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Tim Ingold Estar vivo Ensaios sobre movimento, conhecimento e descrigao, Traduca de Fabio Creder Dados Internacionais de Catalogacio na Publicasio (CIP) (Cimara Brasileira do Livro, SB, Brasil) [ Ingold, ‘Tim, 1948 ~ Estar vivo : ensaios sobre movimento, conhecimento e | descrigio /‘Tim Ingold ; tradusso de Fabio Credet ~ Petropolis, RJ Vous, 2015.~ (Colegio Antropologia) Titulo do original: Being alive: essays on movement, knowledge and description Bibliogeafia ISBN 978-85-326-5052-8 1, Antropologia ~ Filosofia 2. Feologia humana ~ Filosofia 3, Percepsio geogrifica 3 VOZES SABREL crever a vida como um processo de “tatear”. Literalmente “permear tudo, de modo a tentar tudo, ¢ tentar tudo de modo a encontrar tudo” (p. 214), pelo mundo. “chadura ou fenda que possa potencialmente permi Nada, a0 que parece, escapa 20s scus tenticulos, Assim, onde quct que algo viva, a infraestrutura do mundo ocupado esti se separando ou desgastando, incessan- temente erodida pelo tatear desordenado de habicantes, tanto humanos quanto go humanos, conforme reincorporam ¢ reorganizam scus fragmentos em ruinas «em seus préprios modos de vida (INGOLD, 20072: 103). Para mim, ndo 36 a futilidade da superficie rigida, mas também a enorme inresistibilidade da vida, em nenhum outro lugar foram mais bem dramatizadas, do que em uma recente obra do artista alemao Klaus Weber (2004: 45-63). Tendo adquirido um loteamento em Berlim, Weber convenceu 0 Departamento de Estradas a revesti-lo com uma espessa camada de asfalto, Mas antes que as miquinas rolassem, ele aspergiu a drea com esporos de um determinado fungo. ‘Tendo sido colocado © asfalto, ele construiu um barracio no lado do terreno em, ‘que cle vivia, enquanto observava o que acontecia. Depois de um tempo aparece- ram protuberincias em forma de sino, o asfalto comegou a rachar e, finalmente, fangos ircomperam em grandes manchas brancas (Figura 9.5). Weber recolhew os fangos ¢ os fritou em seu barracio; aparentemente, tinham um sabor delicioso! O micélio triunfara. E assim também, em um mundo aberto, os emaranhados rasteiros de vida triunfardo sempre € inevitavelmente sobre as nossas tentativas de encaixoté-los. 192 10 Paisagem ou mundo-tempo? © escopo da Terra “Teorias sobre como as pessoas percebem o mundo ao seu redor ~ inclusive as teorias que eu mesmo apresentei (INGOLD, 2000a) — geralmente trabalham, a partir do pressuposto de que este mundo € terrestre. Trata-se de um mundo no gual podemos esperar encontrar formagbes geolbgicas, tas como colina ¢ vals, montanhas € planicies, intercaladas com assentamentos, tais como vilas ¢ cida- des, ¢ costurado por caminhos, estradas ¢ hidrovias. Para deserever tim mundo assim & coscume usar a palavea landeape (paisagem). A palavra tem uma historia atribulada, Provenienté do inicio da Idade Média, referia-se originalmente a uma drea de tert ligada As pritieas cotidianas e 20s usos habituais de uma comunicladle agra, No entano, sua posterior incorporagio inguagem de repesentasio “Tiulo XVII (ALPERS, 1983) lewu geragoes de estudiosos a confundien as ‘Tonotag6es do sufixo -sape por um “regime esedpico” particular de observagio detalhada ¢ desinteressada (JAY, 1988). Eles foram, ao que parece, confundidos or uma semelhanga superficial entre scape eeseapo, que é, na vendade, totalmente fortuita e nfo tam fuandamento a etmologia:*Escopo” vem do grego clissico sop teralmente “ovo do anu, am fea para @ qual ae otha quando: Shin (CARRUTHERS, 15% 0 verbo skopein, olhar ‘Scape, muito pelo contra i ‘do molar (OLWIG, 2008). ~~ Os modeladores medievais da te:ra nio cram pintores, mas agricultores, cujo ‘objetivo nao era transformar o mundo material em aparéncia em vez de em subs- tincia, ¢ sim exerair o sustento da terra. A forma, para eles, era tio intrinseea 2 constituigio da terra quanto 0 é a trama pata a consti ‘como um pano € tecido a partir dos fios entrelagados de urdidura também, nos tempos medievais, a terra foi moldada (‘aped) pelas pessoas que, | com pé, machado ¢ arado, ¢ com a ajuda de seus animais domésticos, pisaram, | cortaram ¢ artanharam suas linhas na terra, ¢, assim, criaram a sua textura em 193 3 constante evolusio. Este trabalho foi feito de perto, em um engajamento ime- dito, muscular € visceral com a madeira, a grama ¢ 0 s610 = 0 oposto mesino ca distanciada, contemplativa e panoramica que a palavra landicape (pai iV vod ea bas MEMES hoje Tete forme ‘com 0 seu aspecto — do scaped (moldado) com 0 escépico ~ alojou-se firmemente no vocabulério da histé:Ta da arte modernista. Assim, Jandrenpe (paisagem) pas- sou a ser identficada com cendtio e com uma arte deseritiva que gostaria de ver ‘D mundo estendido sobre uma tela, tanto quanto, no posterior desenvolvimento ida cartografia e da fotografia, ela seria projetada em uma placa ow tela, ou nas pfginas de um atlas. Em uma pintura de paisagem, no entanto, € em,contraste com tum mapa, uuma grande parte da imagem muitas vezes consiste no c&u, O pintor esté repre- sentando um mundo tanto da rerra quanto do céu, reconhecendo muito bem que no jogo de cor, luz ¢ sombra, uma nao poderia existir sem a outra. Pintores como John Constable dedicaram grande atengio ao céu, fazendo detathados estudos de muvens e formagio de nuvens que eram to rigorosos quanto a ciéncia da época permitia (THORNES, 1999), No entanto, o cfu foi quase universalmente ignorado pelos historiadores da arte ¢ outros que avocaram para si a tarefa de co- metitar sobre as pinturas', Presumindo que descrever uma paisagem seja colocar sobre uma tela uma parte especifica da superficie da terra € aquilo que est por cima dela, 0 céu recua em sua atengio para um fundo desapercebido ¢ tomado como certo, Podia muito bem nio estat Ii. E isso me leva a propor o seguinte, como uuma espécie de experimento mental (que nio deve ser repetido na galeria). Suponha que tomemos uma obri-prinia da arte paisagistica c cortemos a tela 20 longo da linha do horizonte. Descartando a parte superior, nds entio colamos 4 parte inferior em um papel de parede azul-claro ou cinza-claro. Ser& que faria alguma diferenga? Claro que faria. Mas em todos os eseritos sobre arte paisagis- tica eu desafiaria qualquer um a encontrar alguma explicagSo acerca de em que consiste a diferenga Olhando para o cfu A questo se resume a isto: Serf que o c€u é ou no € uma parte da paisagem? Seo for, seri ento que podemos supor que pereeber a paisagem € observar as ‘superfcies da Terra, ow de coisas sobre a Te ‘que deve- ‘mos fazer da nossa percepgio do-e&a? Send “mado isso sera apenas uma ilusio? Na psicologia da percepcao visual, como vimos 1. O gedgrafoe climatologista John Thornes observa que, embora 0 ex ocupe 4086 da célebre pine tira de Constable, carr de ew (1821), “quase nunca ¢ mencionadie € presumida pela maiora os historiadores da arte e yedgrafos curs 20 dscutiems 0 quadeo” (THORNES, 2008: 873), 194 evidéncia dessa imersio, a visio e a huz gera no tilkimo capitulo, a abordagem ecolégica iniciada por James Gibson & quase a ‘uma imagem do mundo, projetada na retina, como em uma tela, Gibson coloca os observadores bem no centro de um mundo que esté 20 sen redor 20 invés de «star pastando diante de sews olhos. Mas ele também insite que aguilo que pet a aah Comer en Oy PEREGO © GEN? Send que 0 eeu é uma superficie — umRa “feeFice entre um meio aéreo e uma substincia s6lida? Se o fosse, entao a viagem aérea seria perigosa, para dizer 0 minimo! Ou ser que 0 eéu 6, 20 contrétio, 0 epitome do vazio? Se assim 0 for, como entio pode ele ser habitado? E 0 que devemos fazer das nuvens? Imagine-se na floresta, olhando para cima, em direcfo & copa das drvores. Entre a textura das folhas, existem lacunas on espagos que permanecem abertos para o céu, E como se a copa tivesse buracos. Passaros voam por esses buracos, diz Gibson, como se algassem voo das copas das érvores (GIBSON, 1979: 106). Mas seré que um ambiente pode realmente ter faros? Ser4 que pissaros voam por buracos? Ser que as nuivens podem cobri-los? Seré que o eéu tem, em um dia nublado, uma superficie que se derrete em um dia claro? Seré que as muvens” isoladas so objetos suspensos no vazio? Responder afirmativamente seria tomar partido de Winnie-the-Pooh, que, penciurando-se em um balfo, esperava ser ca- paz de enganar as abelhas fazendo-as pensar que ele era uma nuvem passageita, quando, na verdade, estava atrés do seu mel. As abelhas, ¢ claro, nfo exam tio estéipidas! Mas no relato de Gibson, Pooh conseguiu escapar. Na verdade, Gib- son tem um problema particular com o céu ¢ com nuvens. Ele decorre da sua insisténcla em que, enquanto vemos através da Tuz, a tinica €a propria luz, Em vez disso, ele afirma, vemos as superiicies dis coisas através sua iluminagso. a Gostaria de divagar por um momento para comparar visio ¢ audigio neste contexto. Frequentemente pensamos na visio como um sentido objetificante Daqui olhtamos e vemos aquela nuvem, ow aquela drvore, ow aquele pissaro, eada 1um como um objeto situado em relagio a nds, a distancia. Mas com a audigio parece ser diferente. Dizemos que ouvimos sons, como se estivéssemos banhados neles. Eles entram em nés, ¢ nos agitam. Na verdade, a audigao ea experiéncia do som parccem ser uma ea mesma coisa, Mas se ¢ assim, por que a visio no pode igualmente ser uma experiéneia de Juz? Serd que néo podemos ser banhaclos pe~ leafs deur, nee guano © somos aon ‘espago visual”, Sar \ Alphonso Lingis, “nio ¢ pura’ imerso nele ¢ vé através dele” (LINGIS, 1998: 13). Por que, enti, c 195 imente estio opostas, ¢ nio identifi | cadas? A resposta, acredito, encontra-se em tim conjunto peculiar de erengas que 1m mantido longa influéncia na tradigao ocidental, no que coneeene A topologia dda cabega humana, Nesta topologia, 0s ouvidos sao imaginados como buracos que deixam 0 som entrar, enguanto os ellos si comparados a telas que no permitem que nenhuma luz. passe. Dentro da cabega, entio, € barulhento, mas eseuro. Conforme o som penetra no santuatio interno do ses, misturando-se com avalma, ele se fnde com a audigao. Mas a luz. ¢ extluida. Cabe & visio reconstruit, no interior, uma imagem de como pode ser © mundo “ld fora”, Estas imagens, E claro, podem estar erradas ~ razio pela qual os psicdlogos da percepsio dedi- caram tanta atengio As ilusGes de éptica, em comparagio & pouea ou nenhuma atencio as auriculares (REE, 1999: 46). A luz do ser Agora esti Gbvio o suficiente que quando olhamos ao redor vemos coisas de toxios 0s tipos. Isto ¢ tio dbvio, de fato, que tendemos a nos esquecer de que flo conteguitarios ver nade a coos que primo coneegulstsnon wr os ‘enstio sobre “Olhos € mente”, chainou SS a (MERLEAI -PONTY, 1964: 162) ~ da visio: no sentido de que a cada momento alguém 105 para uim mundo em formagio. Para pessoas anteriormente cegas cuja visio foi restaurada por uma operacio cintxgica, e sem diivida para 0 reeém:nascido, abrindo os olhos pela primeira vee, o dlitio pode ser esmagador “Da primeira ver. que vemos a lu2”, escreveu William James, “nds snnas a lz, a0 inves de VER” JAMES, 1892; 14)- A Taz, eu argumento, € ania outra maneira “de dizer “posso ver”. Nao se trata apenas de um fendmeno do mundo fisico (seja tratada como fécons ou energia radiante), tampouco se trata de um fendmeno da mente intevior. Néo esté nem no lado mais distante nem no lado mais préximo da superficie da retina. Em vez disso, a luz é uma experiéncia. Para pessoas com visio, wara-se da experiéncia de habitar o mundo do visivel e suas qualidades ~ de brilho ¢ sombra, tom ¢ cor, ¢ saturagio ~ sao variagées dessa experiencia. Deixe-me apresentar um cenério imagingrio, no entanto descrito com pa- lavras reais. Tanto quanto sei, Gibson e Merleau-Ponty nunca se conheceram. ‘Mas vamos supor que o tenham feito, em uum lindo dia de verio. Lé estio eles, estirados na grama, olhando para o céa, “O que vocé ve?” Pergunta Gibson a Merleau-Ponty. Ao que este responde com ar sonbador: “Eu sou o préprio eéu 20 ser reunido e unificado, a0 comegar a existir por si mesmo; minha consciéncia est sarurada deste azul ilimiadlo” (1962: 214). Gibson nfo se impressiona. Por gue seri, ele se pergunta, que este francés nao responde a pergunta? Ele pergun- tou 0 que 0 seu companheiro pode ver, nao o que ele é. E de qualquer manei 196 cebu éscr 0 oH “Zuma experiéncia de luz. como cle pode pretender ser 0 eéu quando esté estendido aqui no chio? Final- mente, Gibson responde: “Para mim, parece que vejo 0 edu, ¢ nfo a luminosida. de come tal” (1979: 54). O problema de Gibson, no entanto, ‘poster descobrir como o é&u deveria ser distinguido da ‘RO eatanto, nao era uum problema para Merleau-Ponty, que poderia prontamente responder que 0 céu nfo é menos do que o préprio nmundo da luz, 30 qual nos abrimos na visio, “Ao contemplar 0 azul do céu”, Merleau-Ponty insiste, “Eu nao estou colocade n relagito & ¢ ele como um sujeito acésmico [...]” (196: i, ima Vez que o céué a luminos (© cu, entio, nio é um objeto de percepgio. Nao € tanto o que 3X0 0 que vemos nile, Vemos no eu, como vemos na Tz, porgue o ctu é lz ‘Na verdade os pintores sempre souberam disso, quando em suas telas teneavaih transmitic a experiéncia da vinda 4 luz do mundo. Para eles, assim como para nés, © céu no € iluminado, ele ¢ a propria luminosidade. Além disso, ¢ sonoridade também, como o musicélogo Vietor Zuckerkanal explicou. Na experiéneia de olhar para o céu, de acordo com Zarckerkandl (1956: 34), encontra-se a esséncia do que significa ouvir, a0 que eu gostaria de acrescentar que nesta experiencia também se encontra o éxtase do sentimento, Portanto, o que vale para a visio vale para a percepsio auditiva e titil também. Se podemos ver as coisas, porque _em primeiro lugar podemos ver, assim também podemios ouvir 38 coisas porque “em painelzo lagu podemos ow primeiro poems “superficie das coisas, a dtima, em contrapartida, cedieciona nossa atengio para ‘© meio no qual as coisas tomam forma € no qual também podem ser dissolvidas. Ao invés de pensar em nés mesmos apenas como observadores, tilhando nosso a dos pelo csio de um vemos, Tchuva na qual ouvimos € 0 vento no Serine Participagio nao ‘Se opde a observagio, mas € uma condigio para isso, assim como a luz & uma condigo para se ver as coisas, 0 som para ouviclas, € a sensago para senti-as, Na névoa Com estes pensamentos em mente, gostaria agora que vocé me acompanhas se ~ pelo menos na sua imaginagio ~ ao litoral. Em um dia timido ¢ tempestuoso de feverciro en andava com um grupo de estudantes de antropologia da Univer sidade de Aberdeen a curta distincia da sala de aula até a praia. Ld estivamos ns, golpeados pela chuva ¢ pelo vento, enquanto continudvamos (tendo que gritar \97 d para nos fazer ouvir acima do barulho) uma conversa que tinhamos comegado do lado de dentro, acerea da percepcio da paisagem. Entre outras coisa, estive- ‘mos lendo as exploragées do arquedlogo Chiristopher Tilley (1994, 2004) sobre ¢©-tema da fenomenologia da paisagem. Tilley insist justamente que a pasagent ‘no € uma constante fisica que seja simplesmente dada & observacio, 3 descricio, ‘eA medicao emipirica. Ela é, antes, dada apenas em ee 3 suas vichS, movimentos € propésitos, e 20s locais onde moram, € extrai Sct sentido dessas relagdes. Porranro, as pessoas € @ paisagem ~ para recicar uma TSrmula antropoldgica desgastada ~ sio “mutiamente constitufdas”. Paisagens assumem significados e aparéncias emi relagio is pessoas, © as pessoas desenvol- vem habilidades, conhecimento ¢ identidades em relagio &s paisagens nas quais se encontram, ‘Tinhamos ficado intrigados, no entanto, com uma observagéo de passagem em um dos textos de Till Para provar a sua hipdtese de que sfo constants, mas variam de sero com.as miiiplas pespea agem da pessoa que a pereebe” (TILLEY, 2004: 12). A diferenga entre clatidade e névoa, ele parece estar dizendo, encontra-se nio na propria paisagem, mas nas_ xcopy saga Torque, se fosse realmente assim, entio seria necessério apenas uma Tarieifas Como as pessoas se relacionam com ela em atos de percepcio. engi tani ent relagio- paisagem. ara transformar uma perspectiva clara em uma enevonda, ou vice-versa. A medi- (8 ria praia de Aberdeen, na chuva torrencial e no vento uuivante, a alegagao de que tudo dependia de mds sou um pouco oca! Por mais que tenhamos tentado, tratagema de percepeao. ‘Uma anilise mais aprofundada da questio revelou que, por toda a sua insis- téncia tanto em fazer quanto em eserever arqueologia a0 ar livre, é notivel que 0 clfmajesteja ausente da explicagio de Tilley. Mais notavelmente, est ausente das eXplicagdes de praticamente todos os autores, em antropologia e arqueolo- gia, que se dspuseram a investigar os compromissos entre as pessoas € 0 que se convencionou chamar de “mundo material”. Nessas explicagées, como ji vimos no capitulo 2, a materialidade é identificada com tudo que tenha ~ por assim sr ~ se precipitado do meio, com o resultado de que © prdprio meio se toma terial. A dgua da chuva entra no mundo material apenas quando se acumula em posas no chao, ¢ a neve somente quando se amontoa. O vento pode figurar io conseguimos acalmar a tempestade por qualquer es- 198 apenas como uma invengao da imaginagio, levando teérie bin tem que barcos navegam, pipas voam ¢ frvores flexionam seus ramos por conta alguma forsa 3 ia dentro das proprias coisas, ‘objetos sélidos. Inundado de sol, mesmo o céu torna-se tim teino imag “hirio que podemds habitar apenas em nossos pensamentos e sonhos, enquanto 0 ar que respiramos é desmacerializado em um éter espiritual que sustenta a alma, mas nfo 0 corpo material. Na realidade, é lar, a paisagem ainda nfo se soldificou do meio, Ela esté 9 € assim por diante, O chao nao €a supe! Tidade mesma, mas um composto texturizado de diversos mater tivados, depositados ¢ entrelagados através de uma interagao dinimica através da interface permeivel entre 0 meio e as substincias com as quais entra em contaco. Eassim, para voltar ao Tilley, podemos ver que, em sua referéncia de passagem a uma paisagem na névoa —um daqueles raros momentos em que o tempo faz uma _aparigao -, ele nos apresenta um mundo as avessas, no qual o tempo (nes! ‘a névoa) ¢ um resultado emerge quando, na verdade, & Empo REG a s proprias caucldades de ver, wir © ES sere sone Ben soe SI “Pesceber coisas diferentes, mas a pereeber as mesmas ses cols demo dlfereme. | “O tempo, em suma, € a “mundanidade do mundo” Heidegger (1971: 181) —¢, como tal, nfo é uma invengio dh imaginasi mas 0 proprio temperamento do ser (INGOLD, 2010: $133). Na praia Quando os alunos ¢ eu nos reunimos na praia, naquele dia tempestioso, olhamos primeito para a terra. Entio voltamo-nos ¢ olhamos para 0 mar. O gue vimos ali? Antes de tentar uma resposta, deixe-me lembrar da cafacterizagio do ambiente rerestrefeita por Gibson como compreendendo no apenas 7 BB apena onsite asa tena “EW"(GIBSON, 1979: 665 ef. capitulo 9, p. I8Is.). NOs, € chavo, estiv ‘erra. Olhando para Daixo, vimos os seixos do cascalho em que estivamos, S80 (05 scixos, enti, “objetos sobre a terra”? Gibson diria que sim, e nds também o dirfamos, se cada um de nés se inclinasse para pegar um e, o tendo examinado, 6 restiuisse 20 local onde se encontrava. No entanto, cada scixo repousava sobre 199 ‘outros, que por sua vez repousavam sobre outros debaixo deles. Se também cles cestio wire a terra, onde entio esti a propria terra Ser que a vemogio de cams da apés camada de seixos nos levaria para mais perto dela? Ou devemos pensar na relagfo entre seixos e terra em termos de hist6ria da sua formagio? Afinal de ‘contas, foi apenas por causa de seu incessante chocalhar e atritar enquanto sio Javados pelas ondas na maré alta que os seixos ganharam suas formas arredonda- das. Pensar em um scixo como um objeto é imaginé-lo separado deste processo, formativo, como i sobre um pedestal, No entanto, enquanto pedra, ragmentada de uma outra que alguma vez deve ter se desprendido de uma rocha sélida, seré que o seixo néo ‘mantém uma conexfo com a terra tio intrinseca quanto aguela de uma semente com o seu progenitor? Quem pode dizer se esté sobre a terra ou se é dela? De pé sobre o cascalho, nfo foi na pritica possivel tragar qualquer linha entre essas condigGes contritias. Tivemos antes que reconhecer que © terreno sobre © ze «qual estivamos nfo era realmente ma platafosma de suport sobre a qual as coi- interagio do vento, da agua ¢ da | gas 6 -omo aqulas responsiveis pelas ainda mais evidente quando erguemos o olhar para as ondas quebrando na praia (© que vimos nfo foram objetos e superficies, mas materiais em movimento, Er BRlendo os olhos J vinlos ondis SOBRE ondas cobertas dé gradualmente expandindo horizontalm. 0 cinza implacivel do céu, Contra este fando, poderfamos vagamente distinguir as formagées circulares das aves marinhas, mas as reconhecemos no como cos que se moviam, mi¥ cond HiGvimentox = muitas veres acompanhae ‘de sons ~ que 36 resolviamr-3€ Em formas objetivas quando repousaram 10 cimo de um dos muitos quebra-mares que corram a praia. Em suma, ao olhar ‘o-mar_vimos um mundo em movimento, em fluxo e devit, um mundo de mar = ‘cu, um mundo-tempo. Vimos um ainda sem objeto. 20 ch ondes Vendo a ‘Terra [Armados com esta perspectiva, nés entio voltamos nossos olhares de volta para a terra, Nossa questio era: © que acontece se virmos a tera do ponto de vista do mar? E se, em ver de veimos o mar desde a term, tentarmos ver a tor f3 desde o mar Tim sido convencional asimilar o oseano 2 uma perspectiva «» baseada na teira, e uma que ademais enfoca, sob a rubriea de “paisagem?, as © suas formag6es mais sdlidas e suas configuracées de superticie. Ao olharmos a © itegio do mar com essa perspectiva, pensamos gue estamos corisemphando ums Primagein marinba, conterindo a ondas e depress6es, ou Aguas rurbulentas ox \ Sines ope per © solideZ que Ihes falta na realidade (COONEY, 2003). t 200 Terra —? mee FE ‘Ao vermos a serra desde 0 mar, em co ida, ¢ solidex do préiprio clio que _G posta em divida, Que ela também nfo esfeja em repouso, mas em movimento € ‘mudanga incessante, é— escreve 0 marinheito e filésofo Martin Dillon ~ “uma lic que 0 mar pode nos ensinar sobre a terra” (2007: 267). Como jé déscobrimos no caso da praia ce cascalho, vista da perspectiva do mar o chio é muito mais com plexo € dinimico do que poderiamos ter pensado. Longe de ser a superfic dura da materialidade que tinhamos imaginado, sobre a qual tudo repousa, cle reaparece como um amontoado de maceriais heterogéneos, agicado pelas vicissitudes da vida no mundo-tempo. Na verdade, para onde quer que olhe- mos, o chio restemunha a vivacidade dos pro que o formaram ou que “Forimam~ oF eteeos da chuva, do vento, da geada e assim por diante. — ‘pelas quais'@ experigncia pereepriva sub- Eni uni estado sobre as manci jaz A sensibilidade estética, o fildsofo Arnold Berleant observa que a inquiet predominante do ambiente fluido afeta profundamente “todos os parimetr jue normalmente delimitam nossa existéncia terrestre e, em uma escala maion, ‘mesmo a nossa compreensio do ser metafisico”. Berleant também laniga sua Vista, “Wo oveamo pata a terra, € descobre AIO sé que a terra sofre continua mudanca — Jenta, certamente, mas nada obstante incessante” ~, mas também que a fluidez nio termina ai. meio fluido” (BERLE 139). Assim, ver at _sem objetos cujas Toray Solidas sea, “fluxes deste meio atmosférico, Ac fe se ‘mente com o Inoral, que mas na esfera mais amipla de Forgas € Fehgoes que compo mente subsumidos sob a grandé cipula do céu. E nesta cipula, onde o sol brilha, as tempestades se enfureceni € © Ventd Sopra — ¢ no, como Gibson supés, nas superices dos objetos slo eno chio sobre qual epousm ~ que “toda ago, acontece” (GIBSON, 1979: 23), Perceber ¢ agir no mundo-tempo ¢ alinhar a sua prépria conduta aos movimentos celestes do sol, da noite ¢ do dia ¢ das estagdes do ano, & chuvz dosol €-Usomibra, Pois o tempo engole a paisagem, assinti como a visio das sisas € engolida pela experiéncia da luz, a audio das coisas pela experigncia do som, ¢ 0 tato dis coisas pela experiéncia do sentit ‘A mudanga de perspectiva a partir da terra para o mar ¢ do mar para a terra corresponde um tanto quanto precisamente a0 contraste estabelecido pelos fie l6sofos Gilles Dele pago estriado e espaco lisy (2004: 409, 324525), 0 sig sta, dz clas homogdneoe wlan diversas coisas estio dispostas, cada uma no seu local designado. Olhar ao Te- dor no éspago estriado €, como o significado original de stapes implica, disparar flechas visuais em seus alvos. © espago liso, a0 contririo, ndo tem nenhuma ei ee ar envolvidos 201 ertO, ad ads disposigio. Apresenta, antes, uma colcha de retalhos de varias: Se estende sem limites em todas as diregdes. ‘Trata-se de um espago atmosféricd ‘de movimento e Mux, agitado pelo vento pelo tempo, « repleto de Taz som esensagio. O alho, tio espago “oll has perambula entre | cbs, encontrando um caminho, em vez de apontar para um alyo fixo. E um olho V3) que esté sintonizado nio com a diseriminagio de objétos indivi- Xp | diiais, mas com o registro de vatiagoes sutis de nbra, e com superficiais qué Fevelam, Enquanto a est paisagen do espago estriado, e Fepartida, se voltou contra 0 céu, no espago liso as superficies da terra — como aquelas do mar ~ abrem-se para 0 céu € O.abragam, Nas suas cores em constante mutagio ¢ padrées de iluminagio e sombra, elas refletem sua liz; elas ressoam. em seus sons os Ventos que passam, ¢ em stia sensagio elas respondem & secura ou umidade do at, de acordo com o calor ou a chuva. No espago liso, + com Deleuze ¢ Guattari, “indo hé nen separando 0 « a Terra® (p. 421). Um nao poderia existic sem 0 outro. — herijonte A hdptica c a éptica Em suma, enguanto a po pertence 3 orciem: do liso: Para Deleuze © Guattati, os habitantes arquetipizos do espaco liso eram pastores nOmades qUe, Com as sas THATS, THOMVAAT aS ‘paige come matslictos hontan sales menor Re eee GEE © Neve vairidas pelo vento, e responcdendo eit Sesh em cada ‘momento, a forgas reals ¢ imagindrias, nto clestes quanto sub [ experiéncia do marinheiro, o mundo era uma mistara dé Cue mar, entio, para o oeuade ers tans mista do chic de oa SE TEapeito, aTelagio dos ndmades coma terra cra muito diferente daquela cos agriculrores, entre os quais 0 conceito de paisagem esteve em voga pela primeira vez. Os arquitetos originais do espaco esttiado cram agricultores que literalmente moldavam a tecra a0 estrif-la com carrogas ¢ arados. Longe de ir com o fluxo, a vida para cles era uma questio de contratiar atrito de uma terra imével e muitas vezes inflexivel. Deleuze © Guiar- tari (Pp. 524-525) comparam a diferenga com aquela entre o felero ¢ 0 linho, um emaranhado de um atoleiro rodopiante de fibras que nfo tém nenhuma diresio consistente, o outro tecido através do entrelagamento regular de urdidura ¢ trama. No cntanto, a identificagio moderna de scape com scapic ~ isto &, do formato da terra com 0 stu aspecto, com a forma, em oposigao & substincia ~ realinhow a “Uiferenga a0 Longo de outro eixo de contrast, Fie eniTe o hdprco ea dpien. © engajamento haptico estd perto € 3 mio, E 0 engajamento de um corpo consciente trabalhando com maceriais ¢ com a terra, “costurando-se” as texturas do mundo 20 longo dos eaminhos do envolvimento sensorial, Uma relacio éptica ‘entre a mente ¢ 6 mundo, em contraste, baseia-se em distincia’e desapego, Aqui, entic a mente ¢ @ mundo, em contrast, baseia-se em distancia € desapego, 202 a forma da terra jd nfo é inecente & sua trama, tampouco se a podevia encontrar seguindo as estras da sua textura, como o faz 6 lavtador quando corta a terra dos seus campos, ot 0 diarista quando tilha o seu camino, provavelmente a pé, a0 longo de trlhas ¢ veredas. E encontrado, 20 contriio, por tma espécie de ret rojecio pela qual o mundo ¢ langado como se estivesse totalmente formado, na aparénca, mas go em substincia ~ isto é como uma imagem ~ sobre a super- ficie da mente. B sem dtivida porque a associagio entre scape e o esedpico implica essa projesio dptica que o conccito modemno de paisagem (ao conteirio de sea precursor medieval) ¢ to frequentemente presumido estar eivado de preconcei- to visualista. Em principio, no entanto, esse tipo de projesio pode ser mediado tanto pelo toque manual quanto pela visio. E assim, por exemplo, que Descartes pensava o tato As cegas, na sua Optica de 1637. Os cegos, pensou, poderiam usar varas retas para perceberem as formas de objetos a distancia, exatamente como aqueles que enxergam usam 0s raios de luz (DESCARTES, 1988: 67). Da mes- ma forma a mio enluvada do médico, detetive ou curador, que lida com objetos possivelmente invistveis, afim de extrair sua forma enquanto garante que nao haja nenhum contato ou toca de materiais através da superficie da pele, exerce tum toque éptico. ‘Em contrapartida, o envolvimento héptico pode percorrer os caminhos dha visio, assim como os do tato. Trabalhando de perto, os olfos podem esta tio miopemente entrelagaclos ao gro fino do mundo quanto a mao. Pense na costurcira, olhando para o tecido enquanto costura, ou o eseriba medieval cujos olhos so capturados pelos tragos de tinta da sua escrita (INGOLD, 2007a: 92). Assim também, os olhos do lavrador estio perto do chiio enquanto posiciona o arado. Deleuze © Guattari tém, portanto, toda wrazfo em apontar (2004: 543. 544) quse a oposigio entre o dptico e o hiprico é transversal aquela entre o olho | <.amio: alg da visto Gtiea ¢ do toque hiprico temos tato dptico, assim como visio haptica. Mas eles esto errados em presumir una correspondéncia entre “a distingio haptica/Sptica ¢ aquela entre 6 liso e o estriado. Entre o hiptico ¢ 0 Sptico repousa toda a diferenga entre a perspectiva do agricultor que molda a terra de perto ¢ aquela do pintor que vé a cena resultante a uma certa distancia, ou ~ como os mesmos Deleuze ¢ Guattari observam ~ entre “0 plano a0 nivel do chio do pedreito gético” ¢ “o plano métrico do arquiteto, que est no papel ¢ fora do local” (p. 406), Mas, 30 contrario do que eles parecem pensar, isso nfo faz com que o agricultor ou o pedreiro sejam némades! Ao contrétio, a divisto entre o hdption c 0 dtico é uma divisio danive do extriado, ¢ distin it ‘o sentido medi vati jerno. Esta aaa ae “eat, deisicnos com uma questo nio resolvda. Sea experiencia do espaco | 2, Sobrea dfreng enraltenaia gia eaters prrenascenviss conse capo 17, 9,303 203, A ( Sptica nem no envolvimento hiptico, como ‘entio devemos descrevé-la? Aatmosfera Para uma possivel resposta, podemos voltar & conversa imaginéria, narrada acima, entre Gibson ¢ Merleau-Ponty. Pois resume-se, mais uma vez, & questo de como pereebemos 0 su. Gibson pensava que estivesse olhando para o céu, ‘que estava Olando ron 0 Cea. ORGS Guie ‘Tejam abertos para o eéu, escreveu Merleau-Ponty (1962: 317), e que conhegam_ a luz da lua ¢ a luz do sol, crazem estas qualidades da luz. as suas préprias manei- ras de perceber, Quando olham, o sol ¢ a lua olham, uma vez que estes corpos cclestiais, em sua luminosidade, jé invadiram a conseiéncia visual do observador. Da mesma forma, quando o corpo sente, 0 vento sente, pois 0 vento, nas suas correntes, jd invadiu a consciéneia eitil do corpo. E quando nos reunimos na praia, 0s alunos ¢ eu achamos que o barulho das ondas, quando quebravam no cascalho, também havia invadido a nossa consciéneia auditiva: nds ndo apenas 0 errvfames; cuviamos com ele. Longe de nos seremrevelodas coato-alvos de per. cepeio, ondas, vento e edu esa prseE

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