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Palestra 1 A antinomia do realismo Nenhuma teoria que nos prive da visio estd sendo gentil conosco. Henry James em carta a Robert Louis Stevenson, 12 de janeiro de 1891. pecado mais recorrente dos filésofos parece ser jogar © bebé junto com a igua do banho. Desde inicio, cada “nova onda” de filésofos simplesmen- te ignorou as contribuigdes da onda precedente no esforyo por fizer avangar a sta, Hoje nos aproximamos do final de um século em que muitas foram as contribuigdes em filosofia; 20 mesmo tempo, contudo, tem havido um esque- cimento sem precedentes das contribuigdes de séculos e milénios passacios ‘Ao mesmo tempo, seria absurdo adotar a postura reacionsria de tentar acreditar naquilo que filésofos que viveram hi duzentos ou dois mil anos acreditavam. Como John Dewey nos teria dito, eles viveram em condigoes completamente diferentes das nossas enfrentaram problemas completa: mente distintos dos nossos ~ ¢, de qualquer forma, esse retorno seria im: possivel. E, ainda que se pudesse voltar, fazé-lo seria ignorar as acertadas criticas que geragdes posteriores de filbsofos fizeram 3s posigdes abando- nadas. Nao obstante, desejo insistir em que tentemos compreender e, na medida do humanamente possivel, superar 0 padrio de recizo que leva a filosofia a pular da frigideira quente para o fogo, do fogo para outra frigi deira quente ¢ dessa nova frigideira para outro fogo e assim por diante, 20 que parece de maneira infinita.' Nestas conferéncias, tentarei demonstrar 0 que esta compreensio ¢ superagao podem envolver mediante um exame da questo metafisica fundamental do realismo. "Unieus ealorosos agradecimentos a James Conant por sua meticulosa critica as sucessivas ver ses desta e das duas outras Palestras Dewey, bem como por suas ites sugestdes, Entre outros colegas que me deram sigestOcs ¢ informasdes em algiim momento da elaborgao fignram Burton Dreben, Sam Fieischaker, Richard Heck, Eric Lepore, David Macacthut, Sydney Morgenbesser, Alva Noe, Robert Novick, Dan O'Connor e, como sempre, Ruth Anna Puc rnam. Minhas desculpas 3 todos aqueles cuja ajuda eu tenharme eaquecido de agradecer. © termo “recuo” [revo] tem sido utlizado 2 este respeito por Jolin McDowell; ef. a obra de sus autora Monte e Mando (Aparecida: Kdéas e Lettas, 2005). Emibora nao pretends res 16 CORDA TRIPLA, Essa questio se presta de modo especial a esse objetivo, pois hé ini- meros exemplos atuais do fenémeno do recuo que dizem respeito a esse tépico. Os fildsofos que recuam perante os excessos de virias verses do realismo metafisico acabaram refugiando-se em diversas posigdes muito peculiares ~ a mais conhecida, hoje, é a desconstrucao, mas também p demos mencionar’o “irrealismo” de Nelson Goodman ou o “anti-reali mo” de Michael Dummett como exemplos de um recuo semelhante da parte de alguns filésofos analiticos. Além disso, os filésofos que recuam diante daquilo que consideram ser a perda do mundo nesses anti-realis- mos adotaram nogdes misteriosas, como “identidade através de mundos metafisicamente possiveis” ¢ “concepgio absoluta do mundo”? Hoje, as humanidades estio mais polarizadas do que nunca, ¢ a maioria dos pensadores da “nova onda” celebra nos departamentos de literatura a desconstrugio cum marxismo cizm feminismo... enquanto a maioria dos filésofos analiticos celebra o materialism cunt ciéncia cognitiva cum mis térios metafisicos acima mencionados. E nenhuma questo polariza tanto as humanidades ~ e, cada vez mais, também as artes ~ quanto 0 realismo, descrito por um dos lados como “logocentrismo” ¢, pelo outro, como “defesa da idéia de conhecimento objetivo”. Se existir - a meu ver existe = uma forma de se fazer justica a nossa convicgio de que as alegagdes de conhecimento sio responsiveis perante a realidad, sem nos refugiarmos, em fungao disso, em algum tipo de fantasia metafisica, entio € impor- tante descobri-la. Porque — Deus & testemunha — hé irresponsabilidade suficiente no mundo, inclusive irresponsabilidade disfarsada de responsa- bilidade, ¢ cabe & vocagao do pensador, hoje ¢ sempre, tentar mostrar a diferenga entre as duas. Comeco por dizer que, no curso do debate, tivemos de abandonar certos insights, mas ganhamos outros (na verdade, isso € parte essencial do fenémeno que denomino recuo — quando estamos dominados pelo sentimento de que devemos manter a maior distancia possivel de uma determinada posigio filos6fica, nao ¢ provivel que reconhegamos que os defensores dessa posigio possuam qualquer insight); além disso, como ponsabilizar MeDowell pelas minhas formulagoes nestas palestras, gostaria de reconhecer a profinda infleéncis de seu trabalho, que reforgou meu proprio interesse pelo realismo natural tha tcotia da pereepeio um interessereavivado pela primeira vez pela minha reflexdo sobre os ppontos de visea de William James. P'Hloje, Saul Kripke, David Lewis e Rernard Williams slo provavelmente os mais influentes produores dessas misteriosas nosoes. Primeirn segio: O sentido, 0 contrarsenso ¢ os sentidos wv cu pretendia sugerir com a referéncia a milénios anteriores, alguns desses insights sto muito antigos. Na verdade, eu poderia ter intitulado estas conferéncias “O realismo aristotélico sem a metafisica aristotélica”. No entanto, também poderia té-las intitulado “Realismo deweyano”. Isto porque Dewey, tal como 0 entendo, preocupava-se em demonstrar que podemos reter algo do espirito da defesa do mundo do senso comum preconizada por Arist6teles contra os excessos dos metafisicos ou dos sofistas, sem por isso nos comprometermos com qualquer variante do es sencialismo metafisico que Aristételes propés.' Por conseguinte, agrada- ime apresentar estas palestras sob a rnbrica “Palestras Dewey”. Pois estou convicto de que a minha preocupacio nestas palestras ~ a busca de um meio-termo entre a metafisica reacionéria ¢ o relativismo irresponsivel — também foi uma das preocupacoes de Dewey em sua exemplar carreira filos6fica Os pressupostos do realismo tradicional © realismo de Dewey foi influenciado, por sua vez, por outro grande pragmatista americano, William James. James aspirava a um tipo de realismo em filosofia livre dos excessos das formas tradicionais de realismo metafisico.* Isso impediu os fildsofos de interpretar James como representante de um. tipo de realismo. JA perto do fim da sua vida, William James escreveu uma carta a um amigo onde se lamentava amargamente de ter sido mal compreen- dido.® James escreveu que nunca negara que nossos pensamentos tém de se adequar 8 realidade para ser verdadeiros, 20 contritio do que tinha sido acu- sado repetidas veres de fazer. Na carta, emprega o exemplo de alguém que esti escolendo um modo de descrever alguns feijoes espalhacios numa mesa Os feijoes podem ser descritos numa variedade quase infinita de formas, a 2 Com esta observasio, no pretend endossar 0 ponto de vista de Dewey sobre Aristételes Para um argumento petsuasvo de que o esencistiino de AristOtees no era o Torte exten lama metafsico que os escoisticos the atibuam, ver The Fragility of Geodesy, de Martha Nussbaum, Concordo com Nussbaum no tocante 30 fato de se poder ler uina boa parte de Arstteles de forma menor metaisiea do que a tradigao o fer, emborstenha dielade em pereeber como e pode ler dests forma tudo o que AnsGtlescsrevet, A semelhanga entre 0 projeto de Dewey co de Arsttcles€ especialmente marcante na obra Experience and Nature (Sova Yorks Dover, 1958), ‘"Tnelzmente, sto no aston James de suas pias inctinasBes idealists e panpsiqucs ¥ Chea carta de James a Dickiuon 8. Miller, datada de § de agosto de 1907. In: Wiliam James, Lesersof William Jem, vol. 2 (Boston: Atlantic Monthly Pres), p. 298, 18. ___CORDATRIPLA depender dos interesses de quem os descreve, € cada uma das descrigdes cor retas vai adequnr-te aos “feijGes-menos-quem-os-descreve” € mesmo assim vai igualmente refletir os interesses de quem os descreve. E James questiona: Por que deveria alguma dessas descrigdes nao ser considerada verdadeira? Ja- mes insiste que nag existe descrisao que nao reflta algum interesse particular. E insiste também Que as descrigdes que fazemos quando nossos interesses no s20 tedricos nem explicativos pociem ser tio verdadeiras quanto as que fazemos quando nossos interesses sio “intelectuais”. “E por isso”, escreveu James, “somos acusados de negar os feijées ou de negar que sejamos de al- ‘guma forma constrangidos por eles! & muita tolice!”® Um filésofo realista tradicional poderia responder a James da seguinte maneira: “Se isso € tudo 0 que voce diz, nao consigo ver o fundamento de stias censuras contra os filsofos que acreditam num ‘mundo pronto € acaba- do’. E se foi mal compreendido, é a sua retérica que est errada. Os realistas, escolisticos tinham toda a razo nas réplicas que davam a seus oponences, alistas” ~ poderia continuar meu realista tradicional imaginsrio. “Su- ponha que eu decida classificar os feijdes por cores, ou pelo fato de estarem, préximos de um feijio do mesmo tamanho, ou de qualquer outra maneira. O motivo de esta classificagZo ser possivel e poder ser ampliada, no futuro, a outros conjuntos semelhantes de feijoes, & que existem propriedades como as cores, os tamanhos, a proximidade ete. Seus amados interesses podem determinar quais sio as combinagdes de propriedades que vocé acha que merecem atencio ow até mesmo levé-lo a inventar um nome para coisas com determinada combinacdo de propriedades, caso esse nome ainda nto exista no vocabulirio ~ mas isso em nada altera 0 mundo. O mundo € como é, in- dependentemente dos interesses de quem quer que o descreva.” Como vai tornar-se evidente, eu mesmo nfo concordo totalmente com James, nem com a critica realista tradicional a ele, Concordo com a critica de que o mundo € como é, independentemente dos interesses de quem 0 descreve.” Deploro a sugestio de James de que o mundo que conhecemos ‘Idem, p. 296. * Afora, como ¢ dbvio, o fato de esses intersses serem eles mesmos parte do mundo. A ver dade sobre esses interesses seria diferente se eles ossem diferentes. Mas equilo que o realista tradicional salienta € o fato de que sempre que filo de algo que nio € provocado eausalmente pelos meus préptios interesses ~ quando, digamos, destaco que existem milhdes de especies 4 formigas no mundo ~ também posse afirmar que o mundo seria o mesmo quanto a isso, yesmo que ci mio tivesse esses interests, no tvessc dado essa descrgio etc, E eu concordo ‘om tudo iso. Primeira sesio: O sentido, 0 contra-senso cos sentides 19 num grau indeterminado, produto de nossa propria mente." Mas a forma re alista tradicional de dizer 0 que ha de errado com a posicao de James envolve uma fantasia metafisica Essa fantasia meralisca €a de que existe uma totalidade de Formas, ou Uni- versais ou “propriedades”, estabelecida de uma ver por todas, e de que todos 65 significados possiveis de uma palavra correspondem a uma dessas Formas, ou ‘Universais ou propriedades. A estrutura de todos os pensamentos possiveis & ¢s- tabelecida de antemio ~ estabelecida pelas Formas. James rejeitou corretamente ‘ssa imagem, mas seu rectio em relagIo ao excesso metafsico levou-o a questionar a independéncia do mundo, o que por sua vez levou seus oponentes a se refigia- reni novamente nesta imagem ou na imagem, extravagante sob outros aspectos, proposta pelos oponentes dle James que defendiam o idealismo absoluto. ‘Um dos problemas do ponto de vista tradicional € sua ingenuidade em relagao ao significado. Tende-se a pensar que o significado ce uma palavra é uma propriedade partilhada por todas as coisas denoradas por essa palavra. Ora, ha de fato uma propriedade que todos os objetos «le ouro puro tém em comum, a saber, a de consistirem no (numa mistura de isétopos do) elemento com o niimero atémico 79, mas a palavra o1r0 nao é sinénima de “elemento com 0 niimero atdmico 79”. Na verdade, o significado vulgar da palavra ovrr0 no pode ser expresso de modo algum como uma propriedade, em como uma conjungio de propriedades.? Como salientou Wittgenstein, existem muitas palavras que podemos perfeitamente user ~ um dos exemplos, que se tornou célebre, & jago ~ apesar de nao existir nenhuma propriedade comum a todas as coisas a que a palavra se aplica corretamente. Outro problema que afeta esse tipo de realismo tradicional € o pressu- posco confortével de que ha uma totalidade definida de objetos que pode ser classificada, bem como uma totalidade definica de todas as propriedades. Esses dois problemas esto relacionados. £ verciade que uma alegagio de * Cf, Palesira 7, “Pragmatism and Humanism”. Iq William James, Pragmarion, org. por Fredson Bowers Ignas K. Skrupselis (Cambridge: Harvard University Pres, 1973); por ex “Criamos os objetos de nossas proposicoes verdadeiras, bem como das falsas”. Ext mesmo, lamento ter falado de “depenclencia da mente” em relagao a essas questocs em meu livro Re 107, Trash and Hisrory (Cambridge: Cambridge University Presy 1981) "CE quanto asso meuisensaios “Is Semantics Possible?” e “The Meaning of Meaning’. In: Philosophical Papers, vol. 2, € Mind, Language and Reality (Cambridge: Cambridge Univer sity Press, 1978), " Observe-se que o exemplo de James, de clasiicaczo dos eijies, no se ope ao primeiro esses pressupostos. Iso podteri refletrofato de haver na metatisca de James, se m0 propria. ‘mente tna totalidade de todos 05 “objetos”, pelo menos um efvas-a “experiencia pura’ — A qual esto limitadas todas as conceitualizagdes, mas gue ado pode ela propria set captnda pelos conecitos. Esse elemento da linia de pensamento de James nso deve merecer nossa simpaci, CORDA TRI conhecimento é responsivel perante a realidade €, na maioria dos casos, isso significa uma realidade independente do falante. Contudo, a reflexio sobre a experiéncia humana sugere que nem a forma de todas as alegagSes de conhe- cimento nem os modos pelos quais clas sto responsaveis perante a realidade sio estabelecidos de antemio ¢ de uma vez por todas, ao contritio dos pres supostos do realist tradicional 'As formas tradicionais de realismo esto comprometidas com a alegagio de que faz sentido falar de uma totalidade estabelecida de todos os “objetos” a que nossas proposicdes podem referir-se. Podemos falar de guerras, mas seri a Segunda Guerra Mundial um objeto? Segundo Donald Davidson, os eventos sito objetos e, nesse caso, a resposta é “sim”, mas poucos metafisicos tradicionais teriam incluido os eventos entre os objetos. Além disso, os crité- tios de identificagio desses objetos sio sem diivida obscuros."' Podemos falar da cor do céuy, mas € 0 céu um objeto? Podemos falar de imagens refletidas num espelho, mas sio elas objeto? Podemos falar de “objetos de desejo”, como o romance que eu desejaria ter escrito; sao esses “objetos intencionais” verdadeiramente objetos? E a lista continua... Na verdade, esses exemplos sugerem que é completamente equivocado o ponto de vista largamente de- fendido (por filésofos analiticos) de que sempre que uso as palavras rodos, alguns, existem, nifo existem (os chamados quantificadores) em expressdes como “todos os niimeros”, “existem algumas imagens refletidas no espe- Iho”, “todos os personagens de Moby Dick”, e nao tenho condigdes de forne~ cer uma “tradugio” das expressoes probleméticas em termos do vocabulério preferencial dos objetos ¢ conjuntos espago-temporais, “comprometo-me” ‘com a existéncia de certos objetos (possivelmente “abstratos”).!* 1 Em particular, 0 eritésio originalmente proposto por Donald Davidson ~a saber, o de que lois cventos sia idénticos se tiverem os mesmos efeitos ¢ causas ~ nto consegue resolver hnenhum dos casos em que as frontcieas de um evento niio sto nitidas. Para perceber isso, Jmaginemos, por exemplo, um lésofo que Pensa que os eventos devem ter “crtérion de identidade” definidos, ¢ que nio tem certera sobre se © evento do racionamento de agicar fem 1942-1945 foi uma parte ow um efete da Segunda Guerra Mundial "Minha objesae a0 “ctitério de compromisso ontoldgico de Quine”, como € denominada ‘essa posigzo, é de que 0 compromisso ontoligico — o “compromisso com a existéncia de um tipo de objeto” ~ so parece ser uma espécie determinada de “compromisso” porque se supoe fghe evitiré um termo wafvoce: quer dizer, parte-se do prineipio de que estou dizendo 0 mes- tho tipo de coisa ao dizer que a8 casas de tijolo de Blin Street existem e ao dizer que existem hhimeros peimos superiores a um milhio, apesar das enormes diferengas no uso das palavras (no caso desse exemplo, no uso de palavras numa descri¢io empitia e na matemtica). Evi Aentemente, seria crrado expressar esea diferensa afrmando terminantemente que exisir tem irios significados diferentes no sentido de merecer virias entradas de diciondtio diferentes 2 A bem dizer, os problemas comecam bem antes de considerarmos “ob- jeros” problematicos, como guerras, 0 céu ou imagens refletidas no espelho. ‘Um critério antigo para a individualidade de um objeto é que as suas partes ‘se movam quando esse objeto se desloca, Mas tenho em casa uma lamparina {que viola esse critério; a sombra diminui sempre que a lamparina se desloca! Seri que a lamparina no € nesse caso um objeto? Embora nto tenha sido ‘esse 0 motivo da invengio original daquilo que os filésofos denominam “so- mas mereolégicas”, ou seja, objetos que tém como partes objetos arbitréios, pode parecer que essa invensao assegura de fato que a totalidade dos “obje- tos” € suficientemente grande para tratar de casos semelhantes aos de minha lamparina. Se a “soma” de guaiyquer dois (ow mais) objetos for um objeto; se houver até um “objeto” formado pela minha orelha esquerda ¢ © nariz do leitor, entio existe de fato um objeto equivalente 2 soma mereolégica do corpo da lamparina (¢ da limpada) com a sombra. Mas 0 prego metafisico disso € alto!!? Alguns filésofos podem no se interessar por exemplos como 0 eéu ou as imagens refletidas no espelho, pois podem estar prontos a dizer que essas coi- sas no existem verdadciramente (mas seri entio que descrever a cor do céu €somente fazer uma afirmagao falsa?); mas vio afirmar que todos os objetos Gientificamente importantes podem ser identificados com somas mereold- gicas de moléculas ~ ¢, em tiltima andlise, de particulas. Nesse caso, porém, nio levam em conta que as particulas da fisica moderna no sio pequenas ‘Mas o pressuposto de que o significado ds palavas, em qualquer acepsto convencional dessa ext, decming carmen oa < dis m a cn tuo desaepalavastflte tua imagem do modo como funciona alinguagem, que é na maha opinito profundameate Geena (Quine som divas concndans com caw ln cheep =o ue toons ainds thats confisoo fto de ele exaraferrdo a kein de que exe e ums pasta unioc!)Julgo At dbunguir neste contest, entre 0 “sensdo”e.0“sgificad” de om para, Consul se quanto iso “Reply to Conant”, cm Plifeophieal Topic, vol, 20,n. 1, The Pilon of ‘Hilary Putnam (Primavera de 1992). (N.T. Numero especial dedicado 4 Potnams. Contém téplicas de Putnam, entre ae qusis «cua, ] 8 prego é alto pon, ses consideramios um sistema de novas vendades superlatvas acerca “ds mobiia do mundo", a “mereologi”€ metafsicamente perdliria, Esta objeyao, nat sslmente, ato surge se estvermos dspostos a considera dlscurso da "soma mercolbgca” eto uma extent de nowso discurso habitual sobre objetos, Ninguém pode contestar NOs80 dlieto de introduate nova formas de discurso(embora Alva Noe tena questionado para que Fins ene dscurso é uma extenco di). Mag nese cato meu pono de va aceea da catensb dade de nos opi de “eta” rr sido aco, De fc exten no Recep ‘mesma uma toutklade de “objetos” (ou “entilades) sfcientemente grande pars revons+ {euslo de todas nosss pedieagoese de wotas nossa geteralizagbes univers © exisenci ‘edu mio ¢ uma soma mereologiea de abjetos no sentido paatigmstico do termo (anima, ‘eget, rochas, colinas ete), nem 0 sio os events ot a imagens releidas aim expel 22 CORDA TRIPLA bolas de bilhar ¢, desse modo, esquecem-se do fato de ter surgido, dentro da propria fisica, uma outra extensio da nogio de “objeto” ~ na verdade, a extensio mais radical jé feita até hoje. ‘A razio por que as “particulas” da mecinica quintica no sto objetos no sentido tradicional & que (na maioria dos “estados”) elas nao possuem, segundo a mecinica quintica contemporinea, nenhum nimero definido! Mas os objetos tradicionais possuem sempre um ntimero definido, Isto sig- nifica que, se as mesas ¢ as cadeiras que conhecemos (¢ minha lamparina) forem somas mereolégicas, nao pode haver particulas da mecinica quantica de que elas sejam somas mereolégicas, Além disso, as propriedades logicas dos “campos” da mecinica quantica sto igualmente estranhas. (Diga-se de passage que 2 adogao de uma ontologia de pontos espaco-temporais nio é uma panacéia para estes problemas, pois os problemas colocados pelas “su- perposisdes de estados” da mecanica quintica afetam o préprio espago-tem- po, em vez de apenas set “contetido material”. Por conseguinte, a mecanica quintica é um excelente exemplo da forma como, com o desenvolvimento do saber, mesmo nossa concepgio daquilo que conta como uma alegagio de conhecimento possivel, nossa concepsio daquilo que conta como um objeto possével € nossa concepsao daquilo que conta como uma propricdade possével estdo todas sujeitas a mudanga."* O realista tradicional parte do principio de que 6s nomes gerais corcespondem, de maneira mais ou menos univoca, a vi- rias “propriedades” de “objetos”, em algum sentido de “propriedade” © em algum sentido de “objeto” estabelecidos de uma vez por todas, e de que as alegagdes de conhecimento sao simplesmente alegagoes sobre a distribuigio dessas “propriedades” nesses “objetos”. (© metafisico tradicional tem toda a razio em insistir na independéncia da realidade € na nossa responsabilidade cognitiva de sermos figis a todas, coisas que descrevemos; mas a imagem tradicional de uma realidade que dita de uma vez por todas a totalidade das descrigoes possiveis mantém essas contribuigdes & custa de perder a verdadeira contribuigio do pragmatismo de James, 0 de que a “descrigao” nunca é uma mera cépia e de que estamos sempre criando novas manciras de a linguagem poder ser responsivel perante a realidade. E é essa a con io devemos rejeitar apressadamen- te, na dnsia de recuar diante do discurso pouco sensato de James, segundo o qual “inventamos” (parcialmente) 0 mundo, * Para uma discussio mais detalhada sobre o carter esranho do conhecimento da mecinica fa, Vero principal ensaio de meu livra Realism with a Human Free (Cambridge: Har- niversity Press, 1990), Primeira sopito: O sentido, 0 contra-senso e os sentidos 23 Contudo, & luz de minhas criticas, no se poderia sugerir que até mesmo meu uso do termo realidade € enganador e uma fonte potencial de confusio filos6fica? E, sem dtivida, verdade que termos gerais, como realidadee razio (e, seria possfvel acrescentar, linguagem, significado, referéncia...) s¥0 fontes de profunda confusio filos6fica. A solugio nao reside, entretanto, no simples abandono dessas palavras. A idéia de que nossas palavras € nossa vida sto constrangidas por uma realidade exterior a nés desempenha um importante papel em nossa vida ¢ deve ser respeitada. A fonte de confiusio reside no erro filos6fico vulgar de se supor que 0 termo realidade tem de referir-se a uma tinica supercoisa, em vez de considerar as formas como renegociamos incessantemente ~ ¢ somos forgadosa renegociar ~ nossa nogio de realidade 4 meclida que nossa linguagem nossa vida se desenvolvem. Obser semelhantes aplicam-se aos outros termos que acabamos de mencionar.!> Por que 0 realismo se tornou um problema? Discutamos agora por que razio 0 realismo relative ao “mundo exte- rior” comesou a parecer problemético. Os primeiros filésofos miodernos par- tiram do principio de que os objetos imediatos da percepsio sio mentais € de que os objetos mentais si ndo-fisicos.'® Além disso, mesmo seus opo- nentes materialistas apresentavam fregiientemente concepgdes de percepeio que sc assemelhavam bastante a essas concepsdes “cartesianas”” Mesmo na ciéncia cogaitiva contemporinea, por exemplo, esta na moda a hipétese da existéncia de “representagoes” no computador cerebral. Se partirmos do Principio de que a mente € um dupa. a identificarmos com o cérebro, nio poderemos deixar de 1) considerar algunas das “representagdes” como alo anilogo as “impresses” dos teéricos classicos (o computador cerebral, ou mente, faz inferénciasa partir de pelo menos algumas das “representagoes” "Meu uso da distinglo, estabelecida aqui c em outros contextos, entee observar 0 papel que tuma nogio do género “realidade” desempenha na nossa vida real © construla da forte Corno 6s flésofos sio freqdentemente tentados a fazer &0 tema de uma stil diseussto de James Cor pant em seu ensiio introdutGrio a meu livro Words and Life (Cambridge: Harvard Univesity Press, 1994). . Stee “0 fato de esses objetos imediatos terem sido concebidos de formas tao diferentes (“ideias™ cartesanas, “impressdes” humans, “sensacbes” machianas a “daddos dos sentidos” russell 'n0s) pode ser considerado tum indicio de que os tedricosclissicostravaram uma lata constants ‘pas formular seus préprios pressupostos ce modo cacrente ” Deixo de lado aqui a alternativaidealista subjetiva berKeleyana & concepsfo eartesiana 24 CORDA TRIPLA — 08 resultados dos processos perceptivos ~ assim como a mente faz inferén cias a partir das impressdes, nos termos do relato clissico) e 2) considerar {que cssas “representagdes” estao ligadas a objetos existentes no ambiente do organismo apenas causalmente € no de modo cognitivo (assim como as impresses estavam ligadas a “objetos exteriores” apenas causalmente € 30 de modo cognitivo)."* John McDowell, em suas Palestras John Locke” de 1991, defende convincentemente que essa imagem, seja na versio clissica ou na mate- sialista moderna, é desastrosa para quase todas as partes da metafisica € da epistemologia. Do ponto de vista de McDowell, 0 pressuposto-chave responsivel por esse desastre € a idéia de que tem de haver uma interface entre nossas capacidades cognitivas ¢ 0 mundo exterior ~ ou, em outras palavras, a idéia de que nossas capacidades cognitivas ndo conseguem che gar aos proprios objetos, Os relatos sobre a percepeao que rejeitam essa alegaco sio classificados convencionalmente como “tealistas diretos” (embora esse seja, sem divida, jum nome infeliz)2? Contudo, algumas versdes do realismo direto sio meno: complexas do que podem parecer. Por vezes, aplica-se o termo a toda posi ‘go que negue que os objetos da percepgio “veridica” sejam dados dos senti- dos. Bsse uso torna demasiado ficil ser um realista direto. Tudo © que se tem de fazer para ser um realista direto (neste sentido) em relag2o, por exemplo, 4 experiéncia visual consiste em dizer: “Nos nio apreendemos experiéncias Visuais, nds as ¢ennos”, Uma reforma lingilistica simples , Voili!, passa-se a ser um realista direto.” Para evitar a sugestio de que 0 progresso filosdfico pode ser alear sado com tanta facilidade, pode ser aitil fazer uma distingdo entre 0 que se denomina vulgarmente “realismo direto” ¢ aquilo que passarei a de 1 Addin de que a mente nio 6 wm érgio material nem um Srgio imarerial, mas um sistema de cepacidades, ¢fortemente realgaca por John McDowell em “Putnam on Mind and Meaning” (Dhileopbica! Topics, Te Philowphy of Hilary Panay). McDowell, po sa Vez, apdia-se as Conrabuigdes de Gareth Evans em Varieties of Reference (Oxford: Osford University Press, 1983}, um livro euja importinla lamento no ter reconliecido quando o resenhei hs alguns anos na London Review of Boos. 18 Que foram publicadas pela Harvard University Press com o titulo Mind anit World. 286 motivo pelo qual a designagio “realisemo direto" & infeliz € que, como destaca porme: norizadamente Jolin Austin no lira Sense and Sensibitia (Oxford: Oxford University Press, 1962), hg uma boa dose de petigao de principio no uso epistemol6gico tradicional de “ireto™ ede “indireto”. SC, Iutentionaliey de John Searle, p. 37, para um exemplo do tipo de posigso que ctitico aqui Primeirm segito: O sentido, 0 contra-senso ¢ os sentides 25 nominar, a partir de agora, “realismo natural”, (Aproprio-me da desig. (0 a partir do desejo expresso por William James de uma concepsio da percepsi0 qne faga justica ao “realismo natural do homem comum”.) De meu ponto de vista, 0 realista natural afirma de fato que os objetos da percepsio (normal, “veridica”) so coisas “exteriores” e, de um modo mais geral, aspectos da realidade “exterior”. Mas o filésofo cujo realis mo direto consiste apenas na antiga teoria causal da percepgio com um verniz lingiiistico pode prosseguir facilmente. Esse filsofo poders dizer: “Aprecndemos as coisas exteriores — on seja, somos levados por essas coi- sas exteriores a vivenciar da forma apropriada determinadas experiéncias subjetivas”. O realista natural defende, pelo contritio, a perspectiva de William James, segundo a qual uma percepeao bem-sucedida é uma apre- ensito pelos sentidos de aspectos da realidade “exterior”, em vez de uma mera afecsao da subjetividade da pessoa por esses aspectos.** Concordo com James, bem como com McDowell, quanto ao fato de a falsa convic~ so de que a percepga0 tem de ser analisada desse modo estar na origem de todos os problemas que afetam 0 ponto de vista sobre a percepsao que, de uma ou de outra forma, tem dominado a filosofia ocidental desde 0 século XVII. A proposta de James é que a alegagio tradicional de que devemos considerar nossas experiéncias sensoriais como intermedidrias entre nés eo mundo nao possui argumentos de defesa sdlidos e, mais do que isso, impossibilita completamente perceber a forma como as pessoas conseguem estar em contato genuine com o mundo.** Nos tiltimos trinta anos, a tendéncia para se reprimir aquilo que con- tinua a nos confundir na filosofia da percepsao obstrui a possibilidade de progresso no que toca as questdes epistemoldgicas € metafisicas mais vyastas que, de fato, nos preocupam. Para ilustrar até que ponto esta re pressio é, atualmente, grave, passo a contar uma anedota. Pouco tempo © Uso aspas nesse caso porgie os termos interior € exterior apresentaim una imagem fsa da mente ~ a imagem da mente como alguma coisa que existe “dentro” do sujeito. Observe-se {que essa imagem nao € superada com a rejeigio do dualismo ~ pelo contrivio, a tendéncia popular de simplesmente identificar a mente com o cérebro dia impressio de que a imagem litersimente verdadeira! CE. The Works of William» James Esays in Radical Empiviciom, de William James, org. por Frederick Burckhardt e Predson Bowers (Cambridge: Harvard University Press, 1976) © James's Theory of Perception” em minha obra Realism wie a Human Face >» Observe-se quc mesmoa versio materalista as coneebe desse modo; 0 que acontece € que, para esta versio, as alteragoes de nossos estados cerebrais sas afecgdes de Rossa subjetividade 26 — depois de ter comegado a escrever estas conferéncias em Berkshires, di- rigi-me a excelente livearia de Water Street, em Williamstown, ¢ comec a consultar a colegio de livros de filosofia ali expostos. O que pretendi era ver 0 que havia disponivel sobre a percepeao. Embora Wittgenstein estivesse bem representado, 0 mesmo acontecendo com Ayer (nao s6 com Language, Truth and Logic) e com contemporancos scus, como Colin McGinn e Peter Unger, nio havia um tinico livro de John Austin ~ 0 fild- sofo cuja obra Sense and Sensibilia representa a defesa mais contundente daquilo que denomino “ealismo natural” em toda a historia da filosofia Nem havia (com excegio de Wittgenstein, cujo interesse por essas ques- toes € subestimado, ainda que seu trabalho como um todo nao o seja) nenhum outro trabalho de autoria de um realista natural, nem um s6 livro dedicado & percepe%o como tépico (embora o tépico evidentemente “aparega” ~ em geral de uma forma muito ingénua ~ em trabalhos sobre “cigncia cognitiva”). Nem sempre foi assim. Na passagem do século XIX para o XX, a questio do realismo dieto era candente, Nao apenas William James, mas também os Novos Realistas Americanos e, de maneiras distintas, Moore ¢ Russell estiveram profundamente ocupados com ela durante algum tem- po. Mas depois de meados da década de 1930, a concep¢io tradicional de percepsao, que exigia uma interface entre 0 sujeito que apreende € os “objetos materiais”, tornou-se uma vez mais coercitiva. Essa concepgio foi submetida a uma outra rodada de criticas mordazes em Sense and Sensibilia, de Austin (publicada postumamente em 1960), ¢, de uma ma- neira bem menos satisfatéria, em The Concept of Mind, de Gilbert Ryle Contudo, talvez porque Austin j4 no estivesse vivo para explicar © d fender seus pontos de vista, os filésofos anglo-americanos deram mi pouca importincia a cle ¢ a Ryle. Claro que pararam de falar de “dados dos sentidos” e comecaram a falar de “experiéncias” (ou coisa parecida) =e adotaram a reforma lingiiistica que descrevi hé pouco. Mesmo Peter Strawson, um grande filésofo que freqiientemente demonstra uma pro- funda preocupacio com essas questdes, mistura muitas vezes uma ten. déncia genuina ao realismo natural com uma “teoria causal da percepsio” CORDA TRIPLA ® Muitos anos depois da publicasio do Manifesto dos Novos Realists, cm 1910, alegou-se ‘que Perry e Montague perguntarim wm a0 outro “Onde foi parar nosso programa de refor that” Citado em Herbert W. Schneider, A History of American Piilosoply, 2* ed. New Yorks Columbia University Press, 1963, p. 512. Primeiva segiv: O sentido, 0 comtrarsenso.¢ os sentislos_ completamente incompativel com esse realismo.?# No entanto, 2 filosofia da percepgio transformou-se em grande parte num nio-tépico para os filésofos analiticos. Por outro lado, com a reducio do interesse pela fe- nomenologia, depois dos anos 1930, ela se transformou em grande parte num nio-tépico também para os fildsofos “continentais”. Por que motivo afirmei que isso tem mnito que ver com a “quest3o do realismo” na filosofia da linguagem? Consideremos o seguinte: como pode- ria a questo “Como é que a linguagem acopla-se 20 mundo?” sequer pare- cet apresentar uma dificuldade, se a resposta ~ “Como é que falar, digamos, de casas € devores pode ser um problema, quando as vemos o tempo todo? jd no tivesse sido rejeitada de antemao por ser tida como indevidamente formulada ou “irremediavelmente ingénua”? A questi “Como é que a lin- ‘guagem acopla-se a0 mundo?” é, no fundo, uma retomada da antiga questao “como € que a percepcao acopla-se ao mundo?”. E sera surpreendente que, passaclos trinta anos em que virtualmente se ignorou a tarefa iniciada pelo punhado de meus heréis da area de Filosofia - a de se oporem ao ponto de vista sobre a percepgao que se vem adotando desde o século XVII -, a pré- pria idgia de que o pensamento ¢ a linguagem se relacionam de fato com a realidad tenha comesado a parecer cada vez mais problemética? Deve causar alguma surpresa que no se consiga ver como o pensamento ¢ a linguagem acoplam-se a0 mundo quando nunca se menciona a percepea0? A “antinomia do realismo” Durante aproximadamente os primeiros vinte ¢ cinco anos de minha vida profissional como filésofo, partilhei com meus contemporineos uma dada con- cepsio de quais eram de fato as questdes metafisicas € epistemolégicas € uma dada concepsio da (pouca) importincia que a filosofia da percepeao tinha em relagio a essas questdes. Mas no curso dos étimos quinze anos comecei a per ceber cada vez mais o gra em que nosso atual ponto de vista sobre quais sao as alternativas filos6ficas vivas depende precisamente de um consenso bem amplo, ainda que vago, sobre a natureza da percepsa0, Minha estratégia para o restante desta palestra seré fornecer uma breve descrigio da forma como cheguei a essa * Guawaon suena qué a percepelo & um conctito emul no enssio “Perception and Iss Ob jest ca sun atria, bn GT: BeDonaldyonge Perception and Identity: Buns Prete to A Jager (shea: Connell Unversity res, 1975), com base no fato deo senso comm afta ue novmalmente temos expertaces vile & cxatEnia doe objetos enas cxpergnca, De de cordo com Stawvon, ino é por dS equivalents i teoras causal da perenpo. 28 CORDA TRIPLA conclusio propondo tum resumo de minha propria historia intelectual nos tilt. mos vinte anos, embora deva confessar que ha motivos adicionais para eu me dedicar a esta pequena autobiografia intelectual. Em primeiro lugar, no campo da filosofia, € necessério distinguir a posigao pessoal de outras posigdes e, no ‘meu caso particular, pretendo esclarecer o que conservei das posigdies que antes defendi e os pontés os quais acredito que errei quanto ao “realismo interno” que tenho defendido em varias conferéncias e publicagdes a0 longo dos iltimos vinte anos. A bem dizer, se eu nao conseguir fazé-lo, minha posigio nestas palestras cestari sujeita a ser muito mal compreendida, Em segundo, antes de esbogar, nas proximas palestras, a diregao em que julgo estar a solugio para os problemas filos6ficos que vou discutir aqui, pretendo, nesta primeira palestra, tentar dizer quais sio, para mim, esses problemas. Em conseqiiéncia, o que pretendo forne- cer nao & uma simples descrig20 de meus pontos de vista anteriores, mas uma representacio do estado de espirito filoséfico que me levou a cles. Nesse estado de espirito, © problema global do realismo comegou a me parecer uma enor- me antinomia da razio, E a esta visio do problema do realismo que pretendo conduzi-los agora. Ao fazé-lo, sei que contrario a vontade da maioria de voeés. Muitos filésofos pretendem descartar os problemas tradicionais da filosofia da percepgao, como se ji se tivesse perdido muito tempo com cles € como se jf os tivéssemos superado. (Para esses fildsofos, 0 que estou pedindo vai parecer uma re-infantilizag3o da filosofia.) Em nossos dias, hd muitos filésofos absolutamente trangtilos com respeito quer a um realismo dogmético, quer a um anti-realismo igualmente dogmitico. Creio que 0 progresso no que se refere a esses problemas 36 surgité quando avaliarmos em que aspectos esses pontos de vista sio igual- mente insatistitérios, em que aspectos cada um deles é a imagem especular do ‘outro ¢ depende da idéia de que o outro € a tinica alternativa. Com eftito, creio {que a filosofia profivnda comega sempre pela avaliago ~ com um sabor de para doxo — das dificuldades que parecem excluir foro caminho que leve a clareza, € a melhor forma que conheco para transmitir esse sabor de paradoxo, no caso da {questo do realismo, é descrever a forma como comecei a senti-lo. Em primeiro lugar, em meados dos anos 1970, quando escrevi “Realism and Reason” e “Models and Reality”, minhas duas primeiras publicagdes sobre a questto do realismo, nio considerei que houvesse um intimo envol imento entre ela ¢ as questoes da percepsao, nem com um dado conjunto 2 Realism and Reason” foi incufco em meu livto Meaning and the Moral Sciences (London: Routledge and Kegan Paul, 1978), 2 Models and Reality” fol incluido em meu livro Philasophical Papers, vol. 3, Realism and ‘Reason (Cambridge: Cambridge University Press, 1983) ra-senso vos sentidos 29 civ seeao: O sentido, 0 de pressupostos sobre os poderes da mente humana e, se o tivesse percebido, nfo teria ficado satisfeito com o recurso aquilo que denominci nesses ensaios semintica verificacionista”. Nessa ocasiio, sustentei que a compreensio que temos de nossa linguagem tem de consistir em nosso dominio de seu uso. E aerescentei: “Nao faz sentido falar como se este fosse © meu problema ~ “Eu. sei como usar minha linguagem, mas como € que cu escolho uma interpre- erpretagio” ou nada pode Continuo a concordar com essas palarras, Mas atualmente eu thes daria tum sentido bastante diferente. A dliferenga tem relagao com a forma como se entende 0 que est envolvido num recurso a0 “uso”. A nogio de uso qu empreguci na época era uma nogio “cognitiva cientffica”, ou seja, era ne sirio descrever 0 uso primordialmente em termos de programas computa- dorizados existentes no cérebro. Para dizer a verdade, mesmo na época no pensei que a nosao pudesse restringir-se a referéncias a programas compu tadorizados no cérebro. Por uma variedade de razdes, cuja retomada levaria demasiado tempo, cu pensava que teriamos nio s6 de falar da organizaco fancional do cérebro do usuério da lingnagem, mas também de especificar 0 tipo de ambiente em que esse usuario estava inserido.® Minha idéia de uso. era assim um hibrido em que © programa computadorizado existente no cérebro somava-se a descrigao das causas exteriores das palavras empregadas pelo usuario da linguagem ‘Mais tarde, porém, cheguei a conclusio de que existe outra forma, fundamentalmente diferente, de conceber 0 termo “uso”. Nessa concep- gio alternativa (que, como defendi alhures, correspondia & da fase tardia de Wittgenstein), 0 uso de palavras num jogo de linguagem nao pode, na maioria dos casos, ser descrito sem o emprego do vocabulirio desse jogo, ou um vocabulitio internamente relacionado com © dese jogo." Se se pre tende descrever 0 uso da sentenca “H4 uma mesa de café & minha frente”, € necessirio ter por garantidas as relagdes internas com fatos como, entre outros, o de determinada pessoa conseguir perceber mesas de café. Quan- do falo em perceber mesas de café, 0 que tenho em mente nao é o sentido ® CE. p. 24 de “Models and Reality”. % Para uma explicigio detalhada dessas razées, ver “The Meaning of ‘Meaning™ (reunido fem meu livro Mind, Language and Reality) ¢ Represensation avd Reality, da minba autoria (Cambridge: MIT Press, 1988) 2° Ce meu enssio “Does the Disquotational Theory of Teuth Solve All the Problems?” incin= ‘dom minha obra Words and Life, paca esta leitura de Wittgenstein, assim como 0s capitulos 7e Bde meu listo Renewins Philosphy (Cambridge: Harvard University Press, 1992). 30. CORDA TRIPLA minimo de “ver” ou “sentic” (0 sentido em que se pode afirmar que se “viu ou “sentiu” uma mesa de café, mesmo que nfo se tivesse a minima idéia do que é uma mesa de café); refiro-me ao sentido de percepgio com- pleta, o sentido em que ver uma mesa de café € ver que € uma mesa de café que esta a minha frente. Existe, como € evidente, uma espécie de ingenuidade cultivada em relagdo 4 manobra que acabo de imputar a Wittgenstein, O fil6sofo isra- clita Avi Sagi sugerin que o que defendo é uma “segunda ingenuidade” € accito com satisfugao essa descrigao. A diferenca entre o significado cientificista ¢ o wittgensteiniano da maxima “Significado é uso” é novive na forma cientificista, a maxima é perfeitamente compativel com a ima gem cartesiana cu materialista antes descrita: nesse sentido, 0 “uso” da linguagem € algo que se pode descrever em termos de disposigdes para responder a “representagoes mentais”. Se eu estiver certo em relacio & aparéncia de que “Como podemos aprender coisas exteriores 20 nosso. nos & coisas exteriores 20 nosso cor- corpo?” ¢ “Como podemos refe nificado € uso” nao nos vai ajudar em nada caso se entenda a nogio de “uso” messe sentido. Evidentemente, também hé problemas na compreensiio da méxima da mancira como cu a atribuf a Wittgenstein. (E a maxima no deveria ser, na verdade, “Significado € uso”, mas sim Compreender é possuir as eapacidades (que se exercitam quando se usn a Hinguagem no uso da linguagem.) A dificul- dade estar em verificar a forma como uma opcio deliberada no sentido de uma “segunda ingenuidade” poderd ajudar depois de trés séculos de filosofia, moderna, para nao falar de um século de ciéncia do cérebro ¢, atualmente, cigncia cognitiva. © problema ~ meu e de meus “herdis” floséficos ~ reside nna demonstracao da possibitidade de um retorno aquilo que James chamou de realismo natural A fim de explicar por que motivo esse retorno é necessério, conti- nuarei a me referir As minhas préprias confusbes anteriores em relagio a esses problemas. Comecei a perceber dificuldades no realismo, dificul- dades que estdo associadas com pressupostos introduzidos na filosolia no inicio do perfodo moderno, alguns anos antes de comesar a perce- ber a cxisténcia de alternativas a esse tipo de realismo. Em particular, antes de escrever “Realism and Reason” ¢ “Models and Reality”, cu ndo conseguia ver nem como defender © realismo nem como poderia haver algum outro modo de compreender a relagio entre a linguagem ¢ a realidade. Minha impressio era de ter ficado preso em irremediaveis Primeiva segao: O sentido, 0 contra-senso ¢ 0s sentidos 31 antinomias! (Mais tarde, fiquei insatisfeito com a solugio que dera ao problema nesses artigos, mas foi neles que comecei a avaliar a profun dade do problema.) Uma das consideragdes que me levou a ver as coisas dessa forma foi © famoso Paradoxo de Skolem na Filosofia da Matemética, © paradoxo segundo © qual todas as teorias consistentes possuem um enorme nimero de diferentes interpretagdes possiveis, inclusive interpretagdes ndo-isom. ficas. Assim, a totalidade das verdacies sobre os “objetos” matemiticos exprimiveis na linguagem matemstica nio pode estabelecer a que objetos nos referimos, mesmo se nito formos alén: do isomorfisine.® Afirmei que, utilizando a mesma fecramenta usada por Skolem pata provar 0 teorema, hoje denominado Teorema de Léwenhcim-Skolem (ou, alternativamente, utilizando outros teoremas do mesmo ramo da légica, 6 ramo denominado “teoria dos modelos”), seria possivel provar resultados semelhantes acerca de guralyier linguagem, incluindo a linguagem cotidia- nna ou a que usamos na ciéncia empirica.*! Minha idéia era que o argumento de Skolem (¢ outros argumentos baseados na “teoria dos modelos”) con- tinuaria funcionando, mesmo que se acrescentassem restrigdes as interpre- tagdes admissivcis, restrigdes essas que especificariam que seria necessario aplicar determinados predicados a determinados objetos sempre que as “entradas” do computador neuronal (por exemplo, as safdas dos “médulos de percepsio”) fossem de um tipo especifico. Por razdes evidentes, deno- minci-as “restrigoes operacionais”. Reconheso que essas restrigdes opera- cionais restringem a interpretacio permitida dos predicados pertencentes as proprias “entradas perceptivas”; mas todos os outros predicados exis: ® Embora alguns tenham’se recusado até mesmo a falar de um “paradox” nesse caso, com base no ito de Skolem nfo ter obtido uma contradisao (nem ter afirmado que a obtivera) ¢ partir dos pressupostos da matemitica intuitiva da forma como Russell fez com seu famoso paradoxo, parece-me justo falar aqui de “antinomia™ se se tverinclinagio para uina floss dda matemitica platnica,flosofia em cujo Ambito a mavemética se refere a um conjunto de “objetos abstratos”, a um conjunto de cosas que, misteriosamente, conhiecemos sem tet tido) qualquer interagao Causal com elss. Porque, caso pretendamos master ei ponto de vista sev postularmos poderes migicos da mente que nos possibilitem conhecer esses objetos, a reas natural seri dizer que nossa compreensio daquilo que esses objetos So € toialmence const tida por nossa percepezo intelectual de verdader sore ess coisas, no caso, a5 verdaddes da matemitica. *® Contrariamente a0 que sc afirma com fiegiéncia, o problema nto desaparece se formalizar- ‘mos a matemitica numa lbgica de segunda ordem; em ver disso, cle simplesmente reaparece na forma do problema da existéncia de interpretasdes nlo-pretendidas da propria logics de segunda ontem. Ver por exemplo 0 apéndice de meu livro Rearon, Truth and History. 32, tentes na linguagem ~ com excegio dos definiveis explicitamente mediante 0 predicados operacionalmente restritos ~ continuario a ter uma enorme multiplicidade de interprecagdes nao pretendidas, inclusive algumas bem estranhas. (O motivo de ew ter pensado que isso levantava. um problema € que, na sofia “cartesisina ctum materialista” da percepgao (bem como na concepeao dualista cartesiana, obviamente), as entradas perceptivas constituem o limice exterior de nosso processamento cognitive; tudo o que estiver além dessas entradas s6 esté ligado causalmente, ¢ no em termos cognitivos, a nossos pro- cess mentais, Mesmo que se ponham as “entradas” numa zona tio exterior como a superficie do corpo (como faz. Quine com seu discurso sobre “neurd- nios superficiais” ¢ “irritagdes superficiais”), tudo o que esta fora da pele tam- bém esta fora do processo cognitive. Mas 0 que meu “argumento baseado na teoria dos modelos” demonstrou foi que as interpretacdes de nossa linguagem = inclusive as que tornam verdadeiras as prOprias sentensas que si0 “de fato verdadeiras”, verdadeiras clo “ponto de vista de Deus” (supondo, como 0 fz, tradicionalmente o realismo, que a nogio de um ponto de vista de Deus faga sentido) ~ podem concordar com aquilo que essas entradas so, ¢ ao mesmo tempo discordar amplamente daquilo a que se referem de fato nossos termos. Assim, cheguei 2 conclusio de que, se 0 tipo de realismo que conhecemos des- de o infcio do period moderno, incluindo a teoria causal da percepsao, estiver correto, entio tudo o que acontece dentro da esfera da cognigio deixa em geral a referéncia objetiva de nossos termos quast totalmente indeterminada. Esse argumento ocorreu-me dois ou trés anos antes de minhas duas pu- blicagoes “anti-realistas”. Na mesma época afirmei: “Ou 0 uso da linguagem Jd estabelece a “interpretacio” [de nossas palavras] ou mada pode fazé-lo”. ‘Um mundo que interpreta nossas palavras para nds, um mundo onde exis- tem, vamos dizer, “raios noéticos” emitidos do exterior para a nossa cabeca (Iembremos que eu ainda considerava a mente uma coisa ¢, assim, nto tinha nenhuma alternativa além de icentificé-Ia com o cérebro) é um mundo mi gico, um mundo de fantasia. Eu no conseguia ver sequer se a fantasia fazia sentido, mas, na época, também nio via como a referéncia fosse possivel, execto se a fantasia tivesse sentido. Disso advinha minha sensagao de estar diante de uma genuina antinomia, Minhas primeiras formulagdes do realis- mo interno foram uma tentativa insatisfat6ria de resolver essa antinomia, © Ver, para mais detalhes, Reason, Truth and History (capitulo 2 © Apéndice). Os leivores com alguas conhecimentos de Logica matemética talvez queiram consultar também “Models and Realty” _Primeira sega: O sentido, 0 consra-senso e os sentidos “Realismo interno” Em 1975-1976, o trabalho de Michael Dummett, um filésofo que muito contribuiu para que as questdes sobre © realismo voltassem a0 centro da discussto filos6fica, sugeriu algo que julguei ser uma “saida” para antinomia. Nas publicagoes que mencionei, denominei a saida — ou seja, a idéia de que a compreensao que temos de nossa linguagem consiste em nosso dominio de competéncias como a capacidade de atribuir graus de confirmagio as sentengas ~ de “semintica verificacionista”.® Mas as publicagdes que mencionei nao explicavam 0 que me propus fazer com respeito A nosao de verdade. Isso estava reservado a Reason, Truth and History. Nessa obra, propus-me identificar o ser verdadeiro nao com o ser verificado, ao contririo do que fez Michael Dummett, mas com o ser verificado num grau suficiente para garantir aceitagio em condigées epis- émicas suficientemente boas.” Embora tenha sido inspirada pela posigo que Dummett denomina “anti- realismo global”, essa primeira versio do “realismo interno” exibia duas im- portantes diferengas em relagio aquela.** Ao contrério do “anti-realista glo bal” de Dummett, eu no supunha que as proposigdes empiricas pucessem » Aiguns eves, confundios por uin letra descuidada de um sentensa de “Realism SS ph pincer nests ds eno coma deni “reaomo ttoo" Ue endl em “The Meaning of Meaning" com meus srghs fanctonalta": Em Real tad Reston, reste tnberao aio ta isa expesdo pars desigrar minha howe poser ru na verdade um term pas im tipo de seliome ceneiico que ctf sinha efoto ‘alpen anon uma pong (contre feel mostir nen es), que Fanco os real ter como os aniereaiure poderam aesizrs Contd, logo descoly ue todencsarame Sando s expresso para danignar mish nova pong fo para ago se spares que trans pouao). Mesmo tendo madicado em certos sypectos mia poscto ener eves dois enaton © Reason, Truth an Hanoy, neste ssino trabalho conformetine 4 toda Sc nae de Sea fer nova ato de Pata fete al ose, Bete Cinibém mencionar gunmen que Gary Ede ck seu enato cy Philp ca! Ties Toe yo ars Puen) sou 8 cons de oe veo eat mes ee, Fam Dummer, uma sentenga€ rm gral ou verfada (deforma conch) ou nto ve sfcada (excetando co dest vgah Pas nim, veiingao ea (e€) tm questo de fra su explo donne pops por ina to degree Human Face, BSERICGS Reel is SEEM Banmet, Tah and Osher Exismas (Cai Harvard Univesity Press 34 CORDA TRIPLA ser invarinveluente verificadas ou falsificadas.” Além disso, desde © inicio ex estava incomodaclo com a confianga excessivamente “idealista” da posicao de Dummett, tal como representada, por exemplo, pelo namoro de Dummett com um anti-realismo forte em relag20 20 passado, ¢ evitei esse anti-realismo rte ao identificar a apreensio que um falante faz do significado de uma afirmacio nio com a capacidade de dizer se ela é verdadeira nessa ocasiio ou se é verdadeira em ciccunstincias que o falante pode efetivamente provocar, tal como o faz Dummett, mas com capacidades do filante que permitam a um falante suficientemente racional decidir se a afirmagio é verdadeira em circunstincias epistémicas suficientemente boas. A objegao de que essa ainda ¢ uma posigio idealista, respondi que cer- tamente nio 0 é, dado que, enquanto © grau de confirmagzo atribuido de fato pelos falantes a uma sentenca pode ser simplesmente uma fungio de suas experiéncias sensérias (observe-se que eu ainda adotava a concepgio padrao ~ isto é, a concepsio formulada nos primérdios da Modernidade ~ de expe- riéncias sensérias!), a nosio de circunstincins epistémicas suficientemente boas € uma nogio que “envolve o mundo”. E por essa razio que a totalidade das experincias que os seres humanos ttm por meio dos sentidos nao deter- mina, de acordo com essa posigao, a totalidade das verdades, nem mesmo a longo prazo. ‘Contudo, a “antinomia” continuava presente, pouco abaixo da superfi- cie. Se, na imagem que herdamos dos primérdios da filosofia moderna, hi um problema em relagio ao modo como podemos ter acesso referencial 3s coisas exteriores, sem postular nenhuma modalidade de magia, ha um pro- blema semelhante quanto a0 modo como podemos ter acesso, referencial ow de outro tipo, a “situagdes epistémicas suficientemente boas”. Na imagem al- ternativa que propus (oposta de Dummett), 0 mundo podia determinar se eu estava de fato numa situagio epistémica suficientemente boa ou se apenas parecia estar ~ conservando assim uma importante idéia do realismo do senso comum ~, mas a concepeao de situagao epistémica era, no fundo, apenas a concepsio epistemolégica tradicional, Meu cendcio continuava a conter a premissa bsica de uma interface entre o conhecedor € tudo o que estivesse » Esse aspecto da posigio de Dummett talvez vena de seu descjo expresso de aplicar a Logica Intuicionista de Brousser, uma logiea concebida por este em conexio com uma flosofa anti- realisea da matemstia, §Tinguagem empitica. A forma mais simples de fazer isso & amplias a osao de “prova", que éa nosio bisiea ha semdnticainmicionista para linguagem matemiti- «3, até tranformi-ia numa nogio maisabrangente de “verficagao conclusiva" aplicavel tanto 4 Tinguagem matematica quanto 3 nio-matemitica, e & essa a mancica sugerida por Dummett ‘Besa resposta foi dada no iltimo capiculo de Representation and Reality. no “exterior. Mas, embora a necessidade de uma “terceira via” além do re- alismo moderno inicial ¢ do idealismo dummettiano seja algo que sinto com forca do que nunca, essa terceira via - como McDowell afirmou repe- tidas vezes ~ tem de elfminar a idéia de que existe uma antinomia, em vez de limitar-se a reunir elementos do realismo moderno inicial a elementos do relaco idealista. Nenhuma concep¢2o que mantenha algo semethante 4 nogio tradicional de dados dos sentidos pode fornecer uma saida; uma concepsio desse tipo vai sempre nos deixar, em tiltima andlise, diante daquilo que pare- ce ser um problema insolivel.** Onde perdi o rumo © fato de eu continuar a pressupor algo semelhante & idéia de dados dos sentidos pode ser comprovado nas observagdes que fiz a0 fornecer uma breve caracterizacao do fancionalismo em Reason, Truth and History (p. 78- 82). Depois de explicar que, para mim, um “fancionalista” identifica pro- priedades mentais com propriedades computacionais do cérebro, escrevi Continuo inclinado a pensar que essa teoria € correta ou, a0 menos, que € a descrig20 naturalista correta da relasao mente/corpo. Hla outras descrigdes “mentalistas” dessa relacio que também sio corretas... a bem dizer, as noses de “racionalidade”, “verdade” e “referéncia” pertencem a uuma versio mentalista dese género), me, contudo, atraido pela idéia de que ma versio correta & uma versio naturalista em que as for- ‘mas de pensamento, as imagens, as sensagdes etc. sio ocorréncias fisicas funcionalmente caracterizadas (p. 79). * Estarei entio desistindo do “realismo interno"? Bem, se em Renton, Trth and History eu Ientifque’ o *reaismo interno” com aquilo que denomino aqui “verificacionisino moder do", em The Many Faces of Realivm (TaSalle, II: Open Court, 1987) eu 0 identifiquel com fejeig30 dos pressupostos realistas tradicionais de: 1) uma totaidade fixe que inclu todos os ‘objctos; 2) uma totalidade fixa que inclu todas 38 propricdades; 3) uma nitida linha diviséeie entre as propriedades que “descobrimos” no mundo © a8 que “projctamos” no musklos 4) uma relacio fixa de “correspondéncia” em termos da qual se supe que a vetdade seja de Sida, Rejeite esses pressupostos nio por julgi-los fasos, mas por serem, em altima anilise, Sninteligtves, Como vai ficar claro a seguir, continuo a considerar todos ¢ cada um esses pres Supostos inimtcigiveis, embora argumentasse em favor dessa conclusio de mancita um taro slferente. Logo, saber se continuo ow nZo.a ser, até certo ponto, wm realists interno €, cteio 2, algo tie pouco claro quanto saber que coisas estavam incluidas nesse rétulo intel 36 CORDA TRIPI ‘Na discussio imediatamente posterior & passagem de Reason, Truth and History que acabo de citar, expliquei também que, de meu ponto de vista, as sensagdes possuiem um aspecto “qualitativo” que nao se pode caracterizar funcionalmente que esse aspecto deveria ser identificado com um outro, caracterizado fisicamente, de nosso funcionamento cerebral.” Nao que eu nio tivesse consciéncia da possibilidade de considerar a percepgao como percepsao das coisas, ¢ nto de “dados dos sentidos”. Considerei essa possibilidade, por exemplo, a0 longo da discussio sobre as Srestrigdes operacionais” na interpretagio de nossa linguagem. No entan- to, essa possibilidade foi apenas mencionada, permanecendo largamente inexplorada. No texto em questio, 0 que importa essencialmente si0 as possibilidades de se recuar para uma concepeao onde apreendamos apenas nossos préprios dados dos sentidos. Nao € dificil descobrir © motivo: meu relato de nosso funcionamento mental era apenas um relato “cartesiano ‘eum materialista”, uma descrigao em que 0 fato de podermos ter acesso a algo exterior a nossos “inputs” tinha de parecer magico ~ aqueles “qualia” que julguei que podiam ser identificados com “ocorténcias fisicas”.** Na medida em que ew estava consciente de algo que se pudesse chamar de “realismo direto”, esse realismo direto era apenas uma reforma lingiiistica superficial, cuja tunica fngio era elaborar uma modificagao verbal na forma de apresentagao da imagem tradicional. Se defendermos, como eu fiz, 2 imagem tradicional cortigida, a modificagao verbal (modificago que con- siste em admitir que podemos dizer que “obscrvamos” coisas exteriores, mas que deve ser exttendida, evidentemente, no sentido de que essas cois: nos levam a ter determinados “qualia” e que o fazem da “forma apropria~ da”) parece set, no fando, apenas uma mancira de esconder um proble- ma, o de como até mesio nossas percepsbes podem ser percepgdes dever- minadas de coisas exteriores particulares, problema que eu mesmo me vi “descobrindo” quando cestaquei que podiamos entender que as restrigdes operacionais da interpretagio de nossa linguagem referem-se justamente a nossos dadlos dos sentidos. © Um aspecto paradoxal dese posigo é a que, de acordo com ela, as afeogies de nossa sub jetividade So equivalentes aos estados fisicos de nosso eérebro e, portanto, 2 alguma coisa 0 Jerina. Esta €, entrctanto, uma earacteristica de toda posigio materialisca que tenta ao mesmo Tempo ter “gnalin¢ “naturaizi-los”. CE. nota 22 acima SV)Rimesma deserigao ests em “Computational Psychology and Interpretation Theory” (incl [do em meu liso Philooplical Papers, vol. 3, Realism and Reason) ¢ arabém em “Reterence and Understanding”, parce de Meaning and the Moral Sefences (est timo escrito antes mes imo de meu regresso 20 “realismo interno”) ___Primeira segtio: O sentido, o contra-senso eos sentidas 37 ‘A alternativa a0 relato moderno inicial, que comecei a delinear, njo envolve “anestesia simulada”.** Nao envolve a negac3o, que Daniel Dennett por vezes parece adotar, da existéncia da consciéncia fenom: nica, experiéncia subjetiva com toda a sua riqueza senséria."* Envolve, em vez disso, a insisténcia de que as coisas “exteriores”, as couves ¢ 08 reis, podem ser vivenciadas, (E nao apenas no sentido pickwickiano de provocar “experiéncias”, concebidas como afecgdes de nossa subjetivi- dade, que & 0 que se considera que si os qualia). Na minha préxima palestra, tentarei convencé-los melhor de que essa alternativa € neces- saria ¢ vidvel.!® ‘Na proxima palestra, também terei de considerar a objegio de que existe algo de “nio-cientifico” — no sentido de anti-cientifico— no realismo natu- ral. Terei de enfrentar uma ilusio em que estamos imersos desde o inicio do século XVII, segundo a qual a matematizacdo da natureza nes impde o ponto de vista tradicional da percepeao. Perceber que nao ha nenhum contlito en- 1979). ’ Feri acrderiados com coi siguma queen fora de cerebro. Com fir bd nese 38 CORDATRIPLA tre 0 realismo natural ¢ a ciéncia, nem entre um realismo do senso comum, perfeitamente adequado a nossos poderes conceituais, ¢ a ciéneia, vai exigir gue voltemos 4 discussio dos outros pressupostos realistas tradicionais que mencionei no inicio desta palestra ~ os persistentes pressupostos segundo 695 quiais a5 formas de todas as alegagdes de conhecimento, assim como as formas como essas alegagdes sio responsiveis diante da realidade, esto esta~ belecidas de antemao, ¢ de uma vez por todas. Palestra 2 A importancia de ser Austin: a necessidade de uma “segunda ingenuidade” metafisica do realismo inclufa tradicionalmente a idéia de que ‘ste uma totalidade definida de todos os objetos (num sentido de “objeto” que se imaginava ter sido estabelecido, pelo menos em filosofia, de uma vez por todas) ¢ uma totalidade definida de todas as “propriedades”.! Um nome geral referir-se-ia a objetos que tém algu- ma propriedade em comum. Essa idéia nto é de modo algum um mero item na cesta de lixo da histéria; esté subjacente, por exemplo, a teoria da referéncia proposta bem recentemente por Jerry Fodor, de acordo com a qual todas as palavras (mesmo a palavra bruxa) correspondem a “propriedades” ¢ hé “leis” que ligam essas propriedades ao uso das pa- lavras correspondentes. Numa variante que revela uma pequena influ- éncia do nominalismo, renuncia-se as propriedades em beneficio das classes. Por exemplo, David Lewis acredita que pelo menos os casos bisicos de referéncia envolvem o que chama de “classes de elite” ou “classes naturais”, classes de objetos nao sé do mundo real, mas igual mente de outros “mundos possiveis” que sao selecionados pela propria realidade.? Essas classes de coisas de diferentes mundos possiveis sio claramente apenas o sucedineo de Lewis para as antigas “proprieda- tas palestras incluo as relagdes sob o termo propriedader, Durante muito tempo negou-se que as relagoes fossem em termos motaisicos tio fundamentals quanto as propriedades, € $6 com 0 trabalho de Brege © de Russell a oposisio flosofica a essa ideiafinalmente se desicz 2 Cf “Pusnam’s Paradox”, Avstraiasinn Journal of Piles, vol 62 (setembro de 1984), p, 221-236. Ainda nao esti ésclarecida, a0 menos para mim, a forma como deve supostamente ‘corner a selegio das “clases de elite". Leicores de Lewis partem, mitas vezes, do press posto de que as classes de elite devem Ser aquelas que obedecem a “leis” rigorosas; mas isso na Verdade mio fz sentido como interpretayso daquilo que Lewis tem em mente, pois 1) os argumentos bascaclos na teoria dos modelos que apresentel em meu lire Renson, Truth ant History (Cambridge: Cambridge University Press, 1981) demonstram gue hi classes que mio Sio de'clte © obeddecem 3s mesmas leis, emt nosso mundo, a que as clases de elite obedecem (Lowis tem bastante conseigncia dessefato); € 2) as classes de elite de Lewis sto classes de ol sss.em diferentes mundos, havendo infiniamente muitos mundos em que clas aio abedecem a leis rigorosas, enquanto os membros de varias classes que nio sio de lite o fazer,

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