de costas para o outro, como lementos exdgenos, embora coexistentes; séo muito mais, leinpre interdependentes um do outro, porque, no bairro, Who tem nenhuma signficagao sem o outro. "lém disso, bairro¥ o espaco de uma rlacao com o outro \0 ser social, exigindo um tratamento especial, ‘Sair de casa, idar pela rua, é efetuar de fd um ato cules, alae ove 0 habtante em uma rede de ainais sociaie aue the so eesstentss (os vizio, a configuragio dos lugares ee) A jelacao entrada/saida, dentro/fora penetra outras relagoes {(easa/trabalho, conhecido/desconhecido, calor/frio, are timido/tempo seco, atividade/passividade, brat ae hp.) sempre uma relagio entre uma pessoa e o mundo fiico social. E organizadora de uma estrutura inauguravel e mesmo fcaica do “sujeito pablico” urbano pelo pisar incansével porque cotidiano, que afunda em um solo determinado os sermes elementares (decomponiveis em unidades discretas) de uma dialética constitutiva da autoconsciéncia que vai haurir, nesse movimento de ir-e-vir, de mistura social ¢ de recolhimento jutimo, a certeza de si mesma enquantto imediatamente social. r ém o Jugar de uma passagem Quanto ao bairro, ele é também 0 pelo outro, intocdvel porque distante, e no entanto passivel de reconhecimento por sua relativa estabilidade. Nem intimo, nem ‘andnimo: vizinho®. A pratica do bairro é desde a infincia uma 4,0 ssntilo forte, “poctizada” pelo suieito: est Aeeiiied do Yeeonhecimento do espaco enquanto soci devese, Avsidlade ¢, no sentido forte, “poetizada” pelo sujeit Bilao, tomar aio seu lugar: uma pessoa mora na Croix-Rousse Beaamb ates sto pedo deamoniando scores fib Rue Vercingétoris, assim como pode chamar-se Pedro ou Aurhano; ele impae a or Ea ian ia is rik Wulo, Assinatura que atesta uma origem, o bairro se inscreve imo de espago. 0 Pala & poco again, 10 Nid histéria do sujeito como a marca de uma pertenca indelével do termo, um objeto de ues lo a fia medida em que é a configuracao primeira, o arquétipo de O isusrio no modo da Dvtizao doespago pl oe todo processo de apropriagio do espaco como lugar da vida lam Yeunidas todas as condigdes para favorec: ps a publi lo: conhecimento dos lugares, trajetos cotidianos, rela- ee We vizinhanca (politica), relagdes com os comerciantes a), sentimentos difusos de estar no prdprio territério ili), to isso como indicios cuja acumulacio e combina- oduzem, € mais tarde organizam o dispositivo social e al segundo o qual o espaco urbano se torna nao somente hjeto de um conhecimento, mas 0 lugar de wm reconkeci- nto. Por contraste, a relagdo que liga a moradia a0 lugar de trabalho é, na maioria dos casos, no espaco urbano marcada pela necessidade de uma coercdo espiico-temporal que obriga a percorrer o maximo de distancia no menor tempo possivel. A linguagem cotidiana fomece aqui uma descrigao de extrema brecisio: “pular da cama", “engolir o café’, “pegar o trem”, “mergulhar no metro", “chegar em cima da hora”... Por esses ie quer dizer “ : Atal titulo, e para usar novamente uma distingdo-chave de ermine eg a ena a de Crna pra der depend du ee? | sinais nertes como em um lodacal, endo somente guiado pelo le tem por lugar apenas “o lugar do_ outro lo que 0 imperative da hora certa (ou do atraso). Somente importa a Vruiio gana quando sabe “possi” diritoo seu ai nia sucesso de ages que sejam as mais univocas possiveis em vista & contabilizdvel, nem se pode jogar numa toca necestante de de melhorar a pertinéncia da relagdo espaco/tempo. Em termos lima relagéa de foreas: o adquirido fraldo pelo conte nfo € de comunicacio, podese dizer que o pracesso(eixosintagmaties) seo amelhoia da “manta de fare, de pas ae leva a primazia sobre o sistema (eixo paradigmitico), compras, pela qual o usuario pode verificar sem ces tensidade da sua inserc4o no ambiente social. A pratica do bairro introduz, um pouco de gratuidade no lugar da nevessidade; ela favorece uma utilizacio do espaco urbano nao finalizado pelo seu uso somente funcional’ No limite, visa conceder 0 méximo de tempo a um minimo do espaco para liberar possibilidades de deambulacao, 0 sistema {eva aqui a melhor sobre o processo; a caminhada de quem Passeia pelo seu bairro é sempre portadora de diversos senti, Gos: sonho de viajar diante de uma certa vitrine, breve sobres gallo sensual, excitagio do olfato sob as drvores do parque, lembrancas de tinerérios enterradas no chio desde a infancis, consideragoes alegres, serenas ou amargas sobre o seu préprio destino, inimeros “segmentos de sentido” que podem ir um tomando o lugar do outro conforme se vai caminhando, sem ordem ¢ sem regra, despertadas 0 acaso dos encontros, suscitadas pela atengia flutuante aos “acontecimentos" que, sem cessar, se vao produzindo na rua. ‘CAPITULO I A CONVENIENCIA A obrigacao € 0 reconhecimento 0 bairro se define como uma organiza cao coletiva de trajetérias individuais: com ele ficam postos & disposicdo dos 7 ‘seus usudrios “lugares” na proximidade dos quais estes se encontram necessariamente para atender a suas necessidades cotidianas. Mas o contato interpessoal que se efetua nesses encontros é, também ele, aleatério, nio caleu- lado previamente; define-se pelo acaso dos deslocamentos exi- gidos pelas necessidades da vida cotidiana: no elevador, na rmercearia, no supermercado, Passando pelo bairro€ impossivel ndo encontrar algum “conhecido” (vizinho ou comerciante), mas nada permite dizer de antemao quem ¢ onde (na escadaria, na calgada). Essa relacdo entre a necessidade formal do encon- tro € 0 aspecto aleatério do seu contetido leva o usuario a se manter como que “na defesa”, no interior de cédigos sociais precisos, todos centrados em torno do fato do reconhecimento, nesta espécie de coletividade indecisa ~ e portanto indecidida ¢ indecidivel - que € 0 bairro. “Par “eolotividade de bairro” eu entendo o fato bruto, Le imprevisivel, do encontro de pessoas que, sem tamente andnimas pelo fato da proximidade, nao joleo absolutamente integradas na rede das relagdes, iproferenciais (do circulo de amizade, de lagos familia. ‘haltro impoe um know-how da coexisténcia indecidivel el simultaneamente: 0s vizinhos ai esto, cruzo com ‘eseada do prédio, na minha rua; impossivel evitélos 1 "6 preciso conviver", encontrar um equilibrio entre a idade imposta pela configuracio publica dos lugares, € cia necesséria para salvaguardar a sua vida privada, Tonge demais, nem demasiadamente perto, para nao se joryecer, ¢ também para ndo perder os beneficios que se fa obter com uma boa relacio de vizinhanca. Em suma, é iso sair ganhando em todos os quadros dominando, sem ferder nada, 0 sistema das relagdes impostas pelo espago. Jim definida, a coletividade é um lugar social que induz um Jomportamento pratico mediante o qual todo usuario se ajusta Ano processo geral do reconhecimento, concedendo uma parte ile si mesmo & jurisdigao do outro. Um individuo que nasce ou se instala em um baitro € ‘obrigado a levar em conta o seu meio social, nsevirse nele para poder viver ai. “Obrigado” ndo deve ser entendido sO em Fentido repressivo, mas também enquanto “isso o obriga”, Ihe ria obrigacdes, etimologicamente lacos/vinculos, A pritica do bairro € uma convencao coletiva ticita, ndo escrita, mas legivel por todos os usuudrios através dos cédigos da linguagem do Comportamento. Toda submissao a esses cédigos, bem como toda transgressio, constitui imediatamente objeto de comenté- rios: existe uma norma, ¢ ela € mesmo bastante pesada para realizar 0 jogo da exclusdo social em face dos “excentricos”, as pessoas que “nao sio/fazem como todos nés’. Inversamente, Gela a manifestagao de um contrato que tem uma contrapartida positiva: possibilitar em um mesmo territério a coexisténcia de parceiros, a priori “nao ligados", Um contrato, portanto, uma Tcoercio” que obriga cada um para que a vida do “coletive puiblico” - 0 bairro ~ seja possivel para todos. ‘Sair & rua significa correr o risco de ser reconhecido, ¢ porlanto apontado com 0 dedo. A prética do bairro implica a7 alert 4 un sistema de valores ¢ comportamentos que forca fea un a se conservar por trés de uma mascara para sairse ‘om no seu papel. Insistir na palavra “comportamento” signif. ‘1 indicar que 0 corpo\é o suporte primeiro, fundamental, da ‘mensayfem social proferida, mesmo sem 0 Saber, pelo usudrlo: Sortit/nio sorrir € por exemplo uma opasi¢ao que reparte empiricamente, no terreno social do bairro, os usuarios em Parceiros “amaveis” ou nao. Da mesma maneira, a roupa é o indicador de uma adesao ou nao ao contrato implicito do bairro Pos, a sett modo, “fala” sobre a conformidade do usuario (ou do seu desvio} Aquilo que se supée ser a “maneira correta” do bairro. 0 corpo & 0 suporte de todas as mensagens gestuais que articulam essa conformidade: & um quadronegro onde se screvem - ¢ portanto se fazem legiveis ~o respeito aos cbdigos u a0 contra 0 desvio com relagao ao sistema dos compor. tamentos! 0 desvio ou afastamento transgressive possui, de resto, um Jeque muito amplo de possibilidades: pode tratarse de mini, transgressées em relagio ao continuum cotidiano, que é a roupa de uma mulher que "se vestiu para sair” de noile (“Ela se vestiu para uma noite de gala”: “Voce est belissima esta noite”) ou entav, pelo contrério, a desarticulacao completa dos cédigos do reconhecimento representada pelo cambalear no- {urmo de um alcoslatra. Em suma, o corpo, na rua, vem sempre acompanhado de uma ciéncia da representacao do corpo. cujo Cédigo é mais ou menos, mas suficientemente, conhecido por todos os usuarios e que eu designaria pela palavra que Ihe parece mais adequada: a conveniéncia, Esta vai configurar diante de nés como a conjun¢ao de dois léxicos combinados por uma mesma gramética: de um lado, 0 lexico do corpo propriamente dito, a maneira de apresentar'se ‘nas diversas instancias do bairto (fazer fila para as compras na mercearia, falar alto ou baixo, anular-se ou nao diante de outros parceiros segundo o grau hipoteticamente hierarquico que os Usuarios acreditam dever manter nesta ou naquela circunstam &ia); de outro lado, o léxico dos “beneficios” que se espera obter pelo dominio progressivo dessas instincias, fundada sobre 0 AAcostumar-se com o espaco social do bairro. Quanto a gramé. la corresponde, se assim se pode dizer, ao espaco or. er 48. residéncia, ali onde © tyajotdrins em torno da tia ver, plas quis cle che cm casa wirldos por ocasiao de suas diversas prospec- 1. As represses mindisculas. A conve nigncia se impde em primeiro & andlise pelo seu papel negativo. Bla se encontra no lugar da lei, aquela que torna hete- © © campo social proibindo que af se distribua em ior orem © a qualquer momento nao importa que Maeno socal Bla rerime o que “no convém", Yo que ffn2"; ela mantém a distancia, filtrando-os ou banindo-s, Inals de comportamentos ilegiveis no bairro, intoleraveis tl, destridores or exemplo da reputago pessoal do fo sto que dizer que 2 convenincia mantém relagbes ito estreitas com os processos de educacao implictos a todo po soi ela se encarrega de promuléa as “regas” do uso a, enquanto o social €o espa do outro, eo ponto mo posiedo da pessoa enguanto ser publen, A convenincia € 8 erenciamentosimbslico da face publica de cada un de nés desde que nos achamos na tus, A convenincia ¢simultanes mente 0 modo pelo qual se é percebido e © meio obrigatéri de se permanecer submisso a ela; no fur, ela exige que se qite toda dissonancia no jogo dos comportamentos, ¢ toda Futura quaitativa ma percepgéo do meio social. Por isso € aue produz comportamentos esteeotipados, pret porter sodas que tém por fungao possibilitar o reconhecimento de ni importa quem em nao importa que lugar. Mencia El imi uma justfcago ca dos comportamentos, que se poderia med intuivamente, pos s distribu em toro de um eho organizador de juloos de valor a “qualidade” da "elago humana tal como ela se desenvolve nese instrumento de verificagdo social que é a vizinhanga nao é qualidade de um “know now” sodal mas de um “sabersvercom’; 3 constatagio do contato au do néo contato com ee outro que ¢ o visinbo (ou qualquer outro “papel” estabelecdo pelas necesidades internas a vida do bairro) vem somar-se uma apreciacio, ousari dizer, uma fruigdo desse contato. 49 ca Hhliamos entio no terreno do simbélico, nao redutivel, na ‘utropoldgica, a quantificagao estatistica dos compor- log, nem a sua distribuicZo taxonémica. O terreno do imbolico & “equivalentemente” o da “regra cultural”, da regu- Jagdo interna dos comportamentos como efeito de uma heran- fi (afetiva, politica, econdmica etc) que ultrapassa por todos 1 laos 0 sujeito implantado hic ef nunc no comportamento que o torna localizavel na superficie social do bairro. Em suma, além da motivacdo, temos sempre a necessidade do encontro; fosto ou desgosto; “frio” ou “quente”, que vem sobrepor-se (tingir’, “colorir”, como se diz) ao sistema das relacdes “puibli- cas". 0 eixo ético desta motivacao, o eixo que a anima a partir de dentro € a mediocritas como alvo a atingir. Ndo a mera mediocridade, mas o ponto de neutralidade social onde ficam abolidas a0 maximo as diferencas dos comportamentos indivi- duais. £ preciso respeitar aqui o velho adagio: in medio virtus. ‘Aatitude do transeunte deve transmitit 0 minimo de informa- ao possivel, manifestar o minimo possivel de desvio em relacao aos esteredtipos admitidos pelo bairro. E, ao contrario, deve afirmar a maior participacao na uniformizacdo dos comporta- rmentos?. A taxa da conveniéncia é proporcional a indiferencia- cio na manifestagao corporal das atitudes. Para “continuar sendo ustidrio do bairro” e gozar do estogue relacional que izinhanga, nao convém “dar muito na vista”. Todo desvio explicito, particularmente no vestuétio, significa atentar ‘contra a integridade simbdlica; esta vai repercutir imediatamen- te no nivel da linguagem em apreciacao de ordem ética sobre a “qualidade” moral do usuario. E os termos empregados podem ser extremamente severos: “é uma piranha”, “esta gor zando a cara da gente”, “estd nos esnobando...” Do ponto de vista do sujeito, a conveniéncia repousa em uma legislacao interna que pode resumir-se numa frmula tinica: *O que é que | inhios vao_ vao pensar de mim?" ou entao “O que é que os dizer..2” 2.A transparéncia social do bairro. 0 bairro é um universo social que nao aprecia muito a transgressao; esta ¢ incompativel ‘com a suposta transparéncia da vida cotidiana, com sua ime- diata legibilidade. Esta se deve efetuar, alids, esconderse nas trevas dos “lugares reprovaveis’, fugir para os refolhos priva- 50 Mp UbMiettlo, 0 bairro & um palco “diumo” cujos person aida instante, identificaveis no papel que a conve- atribul: a crianca, o pequeno comerciante, a mae H joven, 0 aposentado, o padre, o médico, mascaras por tras das quais usudrio do bairro é “obrigado” ilar para continuar usufruindo dos beneficios simbé- i 0$ quis pode contar. A conveniéncia tende sempre F 08 bolsdes noturnos do bairro, o incansdvel trabalho josidade que, como um inseto de imensas antenas, a com paciencia todos os cantinhos do espaco pablico, JA os comportamentos, interpreta os acontecimentos ¢ liz sem cessar um rumor questionante incoercivel: Quem jon ¢ faz.0 qué? De onde vem este novo fregués? Quem é Wo locatirio? A tagarelice e a curiosidade sto as pulsdes lores absolutamente fundamentais na pritica cotidiana do iro: de uma parte, alimentam a motivacao das relacoes de hhanca e, da outra, tentam abolir sem cessar a estranheza yntida no bairro. Quanto & tagarelice) é uma conjuragio iterada contra a alteracao do espaco social do bairro pelos {yontecimentos imprevisiveis que podem perpassélo; procura lima “razdo para tudo”, mede tudo pela régua da convenienecia Como esta € 0 ponto a partir do qual o personagem se toma Iivel para os outros, situase na fronteita yue separa a «stranheza do reconhecivel. Se é possivel dizer que todo rito é 4 assungao ordenada de uma desordem pulsional inical, o seu “trancafiamento” simbélico no campo social, entéo a conve- nioncia ¢ 0 rito do bairro: cada usuério, por ela, se acha submetido a uma vida coletiva da qual assimila o léxico a fim de se dispor a uma estrutura de trocas que the permitira, por ua vez, propor, articular os sinais do seu préprio reconhect: mento. A conveniencia subtrai 8 troca social os “ruidos” que poderiam alterar a imagem do reconhecimento; é ela que filtra tudo 0 que nao visa a clareza, Mas, e esta &a sua face positiva, se ela impoe a sua coergdo, 0 faz em vista de um beneficio, ‘simbélico” que se hd de adquirir ou preservar. 3, 0 consumo e @ postura do corpo. O conceito de con venigncia ganha particular pertinéncia no registro do consumo, como relagao cotidiana com a busca dos alimentos e dos servigos. E nesta relagao que opera do melhor modo a acumu- 51 ¥ 18480 lo capital simbético do qual 0 usudtio vai tirar os Tieiveficios esperados. O papel do corpo e dos seus acessérios (Playas, estos), no fato tao concreto da “autoapresentacdo”, Hiosaul uina funcdo simbdlica capital, mediante a qual a conve. fléncia funda uma ordem de equivaféncia onde aquilo que se tweebe ¢ proporcional aquilo gue.se dé, Assim, comprar nao é ‘apenas trocar dinheiro por alimentos, mas além disso ser bem servido quando se é bom fregués, O ato da compra vem “awe Yeolado” por uma “motivagio” gue poerseia dizer o precede antes de sua efetividade: a fidetidade. Esse algo mais, nao contabilizavel na l6gica estrita da troca de bens e servigos, diretamente simblico: éo efeito de um consenso, de um acordo__ ticito entre o fregués e 0 sew comerciante que transparece cerlamente no nivel dos gestos e das palavras, mas que jamais se tora explicito por si mesmo Eo fruto de um longo costume) reciproco pelo qual cada uum sabe o que pode pedir ow dar ao outro, em vista de melhorar a relago com os objetos da troca. AA economia das palavras, dos gestos, das “explicagdes", a economia do tempo também, permitem obter diretamente um aumento da qualidade: qualidade dos objetos, sem duivida, mas também qualidade da relacao como tal. Bsta funciona de modo ‘especial: nao progtide por aprofundamento como nas relacoes: de amizade ou amorosas; visa ao contririo uma espécie de exaltagdo apenas do processo de reconhecimento. E necessario € suficiente ser reconhecido (“considerado”, diz-se por vezes) para que, por este simples fato, o consenso funcione, como uma olhadela que jamais iria mais longe que um piscar de olhos aperfeicoando-se no entanto pelo fato de sua repeticio. 0 Feconhecimento se torna um processo cujo funcionamento é contemplado pelo prisma da conveniéncia, Entre aquilo que se diz (as formulas de cortesia do comerciante, por exemplo, cujo contetido e tom variam de um fregués para o outro, adaptadas 4 familiaridade que ele tem com cada um deles) e aquilo que se cala (0 calculo do beneficio no relacionamento com os objetos), a conveniéncia se expande em uma conivéncia em que cada um sabe (nao por um saber consciente, mas pela ciéncia adquirida da “circunstancia” da compra’) de que aquilo de que se fala nao é imediatamente 0 de que se trata e que, no entanto, eilre 0 dizer ¢ 0 calar é a estrutura da troca ada, © que & por causa dessa lei que convém ‘80 boneficiar com isso, A relacao ligando um jrelante (e reciprocamente) éfeita da insercio Win discurso implicito sob as palavras explicitas ule tece entre um e outro parceiros da troca uma jals, tOnues mas eficazes, favorecendo o process do nto. ilos e gestos da conveniéncia so o estilo indireto - a = do beneficio perseguido através das relagdes do ‘Assim, muito longe de esgotar aos poucos as possibili- do espago social, ela vai favorecer a0 contrério uma i0 pessoal indefinida no tecido coletivo do ambiente. Por © fator tempo tem uma tio grande importancia para os ros, porque os autoriza a exigencias que apenas o costume permite fazer. O registro do consumo é, para o observador, dos lugares privilegiados para verificar a ‘sogi iidade" dos lirios, o lugar onde se elaboram as hierarqui ipicas da ‘onde se espanam os papéis sociais do bairro (a crianca, 0 jomem, a mulher etc.), onde se “massificam” as convengies Sobre as quais se entendem as personagens momentaneamente reunidas no mesmo palco. 4, O trabatho social dos sinais. Isto explica a complexidade ‘das relagoes envolvidas no &pago puiblico do bairro. Os sinais sla conveniéneia sao notaveis por serem apenas, com o tempo, esbogos, toques de linguagens incompletos, nao bem articula los, fragmentos: linguagem de meias-palavras, fixando-se no sorriso da polidez, cumprimento mudo do homem que se apaga diante de uma mulher, ou, ao inverso, vigor silenciosamente agressivo com o qual alguém “conserva o seu lugar na fila” ("é neu..."), olhares furtivos do comerciante que avalia, com 0 rabo do olho, 0 comportamento de um estrangeiro ou de um vecém-chegado, didlogos automdticos das comadres que se encontram “na soleira da porta", registro inconsciente dos passos da vizinha no patamar da escada, “que deve estar voltando da batalha, é a sua hora...” Velhos esteredtipos, jd esgotados mesmo, mas que tém por fungio garantir o “contato” \fungao fatca da lingua’): a comunicagio se transmite ou nao? — ‘Gano uflrmativo, que importa que ela va um pouco mais longe!? © equilibrio simbélico nao se rompe e, por este simples fato, houve benefico, Fundamentalmente, os esteredtipos da conveniéncia so, mediante a apresentacao do corpo, uma manipulacao da distan: cia social e se exprimem sob a forma negativa de um “até onde se vai para nao se ir longe demais” para manter 0 contato estabelecido pelo costume e, ao mesmo tempo, nao cair sob a dependéncia de uma familiaridade excessivamente intima. A busca desse equilibrio cria uma tensao que deve ser a cada passo resolvida pela atitude corporal. Por esse fato, a busca dos beneficios se transforma em sinais de reconhecimento. O bene- ficio que se espera alcangar, com efeito, nao pode ser formulado de maneira brutal: com isso se faria surgir o implicito direta- ‘mente na palavra, sem a mediacao dos simbolos da convenién- cia. Supondo que a busca do beneficio se exprima em toda a sua nudez (“Sirvame bem e rapido, porque eu sou um antigo fregués”), romperseiam imediatamente os heneficios de um contrato amplamente acumulados: 0 fregués, como de resto 0 comerciante, deve “comportarse bem”, Q corpo € portanto portador de uma procura que uma censura faz conterse dentro da ordem da conveniéncia impondorthe controles que a prote- em contra ela mesma ea fazem, assim, apresentével no espaco social. Poder-seia talvez dizer que a conveniéncia, com todas as restricdes que impoe, desempenha o papel de um principio de realidade que socializa a procura retardando 0 seu cumpri- mento, Como é preciso comportarse no acougue, para calcular “sem dar na vista” o prego e a qualidade de um peso de carne, ‘sem que isso seja sentido como desconfianga? O que dizer na ‘mercearia, e em que momentos (quando ndo ha fresués, nas horas de maior movimento?), para continuar se fazendo teco- nhecido sem exagerar numa familiaridade inconveniente, por ultrapassar os papéis autorizados pela conveniéncia? Incessan ‘temente, quais os sinais adequados que vao delimitar, estabi zar os sinais do reconhecimento? Esses sinais, escondidos no corpo, emergem até a superft- cie, deslizam para os poucos pontos sempre suieitos ao olh orosto, a8 maos. Este corpo parcelar €a face publica do usu ‘Wiis expécie de “recolhimento”, de atengao: de © equilibrio entre uma pergunta e uma um suplemento de sinais quando, estando lo, convém restabelecelo (um sorriso, uma is, uma submissao por assim dizer mais insis- jlementaridade pedido/resposta nao é estatica, ui aumento ténue da possibilidade de pedido € we haver vortanto, algo “deixado de lado”, um ind novo impulso ao jogo da pergunta e da resposta, do ligeiro desequilforio que ocasiona, Ae manter “conveniente", & preciso saber jogar 0 inh, nio exigir tudo imediatamente para deixar para #0 Sempre ulterior o dominio total do beneficio almejado ilo de consumo: 0 beneffcio aumenta quando se sabe ilar. © corpo bem o sabe: 1é no corpo do outro os ios sinais da exasperacao, quando o pedida excede em ja o previsvel nscrto no costume, a indiferenca progres- ‘a0 contrério, quando ele se coloca por muito tempo 10 corpo éna verdade uma meméria sdbia que registra Sinais do reconhecimento: ele manifesta, pelo jogo das tudes de que dispée, a efetividade da insercio no bairro, a nica aprofundada de um saberfazer que sinaliza a apropria: i0 do espago. Pode-se com certeza falar de obsequiosidade, Jas nao em termos de dependéncia ou submissdo: antes & “Maneira de Spinoza, que fala de “consentimento” (obsequitim) “i, uma lei técita, “vontade constante de fazer aquilo que Hetundo a lei & bom, e se deve fazer segundo um decreto ‘comum”, ou seja:consentimento a légica do benefico simbstico lo qual todos os agentes do bairro sio, segundo mados di versos, os beneficidrios’. A conveniéncia € a via régia para esse beneficio simbélico, para a aquisicao desse excedente cujo dominio manifesta a plena inser¢do no ambiente social cotidiano, Ela fornece 0 léxico do consentimento, e organiza a partir de dentro a vida politica da rua. sistema da comunicacao no bairro é forte: mente controlado pelas conveniéncias. O usuario, ser imedia- tamente social apanhado em uma rede relacional puiblica, que ele nao controla totalmente, é intimado por sinais que Ihe — ~initinain & ordem secreta de comportarse conforme as exigén ‘tas da conveniéncia. Esta ocupa o lugar da lei, lei enunciada ilipetamente pelo coletivo social que é o bairro, do qual nenhum ok usuarios € 0 depositario absoluto, mas ao qual todos os ‘itiiiries sio convidados a submeter-se para possibilitar, sim- plesmente, a vida cotidiana. O nivel simbélico vem a ser apenas ‘aguele onde nasce a legitimagdo mais poderosa do contrato social que & no seu coracao, a vida cotidiana: e as diversas maneiras de falar, de se apresentar, em suma, de se manifestar ‘no campo social, outra coisa ndo sio sen’o que o assalto indefinido de um sujeito “publico” para tomar lugar entre os seus. Quando se esquece por muito tempo esse longo processo que leva ao costume, correse o risco de perder 0 dominio verdadeiro, embora mascarado, com 0 qual os freqitentadores de um bairro geram o seu poder préprio sobre o seu ambiente ea forma discreta, embora tenaz, como se insinuam no espaco. piiblico, para dele se apoderarem. 1. A organizacao sexuada do espaco Conveniéncia e —_priblico, Como pratica de um espago sexualidade Piiblico, atravessado por todos, homens ce mulheres, mocos e velhas, a conve- hiéncia nao poderia nao levar em conta, de um modo ou de outro, a diferenca dos sexos. Ela tem que enfrentar este problema e procurar administré-lo na medida dos seus recur- Sos: 0 baitro € o espaco tradicional da diferenca das idades. E também o espago onde circulam e, por conseguinte, se encon- tram e se reconhecem, meninos e meninas, rapazes e mocas, homens e mulheres. Como € que a conveniéncia vai legislar essa diferenca? Ela dispde em primeiro lugar do cédigo da polidez, cujo leque abrange desde a familiaridade (a “mais, vulgar”) até a deferéncia (a “mais refinada’): existem os mai diversos tipos de olhares que os rapazes impdem as mocas na 11a, a indiferenca, o aborrecimento ou a complacéncia destas; existem os bancos de praca onde se abracam os namorados, ¢ ddescansam os velhos casais; as pragas onde correm em bandos ‘0s meninos e as meninas, is vezes em grupos separados, pracas ‘onde as maes, nos dias titeis, levam os bebés a passeio, e onde 8 casais, agora aos domingos, passeiam cercados pelos filhos. jhanifestagdes sociais respondem a uma manifes- ‘cada parceiro desempenha o papel previsto pela ‘soxinal nos limites que a conveniencia Ihe impoe. ies do bairro sio mais especificamente marca fl por aquele sexo. A oposicao bar/comércio é, evista, exemplar. 0 “bar do hairro” ~ que se deve do “bay de passagem” cuja fungao é bem outra = considerado, sob certos pontos de vista, como o We da “casa dos homens” das sociedades tradicionais. jy pobre’, é também o vestibulo do apartamento onde jis se encontram por algum tempo na volta do trabalho We irem jantar em casa; o café é uma “chicane”, um ardil, feimara de compensacio, da atmosfera social, entre 0 jp do trabalho e a vida intima, E por isso ele se ve tio larmente freqiientado no fim dos dias de trabalho, e quase jimente pelos homens; e é por isso também que ele € um jigo ambiguo, a0 mesmo tempo altamente tolerado por ser ‘ecompensa” de um dia de trabalho, terrivelmente temido, tausa da propensao ao alcoolismo que parece autorizar. Ao inririo, o pequeno estabelecimento comercial desempenha o japel de uma “casa das mulheres” onde aquilo que se conven tonou chamar de “feminino” encontra o lugar do seu exercici lum bom batepapo, noticias familiares, eanversas sobre a gas tyonomia, a educacao dos filhos etc. Essa indicacao da ocupagdo de um lugar por este ou aquele sexo em tal momento nao é suficiente para explicar a extrema estabilidade pratica com a qual é vivida, no espaco do bairro, ‘a diferenca dos sexos. Torna-se até inadequada quando, basean- dose em uma psicossociologia ingénua, julga poder afirmar, ‘em nome das suas caracteristicas formais, a “esséncia” (mascu- Jina ou feminina) dessa porc3o do espaco urbano ou privado; assim, o reto, o direito, o duro seriam as marcas indiscutiveis de espacos masculinos (0 falo sacrossanto}, a0 passo que 0 macio, 0 curvo, 0 sinuoso seriam as caracteristicas do espago feminino (0 nao menos sacrossanto titero da mae). A mistifica cio vem do fato de se transferir para os dados arquiteténicos 05 critérios supostamente coerentes da complementaridade dos sexos: 0 rigido e 0 macio, o seco € 0 timido, o l6gica eo poético, ‘openetrante eo penetrado, como sea divisio entreo masculino © 0 feminino passasse exatamente pela fronteira genital ou bloldgica que separa os parceiros sexuais. Deste modo se Superestimam as capacidades do espaco pata dar conta dos siibolos sexuais, e subestimasse a extrema complexidade da simbélica do desejo, tal como se elabora a golpes de praticas Sempre aproximativas, de falhas, de sonhos e lapsos, e, também, de itinersrios no espago urbano, 2.A problemética da ambivaténcia sexual. Esse dualismo da repartigao dos sexos deve ceder o lugar a uma problematica da ambivaléncia sexual: entendo por isso o modo essencialmen- te polémico, jamais inteiramente elucidado e por isso lamenté- vel, pesado de administrar, pelo qual cada sexo continua permanentemente mantendo suas relabes com o outro, mesmo. que este tltimo esteja materialmente ausente ou, a0 menos, fortemente dominado do ponto de vista numérico; nao mais 0 | ®8Paco masculino e o espaco feminino, mas, tanto no bar como ‘no pequeno estabelecimento comercial, tanto na cozinha como |na praca publica, o trabalho arcaico do fantasma do andrégino, ‘© melodrama confuso sempre embaracado de um diilogo ‘jamais acabado, mesmo que tome um outro caminho que nao oda palavra clara si mesma. Assim no que se refere & cozinlia. 20 invés de dizer que ela é o lugar das mulheres porque se cconstata que os homens estio “em geral ausentes” dali (ponto de vista estatistico), prefiro partir de uma anélise que mostraria Que, por um processo interno a dialética da distribuicao sexual dos papéis familiares, os homens sao daf exclufdos. Bis ai uma Outra relacio que inscreve o negativo (e nao a auséncia) como. parte integrante do seu funcionamento e que permite articular lum ao outro, até se apagarem, o homem e a mulher como parceiros sexuais, E esta problematica que eu gostaria de encontrar no texto da conveniéncia tal como um observador atento pode entendé- 'a assim que se defronta com os microacontecimentos da vid: Cotidiana da rua, texto que autoriza cada um dos seus “adeptos a articular, mesmo que inconscientemente, a sua atitude de reserva quanto ao sexo. Isto supe que se analise, a principio, 6 funcionamento da linguagem entre esses contratuais que si 58 Heiientadores de um mesmo territério, para ver como o sobre a sexvalidade chega a tomar lugar no jogo das ligdes de vizinhanga (no sentido mais amplo). Como é fitz 0 jogo da linguagem para falar do sexo? Que tipo pecifico? Esta pesquisa levanta uma questo metodo- len séria: Como € que se pode descobrir o reto caminho erra batida, a “bela escapada” tedrica, que evita ndo sé Duraco da psicossociologia, mas também os caminhos INliosos ¢ complicados, espinhosos, obscuros, de uma “psi nilise do social” Eu gostaria de situarme do lado de uma interpretacdo “intropolgica” dos esterestipos, das clichés, das convencdes Hestuais e verbais que permitem a conveniéncia abordar e Audministrar, em sew nivel, o problema da diferenca dos sexos. ‘Tomo como ponto de apoio, aqui, aquilo que Pierre Bourdieu chama de “a gramatica semt-erudita das praticas que nos sio Tegadas pelo senso comum, ditos, provérbios, enigmas, sere. dos de especialistas, poemas e adivinhacées (..). Esta "sabedo- tia” escamoteia a intelecgdo exata da légica do sistema no proprio movimento para indicéla”, Pois ela é “de tal natureza ue afasta de uma explicagau sistemtica ao inves de introduzir a ela (..)” As “teorias espontaneas devem a sua estrutura aberta, as suas incertezas e imprecisies, as vezes até mesmo a sua ineoeréncia, ao fato de se acharem subordinadas a funces praticas”. 3. 0 estatuto do discurso sobre a sexualidade: 0 duplo sentido ¢ outras figuras. 0 material verbalizado ou comporta- ‘mental da conveniéncia (esta “gramatica semi-erudita” da “pos. tura” da linguagem e do corpo no espaco piblico do Feconhecimento) nao pde portanto 4 mostra um discurso sobre a sexualidade. A vida sexual do bairro (tanto a linguagem como priticas) nao pode ser detectavel em uma sistemética que ‘nos permitisse alcancar a sua plena transparéncia social. Ela hao se manifesta af, a0 contrario, a nao ser por breves clardes, de maneira contornada, obliquamente, “como que através de uum espelho”, confiscando o lugar da sua enuneiagao ao “estilo direto”. Na rua, no bar, na loia comercial, é possivel, ¢ freqiien- te, falar com clareza, em termos explicitos, da atualidade po. 59 mr Hitless do empreso, da escola, das criancas, das enfermidades, Mas quando se trata de uma alusto sexual, o registro da im tnuda imediatamente: ndo se fala a nao ser em forno le maneira distante, mediante manipulagio muito fina, Hill, da linguagem, cuja fungao no é elucidar, mas “dat 2 entender’ Confiase assim a sexualidade a alusdo, ao subentendido. A pillavra que se refere ao sexo paira nos axcanos da conivéncia, faz despertar ecos latentes com uma outta coisa que nio ela ‘mesma, um “sortiso no canto dos kébios", um gesto “equivoco" 0 discurso sobre o sexo intervém por fratura dos lugares-co. muns, metaforizando as "expressdes ja feitas", recorrendo a0 tom de voz (sussurro, voz macia, aveludada, entremeada com Tisinhos abafados), para exprimir (de maneira disfarcada, mas eficaz) um sentido nao previsto. Esse discurso é, fundamental. mente, um trabalho sobre a linguagem que atua arrancando sentidos possiveis de uma mesma expressdo, que se insinuam no entredito, abrindo para o intercambio verbal dos espacos semanticos nio programados, mas em beneficio de um modo relacional que reforca a permissividade da conveniéneia am- pliando © espaco simbélico do reconhecimento. Essa pritica cotidiana, freaiiente, do desvio semantico, talvez encontre a siin forma mais acabada na técnica lingistica do trocadilho, do Jogodepalavras, de todo ato de palavra que, escapandd a0 sentido convencionado, deixa surgir unt_duplo_sentido, A palavra sobre o sexo é, no registro da conveniéncia, um dizer de outro modo a mesma coisa (autrement dit du méme): ela realiza uma deiscéncia separando um significante do seu signi- ficado primeiro para afixilo a outros significados cuja pratica na linguagem manifesta que os estava levando sem saber, Ela desnormaliza, des-estabiliza pela enunciacdo 0 acordo conven- cional entre o dizer e o dito, a fim de operar uma substituigio de sentido sobre um mesmo enunciado. “Avoir lesprit mal tourné" (como se diz) néo é outra coisa sendo a habilidade nessa pratica "irdnica” sobre a linguagem que entende ou dé a entender um sentido “obsceno” (fora da cena, nos bastidores da convenigncia), mediante 0 tom da linguagem, o desabrochar de uma risada, uma pequena pausa, © esbocar de um gesto. A palavra sobre o sexo é de certa 60 iiromissio de uma perturbacdo na clareza da idiana: cla nao tem direito ao estatuto de enun- ue seja ao mesmo tempo pronunciada no ifressio, sto é, da tolerancia em ato autorizada, (elas circunstincias em que se efetua. 6 assim assistir a verdadeires combates oratsrios ros envolvidos no jogo da conivéncia sexual, que ie seno nos ricocheteios do duplo sentido, “prazer da conveniéncia que o desloca ¢ 0 ultrapassa por Jados para que salte fora o sentido ambigiuo do sexo. ‘verbal sob o quala sexualidade é semantizada no bairro jitroles da conveniéncia é sobretudo a ambigitidade do jo, Wste estatuto particular da linguagem sexual tem fits causas, Sera facilmente evocado 0 peso das coergoes iosas, tradicionais. Mas isto nao basta para escla- ‘até 0 fundo o problema da sexualidade “piblica” que, por as suas beiradas, ndo pode ndo tocar o problema do dito, Ora, a transcricdo social desse interdito se exprime ‘gomportamentos que searticulam mais ou menos em torno lo conceito de pudor, 0 qual nao deve ser percebido somente {Gomo exclusio do sexo, mas como a possibilidade de trapacear {gom o interdito: tornase entao possivel ter uma palavra sexual Welada’, indireta, quer dizer, nao “chocante’, de man ‘em nenhum dos casos se quebre a comunicagao. 4. O pudor e a palavra. 0 duplo sentido, a ambigiidade, o Joxodealavras, tudo isto € apenas um duclonecessrio aue permite ao freqientador de um bairro enfrentar os limites do interdito no jogo relacional. A conveniéncia autoriza a dizer ‘mais do que o estritamente conveniente, a produzir um bene- ficio que reforca 0 processo do reconhecimento por uma participacao simbélica na gestao da diferenca dos sexos em um tertitério dado. O pudor nao & jamais sendo_uma reserva de comportamentos fixos: mas pouco a pouco a costume abre um itinerdrio de enuncingdes a que o usuétio, saindo da sua “reserva”, dé livre curso, embora saiba que se trata de um jogo aque, prcisamente,ndo ter “conseqincias". 0 pudor esd na rigem e no fim do discurso sobre a sexualidade. 0 pudor primeiramente o limite pratico na linguagem que o jogo do 61 duplo sentido ou do trocadilho transgridem, pois estes possibi litam a enunciacao de uma sentenga que recebe a marca de rdtica” no espaco publica. Mas ele ressurge por isso ao final da operagdo enquanto aquilo que convém preservar de qual: quer “passaggem ao ato”. Esta pritica transgressiva é um dizer que jamais vai culmi- nar no fazer: é um “poema", nao uma “prixis" - no sentido bem materialista de transformacao dos dados sociais concretos. 0 “iazer” (a pratica sexual real) se inscreve na vida privada. Caso ocorra uma passagem ao ato (um adultério, por exemplo}, 8 efeitos s6 se fardo sentir no nivel da linguagem, dos “comentarios”, do diz quediz-que, das exclamacoes de espanto. ‘Mas o bairro enquanto espaco piblico nao dispoe de nenhum poder de regulamentacao ou de coercao para subordinar a uma vontade coletiva a pratica sexual efetiva dos seus freqiientado- res. Nao pode, em caso algum, ser 0 lugar da sua demonstracao ‘ou da sua presentificagao & vista e para conhecimento de todos. Ele sé tem poder sobre o discurso, sobre “aquilo que se diz do sexo": a palavra é a tinica matéria social sobre a qual se pode legitimamente fazer um ato de jurisdi¢io, na faixa muito estreita que é tolerada, nas suas margens, pelo regime compor- tamental da conveniéneia, ‘A ambigitidade da palavra sobre 0 sexo se deve a esta ambivaléncia que Ihe permite autorizar num plano (0 dizer) 0 que profbe no outro (o fazer). Até na abertura permissiva das assim chamadas palavras “ousadas”, esta ambigidade é tam- bém uma lei que se opde 8 ilusdo de que tudo seja sextialmente possivel no espaco ptilico do bairro do ponto de vista pratico. E permitido dar boas risadas juntos, “fazer alusdes” trapacean- do coma conveniéncia para dat fazer brotar algumas labaredas s, mas nao é licito “acreditar que tudo é permitido” O subentendido ¢, se espera da conveniencia no que tang sexualidade: nao ha ‘outro meio para enunciéla corretamente (estrutura) e somente_ ‘Sob esta condicao (jurisdigao) é que a conveniéncia o aceita. 0 writer obrigatério desta ars loquendi se liga a critérios que se diretamente a face cotidiana da “moral ptiblica” ~ nao moral dogmatica, explicitamente enunciada, mas de estrutural e quase juridicamente, o que 62 WHA moral prstica, mais ou menos integrada na heranga dos, Portamentos sociais que todos nés praticamos. O cardter io dos encontros no airra limita toda propensio oral tismo ou gaiatice; sempre se insinuao isco das palavras lcitamente denominadas “inconvenientes” no ato mesmo ‘jug enunciacao. A conveniéncia exige do discurso erético cle se adapte ao ambiente social imediato: as brincadeiras sseiras assumem uma feigdo mais velada na presenca das langas ou das mogas, ou mesmo das pessoas mais idosas iisideradas respeitiveis. A palavra erética esta sempre sub> watida ao regime do apartado, da voz baixa, do sorriso. A voz fuutica, gaiata, € sempre um vocalize do deslocamento dos, fignificantes, para dar margem ao duplo sentido. 5, Trés exemplos. Isso nao impede que em muitos lugares do bairro a tolerdncia seja maior. Os mercados sio.certamente ‘0 espacos sociais onde florescem do modo mais espontineo 0 jogosde-palavras de teor erdtico. Hé, para isso, trés razoes: 1. Os mersadd8'sio lugares onde o ambiente social é muito pouco controlivel por causa da extrema complexidade das relagoes aleatérias que ai se entremesclam. E por conseauinte imuito diffell para um vendedor levar em conta de maneira precisa o “perfil” (idade, sexo) da sua freguesia, como deve fazé-lo o comerciante dono de uma boutique. 20s vendedores dos mercados ocupam, com relagio aos ‘comerciantes ou aos pequenos varejistas da rua, uma posi¢ao ‘marginal: s40 mais anonimos, mais permutaveis, a sua presenca 6 2pisédica. As relagoes que estabelecem com os seus fregueses so portanto menos organizadas pela conveniéncia cotidiana. 3. Enfim, os vendedores sio obrigados, pela sua profissio, a chamar os seus fregueses; mantém com eles uma relacao voeal que se poderia dizer hiperalocutiva, multas vezes prox rma do grito. E por isso que aplicam geralmente uma energia vocal que os obriga a ir ao essencial sem muitos matizes, quer ‘em vista de elogiar os seus produtos, quer em vista de atrair a freguesia. Dai o impressionante indice de imitagoes de declara- ‘Go de amor, ladainhas de palavras carinhosas espalhadas em tedas as direcbes (“minha querida’, ‘meu bem”, “meu amor’, 63 “meu tesouro”), um semnti a (meu trou’ um semamero de expresses ‘ermida” Join aerescentar um sem-nsimero de outros exem- i hi vida cotidiana do bairro. Logo se ficaria Lembrome particularmente de um vendedor que, em um esse actimulo pormenorizado de fatos. Cada Ihercado parisense, proferi s maioresobscenidadesesomen- alban aa TEER er cin oi Nain ais "aka, Sica tia sain ee Biiretests alsa citenaveanate ute co vam ras", uma pontinha machista) r : and es the ompravam tunes, st a dos “motos” de Ho, por meafrzao de serehanga com forma Bs Seca ale Suara oe Raed Mos gublanos as erbobs se foram textulos: ‘cenouras, nem é preciso falar. A passagem metaféri- yada para o erotismo so apenas “sugeridas”: nao ha lira invencao lingstica do comerciante. Ble se contenta, spor sobre um mesmo enunciado uma descrigio realis~ ‘objetos e uma descricdo erética evocada por sua forma. w efetivamente de molho (tufo) de verduras, acontece que “que espremendo bastante, vai ver o suco vai ver 0 suco que sai”; a tal ponto ue um dia uma freguesa, escandalizada, deudhe uma bofetada em piblico, para espanto de toda a freguesia. Insulto supremo, que o vendedor conseguiu contornar, soltando um soberbo alavrao, di ce "Morte & Dalavrio, dgno de Georges Brassens “Morte a virtue, Santo cn Oe temlos de erotieag da linguagem abundam também fende cebolas penduradas de uma haste de madeira, como em oultos contexts) mas de manera menos sista: a ho ou échalote, & maneira provencal, enfim, todos sabem bressio do ambiente socal se toma mais precisa, Mas a ocasiao We 0 suco de cenoura € muito bom para a satide e recomen- 6 el eine na loja de um comerciante jo para as criangas. Esses detalhes reais ganham novo ande todo 0 mundo explode em gargalhadas. A orgem dessa Jorido num tom de linguagem que encontra suas raizes no cuforia simples o raze de um lps, Na vine se aca Jar popular: “au ras de la touffe’, “les avoir bien pendues”, olado o cartaz de uma oferta de empreo, escrita a mao, Em Mjter". E portanto por contaminacao formal que se introduz 0 va de “femme de menage” (Precise de camareir, strum el erOtico, © falu de essas brineadciras erdticas teram como deta) et escrito “em en mémage (Procurase wna aan No exclusivamente as mulheres 0 sinal sociol6gico que 0 'e) Ning tnha eparado ou chamadoa atengio par ero, Vendedor tem, por seu estatuto especifico (marginalidade, que chegou um velho fregués originario do bairro. Entre. presenca episddica), 0 dreito - ele e 6 ele - de desafiflas no frase eno a um skech improvisado onde tomavaaliberdade nivel da linguagem, isto é 0 direto de ser “inconveniente” le fazer “propostas” as freguesas presentes ¢, naturalmente, segundo o consenso que fundamenta,.em um bairro, a distr: estas feando embasbacads, le dvertndose com so, pra buigio dos papéis socal euforia de todos, Outro exemplo, desta vez num bar. Com os 'No segundo caso, tratase de um quebra-cabeca, de um catovelos no balcdo ao lado do caixa, um fregues de certa idade jogodepalavras baseado em uma semelhanca de sons que fala com a moca da caixa, que atendia a outro fregués, mei escondem uma diferen« nsgressa outro fregués, meio scot ica de sentidos. A transgressao exdtica 6 ausente, um Jovem alcolizad, tenement rst. O homent possibilitada pelo estranho lapso de um pequeno cartaz.(devido {Bat na ida del, amos a0 alle”, enti se interompe, a um certo desconhecimento da lingua francesa se, como esinga com as mdos um gesto evocadr(shuea de mulher? provavel, tive sido escrito por uma pessoa estrangeira). Tudo mee)

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