Você está na página 1de 13

Vítor Oliveira

vitormfoliveira@gmail.com
http://carruagem23.blogspot.com

Vila Nova de Gaia, 28 de Março de 2009

Progressão(ões) no ensino da gramática

Uma das questões discutidas, no plano da acção e da transposição didáctica bem


como no âmbito do ensino da gramática, é a que põe a tónica no princípio do
faseamento e da progressão de conteúdos. Não se tratando de uma questão ou um
princípio monolíticos, ao nível quer da conceptualização quer da operacionalização,
ela complexifica-se pela articulação com finalidades distintas do ensino da gramática:
entre a consciência da implicação e da acção pedagógico-didáctica que releva a
dimensão científica da gramática - enquanto espaço de reflexão e de construção
autónomos de conhecimento declarativo sobre o(s) funcionamento(s) da língua - e a
percepção do seu estudo funcional ao nível dos usos e das situações concretas de
produção (orais, escritos, literários e não literários), geradores, também, de padrões de
modificação e de criação linguística.
A progressão como passagem do simples para o complexo, como orientação do
familiar ou frequente para o desconhecido ou menos comum, como transição do
genérico para o específico não pode desconsiderar o critério da utilidade e do que se
revela necessário para determinadas opções discursivas, certos objectivos
comunicativos que implicam o conhecimento e a explicitação de alguns dados da
língua.
Neste sentido, qualquer posição a ser assumida beneficiará de uma perspectiva
multifocalizada por parte dos que trabalham o conhecimento explícito ao longo dos
diferentes ciclos e níveis de ensino-aprendizagem.
Alguns exemplos, centrados nos domínios da Morfologia, da Sintaxe, da Análise
do Discurso e da Linguística Textual, permitirão equacionar alguns destes pontos
relativamente ao discurso pedagógico bem como à progressão no ensino-aprendizagem
do conhecimento explícito da língua (materna), no actual contexto de discussão e de
revisão/implementação de novos documentos reguladores das práticas docentes.

1
-.-.-.-.-.-.-.-.-.-
Uma das questões discutidas, no plano da acção e da transposição didáctica, em
geral, bem como no do ensino da gramática, em particular, é a que põe a tónica no
princípio do faseamento e da progressão de conteúdos. Aparece desde os primórdios
gramaticais da língua, nomeadamente com João de Barros e a sua Gramática da Língua
Portuguesa (1540)1, onde, numa clara intenção pedagógica, já se lêem critérios como o
de ampliação de dados e o de complexidade crescente: basta lembrar, ao longo da obra
citada, o propósito de se ensinar “os mínimos” “degrau em degrau, de pouco a mais” e
“de leve a grave”.

Não se tratando de uma questão ou um princípio monolíticos, ao nível quer da


conceptualização quer da operacionalização, ela complexifica-se por razões de diversa
natureza. Entre elas, contam-se as seguintes:

a) a diversidade de estádios em que se encontram os alunos, que, chegados à


escola, são já portadores de conhecimentos de língua que viabilizam a sua
condição de falantes, mas que necessitam de uma ferramenta para monitorizar
e regular realizações orais ou escritas em função de uma variedade social
padronizada que permanece como condição de sucesso escolar e sócio-
-profissional;

b) a diferenciação de possibilidades na interiorização de estruturas gramaticais,


conjugadas com a diversidade de ritmos de aprendizagem e formas de
processamento dos conhecimentos, nomeadamente os linguísticos;

c) o âmbito do próprio objecto de conhecimento verbal a analisar / trabalhar (da


palavra à frase e ao discurso / texto), entre uma abordagem mais ou menos
modular, com um tratamento especializado, e uma orientação mais global que
coloca as realizações verbais no plano da prática social e das competências
comunicativas;

1
A Gramática da Língua Portuguesa de João de Barros representa o núcleo de um projecto gramatical e
pedagógico de aprendizagem da Língua Portuguesa, no qual se contemplam: a Cartinha para Aprender
a Ler (1539); a já citada Gramática da Língua Portuguesa (1540); o Diálogo da Viciosa Vergonha
(1540), numa articulação entre o ensino não só das letras mas também das normas de boa conduta; o
Diálogo em Louvor da Nossa Linguagem (1540), conjunto de reflexões acerca das ideias linguísticas e
gramaticais do autor liberto do carácter prescritivo de que a Gramática de Língua Portuguesa se
reveste.

2
d) a contextualização e a motivação das necessidades verbais dos alunos,
naturalmente distintas e a dar lugar a progressões diferenciadas conforme as
tarefas comunicativas requeridas e/ou planificadas convoquem determinadas
situações e/ou tipos de discurso (por exemplo, uns de carácter mais
profissionalizante; outros de natureza mais académica);

e) a articulação de dois entendimentos e finalidades distintas (ainda que


complementares) no que ao ensino da gramática diz respeito: entre a
consciência da implicação e da acção pedagógico-didáctica que releva a
dimensão científica da gramática - enquanto espaço de reflexão e de
construção autónomos de conhecimento declarativo sobre o(s)
funcionamento(s) da língua - e a percepção do seu estudo funcional ao nível
dos usos e das situações concretas de produção (orais, escritos, literários e não
literários), geradores, também, de padrões de modificação e de criação
linguística.

Perante esta última condicionante e pela natureza tendencialmente oficinal do


primeiro entendimento (implicando a selecção e constituição de um corpus, a
observação / comparação / construção de generalizações, a análise e problematização, o
treino e a avaliação), a progressão revela-se mais atómica e focalizada em domínios
mais ou menos particulares da gramática; do segundo entendimento, ressalta a maior
centralidade dos discursos, o que envolve uma articulação de vários domínios, numa
rede de focalizações e prismas de análise que dificultam um pouco mais o trabalho de
definição de etapas, tendendo-se quase para uma visão mais holística na abordagem da
língua. Contudo, o sentido de progressão mantém-se exequível, se a abordagem a fazer
privilegiar um trabalho de planificação voltado para a construção de sequências
pedagógicas que, por exemplo, assentem em lógicas como as de modelos textuais (com
tipos e géneros diferenciados, apontando para características linguísticas dominantes),
numa dimensão tanto receptiva como produtiva.2

2
A questão dos modelos textuais deve ser aqui entendida não no sentido da transposição acrítica de
características invariantes para textos afins, mas no da detecção não só de recorrências como ainda das
singularidades que cada texto possa trazer para o enriquecimento ou reformulação do modelo. Faz
sentido que, neste tipo de trabalho, se privilegie, por exemplo, a abordagem de actos de fala, das formas
de tratamento, dos tempos verbais de referência deíctica, dos princípios de cooperação conversacional
nos textos que convocam a reprodução ou a representação de condições de interacção dialógica (de que
os textos dramáticos são dos exemplos mais comuns).
3
Convergente com os dois entendimentos da aula de gramática é sempre o
princípio de promoção e desenvolvimento do conhecimento explícito da língua. A
consciencialização do saber acerca da própria língua, transformando o conhecimento
intuitivo num de carácter mais sistemático, reflectido e (inter)estruturante, é objectivo
para a progressão maior, mais geral que aqui possa ser abordada relativamente ao ensino
da gramática: a que se orienta do espontâneo, do imediato e do informal para o
planificado, o mediato e o formal (a nível tanto do oral como do escrito); a que
considera as relações entre a variação / diversidade linguística e a aquisição da norma
padrão, na avaliação consistente de comportamentos sócio-comunicativos aceitáveis em
determinadas situações e inaceitáveis noutras.

A partir daqui, e num sentido mais estrito, a noção de progressão evoca sentidos e
critérios que, não raras vezes, são equacionados de forma muito diferenciada no
contexto das práticas: o de passagem do simples para o complexo; o de orientação do
familiar ou frequente para o desconhecido ou menos comum; o de transição do domínio
genérico para um mais específico. Não negando o facto de ser por vezes útil a
consideração das estruturas mais familiares e frequentes para os alunos, bem como as
que se constituem como base para outras mais complexas, certo é também que a
aprendizagem nem sempre se faz de uma forma tão linear. Por outro lado, interessará
também descodificar o que tal criteriação acarreta, procurando ultrapassar algumas
generalizações ou preconceitos herdeiros de uma tradição gramatical que tem vindo a
ser questionada por diversos estudos. Nos domínios da Morfologia e da Sintaxe bem
como no da Análise do Discurso e da Linguística Textual podem encontrar-se exemplos
que tendem para a comprovação deste posicionamento.
Começando pelo domínio da Morfologia (entendido como o que descreve e
analisa a estrutura interna das palavras bem como os processos morfológicos de
variação e da formação destas), há que reconhecer, desde já, a necessidade de
equacionar criticamente algumas práticas instituídas, a descrição gramático-pedagógica
tradicional bem como o próprio discurso didáctico a utilizar: primeiro, por,
relativamente à Nomenclatura Gramatical Portuguesa de 1967, a Morfologia se ter
vindo a assumir como domínio que se centra especificamente nas fronteiras da palavra e
que não integra, por exemplo, o da „Classe de Palavras‟3; segundo, por se ter de

3
Na verdade, este último domínio (Classe de Palavras) surge autonomizado tanto na Terminologia
Linguística para os Ensinos Básico e Secundário (TLEBS - 2004) como no Dicionário Terminológico
(DT - 2008), representando um enfoque distinto do da Morfologia, por nele se convocar o carácter
4
sublinhar a processualidade morfológica em termos de níveis de sucessão faseada e
recursiva na formação de palavras, a ponto de identificar etapas distintas na
complexidade de algumas bases derivantes4; terceiro, por se ter de adaptar o discurso
didáctico e a formulação de instruções / questões a uma forma mais consentânea com a
definição proposta pelo Dicionário Terminológico para o domínio (por exemplo, a
familiar instrução “classifique morfologicamente a palavra X” deverá dar lugar a
“classifique X quanto à classe de palavras”, a menos que o cenário de resposta
contemple aspectos relacionados com os processos de formação e os constituintes
morfológicos, com a indicação dos morfemas lexicais e/ou gramaticais).
No que à progressão diz respeito, são consensuais, neste domínio, trajectórias que
se orientam das palavras simples para as complexas; da morfologia derivacional que não
implica alterações na classe da palavra-base, não interfere na posição do acento fónico
nem determina alterações categoriais (em termos de género, grau, tempo-modo-aspecto)
para a que acarreta transformações em qualquer um destes níveis; da derivação para a
composição. Todavia, há pontos críticos que podem contribuir para a dificuldade de
processamento de dados num contexto de aula, dos quais se podem referir dois casos em
concreto:
i) as regras gerais apontadas para a flexão ou variação das palavras nem sempre se
circunscrevem ao domínio morfológico, convocando interfaces com outros
domínios de análise linguística (o caso da sintaxe, para a variação em grau dos
adjectivos, à excepção do superlativo absoluto sintético - que se obtém por
sufixação; o caso da fonética e fonologia, da lexicologia, da sintaxe para os

relacional das palavras bem como a complementaridade face à sintaxe (a identificação das classes de
palavras assenta muito mais na distribuição / combinação de palavras dentro do sintagma do que na
consideração dos constituintes morfológicos – confronte-se a distinção entre os determinantes /
quantificadores e os pronomes; a recategorização dos adjectivos e verbos em nomes, situações que
requerem a distribuição das palavras no sintagma, além da consideração das palavras nucleares na
construção de grupos) no que toca às propriedades reveladas (concordância, selecção, contrastes de
género e grau não configurados morfologicamente, entre outras).
4
A palavra „anticonstitucionalissimamente‟ é um bom exemplo disso: seja o advérbio
„constitucionalissimamente‟ a base derivante para o antónimo seja o superlativo sintético do adjectivo
„anticonstitucionalíssimo(a)‟ o ponto de partida para a formação do respectivo advérbio, ambos são já
termos derivados de uma processualidade multi-faseada na derivação (constitucional >
constitucionalíssimo > anticonstitucionalíssimo). A combinação da composição com a derivação é um
outro caso da complexidade implicada na sucessão faseada e recursiva dos processos morfológicos
(como em „radiofónico‟ derivado do composto „radiofonia‟: [rádio]+[fonia] > radiofonia > radiofónico).

5
contrastes de género, que apenas num reduzido número de casos cumpre a
conhecidíssima alternância geral „-o / -a‟ ou „Ø / -a‟5);
ii) a consciência sincrónica que o utilizador comum imprime à análise intuitiva do
estádio actual da língua limita a percepção dos constituintes morfológicos
àquilo que é segmentável, ora conduzindo a generalizações falíveis ora
atenuando a percepção de relações nas próprias famílias de palavras.6
Na consciência destes pontos problemáticos, impõe-se um trabalho de
planificação e de selecção cuidada de exemplos, cabendo a definição de estratégias que
privilegiem objectivos de consulta e de pesquisa, nomeadamente de obras de referência
como gramáticas, dicionários com informação etimológica e prontuários, por forma a
adquirir-se conhecimentos implicados na análise e no processamento das palavras
(como sejam, por exemplo, os relacionados com a História da Língua) e/ou
problematizadores de generalizações que não podem ser validadas. Entre os casos
familiares que confirmam a consciência sincrónica da decomposição de palavras e os
que se afastam dessa consciência ou da possibilidade de decomposição (nomeadamente,
o caso das palavras lexicalizadas e da lexicalização) traça-se, portanto, uma linha de
progressão que, em diferentes níveis, não deixa de convocar o propósito comum de um
trabalho reflexivo, de descoberta e de pesquisa. Pelo exposto, dir-se-ia, em síntese, que
frequentemente o critério da simplicidade só o é na aparência.

Passando ao domínio da Sintaxe, é também relativamente consensual o facto de o


trabalho da frase simples anteceder o da complexa (e dentro desta última se equacionar
a complexidade associada às estruturas binárias bem como às múltiplas); de o da ordem
directa (não marcada) se antecipar ao das ordens inversas (marcadas); de o das frases
activas preceder o das passivas. Mas, no que a estas últimas diz respeito, outras
progressões podem ser esboçadas. Segundo Inês Sim-Sim (1998), o domínio de

5
A título de exemplo para o contraste de género, são diversos os processos utilizados: fonológicos (ex.:
avô / avó), lexicais (ex.: rei / rainha, boi / vaca), sintácticos (nos nomes epicenos - ex.: elefante-macho /
elefante-fêmea; no dos nomes comuns de dois – o estudante / a estudante); morfológicos são os que
ilustram a derivação (ex.: poeta / poetisa, sacerdote / sacerdotisa), a composição (ex.: águia-macho),
além dos já referidos no corpo do texto em termos de flexão.
6
Para o primeiro caso, está o clássico „beleza‟, comummente apontado como exemplo de derivação,
quando dicionários com informação etimológica o apontam como exemplo que registou processos de
evolução fonética a partir da base latina (bellitĭa-), numa distinção clara relativamente a „riqueza‟
(rico+eza) ou „pobreza‟ (pobre+eza); para o segundo, registe-se a série de palavras „Peixe – Pesca –
Pescador – Piscatório – Piscícola - Piscina‟ (ou, num grau de maior inconsciência, „Adivinha - Ateu –
Deus – Divino – Diurno - Entusiasmo‟, todas com origem na raiz indo-europeia „*dyéu‟, que
significava „céu‟, „dia brilhante‟).

6
enunciados com estrutura passiva é um dos exemplos de aquisição tardia pelas crianças,
excepto no caso dos de tipo não reversível (ex.: O bolo foi comido pela menina)7. Em
contrapartida, as dificuldades de compreensão aumentam com passivas reversíveis (ex.:
A Maria foi beijada pelo Pedro), cuja interpretação depende exclusivamente do acesso à
construção sintáctica para o entendimento de quem beijou quem, ou de quem foi
beijado; com passivas sem agente expresso (ex.: O trabalho foi-me entregue ontem) ou
com construções formalmente equiparáveis (como é o caso das que recorrem a
estratégias de apagamento na explicitação do agente da passiva, com o pronome pessoal
passivo „-se‟). Cumprem-se aqui alguns indicadores de complexidade, a que não são
estranhos também factores de natureza pragmática e/ou de focalização temática. Daí a
construção de um documento como o das “Orientações Didácticas para o Trabalho
sobre o Funcionamento da Língua em Sala de Aula”8 considerar pertinente uma
abordagem progressiva deste conteúdo, entre outros, atentando nos meios linguísticos a
que se deve recorrer para a sua produção. As implicações crescentes neste tipo de
construção, nomeadamente com questões de ordem sintáctica e de identificação das
funções nela representadas, são já razões suficientes para se perceber como se tem
revelado crítica a abordagem das frases passivas, de acordo com o programa de Língua
Portuguesa ainda em vigor (no qual se identifica o 8º ano de escolaridade como período
destinado ao tratamento das relações frase activa -frase passiva bem como da função
sintáctica complemento agente da passiva, não obstante a possibilidade de se abordar
frases passivas no 2º Ciclo ou as passivas não reversíveis já no 1º Ciclo, nos termos do
referencial A Língua Materna na Educação Básica – Competências Nucleares e Níveis
de Desempenho, de 1997, para que o CNEB remete)9.

7
Exemplo de passiva na qual a criança se pode apoiar em chaves contextuais para a sua descodificação,
sem possibilidades de interpretação alternativa pela inversão de termos (na verdade, na vida real os
bolos não comem meninas).
8
Confrontar http://sitio.dgidc.min-edu.pt/linguaportuguesa/Documents/orientacoes_didacticas.pdf, na sua
primeira versão de consulta pública; uma segunda versão foi já construída a partir dos contributos e
pareceres facultados pela Direcção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (DGIDC), estando
nela assinalado um conjunto de notas elucidativo dos indicadores de progressão a considerar no
tratamento do conteúdo gramatical em questão.
9
Cf. SIM-SIM, Inês et al. (1997: 53; 89) - A Língua Materna na Educação Básica – Competências
Nucleares e Níveis de Desempenho, Lisboa, Ministério da Educação – DEB.

7
O mesmo sucede com as subordinadas relativas, a julgar pelos contributos de
Manuela Vasconcelos (1996)10. Em síntese, a autora conclui, por um estudo levado a
cabo com crianças na faixa etária dos 3 anos e meio aos oito anos e meio, que as
subordinadas relativas colocadas à direita são melhor processadas do que as encaixadas
ao centro (ex.: Os alunos realizaram o trabalho [que o professor pediu] vs O trabalho
[que o professor pediu] tinha um tema geral); as que apresentam foco no sujeito
sintáctico revelam-se mais fáceis do que as que implicam alteração na ordem sintáctica
da subordinada (ex.: O aluno [que participou] vai ter boa nota vs O aluno [cuja
participação foi boa] vai ter boa nota); neste último grupo, as que apresentam foco
precedido de preposição são mais difíceis do que as com foco no complemento directo
(ex.: O professor chamou o aluno [de que te falei] vs O professor chamou o aluno [que
a turma conheceu hoje]). Desta forma se justifica que haja também uma abordagem
gradual das subordinadas relativas, distribuídas ao longo do percurso escolar, não as
centrando como um todo num só ciclo ou num só ano de escolaridade. A proposta das
“Orientações Didácticas para o Trabalho sobre o Funcionamento da Língua em Sala de
Aula”11 atenta neste contributo para propor essa progressão.
No caso da Análise do Discurso e da Linguística Textual, cujas implicações
com a pedagogia do oral e do escrito mais relevam a dimensão e a competência textual,
o sentido da progressão acaba por estar mais articulado com os critérios da utilidade e
da necessidade, na medida em que as práticas de reflexão sobre a língua e da descrição
gramatical se exercem sobre textos e discursos de acordo com as condições de produção
/ recepção bem como com a necessidade significativa para a (re)construção dos sentidos
dos mesmos. Menos modular, mais global, mais holístico no que respeita à
convergência de domínios de análise bem como à inteligibilidade das realizações
verbais e das condições de produção que as motivam, a progressão torna-se mais difusa,
mais assente em múltiplas e alargadas focalizações, orientadas que são para um objecto
mais amplamente perspectivado nas suas contingências de produção e pelos critérios de
necessidade e utilidade da activação de competências receptivas / produtivas.
Ainda assim, graças à linguística e à gramática textual, a didáctica das
línguas tem vindo a dispor de conhecimentos que se conjugam numa melhor

10
A publicação citada tem já os seus fundamentos numa dissertação de mestrado da autora, datada de
1991, intitulada Compreensão e Produção de Frases com Orações Relativas e defendida na Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa.
11
Confrontar nota 8, cujo teor se aplica ao conteúdo gramatical em discussão na presente nota.

8
caracterização dos tipos e dos géneros textuais, por exemplo; a análise textual tem
permitido integrar mecanismos linguísticos que contribuem para a afirmação da
coerência e da coesão enquanto propriedades textuais determinantes para a
unidade semântica global bem como para o garante da continuidade de sentido dos
textos.
Sem entrar na questão da necessidade de explicitação dos termos, estes são
dos mais implicados no trabalho de compreensão e produção textual, desde os
primeiros anos de escolaridade. Eles são determinantes para que se reconheça nos
alunos a capacidade de construir esquemas ou quadros de referência, conectar ou
articular enunciados, praticar a retoma de elementos (por meio de definitivizações,
de pronominalizações, de substituições lexicais), seleccionar, gerir e organizar
pertinentemente o núcleo informacional. Daí que, na base deles, interesse construir
dispositivos estratégicos que permitam ensinar e aprender a progressão
homogénea, articulada e pertinente dos textos.

Com certeza não existe uma única opção para a progressão a definir neste nível.
Dependendo do léxico, das relações lógicas, da consciência da extensão e das
independências / dependências de segmentos reveladas pelas produções dos alunos,
pode o professor traçar um percurso que, por exemplo, no contexto de uma escrita
compositiva, priorize níveis de intervenção concreta e gradual, não exaustiva. Um
percurso possível de progressão pode passar pelo confronto, pela abordagem auto ou
heterocrítica, avaliativa de registos: sugerindo formas de garantir unidades de sentido
completo ao nível das frases que compõem o texto, de evitar repetições desnecessárias,
de diversificar mecanismos de continuidade / progressão temática (progressão a tema
constante, de modo linear ou derivado, com subdivisão da informação nova, com
formas combinadas de progressão temática), de explicitar processos de articulação
lógica, de limitar / ampliar a extensão frásica, de construir formas diferenciadas de
apagamento da subjectividade em contextos de maior formalização do escrito.

Progressivo é ainda o trabalho a fazer sobre textos directamente ancorados às


condições de produção (convocando uma referencialidade dominantemente deíctica)
para os que dela se desligam ou dela se transpõem (ora criando condições de mediação
ora construindo o acesso à ficção); daqui podem ainda ser exploradas a problematização
e complexificação próprias dos textos que matizam no escrito os sinais de oralidade,

9
aqueles textos que na tradição dos contadores de histórias cultivam a técnica narrativa
oral, simulando-a no suporte escrito.

Bom exemplo disto são os textos de contemporâneos como José Saramago ou


António Lobo Antunes; é ainda o de um romântico Herculano que, na sua versão
narrativa de “A Dama Pé-de-Cabra” esbate fronteiras nos contrastes que possam ser
construídos relativamente ao que é a representação de uma referencialidade deíctica e a
de uma referencialidade anafórica.

Atentar em enunciados do tipo

/1/ " Vós os que não credes em bruxas, nem em almas penadas, nem
nas tropelias de Satanás, assentai-vos aqui ao lar, bem juntos ao pé
de mim, e contar-vos-ei a história de D. Diogo Lopes, senhor de
Biscaia." (Trova I - 1)

é um indicador sintomático da representação ou simulação de um discurso em


situação, em interacção, próprios de um narrador – contador – orador que se dirige a um
destinatário configurado num “vós” e institui as coordenadas de um „eu-aqui-agora‟
distintas de uma história que é anunciada e se assume pelas coordenadas do „não-Eu,
não-Aqui, não-Agora‟ (confronte Trova - 2):

/2/ “Juro-vos que, se me negais esta certíssima história, sois dez vezes
mais descridos do que S. Tomé antes de ser grande santo. E não sei
se eu estarei de ânimo de perdoar-vos, como Cristo lhe perdoou.
Silêncio profundíssimo; porque vou principiar.
2
D. Diogo Lopes era um infatigável monteiro…” (Trova I – 1/2)

Para este narrador presente num discurso introdutório à narrativa (na qual não
participa), muitas são as possibilidades criadas, num jogo discursivo capaz de explorar
intersecções, ambiguidades como as que se evidenciam no segmento seguinte:

10
/3/ “«No tempo dos reis godos – bom tempo era esse! – havia em
Biscaia um conde…»” (Trova II – 3)

Pela aplicação do reconhecido princípio da polifonia, é possível encarar a


sequência da história (“No tempo dos reis godos … havia em Biscaia um conde”) como
pertencendo a uma voz distinta da que se faz ouvir em “bom tempo era esse!”. O que
significa que à co-referencialidade possível entre o anafórico “esse” e a expressão
temporal antecedente “No tempo dos reis godos” se sobrepõe uma leitura deíctica de
“esse”: a de um discurso assumido por um enunciador que se faz representar numa
sequência parentética e constrói a apologia de um tempo distanciado face a um mais
actual (num implicado e implicitado „este‟), identificável com a própria situação de
enunciação. Na procura de identificação deste último tempo, desfavoravelmente
caracterizado face a um mais distanciado, levantam-se algumas hipóteses: trata-se da
representação de um tempo relativo ao acto de contar de um enunciador-contador
configurado pela primeira pessoa que abre a Trova I e que, portanto, vai intrometendo o
seu discurso na narrativa, num registo de comentário, ironia, paródia e desconstrução
narrativa; trata-se da representação do tempo de uma instância que, a identificar-se com
o autor textual, segue os preceitos de uma instituição literária como a do movimento
romântico, atraída pelos usos e costumes, pelo mistério das lendas e tradições medievais
e que, na esteira da filosofia da história de Herder, aliava à glorificação da Idade Média
uma ideologia presa a motivos patrióticos e nacionais tão ao gosto das tradições
populares e das manifestações folclóricas.

Em conclusão e pelos exemplos facultados, a progressão a construir no ensino da


língua não pode deixar de se basear nas formas de processamento dos meios linguísticos
exigidos para a activação de determinada actividade (reflexão sobre a língua, escrita,
oralidade), na articulação com os textos e com as competências a trabalhar.

Uma perspectiva multifocalizada por parte dos que promovem o conhecimento


explícito ao longo dos diferentes ciclos e níveis de ensino-aprendizagem propiciará, pela
atenção aos contributos da Psicologia Cognitiva, da Linguística e da Literatura, e no
actual contexto de discussão e de revisão/implementação de novos documentos
reguladores das práticas docentes, um conjunto de oportunidades que sublinhará factos
incontornáveis: o de não se poder ensinar a gramática de uma língua num só bloco; o de

11
a planificação e sequencialização de conteúdos gramaticais poderem e deverem
considerar desníveis de processamento, viabilizando o tratamento gramatical de um
conteúdo em diferentes pontos de um percurso de ensino-aprendizagem; o de a
progressão no ensino da língua conjugar uma maior variedade de critérios; o de o ensino
da gramática se orientar mais para a forma como funciona a língua, com as actividades a
cumprirem os seguintes objectivos pedagógicos:
- fornecer ao aluno conhecimentos explícitos sobre a língua, de forma a ele saber
como ela é constituída, como funciona e como evolui em diferentes registos e
suportes;
- fornecer ao aluno uma metalinguagem básica de forma a possibilitar a referência
aos elementos da língua;
- consciencializar o aluno de competências de regulação e controlo consciente das
produções linguísticas de que é produtor e responsável;
- ensinar o aluno a pensar de modo organizado, desta forma, ao mesmo tempo que
desenvolve o raciocínio, contribuindo para o domínio e construção de
conhecimento / ciência.

BIBLIOGRAFIA_____________________________________

BARROS, João de (1540) – Gramática de Língua Portuguesa (suporte digital em


depósito na Biblioteca Nacional)
Dicionário Terminológico para consulta em linha, Lisboa, ME-DGIDC (última
consulta realizada em 25-02-09);
FIGUEIREDO, Olívia e OLIVEIRA, Vítor (2008) – “Orientações didácticas para o
trabalho de funcionamento da língua em sala de aula - Parte I:
Conteúdos de Funcionamento da Língua por Ciclo e por Nível de
Ensino” in http://sitio.dgidc.min-edu.pt/linguaportuguesa/
Documents/orientacoes_didacticas.pdf (última consulta realizada em
25-02-09);
FONSECA, Joaquim (1992: 227-234) – “A Frase no Texto. Algumas Propostas de
Trabalho para a Aula de Língua Materna” in Linguística e Texto /
Discurso – Teoria, Descrição, Aplicação, Col. Identidade – Série
Língua Portuguesa. Lisboa, ICALP;
HERCULANO, Alexandre (s./d.: 215-243) – “A Dama Pé-de-Cabra” in Lendas e
Narrativas, selecção e introdução de Maria Ema Tarracha Ferreira,

12
col. Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, nº 27, Editora
Ulisseia;
OLIVEIRA, Vítor (1995) – Para um Estudo da Modalidade no Texto Narrativo – a
modalidade em três versões de ‘A Dama Pé-de-Cabra’, Lisboa,
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova (tese
de mestrado);
SANTOS, Aida (2001: 27-47) – “Da Progressão no Ensino da Língua: «A ordem dos
artistas»” in A Linguística na Formação do Professor de Português,
Porto, Centro de Linguística da Universidade do Porto;
SIM-SIM, Inês et al. (1997) - A Língua Materna na Educação Básica – Competências
Nucleares e Níveis de Desempenho, Lisboa, Ministério da Educação
– DEB;
SIM-SIM, Inês (1998: 143-175) – Desenvolvimento da Linguagem, Lisboa,
Universidade Aberta;
VASCONCELOS, Manuela (1996: 323-330) – “Compreensão e Produção de Frases
Relativas em Português Europeu”, in FARIA, I. et al. <org.>
Introdução à Linguística Geral e Portuguesa, Lisboa, Caminho.

13

Você também pode gostar