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Sergei Eisenstein . A Forma do Filme Apresentagdo, notas ¢ revisdo técnica: José Carlos Avellar Tradugia: Teresa Orroni Jorge Zahar Editor Rio de Janeiro Theulo Film Form Copyright © 1949 by Harcourt Brace Jovanovich, Inc. ‘Copyright renewed 1977 by Jay Leyda Published by arrangement with Harcourt Brace Jovanovich, Inc. Copyright © 2002 da ediggo em lingua portuguesa: Jorge Zahar Editor Leda, tua México, 31 sobreloja 2031-144 Rio de Janeiro, RJ tel.: (21) 2240-0226 / fax: (21) 2262-5123 ‘e-mail: jze@zahar.com-br site: wwawzaharcom.br Taos 0s diteitos reservados. A reprodugia wic-aucorizada desta publicagio, no todo ou em parte, constitui violagio de diecitas aurorais. (Lei 9.610/98) Capa: Sérgio Campante Primeiea edigéo em lingua portuguesa: 1990 Os editores agradecem & Fundacic da Cinema Brasileiro e, em especia\, 2 sua Diretoria Técnica, representada por Ana Pessoa, pela reprodugio fotografia das cenas dos filmes de Eisenstcin wtilizadas na edigao brasileira de A forma do filme c O sentido do filme. Os editores agradecem também 4 Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro por ter cedido cOpias dos filmes Alexander Neva, A greve, O encourasade Potemkin ¢ Ouzubro para que as reprodugées fossem Feitar diretamente das forogiamas desses filmes. Reproducdo dos fotogtamas ftits no Laboratorio da Fundacao do ‘Cinema Brasileiro por José de Aluncida Mauro, CIP-Brasil. catalogacio-na-fonce icato Nacional dos Editores de Livros, RJ- Eisenstein, Sergei, 1898-1948 E37f —_A forma do filme / Sergei Eisenstein; apretencacio, novas ¢ tevisio técnica, José Carlos Avelar; wradusto, Teress Ortoni, — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002 ibs Tradugio de: Film form Ancxos ISBN 85-7110-112-4 1. Cinema - Estética. 1. Avellar, José Caslos, 1936-, II. ‘Titulo. DD 791.4301 02-1643 DU 791.43 Sumario INTRODUCAO: E = me?, por José Carlos Avellar . Prefacio de Sergei Eisenstein... 0... Doteatroaocinema ........ Uma inesperadajungio . 6.2.2.2... Foradequadro.. 2.0... 2. Dramaturgia da forma do filme A quarta dimensao do cinema Métodos de montagem . . cee W See 45 Se eee 27 ee 38 . 49 72 79 Sirvasel eee Eh! Sobre a pureza da linguagem cinermatografica .......... 108 A forma do filme: novos problemas... 0. 0 eee 120 Sobre a estrutura das coisas... ee 141 Realizagdo ... 163 Dickens, Griffithenés 2. ee 176 APENDICE: Declaracdo. Sobre o futuro do cinema sonoro.. . . - = | 225 INDICE DE NOMESEASSUNTOS 0 ve 229 As notas ao final de cada capitulo assinaladas com as iniciais N.S.E. so originais de Sergei Eisenstein. INTRODUGAO E=me José Carlos Avellar Para conseguir voar, o homem estudou atentamente 0 movimento das asas dos passaros, ¢ ao se dar conta das multiplas fungdes que elas desempenham durante o vo, ao se dar conta de que as asas dos passaros funcionam As vezes como hélices ¢ as vezes como superficies para planar, dividiu essas fungées em diferentes partes, ctiando para cada uma delas uma parte em separado; entéo, através da montagem dessas partes numa outra ordem, inventou o avigo. Para eriar uma obra de arte, para conhecer ¢ transformat a realidade através da arte, 0 homem trabalha assim como trabalhou para inventar 0 aviso. Foi em 1934, durante uma aula na VGIK, na Escola da Unio dos Insticuros de Cinema da Unio Soviética, em Moscou. Eisenstein dizia a seus alunos que a arte nGo se reduz ao registro ou imicagdo da nacureza; que arte conflito; é a escricura dos sonhos sonhados pelo artista; que arte ¢ 0 conflito entre a representagio de um fendmeno ea compreensio € 0 sentimento que temos do fendmeno representado; é uma representagio que toma os elementos naturais do fendmeno representado ctia com eles a lei orginica da construgéo da obra; que arte é 0 conflito entre a légica da forma orginica ¢ a légica da forma racional. Eisenstein dizia essas coisas, ¢ para melhor representar sua idéia montou mais ou menos como aparece acima a histéria de come o homem conseguiu voar, lembrando que, primeiro, ele tentou reproduzir com exatidae a forma de um passaro, mas nao conseguiu voat com as asas construi- das iguais 4s asas dos passaros. © pedago de conversa acima ¢ um bom exemple do que Eisenstein discute ¢ de como ele constréi a discussao nos ensaios que compoem este livro. Esta aula é citada na biografia do realizador esctita por Viktor Shklovski, publicada em Moscou em 1971 ¢ logo traduzida para o espanhol ¢ o italiano. As aulas de Eisenstein, especialmente as do curso de diregdo cinematografica entre 1932 € 1936, foram todas registradas em anotagbes estenogréficas feitas pelos alunos. Parte dessas anotagées foram reunidas em dois livros editados em Moscou em 1957 e em 1966. Shklovski selecionou esse fragmento de aula para ilustrar a afirmagao de que ao falar de montagem Eisenstein ndo estava querendo se referir apenas a0 trabalho de juntar pedagos de filmes numa cerca ordem, nem mesmo, hum sentide mais amplo, apenas a idéia que organiza a composigao de cada um a A forma do filme desses pedagos € a inter-relagio/colisio entre eles para formar o sentido do filme. Para Eisenstein, diz Shkloveki, o pensamento humane ¢ montagem ¢ a cultura humana é resultado de um proceso de montagem onde o passada nao desaparece ¢ sim se reincorpora, reinterpretado, no presente. O leitor que entrar nos textos de A forma do filme depois de passar os olhos, num véo répido, pelo pedago de conversa que abre esta introducio, ¢ pela observa- go de Shklovski acima, chegaré mais répido a sensagio que vai tomando conta da gente ao longo da leirura, sensagio nao muito ficil de se traduzir em palavras mas gne talver, exagerando um pouco, se possa sugerir dizendo que ler Eisenstein, tal como ver seus filmes, € algo assim como descobrit que para voar com o pensamento o homem inventou o cinema. Eo cinema, para Eisenstein, comegou a ser inventado bem antes de comegar de fato a ser inventado. A montagem jé existia na pintura, como podemos ver, Eisenstein nos lembra, nas vistas de Toledo feitas por El Greco, no recrato de Cissy Lofius feito por Laurrec, ou no retrato do ator Tomisaburo Nakayama feito por Toshusai Sharaku; j& existia no teatro, como podemos ver nas solugées de cena e no jeito de interpretar dos atores do Kabuki: existia também na misica, como podemos ver nos experimentos de Debussy © Sctiabin, compardveis ao que num filme pode ser feito com o uso de grande-an- gulares bem abertas ¢ teleobjetivas bem fechadas; € na prosa, como podemos ver em Gorki, Tolstoi ou Dickens; ¢ na poesia, come podemos ver em Maiakovski ou em versos japoneses como, porexemplo, Corvo solitario Galho desfolhado Amanhecer de outono sinais de que o poeta escreve com planos de cinema ¢ monta seu poema assim como um realizador monta seu filme, formando uma nova idéia a partir da fusio/colisio de planos independentes. Uma certa qualidade cinematografica jé existia em obras realizadas antes do invento do cinema, ¢ para falar do cinema que existia antes do cinema e que continua a existir fora dele, em textos, em desenhos, na misica ¢ no teatro, Eisenstein criow algumas palavras, como “cinematismo” e “imagicidade”. O cine- ma que existe dentro do proprio cinema — e para falar dele Eisenstein criou também algumas palavras, como “tipagem”, “mise-en-cadre” ou “mise-en-short” — 0 cinema depois da invengao do cinema permite pensar melhor as leis que governam a construgéo da forma numa obra de arte, Para tanto, € preciso que observemos com atengéo, ¢ usemos, como ponto de partida, as caracterfsticas E= me? 9 particulares de seu processo de montagem — a fusfo, a colisio, a construgio de uma ordem nio igual a da natureza mas sim igual & da nacureza dos homens: quando misturamos um tom azul com um tom vermelho chamamos o resultado de violeta, ¢ néo de uma dupla exposigao de vermelho ¢ azul; a ilusio de movimento que recebemos durante a projecio de um filme nasce da percepcao dos focogramas fixos ndo um depois do outro mas sim um em cima do outro; © encadeamento das partes que formam o todo de uma obra de arte se faz em obediéncia & estrusura especial dos pensamentos, nio formulados através da construgio légica em que se expressam os pensamentos elaborados, mas sim em obediéncia a processos sensuais ¢ de fantasia do pensamento — como se fosse uma escrita do sonho. E por causa dessas coisas anotadas aqui, rapidamente, como uma espécie de indice dos ensaios reunidos a seguir, é por tudo isso que bem mo comeco desta introdugio, antes mesmo do pedaco de aula de 1934, esta como titulo, para ser apanhado meio como imagem meio como trocadilho, a férmula (de Einstein) que se pode pegar como para orientar a leitura: E = m2, onde E (de energia) correspon- dea Eisenstein, 0 2 corresponde & montagem, ¢ (a velocidade da luz) correspon- de a0 cinema, o cinema que existe depois da invengio do cinema mais o que jé existia antes da invengéo do cinema, Uma imagem meio de briucadeira, para marcar esta série de textos, que nos mostra 0 quanto, no cinema, espaco e tempo sio grandezas incer-relativas. Sao 12 ensaios, a maior parte deles escrita em 1929. Eisenstein havia termina- do Ousubro (Okriabr, 1927-28), retomado ¢ finalizado O velo e o nove ou A linha geral (Staroie i novoie, ou Gueneralnaia liniia, 1926-29), ¢ tinha como projeto filmar © capital de Marx. Também se preparava para estudar o cinema sonero, a partir de agosto, em companhia de Eduard Tisse ¢ Grigori Alexandrov, numa viagem & Alemanha, Franga, Inglaterra e Estados Unidos. O livro, na verdade, € 0 resultado da montagem de textos escritos separadamente, mas todos basicamente preocupados com a questéo que aparece no titulo de um deles, a dramaturgia da forma do filme. A idéia de reunir estes ensaios num livro surgiu primeiro em 1936, qutando, depois da proibigao de O prado de Bejin (Bejin Lovii, 1935-37), Jay Leyda, aluno de Eisenstein ¢ um de seus assistentes de diregdo neste filme inacabado, deixou Moscou de volea para as Estados Unidos com o plano do livro para tentar edité-lo em Nova York. A forma do filme, no entanto, sé viria a ser publicado em 1949, um ano depois da morte do realizador. Antes, o mesmo Jay Leyda consegui- ria publicar, em Nova York ¢ em Londres, em 1942, uma outta coletinea de textos de Risenstein, O sentido do filme. Aboa acolhida a este livra levou Eisenstein a rever a idéia de A forma do filme em 1946-47, ¢ a acrescentar trés novos ensaios escritos em 1939 ¢ 1944, Durante longo tempo Eisenstein foi conhecido apenas por estes dois livros ¢ pelos filmes que conseguiu finalizar: A greve (Seatchka, 1924), O encouragado Potem- hin (Bronienosets Potemkin, 1925), 08 jd citados Ourubroe O velho e 0 novo, Cavalei- 10 A forma do filme ros de ferro (Alexander Nevsky, 1938) e as duas partes de fvan, o Terrtvel Ivan Grozny 1942-46, mas s6 liherado para exibigho integral a partir de 1958). S6 mesmo no comeso da década de 60 € que se pode perceber que o que se conhecia de Eisenstein era muito pouco. Primeiro, a publicagéo de duas novas coletdneas de textos — Reflexes de um cineasta, que teve tradugéo brasileira em 1969 pela Zahar, e Lessons with Eisenstein de Vladimic Nizhny, publicado em inglés pela George Allen & Unwin em 1962; depois pela edigdo em Moscou de seis volumes de textos selecio- nados, entre 1964 © 1971; ¢, ao lado dos textos, a publicagao dos livros com os desenhos, feitos no México, para a prepatagao de Alexander Neosky ¢ de Ivan, 0 Terrivel, © Finalmente, ao lado dos livros, as diversas montagens feitas com 0 matetial de Que vie México!, 2 montagem dos fotogramas fixos de O prado de Bejin, ¢ a divulgacio dos esbogos de roteiros ¢ anotagées para Uma tragédia ameri- cana, Ouro de Sutter, O capital, O amor da poeta ea terccita parte de Ivan, o Terrfvel, entre outros — tudo isto comegou a mostrar que o que sc conhece apenas uma pequenina parce de um amplo trabalho pritico ¢ tedtico sobre cinema. Ao morrer, aos cingiienta anos, em fevereiro de 1948 — vitima de um ataque cardfaco, enquanto preparava um ensaio sobre a cor no cinema encomendade por Lev Kulechov —, Sergei Mikhailovich Eisenstein deixou uma quantidade de textos muitas vezes superior a0 que j4 foi editado. Outros seis volumes de escritos se encontram prontos para edigo na Unido Soviética, textos inéditos feitos a partir de seu tiktimo trabalho tedrico, A natureaa nao indiferenie. A publicagio de A forma do (filme, paralelamente & de O sentido do filme (com uma ficha bibliogréfica ¢ filmo- grifica em apéndice), vai permitir entrar em contato com uma pontinha das reflexdes deste homem que. depois de estudar atentamente © movimento dos filmes, de um modo geral, e dos filmes que ele mesmo tealizou de um modo particular, dividiu as varias caracterfsticas da forma e do sentido do filme em partes, € montou uma teoria pata ensinar o cinema a voar. PrefAcio" O cinema, sem diivida, a mais internacional das artes. Ndo apenas porque as platéias de todo o mundo véem filmes produzidos pelos mais diferentes pafses ¢ pelos mais diferentes pontos de vista. Mas particularmente porque o filme, com suas ricas potencialidades técnicas © sua abundante invengio ctiativa, permite estabelecer um contato internacional com as idéias contemporaneas. Porém, no primeiro meio século de sua histéria, o cinema sé explorou uma parte insignificanre de suas infinicas possibilidades. Por favor, nfo me interprecem mal. Nio se trata do que foi feito. Coisas magnificas foram feitas. Sé no que diz respeito ao conteido houve um dilivio de novas iddias ¢ novos ideais que fizeram brotar da tela as novas iddias sociais ¢ o novo ideal socialista da vitoriosa Revolugao de Outubro. A questo ¢ — 0 que pode ser feito no cinema, o que s6 pode ser criado com as meios do cinema. Aquilo que ele possui de especifico, de tinico, aquilo que somente o cinema setia capaz de construir, de criar. Ainda nfo encontraram a solugio definitiva para 0 problema da simtese das artes que tendem a uma fusdo plena ¢ orginica no campo do cinema. Enquanto isto, problemas novos se acummulam diante de nds. Mal tinhamos acabado de dominar a técnica da cor ¢ novos problemas de volume e de espago se colocaram diante de nés, culminando com o filme estereos- cépico. E entio, de repente, o imediatismo da televisio nos coloca diante da realidade viva ¢ parece desmanchar as experiéncias ainda néo completamente assimiladas ¢ analisadas do cinema mudo e sonoro. ‘A montagem nada mais era do que a marca, mais ou menos perfeita, da marcha eal de uma percepgio de um acontecimento reconstituldo através do prisma de uma consciéncia ¢ de uma sensibilidade de artista. De repente, a televisao puxa todo este processo para frente, para o momento da percepgio. 12 A forma do filme Assiste-se assim & fuséo incrivel de dois excremos. O elo inicial da cadeia de formas evolutivas do espetéculo, o ator-intérprete, que transmite ao espectador © resultado de seus pensamentes c scatimentos no instante mesmo em que estd pensando ¢ sentindo, pode agora estender a mao ao mestre da forma mais elevada do teatro do futuro: 0 mago cineasta da televisio, que, rapido como um piscar de olhos ou como o surgir de um pensamento, jogando com as lentes ¢ com 0 visor da cAmera, impord direcamente, instantancamente, sux interpretagio estética do acontecimento durante a fragao de segundo em que ele se produz, no momento de nosso primeiro, Unico e fabuloso encontro com ele. Pouco provével? Imposstvel? Serd isso realizavel numa época que, por meio do radar, jd se pode captar em pleno véo 0 eco de sinais enviados para a lua ¢ para além dela, ¢ jé se podem enviar avi6es na velocidade do som acima da cipula azul da atmosfera? Em meio & guerra sonhava-se que, vinda a paz, a humanidade vitoriosa aplicatia sua energia liberada para criar novos valores de cultura, para imprimic & civilizagio um novo desenvolvimento. A tio esperada paz chegou. Eo que vemos? Inebriados pelo fato de possuir um brinquedo integrante do alucinante po- tencial destruidor, os enlouquecidos pelo Stomo cada vez mais se afastam do ideal de paz ¢ uniao, sempre mais préximos de rematerializar a imagem do materialism, sob formas ainda piores que 0 idolo, h4 pouco abatido, de um fascismo de trevas € de desumanidade. ‘A Unido Soviética e a parte avangada ¢ melhor da humanidade pensante apelam a uma cooperacao verdadeiramente democratica entre as nagées mundiais. ‘A vontade avessa dos adversitios da paz pée-se a trabalhar para impor 2 humanidade uma nova hecatombe, novas guerras, nove massacte homicida, fratri- cida. E por isso os povos, mais do que nunca, devem aplicar suas forgas para a compreensio rec{proca ¢ a unio. © cinema tem 50 anos. Um mundo imenso ¢ complcxo de possibilidades abre-se diante dele. A humanidade dedica-se a dominé-las, ndo menos do que a dominar o aspecto fecundo das descobertas da fisica de hoje, da era atmica. Quio pouco tem sido aplicado nas pesquisas estéticas em todo o mundo para petmitir a0 homem tornar-se senhor dos meios ¢ possibilidades que o cinema oferece! Nio nos falta nem capacidade nem impeto, © que espanta aqui € 0 imobilismo, a rotina, a fuga diante de problemas absolutamente novos que se superpdem enquanto o desenvolvimento técnico do cinema corre na frente. Prefiscio 13 Nao devemos temes nada. Nossa tarefa ¢ reunir e resumir as experigncias do pasado ¢ do presente, armando-nos com esta experiéncia para enfrentar noves problemas ¢ domind-los, permanecendo conscientes, ao fazer isso, de que a base genuina da esidtica e 0 material mais valioso de uma nova técnica ée serd sempre a profundidade ideoldgica do tema e do conteido, para os quais os mcios de expressio cada dia mais aperfeigoados setZo somente meios de dar corpo 4s formas mais elevadas de concepsao do univer- so, as idéias do comunismo, Como wabalhadores do cinema soviético, nds nos sentimos obrigados, desde 0s primeiros dias de nossa nova atividade, a conservat cada um dos pequenos graos de nossa experiéncia coletiva, a fim de que cada fagulha de pensamento no campo da criagao cinematogréfica se tornasse propriedade de todos os que trabalham com cinema. Fizemos isto ndo apenas nos filmes, mas também nos ensaios € pesquisas, para compor um quadre do que buscamos, do que eacontramos ¢ daquilo a que aspirames. Assim nasceram meus ensaios. E hoje, resolvido a reunir um volume o que escrevi em diferentes épocas sobre assuntos diversos, sinto-me impulsionado novamente por estes mesmos sen- timentos: contribuir para o dominio das amplas possibilidades do cinema. Sao os sentimentos que devern animar todo aquele que teve a oportunidade de criar neste meio de incompardvel beleza ¢ cujo fascinio nao tem precedente. Em contraste com os que guardam sob sete chaves os “segredos” atémicos, nds, cineastas soviéticos, cooperando com todos os nossos amigos democratas, contribuiremos para a causa comum com tudo aquilo que os anos de prética nos ensinaram sobre essa arte fabulosa. A idéia de paz universal ndo pode ser sufocada pelo amor-préprio cgoista de nagdes ¢ paises prontos a abrirem mao da felicidade universal em nome de sua avidez individual. O cinema, a mais avangada das artes, deve estar em posigao avangada nesta uta. Que ele indique aos povos 0 caminho da solidariedade e da unanimidade no qual devemos nos mover. Foi com tal pensamento que prepare! a presente sclegao de textos, escritos em diferentes datas ¢ locais. E possivel que muitos tenham envelhecido. £ possivel que muitos tenham sido superados. E que muitos estejam ultrapassados. Talvez parte deles tenha apenas um intetesse histérico, como ponto de partida na luta comum dos anos cm que cram mais fervorosas as pesquisas cinematogréfi- cas. © todo, espero, poderd encontrar algum lugar num dos degraus da escada da experiéncia coletiva do cinema, que, a despeito dos que gostariam de langar 4 A forma de filme humanidade no caos da discérdia ¢ da escravidéo miitua, sobe paso a passo e onde a cinematografia soviética continuard subindo, come encaracio dos mais nobres ideais da humanidade. SERGEt EISENSTEIN Nora 1. Escrito em 1946 — o original vem datado Moscou-Kratovo, agosto de 1946—c publicado pela primeira vez dez anos mais tarde na abertura da coletinea Reflexter de um cincasta, Do teatro ao cinema! E interessante rememorar os diferentes caminhos seguidos pelos profissionais do cinema de hoje desde seus pontos de partida criativos, que compdem o multiface- tado pano de fundo do cinema soviético. No inicio dos anos 20, todos viemos para o cinema soviético como para algo ainda inexistente. Nao chegamos a uma cidade jf construida; no havia pragas nem ruas wagadas; nem mesmo pequenas alamedas tortuosas ¢ becos sem saida, como os que podemes encontrar nas metrépoles cinematograficas de hoje. Chegamos como bedufnos ou cagadores de ouro a um lugar de possibilidades inimaginaveis, das quais apenas uma pequena parte foi explorada até hoje. ‘Armamos nossas tendas ¢ iniciamos nossas experiéncias em virias Areas. Ativi- dades particulates, ocasionais profiss6es passadas, babilidades impensaveis, insus- peitadas erudigées — tudo foi reunido ¢ usado na construgio de algo que nao tinha, até entio, tradigdes escritas, requisitos estilisticos exatos, nem mesmo neces- sidades formuladas. Sem mergulhar muito fundo nos fragmentos tedricos das especificidades cinemato- graficas, quero discutir aqui dois de scus aspectos. Sao aspectos também de outras artes, mas o cinema ¢ particularmente responsavel por eles. Primo: foroftagmentos da naturera séo gravadas; secunda: esses fragmentos sio combinados de virios modos. Temos, assim, o plano (ou quadro) ¢ a montagem, A fotografia é um sisterna de reprodugéo que fixa eventos reais ¢ elementos da realidade. Fssas reprodugées, ou fotorteflexos, podem ser combinados de varias maneiras. Tanto como reflexos, quanto pela maneira de suas combinagées, elas permitem qualquer grau de distorgéo — que pode ser tecnicamente inevitdvel ou deliberadamente calculada. Os resultados variam desde a realidade exata das combinagies de experiéncias visuais inter-relacionadas, até as alteragées totais, composigGes imprevistas pela natureza, ¢ até mesmo o formalismo abstrato, com remanescences da realidade. A aparente arbitrariedade do tema, em sta rclagio com o status quo da natureza, é muico menos arbitrétia do que parece. A ordem final é inevitavelmente 418 16 Aforma de filme determinada, consciente ou inconscientemente, pelas premissas sociais do realiza- dor da composicao cinematogréfica. Sua tendéncia de classe é a base do que parece ser uma relagdo cinematogréfica arbicrdria com o objeto que se coloca, ou se encontra, diante da camera. Gostarfamos de encontrar neste processo duplo (0 fragmento ¢ suas selag6es) uma indicagio das especificidades cinematogrdficas. Mas no podemos negar que este processo pode ser encontrado em outros meios art(sticos, sejam ou ndo préxi- mos do cinema (e que arte no est préxima do cinema?). Porém, é possfvel insistir em que estes aspectos so especificos do cinema, porque 0 especifico do cinema reside nao no processo em si, mas no grau em que estes aspectos sao intensificados. © miisico usa uma escala de sons; o pintor, uma escala de tons; o esctitor, uma lista de sons e palavras — e estes séo todos tirados, em grau semelhante, da natureza. Mas o imutdvel fragmento da realidade factual, nesses casos, € mais estreito e mais neutro no significado ¢, em conseqiiéncia, mais flextvel & combina- io. De modo que, quando colocados juntos, os fragmentos perdem todos os sinais vis(veis da combinacao, aparecendo como uma unidade organica. Um acorde—ou mesmo (rés notas sucessivas — parece uma unidade orginica. Por que deveria a combinagio de trés pedagos de filme, na montagem, set considerada uma colisio tripla, impulsos de trés imagens sucessivas? Um tom azul € misturado a um tom vermelho ¢ o resultado se chama de violeta, ¢ nido de uma “dupla exposigao” de vermelho ¢ azul. A mesma unidade de fragmentos de palavras permite todo tipo de variacdo expressiva possivel. E muito facil distinguir trés gradagoes de significado na linguagem — por exemplo: “uma janela sem luz”, “uma janela escura’ e “uma janela apagada”. ‘Agora, tente expressar estas vatias nuangas na composigéo do plano. E possf- vel? Se for, entao que contexto complicado serd necessdrio para artumar os peda- 0s de filme num rolo de modo que a forma preta na parede comece a mostrar uma janela “escura’, ou uma “apagada’? Quanta capacidade ¢ engenhosidade sero gastas para se conseguir um efeito que as palavras obt&m de modo to simples? O plano € muito menos elabordvel de modo independente do que a palavra ou o som, Assim, 0 trabalho misuo do plano e da montagem é, na tealidade, uma ampliagio de um processo microscopicamente inerence a todas as artes. Porém, no cinema este processo € elevado a um tal grau que parece adquirir uma nova qualidade. O plano, considerado como material para a composi¢io, € mais resistence do que o granito. Esta resisténcia é especifica dele. A vendéncia do plano & complera imutabilidade factual est4 enraizada em sua prépria nacureza. Esta resisténcia deter- minou amplamente a riqueza e vatiedade de formas e estilos da montagem — porque a montagem se torna o principal meio para uma transformacao criativa realmente importante da natureza. De teatro 26 cinema 7 Assim, o cinema é capaz, mais do que qualquer outra arte, de revelar o processo que ocorre microscopicamente em todas as outras artes. © menor fragmento “distorctvel” da natureza é 0 plano; engenhosidade em suas combinacoes ¢ montagem. A amilise deste problema recebeu cuidadosa atengao durante a segunda meia década do cinema soviético (1925-30}, uma atengao freqitentemente levada ao cxcesso. Qualquer alteracao infinitesimal de um fato ou evento diante da camera se transformou, ultrapassando todos os limites legicimos, em teorias completas de documentalismo. A necessidade legitima de combinar esses fragmentos da realida- de sc transformou em concepgées de montagem que pretendiam suplantar todos os outros elementos de expressio do cinema. Dentro de limites normais, estes aspectos fazem parte, como clementos, de qualquer estilo de cinematografia. Mas nio se opdem, nem podem substituir outros problemas — por exemplo, o problema do argumento, Voltando ao duplo processo indicado no infcio destas notas: se este proceso é caracter(stico do cinema, tendo encontrado sua plena expresso durante 0 segundo estigio do cinema soviético, valerd a pena investigar as biografias criativas dos diretores daquele perfodo, vendo come estes aspectos cmergiram, como se desen- volveram no trabalho pré-filmico. Todos os caminhos daquele periodo levatam a uma sé Roma. Tentarei descrever 0 caminho que me levou aos principios do cinema. Em geral diz-se que minha carreira no cinema comegou com minha encenagio da pega de Ostrovsky Mesmo o mais sibio se deixa enganar® no Teatro do Proletkult (Moscou, marco de 1923). Ista é verdadeiro e nfo € verdadeiro. Nao € verdadeiro se se baseia apenas no fato de que esta encenacdéo continha um filme de curta metragem comico? feito especialmente para ela (ndo separado, mas inclufdo no plano de montagem do espetdcula). Est4 mais perto da verdade se se baseia no cardter da producio, porque jé nessa ocasido os elementos da especificidade men- cionada acima podiam ser detectados. Concordamos que o primeiro sinal de uma tendéncia do cinema ¢ mostrar eventos com o minimo de distorgio, objetivando a tealidade factual dos fragmen- tos. Uma busca nesta dirego mostra 0 comego de minhas tendéncias cinemato- grdficas trés anos antes, na producio de O mexicano (da hist6tia de Jack London). Aqui, minha participagio levou pata o teatro os prprios “eventos” — um elemento puramente cinematogréfico, porque diferente das “reagées aos eventos”, um ele- mento puramente teatral. Este ¢ o enredo: um grupo revoluciondtio mexicana precisa de dinheiro para suas atividades. Um rapaz, um mexicano, se oferece para conseguir o dinheiro. Ele 18 Aforma do filme treina boxe ¢ combina deixar o campedo derroté-lo em troca de parte do prémio. Em vez disso, ele derrota 0 campedo, ganhando o prémio inteiro. Agora que estou mais a par das peculiaridades da luta revoluciondria mexicana, sem mencionar a técnica do boxe, nio pensaria em interpretar este material como o fizemos em 1920, quanto mais em usar um enredo téo pouco convincente. climax da pega € a lura pelo prémio. De acordo com as mais elogiadas tradigées do teatro de arte, isto deveria ocorrer atrds do palco (como a tourada em Carmen), enquanto 08 atores no palco deveriam mostrar excitagZo com a luta, que 86 eles podem ver, e retratar as varias emogoes das pessoas envolvidas no final. Meu primeiro movimento (passando por cima do trabalho do director, ja que cu estava [4 apenas com a tarefa oficial de desenhista) foi propor que a luta fosse vista. Ao mesmo tempo, sugeri que a cena fosse encenada no centro da platéia, para tecriar as mesmas circunstancias nas quais uma real Juta de boxe ocorre. Assim, ousamos a concretude de fatos reais. A luta deveria ser cuidadosamente planejada com antecedéncia, mas deveria ser totalmente realista O desempenho de nossos jovens atores na cena da luta diferiu radicalmente de sua atuagio em toda a produgdo. Em todas as outras cenas, uma emogao dava origem a outra emogio (eles estavam trabalhando com o método Stanislavsky), 0 que por sua vez era usado como um meio de atingir a platéia; mas na cena da luca a platéia foi estimulada diretamente. Enquanto as outras cenas influenciavam a platéia através da entonagao, gestos ¢mimica, nossa cena usou meios realistas, até estruturais— luta real, corpos caindo no cho do ringue, respiragées arquejantes, 0 brilhe do suor nos corpes ¢, final men- te, © inesquecivel choque das luvas contra a pele esticada ¢ os musculos tensos. Cendtios ficticios deram lugar a um ringue realista (apesar de ndo no centro da sala, gragas a essa praga de qualquer atividade teatral, 0 bombeiro) ¢ extras fecharam o citculo em redor do ringue. Assim, perecbi que descobrira uma nova mina, um elemento matetialista-face tual do teatro, Em O sdbio, este elemento apareceu num nfvel novo ¢ mais claro. O excentrismo® da encenagio mostrou esta mesma linha, através de contrastes fantés- os, A cendéncia desenvolveu-se nfo apenas a partir dos movimentos de encena- G40 ilusérios, mas do fato fisico da actobética. Um gesto se expande em gindstica, a violéncia se expressa através de uma cambalhota, a exaltacao através de um salto mortale, 0 litismo no “astro da morte”. © gratesco deste estilo permitiu pulos de um tipo de expressio para outro, assim como entrelagamentos inesperados de duas expresses. Numa produgio posterior, Moscou, esté onvindoX (verso de 1923), essas duas linhas separadas de “aco seal” ¢ “imaginagio pictérica” passaram por uma sintese expressada por uma técnica espectfica de encenacéo. Estes dois principios apareceram novamente em Mascaras de gds de Tretiakov (1923-24), com uma irreconciliabilidade ainda mais acentuada, numa ruptura tao Do ceatro a0 cinema. 19 clara que, se tivesse sido um filme, teria permanecido, como se costuma dizer, “na prateleira’, Qual eta o problema? O conflito entre prinefpios materiais-priticos ¢ deseri- tivos-ficticios foi de algum modo remendado no melodrama, mas eles acabaram se fragmentando ¢ fracassamos completamente. O carro cai aos pedagos, ¢ 0 moto~ rista caiu no cinema. Tudo isto aconteceu porque um dia o dirctor teve a maravilhosa idéia de produzir uma pega sobre uma fibrica de gis — numa verdadeira fabrica de gas. Como percebemnos mais tarde, os verdadeiros intetiores da fibrica nada ti- nham a ver com nossa ficgio teatral. Ao mesmo tempo, o charme plistico da realidade da fabrica se tornouw tao forte que o elemento de realidade despontou com forga nova — tomou as coisas em suas préprias mos — ¢ finalmente este elemento teve de sair de uma arte em que ele no podia dominar, Em conseqiiéncia, fomos levados ao limiar do cinema. Mas este no foi o fim de nossas aventuras no trabalho teatral. Indo para cinema, esta outra tendéncia floresceu, e se tornou conhecida como “tipagem’. Esta “cipagem’ & um aspecto téo tipico deste perfodo do cinema quanto a “montagem’, E preciso deixar claro que néo quero limiar 0 conceito de “ripagem” ou “monta- gem” as minhas préprias obras. Quero salientar que esta “tipagem” deve ser entendida de modo mais amplo ¢ nao reduzida ao uso de um rosto sem maquiagem, ou & utilizagio de tipos “natural- mente expressivos” em lugar de atores, Em minha opinigo, “tipagem” significa uma abordagem especifica dos eventos abrangidos pelo conteddo do filme. Aqui tam- bém o método é 0 do m{nimo de interferéncia no curso natural ¢ nas combinagées dos eventos. Conceitualmente, do in{cio ao fim, Ovrubro € pura “tipagem”. Uma tendéncia & tipagem pode cer rafzes no reatro; desenvolvendo-se do teatro para o cinema, apresenta possibilidades de excelente crescimento estillstico, hum sentido amplo — como um indicador de afinidade com a vida real através da camera. Eagora vamos examinar 0 segundo aspecto de especificidade cinematogrifica, 08 princlpios de montagem. Como isto foi expresso ¢ moldado em meu trabalho antes de me engajar no cinema? No meio do fluxo de excentrismo de O sdbio, que inclufa um curta-metragem cémico, podemos encontrar as primeiras indicagées de uma montagem nitidamen- te expressa. ‘A agio se desenvolve através de uma elaborada trama de intriga. Mamayev envia seu sobrinho, Glumov, pata tomar conta de sua mulher, Glumov toma liberdades além das insteugGes do tio e a tia leva a corte a sério, Ao mesmo tempo, Glumov comega a negociar um casamento com a sobrinha de Mamayev, Turussina, mas esconde essas intengSes da tia, Mamayeva. Cortejando a tia, Glumov engana 0 tio; bajulando o tio, Glumov combina com ele enganat a tia. 20 A forma do filme Glumoy, num plano cmico, ecoa as situagées, as paixbes arrebatadoras, 0 feenesi das finangas vividos por seu prorétipo francés, Rastignac, de Balzac. A figura de Rastignac, na Russia, ainda estava no berco. Ganhar dinheiro ainda era uma espécie de jogo infantil encre tios ¢ sobrinhos, tias e seus cortejadores. Permanece na familia, ¢ permanece trivial. Daf a comédia. Mas a intriga e as confusdes jd esto presentes, atuando em duas frentes ao mesmo tempo — em mao dupla — com personalidades duplas... e mostramos tudo isto com uma montagem que intercala duas cenas diferentes (de Mamayev dando suas instrugSes e Glumov colocando-as em execugao). As surpreendentes intersegées dos dois didlogos explicam os perso- agens € a pega, aceleram o ritmo ¢ multiplicam as possibilidades cémicas. Para a produgée de O stbio, o cenétio foi montado como uma arena de citco, limieada por uma grade vermelha, ¢ cercada em trés quartos pela platéia. Na outra quarea parte havia uma cortina listrada, ¢ & frente dela uma pequena plataforrna clevada, com aaleura de varios degraus. A cena com Mamayev (Shttauch) se passava no cendrio inferior, enquanto os fragmentos com Mamayeva (Yanukova) ocorriam tna plataforma. Em vez de mudanga de cenas, Glumov (Yezikanov) corria de uma cena para a outra — pegando um ftagmento de didlogo de uma cena, interrompen- do-o com um fragmento da outra cena —, com o didlogo assim colidindo, criando novos significados ¢ algumas vezes jogos de palavras, Os saltos de Glumov agiam como caesurae entre os fragmentos do didlogo. Eo “corte” acelera o ritmo, © mais interessante era que a extrema agudeza da excentricidade nao era retirada do contesto desta parte da pega; nunca se tomnou comica apenas pela comédia, mas atinha-se a0 tema, intensificada pela expressio cénica. Outro aspecto claro do cinema cm agio aqui foi o nove significado adquitido por frases comuns em um novo ambiente. Qualquer um que tem em mios um fragmento de filme a ser montado sabe por experiencia como ele continuard neucro, apesar de ser parte de uma seqiiéncia planejada, até que seja associado a um outro fragmento quando de repente adquire ¢ exprime um significado mais intenso e bastante diferente de que o planejado para ele na época da filmagem. Este foi o fundamento da inteligente e perversa arte de remontar o trabalho de terceiros, cujos exemplos mais profundos podem ser encontrados durante 0 alvore- cer de nossa cinematografia, quando todos os principais montadores de filmes — Esther Schub, os itmaos Vassiliey,’ Benjamin Boitler e Birrois— estavam ocupados em retrabalhar criativamente os filmes importados apés a revolugio. Nao posso resistir ao prazer de citar aqui uma montagem sour de force deste tipo, executada por Boitler. Um filme comprado da Alemanha foi Danson/ Tisdo por uma mulber® com Emil Jannings. Foi mostrada, em nossas telas, a seguiinte cen: Camille Desmoulins € condenada & guilhotina. Muito agitado, Danton corte a Robespierre, que lhe dé as costas e vagatosamente enxuga uma lagrima. A legenda {Do teatro 20 cinema a dizia, aproximadamente, “Em nome da liberdade, tive de sacrificar um amigo...” Fim. Mas quem poderia imaginar que, no original alemao, Danton, apresentado como indolente, mulherengo, excelente camarada ¢ unica figura positiva no meio de personagens cruéis, correu pata o diabélico Robespierre ¢... cuspiu em seu rosto? E que foi este cuspe que Robespierre enxugou com um lenco? E que a legenda indicava o édio de Robespierre a Danton, um édio que no final do filme motiva a condenagao de Jannings-Dancon a guilhotina?! Dois pequenas cartes reverteram todo a significado desta cena! De onde veio minha experiéncia de montagem nessas cenas de O sdbia? Jé havia um “aroma” de montagem do novo cinema “de esquerda’, particular mente entre os documentaristas. Nossa substituigao do diério de Glumoy, no texto de Ostrovsky, per um curto “didtio cinematogréfico” foi uma parédia das primeiras experiéncias com cinejotnais. ‘Acho que, antes de qualquer coisa, devemos dar crédito aos principios bésicos do circo ¢ do music-hall — pelos quais senti um amor apaixonado desde a infancia. Sob a influéncia de comediantes franceses, e de Chaplin (de quem sé ouvitamos falar), ¢ as primeiras noticias sobre o fox-trot ¢ 0 jazz, este amor precoce floresceu. O clemento de music-hall foi obviamente necessério na época para a emergen- cia de uma forma de pensamento na “montagem”. A roupa bicolor de Arlequim cresceu ¢ se espalhou, primeiro sobre a estrutura do programa, e finalmente sobre 0 método de toda a producéo. Mas os alicerces se cravatam mais profundamente na tradicao. E estranho, mas foi Flaubert quem nos deu um dos melhores exemplos de moncagem-cruzada de didlogos, usada com a mesma intengio de dar énfase expressiva 4 idéia, E 0 caso da cena, em Madame Bovary, em que Ema e Rodolfo se tornam mais {ntimos. Duas litthas da fala so incerligadas: a fala do orador na praga embaixo, € a conversa dos futuros amantes: O senhor Derozerays levantou-se, iniciando outro discurso... nele, 0 elogio do Go- verno ocupou menos espaco; na religiio ¢ na agriculcura deceve-se mais. Mostrou a relagdo entre uma e outra, ¢ como ambas haviam contribuido para a eivilizacéo. Rodolfo ¢ Madame Bovary falavam sobre sonhos. pressentimentos, magnetismo. Remontando as origens da saciedade, o orador descreveu os empos barbaros, quan- do os homens viviam em cavernas no cora;io das florestas. Depois os homens despiram as peles de animais, vestiram-se de panos, abriram os sulcos, plantaram a vinha. Isto fora um bem, mas nio haveria em tal descobrimento mais inconveniences do que vantagens? O senhor Derozerays colocou o problema. Do magnetismo, pouco a pouco Rodolfo passou as afinidades, « eniquanto o presidente eitava Cincina- 22 A forma do filme to ¢ seu arado, Diocleciano plantando sua horta, ¢ os imperadores da China inaugu- rando 9 ano com a semeadura do campo, 0 rapaz explicava a jovem senhora que aquelas atragies ircesistiveis tinham sua causa numa existéncia anterior. “Veja nés”, disse ele, “por que nos conhecemos? Por que o acaso assim 0 quis? Foi porque através da distancia, como dois rios que correm para se unir, nossas inclina- es particulares nos impeliram am em diregao ao outro.” FE Rodolfo pegou-lhe a mao; ela néo a retirou. “Para uma boa Javoura em gerall”, gritou o presidente. “Hi pouce, por exemplo, quando fui & sua casa.” “Ao senhor Bizet de Quincampoix.” “Podia eu saber que a acompanharia?” “Sctenta frances.” “Cem vezes pensei em partir; mas a segui — ¢ fiquei.” “Adubos!” “Como ficarei esta noite, amanhé, todos os demais dias, toda a minha vida.”* E assim por diante, com os “fragmentos” desenvolvendo crescente tensio. Como podemos ver, este € um entrelagamento de duas linhas vematicamente idénticas, igualmente triviais. O assunco ¢ sublimado por uma trivialidade monu- mental, cujo climax é atingido através de uma continuacéo desta intersegio ¢ do jogo de palaveas, com o significado sempre dependendo da justaposigao das duas linhas. A literatura est4 cheia de tais exemplos. Este método é usado com crescente popularidade pelos herdeiros art(sticos de Flaubert Nossas brincadciras com relagao a Ostrovsky ficaram num nivel de “vanguar- da” de uma indubitivel pobreza. Mas a semente das tendéncias de montagem cresceu ripida ¢ esplendidamente em Patatra, que permaneceu apenas como proje- to devido a falta de uma sala adequada e de possibilidades técnicas. A produgio foi planejada com “chase tempos” (titmos de perseguicie), rdpidas mudangas de agio, intersegGes de cenas e representago simultanea de vérias cenas num palco que cercava uma platéia de cadeiras méveis. Um outro projeto anterior até tentou incluir todo o edificio do teatro em sua composigio. A experiéncia nfo deu resulta- do durante os ensaios ¢ mais tarde a pega foi produzida por outras mios com a concepeao puramente teatral. Foi na pega de Pletnev, Precipicio,'® em que Smish- layev eeu trabalhamos, apds O mexicano, até que discordamos quanto 20s princi- pios ¢ dissolvemos nossa sociedade. (Quando voitei ao Prolctkult, um ano depois, para fazer O sdbio, foi como diretor, apesar de continuar a desenhar minhas pré- prias encenag6es.) Precipicio contém uma cena na qual um inventor, empolgado com sua nova invengéo, corre, como Arquimedes, pela cidade (ou talvez estivesse sendo persegui- do por gingsteres — no me lembro exatamente). A tarefa era resolver a dindmica das ruas da cidade, assim como mostrar a condigao de um individuo indefeso a Do teatro ao cinema 23 merce da “grande cidade”. (Nossas concepgies erradas sobre a Europa nos levaram, naturalmente, ae falso conceite de “urbanismo”.) Umma divertida combinagao me ocorreu, nao apenas de usar cendrio mével — pedacos de edificios e detalhes (Meyerhold ainda nfo criara, para seu Trust D.E., os biombos neutros ¢ lustrosos, murs mobiles, para unificar varios lugares de aco) — mas também, possivelmence ante a necessidade de mudangas de cendrios, de vincu- lar estas decoragbes méveis 4s pessoas. Os atores em patins carregavam nfo apenas asi mesmos pelo palco, mas também seus “pedagos da cidade”. Nossa solugao do problema — a intersegéo do homem ¢ do meio — foi sem duvida influenciada pelos principios dos cubistas, Mas as pinturas “urbanisticas” de Picasso tiveram menos imporcincia aqui do que a necessidade de expressar a dindmica da cidade — relances de fachadas, mos, pernas, pilares, cabegas, caipulas. ‘Tudo iste pode ser encontrado no trabalho de Gogol, mas no o percebemos até que Andrei Belyi nos esclareceu sobre o cubismo especial de Gogol." Ainda me lembro das quatro pernas de dois banqueiros, cartegando a fachada da bolsa de valores, com duas cartolas coroando o conjunto. Havia também um policial, cortado ¢ esquartejado pelo tréfego. Trajes resplandecentes com perspectivas de luzes girando, tendo apenas grandes ldbios pintados visiveis no alto. Tudo isto permaneceu no papel — ¢ agora que até o papel se foi, podemos nos tornar bem pateticamente liricos em nossas reminiscéncias. Esscs ptimeitos planos cortados em visdes de uma cidade se tornam outro elo de nossa andlise, um elemento do cinema que tentou adequat-se ao refratdtio palco. Aqui estéo também elementos de dupla e miltipla exposicso — “superposicao” de imagens do homem sobre imagens de edificios — tudo uma tentativa de inter-rela~ cionar o homem ¢ seu meio numa tinica ¢ complexa exposigao. (O fato de que 0 filme A greve eta cheio deste tipo de complexidade prova a “doenca infantil do esquerdismo” existente nesses ptimciros passos do cinema.) ‘Tendo partido da fuséo mecanica, 2 tentativa evolui da sintese plastica para a sintese temtica. Em A greve, hd mais do que uma transformagio na téc cAmera. A composigio ¢ estrutura do filme como um conjunto adquire o efeito ¢ a sensagio de unidade ininterrupta entre 0 coletive ¢ 0 meio que cria 0 coletivo. Ea unidade orginica dos marinheiros, navios de guerra € © mar, que € mostrada em intersegio plastica ¢ temdtica em O encouragado Potemkin, nao é obtida através de truques, dupla-exposigio, ou intersegio mecinica, mas pela estrutura geral da composigao. Mas, no teatro, a impossibilidade da mise-en-scdne se desenrolar pela platéia, fundindo palco e platéia em um padrdo em desenvolvimento, foi a razi0 para a absorgio concentrada dos problemas de mise-en-scbne dentro da agio c&nica. ‘A mise-en-scine quase geometricamente convencional de O sabio e sua conse- qiséncia formal, Moscou, estd ouvindo?, se torna um dos elementos basicos de expresso. A intersegao de montagem eventualmente se cornou muito enfaticamen- te exata. A composicao fer sobressair grupos, fez com que a atengSo do espectador 24 A forma do filme mudasse de um ponte para 0 outro, apresentou primeiros planos, uma mao segu- rando uma carta, o jogo das sobrancelhas, um olhar. A técnica da genuina compo- sigdo de mise-en-scdne estava sendo dominada — ¢ se aproximando de seus limites. Jéestava ameagada de se transformar no movimento do cavalo no xadrez, 0 deslo- camento de contornos puramente pldsticos nos tragos j4 ndo-teatrais de desenhos detalhados. Deralhes esculturais vistos através da estrucura do cadre, ou plano, transigdes de plano para plano, pareciam ser a saida Iégica para a amcaga de hipertrofia da mireeenescine. Teoricamente, isso estabeleceu nossa dependéncia da mise-en-scine e da montagem. Pedagogicamente, decerminow, para o futuro, a passagem & monta- gem e ao cinema, aos quais se chegou através do dominio da construco teatral € através da arte da mrise-en-scdne, Assim nasceu o conceito de mise-en-cadre. Como a mise-en-scene & a inter-relagao de pessoas em aco, do mesmo modo a mise-en-cadre a composi¢fo pictérica de cadres (planos) mutuamente dependentes na seqiiéncia da montagem. Em Mésearas de gds vernos 0 cncontro de todos os elementos das tendéncias cinematograficas. As turbinas, o segundo plano da fibrica, negavam os ultimos remanescentes da maquiagem ¢ trajes teatrais, ¢ todos os elementos pareciam fundidos independentemente. Os acessdrios teatrais no meio da plastica real da fabrica pareciam tidiculos, © elemento de “encenagio” era incompativel com o cheiro acre do gis. O praticével insignificance ficou perdido entre as plataformas reais da atividade de trabalho. Em resumo, a produce foi um fracasso. E nés nos vimos no cinema. Nosso primeiro opus cinematogrifico, A greve, refletiu ao inverse, come num espelho, nossa encenagio de Mascaras de gs, Mas o filme patinhava nos restos de uma rangosa teatralidade que se tornava estranha a ele. ‘Ao mesmo tempo, a ruptura com o teatro, a principio, foi tie forte que em minha “revolta contra o teatro” me afascei de um elemento muito vital do teatro — o argumento. Na época isto pareceu natural. Levamos a aco coletiva e de massa para a tela, em contraste com @ individualismo ¢ o drama do “triangulo” do cinema burgués. Fliminando a concepgao individualista do heréi burgués, nossos filmes daqueles periodos fizeram um desvio abrupto — insistindo em uma compreensio da massa como herdi. Nenhum cinema refletira antes uma imagem da agao coletiva. Agora a con- cepgio de “coletividade” deveria ser retratada. Mas nosso entusiasmo produziu uma Tepresentacio unilateral da massa ¢ do coletivo: unilateral porque coletivismo significa o desenvolvimento maximo do individuo dentro do coletivo, uma concep- ao irreconciliavelmente oposta ao individualismo burgués. Nossos primeiros fil- mes de massa omitiram este significado mais profundo. Bo teatro ao cinema 25 Porém, tenho certeza de que, com relagao aquele petlodo, este desvio foi no apenas natural, mas necessério. Era importante que o cinema fosse primeiro pene- trado pela imagem geral, o coletivo unido ¢ impulsionado por uma tinica vontade. “A individualidade dentro do coletivo”, o significado mais profundo, exigido do cinema hoje, dificilmence ceria aceitagio se 0 caminho nio tivesse sido aberto pelo conceito geral. Em 1924, escrevi com grande entusiasmo: “Fora com a histéria eo enredo!” Hoje, a histéria, que entéo parecia quase “um ataque de individualismo” contra nosso cinema revolucionério, volta de uma forma nova a seu lugar apropriado. Nesta virada em direcdo 4 histéria reside a importancia histérica da terceira meia década da cinematografia sovietica (1930-35). E aqui, a0 iniciarmos nosso quarto perfodo de cinco anos de cinema, quando as discussdes abstratas sobre os ep{gonos do filme de “argumento” ¢ os embriées do filme “sem encedo” esto se acalmando, ¢ hora de fazer um inventirio de nossas perdas ¢ ganhos. ‘Acho que além de dominar os elementos da dics cinematogrifica, a técnica do plano ea teoria de montagem, temos outro ganho a citar — o valor dos lagos profundos com as cradigdes e metodologias da literatura. Nio em vio, durante este perfodo, nasceu 0 novo conceito de linguagem do filme, linguagem do filme no como a linguagem do critico de filmes, mas como uma expressio do pensamento cinematogratico, quando o cinema foi chamado a incorporar a filosofia ¢ a ideolo- gia do proletariado vitorioso. Estendendo a mao para a nova qualidade da literatura — a dramaticidade do assunto —, 0 cinema nio pode esquecer a tremenda experiéncia de seus perlodos iniciais. O caminho, porém, nao é voltar a eles, mas ir em frente, em diregao 4 sintese de tudo o que de melhor foi feito por nosso cinema mudo, em direcio a uma sintese disto com as exigtncias de hoje, seguindo as linhas do argumento ¢ da andlise ideolégica marxista-leninista. A fase de s{ntese monumental nas imagens do pove da cra do socialismo — a fase de realismo socialista. Notas 1. Escrito em 1934 ¢ publicado na revista Sovietskote Kino n® 11/12, de dezembro desse mesmo ano. O tltulo original, Srectnaia ie trekh, 1924129 (O segundo dos trés, 1924/29), se refere ao segundo qiiingiiénio do cinema soviérice. 2. Na vsiakavo moudrets dvol'no protati esctita era 1868 por Alexander Nikolaievich Ostrovsky (1823-86). © texto encenado por Eisenstein é uma livre adapracio do original feita por Serguei “Tretiakov (1892-1939, poevs, ensafsta eceatrélogo). A versio ganhou um titulo menor, Osdbio, eum subtitulo, Fi todo sdbio existe um pouco de ingenuidade. 26 A forma do filme 3, Trata-se de Duieonit Glumava (O didrio de Glumav), filme de mais ou menos cinco minutos de duragio, todo realizado em um $65 dia, uma quinta-feira, porque 0 esperdculo tinha estedia marcada para o sébado seguinte, como conta Eisenstein num texto de 1928, Met primeiro filme, ineluido mais tarde em sua aucobiografia, Neste mesmo texto ele conta ainda que a Goskino enviow Driga Vertov para acompanhar os trabalhos na qualidade de instrutor, e que depois de ver a5 filmagens dos dois ou trés planos iniciais Vertov se retirou. Dois meses depois, no cinejornal Kina Pravda nf 16, edigdo especial de primavera, Vertov incluiria O diario de Glumor precedido de um letreiro que anunciava: Sorrisas primaveris do Proleskuls(Veiennie ulibki proleskulra) 4. The Mexican Felipe Rivera. 8 adaptacio para ceatto foi de Boris Arvatoy e a direcio foi de Valentin Sergeievitch Smishlaiev (1891-1936), com a colaborasio de Eisenstein. O esperdculo estzgou em Moscou em maio de 1921. Entre os intérpretes estavam Gregori Alexandrov, Ivan Pyciev ¢ Maxim Shtrauch, . 5. Referéncia ao estila de encenagio do FEKS {Fabrica do Ator Excfntrico), o Excentrismo, movimento criado em dezembro de 1921 por Gregori Kozintzev (1905-73), Sergei Yutkevich (1904-85), Georgi Krichitski (1899-1940) ¢ Leonid Trauberg (+1902). Bisenstein colaborou com o grupo durante algum tempo, ¢ em maio de 1922 montou um espetécuto com a colaboragio de Yuckevich, A fita de colorubina. 6. Slichich Moskua?, de Sergei Tietiakev. Est pega, © logo depois Gar Masks, rambém de ‘Tretiakov, foram as primeitss montadas pelo grupo dirigida por Eisenstein dentro do Teatro do Proletkult, © Peretru. © nome do grupo — conta Viktor Shklovski na biogeafia de Eisenstein que pubticou em Moscou erm 1972 — é uma abreviatura de Peredvitonaia eruppa (Companhia ambulan- 12), que forma um jogo de palavras com triturar ou perturbat. 7. Esther Schub (Esfir Iinitchina, 1894-1959) cntrou para a cinema em 1922, remontando filmes estrangeiros para exibigio na Unio Soviética, Eisenstein acompanhou o seu trzbalho de remontagem de dois filmes de Fritz Lang, Dr. Mabuse, der Spieler e Inferno, ambos de 1922, reduzidos a um s6 filme. Schub, depois de ver O encouracado Potemkin, decidiu passar a cealizagao de filmes documentérios semontando trechos de cincjornais, como ela mesma conta na autobiografia que publicou em 1959 em Moscou, Krspuym planom (Primeiro plano). Ene seus filmes encontram- se Padenie dinastii Romanevich (A queda da dinastia Romanov, de 1927) ¢ Russia Nikolata wi Lev ‘Tolitoi (A Rissa de Nicolas: tte Leon Tolttoi, de 1928). Os itmaos Vassilicy néo cram de fato irmios, apesar do sobrenome idéntico, mas sempre trabalharam juntos desde 1924: Georgi Vasiliev (1899- 1946) ¢ Sergei Vassiliey (1900-59) comegaram como montadores ¢ ditigiram uma dezena de filmes, entre 03 quais o mais conhecido & Tobapaiev (1934). 8, Produséo alemé tealizada em 192] por Dmitri Buchowerzki (1895-1932), acor ¢ diretor russo que migrou para a Alemanha em 1919 e daf para os Estados Unidos em 1924. 9. NSE. Gustave Flaubert, Madame Bovary. 10, Com diregio de M. Altman, a pora estreou em autubro de 1922 no Teatro do Proletkult er Moseou, mantendo apenas parte dos cenirios de Eisenstein. Patatra é rambém um texco de Valentin Pletnev (1886-1942). 11. N.S.E.: Andrei Belyi (Boris Nikolaievich Bugayey}, Masterstam Gogalya (A arte de Gaga). | Uma inesperada jungao" Ouga! A voz de um haisio Engoliu o campo aberto Deum sé golpe ‘YAMEL Givochini, famoso comediante do Teatro Mali, cer- ta ver foi obrigado a substituir, no ditimo momento, popular baixo moscovita Lavrov em uma dpera. Mas Givochini ndo tinha voz de cantor. Seus amigos balan- garam a cabega complacentemente. “Como podera cantar 0 papel, Vasili Ignatievich?” Givochini nao se ofenden. Disse, alegremente: “Qualguer nota que nda (posta emitir com minha voz, mostrarei com minhas ‘mos’ Fomes visitados pelo ceatro Kabuki — uma maravilhosa manifestacio de cultura teatral. “Todas as vozes criticas derramam elogios a esta espléndida arte. Mas no houve nenhum elogio ao que constitui seu prodigio. Seus elementos “de museu”, apesat de indispensdveis na avaliagio de seu valor, ndo podem sozinhos garantir uma avaliagdo satisfatéria deste fendmeno, deste prodigio, Um “prodigic” deve promover progfesso cultural, alimentando e estimulando as questOes intelectuais dos nossos dias. O Kabuki dispensa os chavées: “Como é musical!” “Que tratamen- to dos objetos!” “Que plasticidade!” E chegamos & concluséo de que nada temos a aprender, de que (como um de nossos mais respeitados criticos anunciou) nao hd nada de novo: Meyethold jé pingou tudo de util do teatro japonés! Atrds das generalidades intiteis, h4 a revelagie de algumas posigbes reais. O Kabuki é convencional! Como podem tais convengées emocionar os europeus! Sua arte € meramence a fia perfeigao da forma! Eas pecas que eles encenam sio foudais — Que pesadelo! Fe 28 A forma do filme Mais do que qualquer outro obstaculo, é este convencionalisme que impede nosso aproveitamento coral de cudo 0 que pode ser omado emprestado do Kabuki. Mas o convencionalismo que aprendemos “nos livros” mostra-se, de fato, como um convencionalismo de relag6es extremamente interessantes. O convencio- nalismo do Kabuki nae ¢, de forma alguma, o maneirismo estilizado e premeditado que conhecemos em nosso préprio teatro, artificialmente elaborado fora dos requi- sitos técnicos desse dito teatro. No Kabuki este convencionalismo ¢ profundamente Iégico — como em quaiquer teatro oriental; por exemplo, no teatro chinés. Entre os personagens do teatro chinés estd “o espirico da ostra”! Observem a maquiagem do ator que desempenha este papel, como sua série de patéticos cfrcu- Jos concéntricas espalhando-se da direita para a esquerda de seu nariz, reproduzin- do graficamente as fissuras de uma concha de ostea. Aparentemente, isto ¢ bastante “justificado”. Nao & mais nem menos convengio do que as dragonas de um general. Desde suas origens escassamente utilitérias, de servir para aparar golpes de macha- do no ombro, até serem guarnecidas com pequenas estrelas hierérquicas, as drago- nas nfo podem ser distinguidas, em prinefpio, do sapo azul inscrito na testa do ator que est4 desempenhande 0 pape! do “espitito” do sapo. Outra convengao é tirada diretamente da vida. Na primeira cena de Chushin- guns, Shocho, desemperhando o papel de uma mulher casada, aparece sem sobran- celhas ¢ com dentes enegrecidos. Este convencionalismo no é mais irreal do que 0 costume das mulheres judias de raspar a cabega de modo que as orelhas fiquem expostas, nem do costume entre as mogas que se filiam 20 Komsomol de usar lengos vermethos, como algum tipo de “forma”. Diferente da pritica européia, onde casamento foi transformado numa protesio contra os tiscos do amor mais livre, no antigo Japao (da ¢poca da peca) a mulher casada, passada a necessidade de ser atraente, destrufa scus atrativos! Retirava suas sobrancelhas ¢ escurecia (algumas vezes atrancava) seus dentes. Desloquemos a discussie para a questo mais importante, 0 convencionalis- mo, que é explicado pela visio de mundo especifica japonesa, que aparece com particular clareza durante a percepedo direta do espetdculo, num grau peculiar que nenhuma descrig&o foi capaz de nos explicar. E aqui encontramos algo totalmente inesperado — uma jungéo do ceatro Kabuki com as investigag6es extremas do teatro, onde o teatro ¢ transformado em cinema.? E onde o cinema sobe esse mais recente degrau de seu desenvolvimento sonore. A distingao mais clara entre 0 Kabuki e nosso teatro reside — se tal expresso é permitida ~- em um monismo de conjunto, Estamos familiarizados com o conjunto emocional do teatro de arte de Mos- cou — © conjunto de uma “re-experiéncia’ coletiva unificada; o paralelismo de conjunto usado na épera (por orquestra, coro e solistas); quando os cenérios também dao sua contribuigéo a este paralelismo, 0 teatro designado pela conspur- Uma inesperada jungao 29 cada palavra “sintético”s © conjunto “animal” finalmente tem sua vinganga — aquela forma ultrapassada na qual todo o palco cacareja, ladra © muge numa imitagéo naturalista da vida levada pelos seres humanos “que assistem’, Os japoneses nos mostraram uma outra forma, extremamente interessante, de conjunto — 0 conjunto monfstico. Som — movimento — espago — vor, aqui, nZ0 acompanham (nem mesmo sio paralelos) um ao outro, mas funcionam como ele- mentos de igual significdncia. A primeira associagdo que ocorre a alguém que estd passando pela experiéncia do Kabuki ¢ 0 futebol, o esporte mais “conjunto”, mais coletivo. Vozes, palmas, movimento mimico, os gritos do narrador, biombos — tudo tio parecido com zagueitos, meios-de-campo, goleiros, atacantes, pasando um para 0 outro a dramé- tica bola e indo em diregio ao gol, diante do espectador fascinado. E impossivel falar de “acompanhamentos” no Kabuki — exatamente como nao se diria que, a0 andarmos ou corrermos, a perna direita “acompanha” a perna esquerda, ou que ambas acompanham o diafragma! ‘Aqui, ocorte uma tinica sensagao monistica de “provocasio” teatral. Os japo- neses consideram cada elemento teatral nfo como uma tinidade incomensurdvel entice as varias categorias de sensagies (dos vérios drgios sensoriais), mas uma unidade Unica de teatro. 1-0 sapateado de Ostuzhey, née mais do que o collant rosa da prima-dona, um rufar dos timbales tanto quanto 0 soliléquiv de Romeu, © grilo no coracio no menos do que 0 canhio disparado por cima das cabecas da plateia? Assim escrevi em 1923, colocando um sinal de igualdade entre os elementos de cada categoria, estabelecendo teoricamente a unidade bdsica do teatro que envio chamei de “atragoes”. E claro que os japoneses, com sua prdtica instintiva, atingem todos os sentidos com seu teatro, exatamente como eu, entio, tinha em mente. Ditigindo-se aos varios érgios dos sentidos, eles constroem sua soma em diresao a uma grandiosa provocacdo roral do cérebro humano, sem prestar atengao em qual desses varios caminhos estéo seguindo. Em lugar do acompanhamento, 0 método sem subterfigios de mansferéncia que chama a atengao no teatro Kabuki. Transferindo 0 objetivo afetivo basico de um material paca outro, de uma categoria de “provocagio” para outra. Passando pela experiéncia de Kabuki, lembramo-nos involuntatiamente de um romance norte-americano sobre um homem no qual os nervos da audigao ¢ visio sio trocados, de modo que ele percebe as vibragoes da luz como sons, ¢ os tremores do ar como cores: cle ouve Juz vé som. Isto € também 0 que acontece no Kabukit Na realidade “ouvimos movimento” ¢ “vemos som”. 30 Aforma do filme Um exemplo: Yarunosuke abandena 0 castelo rendido, E se desloca do fundo do palco em diregio ao proscénio. De repente o teléo em segundo plano, com seu porto pintado em dimensdes naturais (primeiro plano), é setirado. Em seu lugar se vé um segundo telfo com um pequeno porto pintado (plano geral). Isto significa que ele se deslocou para ainda mais longe. Yarunosuke continua. No fundo é colocada uma cortina marrom-verde-preta indicando: o castelo agora esté fora de sua visdo. Mais passos. Yarunasuke entio se desloca para o “caminho florido”. Esta Ultima mudanga é enfatizada pelo... samisen,4 isto é, pelo som!! Primeira mudanga — passos, isto é, uma mudang¢a espacial do ator. Segunda mudanga — uma pinsura plana: a mudanga de segundos planos. Tercetra mudanga — uma indicagao intelectualmente explicada: entendemos que a cottina “apaga” algo visivel. Quarta mudanga— som! Fis um exemplo de método puramente cinematografico do dltimo fragmento de Chushingura: Depois de uma curta luta (“pata varios pés”) temos uma “pausa” — um palco vazio, uma paisagem. Entao, mais luta. Exatamente como se, em um filme, tivésse- mos feito um corte para um pedago de paisagem, a fim de criar um clima em uma cena, aqui é feito um corte para uma paisagem de neve noturna ¢ vazia (em um palco vazio). E depois de varios pés, dois dos “fidis quarenca sete” observam um abrigo onde 0 vildo se escondeu (do que o espectador jd esté consciente), Exacamen- te como no cinema, num momento dramatico tio acentuado, alguma pausa tem de ser usada, Em Potemkin, depois da preparacio para a otdem de “Fogo!” contra os marinheiros cobertos pelo impermedvel, hd varios planes de partes “indiferentes” do navio antes que a ordem final seja dada: a proa, a boca dos canhdes, um salva-vidas etc. Faz-se uma pausa na ago, ¢ a tensio ¢ acentuada. O momento do descobrimento do esconderijo deve ser enfatizado. Para encontrar a solugo cerea para este momento, esta énfase deve ser dada pelo mesmo material rftmico — uma volta § mesma paisagem noturna, vazia, nevada... Mas agora hd pessoas no palco! Apesar disso, os japoneses realmente encon- tram a solugdo certa — ¢ ¢ uma flania que entra triunfantemente! E voct vé os mesmos campos nevados, a mesma solidio ecoante, ¢ a mesma noite que vocé ouviu um pouco antes, quando ofhox para o palco vazio... Ocasionalmente (e getalmente no momento em que 0s nervos parecem pres- tesa explodir de tensa), os japoneses duplicam seus efeitos. Com seu dominio dos equivalentes de imagens visuais e audirivas, de repente usam ambos, “ajustando-os”, e calculando brilhancemente a tacada de seu taco de bilhar sensorial, visando 0 alvo cerebral do espectador. Nao sei descrever melhor a combinag&o da mfo se movi- memando de Ichikawa Ennosuke quando ele comete haraquiri — com o som solucante fora do palco, graficamense correspondente ao movimento da faca. (Uma inesperada jungic a ‘Al est4: “Qualquer nota que nao possa emitit com minha voz, mostrarei com minhas méos!” Mas aqui ela foi emitida pela voz ¢ mostcada com as mios! E ficamos paralisados diante de tal perfeicio de montagem. Todos conhecemos estas trés quest&es capciosas: Qual o formato de uma escada em caracol? Como descreveria “compactamente”? O que € um “mar encapelado”? Nao podemos dar respostas intelectualmente analisadas. Talvez Baudouin de Courte- nay’ possa, mas nés somos obrigados a responder com gestos. Mostramos o dificil conceito de “compactamente” com os punhos cerrados, ¢ assim por diante. E 0 que é mais importante, tal desctigao & roralmente satisfatéria, Também somos um pouco Kabuki! Mas nao o suficiente! Em nossa “Declaragio” sobre o cinema sonoro® escrevemos sobre um método de contraponto de imagens visuais ¢ auditivas combinadas. Para dominar este método, deve-se desenvoiver em si mesmo um novo sentido: a capacidade de reducir percepcées visuais ¢ audisivas a um “denominador comum”. Isto é dominado pelo Kabuki com perfeigéo. Ends também — cruzando pot nossa vez 0s sucessivos Rubiedes que fluem entre o teatto e o cinema e entre 0 cinema e o cinema sonora — igualmente precisamos dominar isto. Podemos aprender com os japoneses a dominar este novo sentido necessatio. Tio claramente como o impressionism deve muito & gravura japonesa, ¢ 0 pés-impressionismo & escultura negra, do mesmo modo o cinema sonore ficard ndio menos agradecido aos japoneses. E nio ao teatro japonés apenas, porque esses aspectos fundamentais, em minha opinio, impregnam profundamente todos os aspectos da visio japonesa do mundo. Certamente, nos fragmentos incompletos da cultura japonesa acessiveis a mim, parece-me que estes aspectos estéo impregnados na prépria base. Nao precisamos procurar além do Kabuki para encontrarmos exemplos de idénticas percepgies da tridimensionalidade naturalista e da pintura plana. “Estra- nho?” Mas € necessério fazermos as coisas a0 nosso préprio modo até que consiga- mos constatar como € completamente satisfatéria a solugéo de uma cascata de linhas verticais contra a qual um peixe-dragio feito com serpentina de papel prateado, preso por um fio, nada desesperadamente. Ou, dobrando as paredes- biombo de uma casa de ché estritamente cubista do “vale dos leques”, descobrir um telao com um corredor “em perspectiva” correndo obliquamente no centro. Nossa cenogtafia nunca conheceu esse cubismo decorativo, nem esse primitivismo da perspectiva pintada, Nem, mais que tudo, essa simultaneidade — que aqui, aparen- temente, tudo invade. Figurino, Na Danca da Cobra, Odato Goro entra, entolada numa corda que € também expressada, através de transferéncia, pela fazenda do vestido com um G 32 A forma do filme estampado de corda, ¢ scu cinto, de mesmo modo, ¢ coscido numa corda tridimen- sional — uma serceira forma. Ezerita. O japonés domina uma quantidade aparentemente ilimitada de hie- réglifos. Hierdglifos, desenvolvidos a partic dos aspectos convencionais de objetos, reunidos, expressam conceitos, isto é, a imagem de um conceito — um idcograma. Existe a0 mesmo tempo uma série de alfabetos fongticos europeizados: 0 Manyé kana, hiragana, ¢ outros. Mas o japonés escreve fodas as lestas, empregando ambas as formas ao mesmo tempo! Nio se considera extraordindrio compor sentengas com pinsuras de hieréglifos juntamente com as lesras de vacios alfabecos absoluca- mente opostos. Poesia. O tanka € urna forma quase intraduztvel de epigrama licico de dimen- sio rigorosa: 5, 7, 5 sflabas na primeira estrofe (Aami-no-ku), ¢ 7, 7 sllabas na segunda (shimo-no-ku), Esta deve ser a mais incomum de todas as poesias, canto na forma como no contevido. Quando esctita, pode ser analisada tanto pictérica quanto poeticamente. Sua escrita tem canto valor como caligrafia quanto como poema, Eo conteddo? Um critico diz. com justeza, sobre a Iitica japonesa: “Um poema japonés deve ser visto (isto é, representado visualmente. — S.E.) antes de ouvido.”? APROXIMAGAO DO INVERNO Elas parsem pata o Leste, ‘Uma ponte voadora de pegas ‘Uma corrente atravessando 0 céu... As tediosas noites Serdo enfeitadas com geada. Através de uma ponte de pegas em v6o, parece que Yakamochi (que morreu em 785) se evola pelo éter. ‘CORVO NA NEVOA DA PRIMAVERA, © corpo aqui pousado Esté meio escondido Pelo quimono de névoa... Como o passaro cantor de seda Enuere as pregas de sua faixa, © autor anénimo (ca.1800) quer dizer que 0 corvo € visivel de modo tio incompleto através da névoa da manha, como o € 0 passaro estampado no vestido de seda, quando a faixa ¢ enrolada na figura vestida. Uma inesporada junsio 33 Estritamente limitada pelo mimero de stlabas, caligraficamente encantadora na descrigZo ¢ na comparagio, surpreendente em uma incongruéncia que estd também maravilhosamente préxima (0 corvo, meio escondido pela névoa, ¢ 0 passaro estampado, meio escondido pela faixa), a Iitica japonesa evidencia uma interessante “fusdo” de imagens, que atinge os mais variados sentidos. Este original “pantelsmo” areaico sem diivida se baseia numa ndo-diferenciagio de percepgio — uma ausencia bastante conhecida da sensagho de “perspectiva”. Nao podetia set de outro modo. A histéria japonesa é muito rica em expetiéncia histérica, eo peso do feudalismo, apesar de politicamente superado, ainda corre como uma linha verme- Tha através das tradigdes exdeurzis do Japa. A diferenciagio, introduzida na socicda- deem sua transigao ao capitalismo ¢ levando em seu rastro, como uma conseqiién- cia de diferenciagao econémica, percepgées diferenciadas do mundo — ainda nio & perceptivel em muitas dreas culturais do Japao. E o japonés continua a pensar “feudalisticamente”, isto ¢, indiferenciadamente. Isto pode ser observado na arte infantil. E também acontece com pessoas curadas de cegueira, quando todos 0s objetos do mundo, lange e perto, nao existem no espaco, mas se acumulam junto a elas. Além do Kabuki, os japoneses também nos mostraram um filme, Kavabtri-muss- me. Neste, porém, a nao-diferenciacdo, que o Kabuki torna téo brilhancemence surpreendente, € tealizada negativamente. Karakuri-musume é uma farsa melodramética. Comegando ao modo de Mon- ty Banks, termina com incrfvel rristeza, ¢ por longos intervalos é criminosamente dividido em ambas as diregdes. A centativa de ligar estes elementos opostos é geralmente a mais ardua das tarcfas. Mesmo um mestce como Chaplin, cuja fusao desses clementos opostos em O garoto € imbativel, foi incapaz, em Em busea do ouro,’ de equilibrar estes elementos. © material escorregou de plano para plano. Mas em Karakuri-musume o desastre é total. Como sempre, 0 eco, a jungéo inesperada, se encontra apenas nos extremos. O atcaismo das “provocagées” sensoriais indiferenciadas do Kabuki de um lado, ¢ do outro — o auge do conceito de montagem. © conceito de montagem — o auge de sentir ¢ resolver diferencialmente o mundo “orginico” — ¢ realizado com a precisio matemstica impecdvel de uma méquina, Lembrando as palaveas de Kleist, tio préximo do teatro Kabuki, que nasceu das marionetest 34 A forma do filme «(a graga) aparece melhor naquela estrucura corporal humana que ado tem nenhu- ma consci€ncia, ou tem uima consciéncia infinita — isto é, na boneca mecanica, ou ne deus.!? Os extremos se encontram... Nada se ganha lamentando a falta de alma do Kabuki ow, ainda pior, encon- trando no desempenho de Sadanji uma “confirmago da teoria de Stanislaysky”! Qu procurando © que “Meyethold ainda nio roubou"! Em vez disso, varmus saudar a inesperada juncdo do Kabuki com o cinema sonora! . ié sy. Escrito em 1928 a partir da apresentagfo em Moscou ¢ Leningrado do grupo Kabuki de Ichikawa Sadanji (1880-1939) e publicado na revista Zhine. skussteet (Vida das antes) n& 34, editada em Leningrado. 2. NiS.£2 Estou convencide de que cinema é o n/vel de hoje do eatro. De que o ceatco em sua forma mais antiga morteu ¢ continua a existic apenas por inércia. [Onze anos mais tarde Eisenstein faria novo comentitio a respeito deste mesmo tema, ver em “Realizagio”, p.174.] 3. Montach atrraktsionow (Montage de aenisées), primeito ensaio publicado de Eisenstein. Escrito durante os trabalhos para a encenagio de O sdbio, o texto apareceu na revista Lef'n? 3, de junho de 1923, 4.NS.E:*...a tmisica samisen depende muite mais do ritmo que da melodia para interpreta as emogées. A sonoridade £ inesgotivel, ¢ pelo agrupamento de sons e mudangas de ritmo os rmuisicos samisen obtém os efeivos que desejam: sussurro, tinido, estrondo; suavidade, dureza, agressividade, tranqailidade; o cair da neve, a vdo dos passaros, o vento no topo das drvores; discussio e luta, a paz do har, o pesar da partida, a beleza da primavera: a fragilidade da velhice, a (elicidade dos amantes = tuda isco € muito mais o samisen expressa 20s que sao capazes de olhar além da cortina que fecha este mundo musical aos ouvidos ocidentais por causa de suas desconcertantes convengées sunoras NO lugar de uma melodia” (Zoe Kincaid, in Kabuki, she popular stage of fapan, Lonuees, Macraillan and Co,, 1925). 5. NS.L: Professor de fitologia da Universidade de Sao Potersburgo. 6. Ver apéndice & p.225. 7-Ns.8: Julius Kurth, in Jepanische Lyrik, Manique, R. Pipes, 1922. 8, Kanckuri-mmustne (Mubher condendee) filme japonts realizado em 1928, primeiro longa-me- ttagem dirigido por Heinosule Gosho (1902-81), Ponco depois o diretor japanés Teinosuke Kinu- ‘gist (1896-1982) esteve em Moscou para apresentae seu filme /gjira (Hncrusithada — 1928) ¢ conversou com Eisenstein sobre a visita do grupo Kabuki de Sadanji. Em 1964, em depoimento a0 critica francés George Sadout, Kinugass conta tex tecebido de Bisenstein indimeras fotos da filmagem de Outubro, e que, confromande estas foros com os locais de filmagem, em Leningrado, aprendeut muito sobre a arte do cinema e 0 trabalho de filmagem (Cubiers dis Cinema, 1661167, maio/junho de 1965). 9. The Kid © The Gold Rush, filmes norte-americanos realizados, respectivamente, em 1921 1925 por Charles Chaplin (1889-1977). 19, N5.E Heinrich von Kleist, in Ober das Marionertentheater, Fora de quadro' E um feito estranho ¢ maravilhoso ter escrito um panfleto sobre algo que na sealidade nao existe. Nao existe, por exemplo, cinema sem cinematografia. Porém © autor do panfleto que precede este ensaio conseguiu escrever um livro sobre 0 cinema de um pafs que nfo tem cinemasografia. Sobre o cinema de um pals que tem, em sua cultura, um niimero infinito de tragos cinematogréficos, existentes em toda parte, com uma tinica excecao — seu cinema. Este ensaio € sobre os tracos cinematogréficos da cultura japonesa que existem fora do cinema japonés, e estd tao distante do panfleto precedente quanco essas caracteristicas estio longe do cinema japonés. O cinema é muitas sociedades anénimas, muito giro de capital, muitas estrelas, muitos dramas. ‘A cinemmatografia é, em primeiro lugar ¢ antes de cudo, montagem. O cinema japonés ¢ maravilhosamente dotado de sociedades andnimas, atores € argumentos. Mas © cinema japonés ignora completamente a montagem. No entanto, o princ{pio da montagem pode ser identificado com o elemento bisico da cultura visual japonesa. Escrita —- porque sua escrita ¢ basicamente figurativa. O hierdglifo. A imagein naturalista de um objeto, como retratado pela competente mao chinesa de T'ang Chich 2.650 anos antes de nossa era, se torna ligeiramente formalizada e, com seus 539 companheiros, forma o primeiro “contingente” de hierdglifos. Riscado com um escilete num papito, o retrato de um objeto guardava semelhanga com seu original em todos os aspectos. Mas entao, no final do cerceiro século, foi inventado o pincel. No primeiro século apds o “feliz evento” dC.) — o papel. E, finalmente, no ano de 220 — a Gnta nanquim. Uma completa convulsio, Uma revolugao na arte do desenho. E depois de ter passado, no curso da histéria, por nada menos de 14 diferentes estilos de escrita a a5 36 A forma do filme mio, o hicréglifo se cristalizou em sua atual forma. Os mcios de produgio (pincel ¢ tinca nanquim) determinaram a forma As 14 reformas se impuseram. Resultado / 2dDd No hieréglifo ma (um cavalo), em fogoso pinote, é impossfvel reconhecer as caracteristicas do doce cavalinho, curvado pateticamente sob a carga no estilo de escrita de Te'ang Chich, que os antigos bronzes chineses tornaram tao conhecido. Mas que ele descanse em pat, esse doce cavalinho, com os outros 607 simbo- los Asiang cheng remanescentes — 2 primeira categoria existente de hierdglifos. O interesse de verdade comeca com a segunda categoria de hierdglifos — 0 hueiei, isto é, “copulativos”. A questao é que a cépula (talver fosse melhor dizer a combinacio) de dois hierdglifos da série mais simples deve ser considerada néo como sua soma, mas como scu produto, isto é, como um valor de outta dimensio, outro grau; cada um, separadamente, corresponde a um abjeto, a um fato, mas sua combinagio corres- ponde a um conceito. De hieréglifos sepatados foi fundido —— 0 ideograma. Pela combinagao de duas “descrigies” & obtida a repeesentagao de algo graficamente indescritivel, Por exemplo: a imagem para 4gua ¢ a imagem para um olho significa “chorar”; a figura de uma orelha perto do desenho de uma porta = “ouvir”; um cachorro + uma boca = “latir”; uma boca + uma ctianga = “gricar”s uma boca + um pdssaro = “cantar” uma faca + um coragio = “tristeza”, ¢ assim por diante. Mas isto é — montagem! Sim, E exatamente 0 que fazemos no cinema, combinande planos que sio descritivos, isolados em significado, neutros em contedido ~~ em contextos ¢ séries intelectuais. Este é um meio ¢ um método inevitavel em qualquer exposigao cinematogré- fica. E, numa forma condensada purificada, 0 ponto de partida do “cinema intelectual”. | | Fora de quadro a7 De um cinema que procura um laconismo mdximo para a representagio visual de conceitos abstratos. E saudamos 0 método do muito saudoso Tsang Chich como um primeiro passo ao longo desses caminhos. Mencionamos o laconismo. © laconismo nos fornece uma transi¢ao a outro ponto. O Japao possui a forma mais lacdnica de poesia: o haikai (que apareceu no in{cio do século XiIl ¢ é conhecido hoje como haiku ou hokku) eo ainda mais antigo tanka (nitologicamente considerado como tendo sido criado junto com o cuca terra). + Ambos sio pouco mais do que hierdglifos transpostos para frases. De tal modo que metade de sua qualidade € ditada por sua caligrafia. Seu método é totalmente andlogo a estrutura do ideograma. Como 0 ideograma proporciona um meio para a impressio lacénica de um. conccito abstrato, o mesmo metodo, quando transposte para a exposigdo literdria, da vez a um laconisme idéntico de imagens diteras. Aplicado a uma austera combinagio de simbolos antagénicos, este método resulta numa seca definigio de conceitos abstratos. O mesmo método, expandido para o luxo de um grupo de combinagies verbais jé formadas, floresce num esplen- dor de efeito imagistico. O conceito é uma férmula simples; seu adorno (uma expansio através de material adicional) transforma a formula em uma imagem — uma forma termi- nada, Tal qual — apesar de ao contrdrio — um primitivo processo de pensamento, © pensamento imagistico, deslocado para um grau definido, se transforma em pensamento conceitual. Mas vamos aos cxcmmplos. O haiku é. um esbogo impressionista concentrado: Carvo solitério Em galho desfolhado, Amanhecer de outono BASO Lua resplandecente! Langa asombra dos galhos de pinheiro Sobre as esteiras KIKAKU 8 A forma do filme Sobre uma brisa vespertinal Adgua ondula Junto ’s pernas da garga azul. BUSON Inicio do alvoreeer. O castelo esté cercado Pelos gritos dos patos selvagens. KYOROKU sanka, mais antigo, € um pouco mais longo (mais duas linhas): © faisio da montanha Jongas sio as plumas que arrastas na colina arbotizada — como longas me parecem as noites buscando o sono em leito solicério, HITOMARO @) De nosso ponto de vista, estas sio as frases de montagem. Listas de planos. A simples combinagio de dois ou trés detalhes de um tipo de material cria uma representagdo perfeitamente terminada de outro tipo ~ psicolégico. E se 0s limites eminentemente basicos dos conceitos intelectuais definidos, formados pelos ideogramas combinados, ficam obscures nesses poemas, em quali- dade emocional, porém, os conccitos florescem incomensuravelmente, Devemos observar que a emogao € dirigida ao leitor, porque, como disse Yone Noguchi, “sto os leitores que tornam a imperfeigao do haiku uma perfeicao artistica’? Nao se sabe 20 certo, na escrita japonesa, se 0 aspecto predominante é como um sistema de caractetes (denotativo), ou como uma criagio independente de formas graficas (descritivo). De qualquer modo, nascido da conjugagae dupla do descritivo como método, e do denorative come objetivo, o idcogtama deu prosseguimento ’s duas linhas (ndo-consecutivas historicamente, mas consecutivas como principio nas mentes dos que desenvolveram o método).. Nao apenas linha denovativa continua da literatura, do tank, como mostra- mos, mas exatamente o mesmo mérodo (em seu aspecto descritivo) age também nos mais perfeitos exemplos da arte pictérica japonesa. Shataku —criador das mais belas gravuras do século XVILI, e especialmente de uma galeria imortal de retratos de atores. O Daumier japonés. Apesar disso, quase desconhecide entre nds. Os tragos caracterfsticos de seu trabalho sé foram analisa- Fora de quadro 39 dos em nosso século. Um dos erfticos, Julius Kurth, ao discutir a questao de influéncia da escultura em Sharaku, faz um paralelo entre sua xilogravura retratan- do Nakayama Tomisaburo ¢ uma antiga méscara do semi-teligioso teatro NB, a mascara de um Roze. a o Os rostos, tanto da gravura quanto da méscard, assumem uma expresdo idéntica... Feigdes © massas sio arrumadas de modo semelhante, apesat de a mdscara representat um velho sacerdote, ¢ a gravura uma jovem. Esta relagdo € espantosa, porém esses dois trabalhos s4o toralmente diferentes: isto ¢ em si uma demonstragio de originalidade de Sharaku, Enquanto a mdscara esculpida foi construda de acordo com proporgies anatOmicas razoavelmente acuradas, as proporgies da gravura sio simplesmente impossiveis, O espago entre os olhos compreende uma largura que ultrapassa todo .o bom senso. O nariz é quase duas vezes maior, em relago aos olhos, do que qualquer nariz normal ousaria ser, e 0 queixo ndo tem nenhum tipo de relagao com a boca; as sobrancelhas, a boca, ¢ cada ttago — € desesperadamente nao relacionado. Estes observago pode ser feita sobre todos os grandes rostos de Sharaku, © fato de 0 artista nio saber que todas essas proporsdes si0 filsas esté, é claro, fora de questéo. Foi com uma total conscigncia que ele repudiou 2 normatidade ¢, apesar de o desenho de tacos isolados depender do naturalismo rigorosamente concentrado, suas proporgbes fo~ tam subordinadas a consideragSes puramente intelectuais, Ele eabeleven a esstncia da expresso psiguica como a norma pare as proporgées dos tragos isolados.* Nao é este © processo do ideograma, que combina a “boca” independente com 0 simbolo dissociado de “crianga”, para formar o significado de “gritar”? Nao é exatamente isto que nés do cinema fazemos com o tempo, assim como Sharaku com a simultaneidade, quando causamos uma desproporcio monstruasa das partes de um evento que flui normalmente, e repentinamente desmembramos © evento de “um primeiro plano de mios se fechando”, “planos médios da luta’ « “ptimeitissimo plana de olhos esbugzlhados”, fazendo uma montagem que desin- tegra o evento em varios planos? Tornando um olho duas veres maior do que a 40 A forma do filme figura inteira de um homem?! Combinando essas monstruosas incongruéncias, reunimos novamente o evento desintegrado em um todo, mas sob nosso ponte de vista, De acordo com o cratamente dado a nossa relagao com o evento. A descrigio no proporcional de um evento é organicamente natural para nés desde o inicio, O professor Luryia, do Insticuto Psicolégico de Moscou, mostrou-me um desenho de uma crianga sobre o tema “acender um fogio”. Tudo é representado com uma rclagéo bastante acurada ¢ com grande cuidado. Lenha. Fogio. Chaminé. Mas o que sio aqueles ziguezagues no imenso retangulo central? Sao fésforos. Levando em conta a importincia crucial desses fosforos para 0 proceso descrito, a crianga estabelece uma escala apropriada para eles.* A representagzo de objetos em suas propozgGes reais (absolutas) é, sem ditvi- da, apenas um tributo 4 Iégica formal ortodoxa, Uma subordinagéo a uma ordem invioldvel das coisas. Tanto em pintura como em escultura ha uma volta periédica e invaridvel a periodos de estabelecimento do absolutismo. Substituindo a expressividade da desproporgio arcaica por “tdbuas da lei” regulamentares de uma harmonia oficial- mence decretada. O realismo absolute nao é de modo algum a forma correta de percepgao. E simplesmente a fungdo de uma determinada forma de estrutura social. Como resultado de uma monarquia estatal, uma uniformidade estatal de pensamento é implantada. Uniformidade ideolégica de um tipo que pode ser desenvolvido picto- ricamente nas categorias de cores ¢ desenhos dos regimentos de guardas... Assim, vimos como o princfpio do hieréglifo — “denotagio por descrigio” — se divide em dois: ao longo da linha de seu objetivo (0 principio de “denotacéo”), para os princ{pios da imagem literdria criativa; ao longo da linha de seu método de tealizar este objetivo (o principio da “descrigao”) para os surpreendentes métodos de expressividade usados por Sharaku. E, exatamente como os dois bragos estendidos de uma hipérbole se encon- tram, como dizemos, no infinito (apesar de ninguém ter visitado uma regio tao distante!), do mesmo modo o principio dos hierdglifos, dividindo-se infinicamente em duas partes (de acordo com a fungo dos stmbotos), inesperadamente volta a se unir, a partir dessa alienagéo dupla, numa quarta esfera — no teatro. Afastadas por tanto tempo, elas estio novamente —- no perfodo inicial do drama — presentes numa forma paralela, num cutioso dualismo. significado (denotagio) da acto ¢ efetivado pelo recitar de um forwi por uma vor atrés do palco — a representagdo (descrigao) da acéo € realizada pelas Fora de quadro a marionetes silenciosas no palco. Junto com o modo especifico de movimento, também este arca(smo migrou para 0 primitive teatro Kabuki. Até hoje é preserva- do, como um método parcial, no repertério classico (onde algumas partes da agéo sio narradas por trés do palco, enquante o ator faz mimica). Mas esta no é a questo. © fato mais importance que, na propria técnica de interpretagio, 0 método ideognifico (montagem) foi cunhado dos modos mais interessantes. Porém, antes de discutir isso, que nos permitam 0 luxo de uma digressio — sabre a questio do plano, para estabelecer de uma vez por todas a tio debatida questdo de sua natureza. Um plano. Um pedago de celuldide. Um pequeno quadro retangulat no qual estd, organizada de algum modo, parte de um evento. “Unidos, esses planos formam a montagem. Quando isto é feito num ritmo apropriada, é claro? Isto, sumariamente, €0 que é ensinado pela velha, velha escola de cinema, que afirmava: “Parafuso a parafuso, Tijolo a tijolo...” Kuteshov, por exemple, chega a escrever com um tijolo: Se voct tem uma idéia-frase, uma parcicula do argumento, um elo da cadeia dramd- tica total, entio a iddia deve ser expressada e acumulada a partir de cadz menor plano, exatamente como tijelos.” “O plano é um elemento da mantagem. A montagem é uma reuniio desses elementos”. Esta ¢ uma anélise improvisada ¢ perniciosa. Aqui a compreensio do proceso como um todo (conexio, plano-montagem) deriva apenas das indicagdes externas de seu fluxo (uma pega ligada a outra pega). Assim, seria posstvel, por exemplo, chegar 4 bem conhecida conclusio de que os bondes existem para setem virados ¢ obstruir as ruas. Uma dedugio inceiramente Idgica, se nos limitamos as indicagées externas das fung6es por eles desempenhadas durante as lutas de rua de fevercito de 1917, aqui na Riissia. Mas a concepgéo materialistada histéria interpreta isto de autro modo. O pior é que uma abordagem deste tipo realmente existe, como um bonde intransponivel, atravessado diante das potencialidades do desenvolvimento formal. Tal abordagem domina o desenvolvimento dialético, nos condena ao mero “aper- feigoamento” evolutivo, a partir do momento em que no considera a substancia dialética dos evenros. a A forma do filme A longo prazo, essa evolugio leva, através do refinamento, & decadéncia, ou, por outro lado, a um simples definhamento, devido a estagnagéo da seiva vital. Por mais estranho que paresa, o tiltimo filme de Kuleshow, O candrio alegre (1928),* € um melodioso testemunho dessas duas lamentdveis cventualidades, simultaneamente. O plano nao é um elemento da montagem. © plano é uma célula da montagem. Exatamente como as células, em sua divisde, formam um fendmeno de outra ordem, que é 0 organismo ou embriso, do mesmo modo no outto lado da transicao dialética de um plano h4 a montagem. O que, entao, caracteriza a montagem ¢, conseqiientemente, sua célula — 0 plano? Acolisio. O conflito de duas pecas em oposicao entre si. © conflito. A colisio. Teno diante de mim uma folha de papel, amassada ¢ amarelada, Nela, uma anotagio misteriosa, “Ligagdo-P" ¢ “Colisio-F?. Este é um vestigio substancial de uma discusso acalorada sobre a questo da montagem, entre P (Pudovkin) 9¢ E (eu mesmo). Isto se tornou um habito. A intervalos regulares ele me visita tarde da noite ¢, a portas fechadas, discutimos questées de princfpios, Formado na escola de Kule- shov, ele defende em alto ¢ bom som uma comprcensio da montagem como uma tigacao de pegas. Formando uma cadeia. Novamente, “tijolos”. Tijolos arrumados em série, para expor uma idéia. Eu o confrontei com meu ponto de vista sobre a montagem como uma colisda. Uma visio pela qual, da colisio de dois fatotes determinados, nasce um conceito Do meu ponto de vista, a ligagao ¢ apenas um possivel caso especial. Recordemes que um numero infinito de combinages, na fisica, ¢ capaz de surgir do impacto (colisio) das esferas. Depende de as esferas serem resistentes, ndo-resistentes, ou misturadas. Entre todas estas combinagGes hd uma na qual 0 impacto ¢ tio fraco que a colisio ¢ reduzida a um movimento regular de ambos na mesma ditegio. Esta é a combinagio que corresponderia ao ponto de vista de Pudovkin. Nio faz muito tempo, tivemos outra conversa. Hoje ele concorda com meu ponto de vista, E verdade que, durante o intervalo, ele teve a oportunidade de se familiarizar com a série de palestras dadas por mim, naquele perlodo, no Instituto Estatal de Cinema... Fora de quadro: 43 Entfo, montagem € conflito. Tal como a base de qualquer arte ¢ 0 conflico (uma transformagio “imagisti- ca” do principio dialético). O plano aparece como 2 célula da montagem. Em conseqiiéncia, também deve ser considerado do ponto de vista do conflizo, Conflito dentro do plano é montagem em potencial que, no desenvolvimento de sua invensidade, fragmenta a moldura quadrilétera do plano ¢ explode seu conflito em impulsos de montagem entre os trechos da mentagem. Tal como, num ziguezague de mimica, a mise-en-scéne esparrama-se em um ziguezague espacial com a mesma fragmentagio. Assim como © slogan “Todos os obstdculos sao vaos diante dos russos” se fragmenta numa profusto de incidentes em Guerra e paz. Se a montagem deve ser comparada a alguma coisa, ento uma legiao de trechos de montagem, de planos, deveria ser comparada & série de explasdes de um motor de combustéo intetna, que permite o funcionamento do automével ou tracor: porque, de modo semelhante, a dindmica da montagem serve como impul- sos que permitem ¢ funcionamento de todo o filme. Confit dentro do quadro. Isto pode ter um cardter muito variado: pode aré ser um conflico na trama. Como no periodo “pré-histérico” do cinema (apesar de ainda haver imimeras instincias no presente), quando cenas inteiras eram fotogra- fadas em um tinico plano sem cores. Isto, porém, estd fora da estrita jutisdigao da forma do filme. Estes si0 0s conflitos “cinematogrificos” dentro do quadro: Conflito de direcbes grdficas (Linhas — om estéticas ou dindmicas) Conflito de escalas. Conflito de volumes. Conflito de massas. (Volumes preenchidos com udvias intensidades de luz) Conflito de profundidades. Eos seguintes conflitos, que exigem apenas um impulso adicional de intensi- ficagao antes de formarem pares antagénicos de fragmentos. Primeiros planos ¢ planos gerais, Fragmentos de divegses graficamente variadas, Fragmentes resolvides em volume, com fragmentos resalvidos em dred, Fragmentos de escuridio e fragmentos de claridade, E, finalmente, hd conflitos inesperados como: Conflitos entre um objeto e sua dimensdo — e conflito entre um evento € sua duragéo. Isto pode parecer estranho, mas nes sio ambos familiares. © primeiro é conseguido através de uma lente oticamente distorcida, e 0 segundo pela cimera lenta ou camera parada, 44 A forma do filme ‘A comptessio de todos os fatores ¢ proptiedades cinematogrificos dentro de uma tinica formula dialética de conflito nao é uma diversie retérica vazia. Estamos agora procurando um sistema unificado para métodos de expressivi- dade cinematogrdfica, que deve se adequar a todos os seus elementos. Sua reunizo em séries de indicagées comuns resolverd a tarefa como um todo. ‘A experiéncia com elementos isolados do cinema nio pode ser de modo nenhum mensurada. ‘Apesat de sabermos muito sobre montagem, na teoria do plano ainda estamos flutuando entre a névoa das atitudes mais académicas, algumas vagas tentativas, ¢ aquele tipo irsitante de radicalismo agressivo. Considerar 0 plano como um caso particular de montagem, por assim dizer, molecular, torna possivel a aplicagio direta da prética da montagem 2 teoria do plano, E, do mesme modo, & teoria da iluminacdo. Percebé-la como uma colisio entre uma corrente de luz e um obstéculo, como o impacto de um jato de Agua de uma mangueira batendo em um objeto concreic, ou do vento soprando sobre uma figura humana, pode resultar num uso da luz inteiramente diferente em compars- Gio com a lua usada para jogar com virias combinagées de “névoas” ¢ “bortdes”. Até 0 presente temos um desses princ{pios significativos do conflito: o princi- pio do conseaponto brico. E bom no nos esquecermos de que logo teremos de enfrentar um outro —e bem menos simples — problema de contraponto: 0 conflita, wo filme sonovo, entre acistica e btica. Vamos voltar a um dos mais fascinantes dos conflitos éticos: o conflito entre a moldura do plano ¢ 0 objeto! A posicéo da cimera, como uma materializago do conflito entre a Iégica osganizadora do direcor ea hogica inerte do objeto, em colisio, reflete a dialética do enquadramento. Nesta questao ainda somos impressionistas ¢ desprovidos de princ{pios cm uum grau exasperador. No entanto, também nesta técnica € possfvel se alcangar um rigor de principios. O seco quadrildtero, merguthado nos acasos da prolixidade da natureza. E cis-nos novamente no Japao! Porque o mérodo cinematogréfico é usado no ensino de desenho nas escolas japonesas Qual © nosso método de ensinar a desenhar? Pega-sc um pedago de papel beanco com quatro cantos. Entao pinta-se nele, geralmente sem usar as bordas (na maioria sujas devido ao longo manuscio!), alguma caridtide abortecida, algum conccituado capitel corintio, ou um gesso de Dante (nio 0 magico que se apresenta no Ermitage de Moscou, mas 0 outro = Alighieri, o escritor de comédia). Fora de quadro 4s Os japoneses adotam uma diretiva bastante diferente: eis 0 galho de uma cerejeira.!° E 0 aluno separa deste conjunto, com um quadrado, um cfrculo, ¢ um retingulo — unidades de composigio: Ele enquadra um plano! Esces dois modos de ensinar a desenhar podem caracterizar as duas tendéncias bésicas em uta no cinema de hoje. Uma ~- 0 mécodo em excingio da organizagio espacial artificial de um evento diante das lences. Da “diregao” de uma seqtiéncia & construgéo de uma Torte de Babel na frente das lentes. A outra —a “escolha” pela chimera: organizagio através da cimera. Desbastar pedago da realidade com o machado da lente. Porém, no momento atual, quando o centro das atengées finalmente comesa, no cinema intelectual, a se transferir dos materiais do cinema, enquanto tais, para “dedugoes e conclusdes", para “slogans” baseados no material, ambas as escolas de pensamento estio perdendo as peculiaridades de suas diferencas e podem tranqdli- lamente se fundir numa sintese. Vérias pdginas atrds nds perdemos, como se perde uma galocha num bonde, a questéo do teatro. Voltemos & questo dos mérodos de montagem no teatro japo- nés, particularmente na interpretacao. © primeiro ¢ mais surpreendente exemplo, é daro, ¢ 0 métode puramente cinematogedfico de “interpretar sem transigdes”. A par com as transigées mimicas levadas a um limite de tefinamento, 0 ator japonés usa também um método exatamente contrario. Num determinado momento de sua interpretacao, ele para; 46 A forma do filme 0 krrago,'" codo vestido de negro, o esconde dos espectadores, E oh! — ele ressusci- fa com uma nova maquiagem. E uma nova peruca. Agora caracterizande outro estégio (grau) de seu estado emocional. Assim, por exemplo, na pega Kabuki Narukami, o ator Sadanji deve mudar de bébado para louco. Esta transigto € resolvida através de um corte mecinico. E uma mudanga no arsenal de cores pintadas com tintas graxas em seu rosto, enfatizando as Tiscas cuja fungdo € dar & expresso uma intensidade maior do que a obtida com a maquiagem anterior. Este método é orginico ao cinema. A introdug&o no films, forgada pelas tradigGes europdias de encenagio, de fragmentos de “transigées emocionais” ¢ mais uma influéncia que obriga o cinema a marcar passo, Enquanto o método de “cortar” a encenacio torna possivel a construgio de métodos inteiramente novos. Substituindo um resto em mutagio por coda uma escala de tipos faciais, com variadas expressdes, torna possivel um resultado muito mais expressive do que a superficie em mutagao, muito receptiva e desprovida de resistencia orginica, do rosto de um tinico acor profissional. Em meu novo filme, A linha geral, climinei os intervalos entre os pélos idamente opostos da expresso de um rosto. Assim ¢ obtida uma clareza maior na discussdo em torno da nova desnatadeira. O feite vai engrossar ou nfo? Falsifica- 40? Prosperidade? Aqui 0 processo psicoldgico da mescla da crenga ¢ duivida é fragmentado em seus dois estados exttemos, de alegria (confianga) e tristeza (desi- lusio}. Além do mais, isto é claramente enfatizado pela luz — iluminagio sem o comportado conformismo as condigdes reais de luz. Isto provoca um indubitdvel aumento de tensio. Outta caracteristica notivel do teatro Kabuki é 0 principio da encenagio “desintegeada”. Shocho, que interpretou os principais papéis femininos no teatro Kabuki que visitou Mescou, ao retratar a filha agonizante em Yashao, desempenhou seu papel em fragmentos de encenagéo completamente separados uum do outro: atuando apenas com o brago dircito. (Todo © processo da agonia letal foi desinte- grado cm patticipacées solistas de cada membro representando seu préprio papel: © papel da perna, o papel dos brasos, o papel da cabeca.) Uma ruptura nos planas. (Com uma abreviacSo gradual desses fragmentos interpretativos, separados e suices- sivas, i medida que o trdgico fim se aproxima. Liberado do jogo do naturalismo primitivo, o ator ¢ capaz, por este método, de prender completamente o espectador através de “titmos”, tornando nio apenas aceitavel, mas definitivamente atraente, uma construgao cénica do naturalismo mais conseqiiente e detalhado, mais carne € osso. Como nfo fazemos mais distingae de princlpios entre quest6es de contetido do plano e montagem, podemos aqui cicar um terceiro exemplo © teatro japonés usa um tempo vagaroso num grau desconhecido por nossos paleos. A famosa cena do hataquiri em Chushingura se baseia em uma Fora de quadro 47 desaceleragio sem precedentes de todos os movimentos — superando tudo que jamais vimos. Enquanto, no exemplo anterior, observamos uma desintegracao das transigdes entre movimentos, aqui vemos a desintegragio do processo do movimento, isto ¢, camera lenta. Até hoje 56 ouvi falar de um exemplo de aplicagdo total deste método, usando a possibilidade técnica do cinema com um plano composicionalmente elaborado. & geralmente usado com algum objetivo puramente pictético, como no “teino submarine” em O ladnio de Bagdé,"* ou para representar um sonho, como em Zvenigora.'? Ou, mais freqiientemente, € usado simplesmente para distragées formalistas ¢ desvios de cimera imotivados, como O homem com a camera, Yt de Vertov. O exemplo mais recomendével parece ser A queda da Casa de Usher," de Joan Epstein — pelo menos de acordo com a imprensa, Neste filme, dizem que emogées interpretadas normalmente, mas filmadas em c&mera lenca, provocam uma opressio emocional incomum, por sua morosidade irreal na tela. Se se considerar que 0 efeito do desempenho de um ator sobre a platéia se baseia em sua identificagéo por parte de cada espectador, seré fécil rclacionar ambos os exemplos (a pega Kabuki ¢ o filme de Epstein) a uma idéntica explicacae causal. A intensidade da percepgio aumenta quando o processo didético da identificagéo se eferua com mais facilidade ao longo de uma agio desintegrada. Até mesmo uma liggo sobre como usar um rifle pode ser inculcada na mais obtusa mentalidade motora entre um grupo de novos recrutas, s¢ o instrutor usa um método “de ruptura’. O vinculo mais interessante do teatro japonés, é clato, € sua ligago com 0 cinema sonoro, o qual pode ¢ deve aprender suas leis fundamentais com os japone- ses — a reducdo das sensagdes visuais ¢ auditivas a um denominador fisiolégico comum. Assim, foi possivel estabelecer (superficialmente) a permeacdo dos mais varia- dos ramos da cultura japonesa por um elemento puramente cinematografico — seu nervo bsico, a montagem. E, no Japao, sé 0 cinema incorre no mesmo erro do Kabuki “esquerdista”. Em ve de aprender como extrair os principios ¢ técnicas de sua notdvel interpretacio das formas feudais tradicionais de seus materiais, os Ideres mais progressistas do teatro japonés jogam suas enetgias em umta adaptagio da técnica esponjosa e amorfa de nosso prprio naturalismo “interior”. Os resultados séo dignos de pena c entristecedores. Em seu cinema, o Japio também procura imitar os mais revoltan- tes exemplos de norte-americanos e europeus que disputam a corrida internacional do cinema comercial. Entender ¢ aplicar suas peculiaridades culturais ao cinema, esta é a tarefa do Japio! Colegas do Japao, vocés realmente vdo deixar para nds esta tarefa? 48 A forma do filme Notas 1. Za Kadrom, Escrito em fevercira de 1929 como posficio a0 ensaio Vaponskeye Kino (O cinema japonéi) de Nikolai Kaufman, Em 1930 foi publicado na revista francesa Transitions, como titulo “O principio cinematogrifice e a cultura japonesa”. Em 1949, na primeira edigio de Fin Form com o titulo de “O principio cinemarogrifico # 0 ideogeama’, 2, NSE: Jean Pierre Abel Rémusat, Recherches sur Uorigine et la formation de Uéeriture chinvise. Paris. 3. NS.Es Yone Noguchi, The Spirit of lapanese Poetry. Londees, 1914, 4, NS.E Julius Kurth, Sharad, Munique. R, Piper, 1922. 5. NS.E: E possivel deceeminar esta tendéncia particular a partir de sua fonte antiga quase pré-histérica (*.. em todas as artes das idéias, os objetos ganham tamanho de acordo com sua importincia, o rei sendo duas vezes maior do que seus siditos, ou uma érvore tendo a metade do tamanho de um homem quando pintada apenas para nos informar que a cena é a0 ar livre. Algo deste principio do tamanho de acordo com o significade persistiu na tradigao chinesa. © discipulo favorico de Confiicio parceia um menino a sew lado ¢ a figuta mais importante de qualquer grupo ea geralmente a maior.”), Auavés do desenvolvimento superior da arte chinesa, parente das arces graficas japonesas, “a escala natural sempre teve de se reportar 3 escala pictérica (...) 0 camanho de acorde com 2 distincia nunca seguin as leis da perspectiva geométrica, mas as necessidades do desenho. Aspectos em segundo plano podem ser diminuidos para evitar a obstrugio © Enfase exagerada, e objetos muito distantes, que etam pequenos demais para atuat pictoricamente, poder ser aumentadas para apie como um contraponto da distincia média ou do segunda plano” (George Rowley, in Principles of Chinese Painting, Princevon Universicy Press). 6.NS.E: Ficou a cargo de James Joyce desenvalver na literatura a linha descriciva do hiesdglifo japonés. Cada palavra da anilise de Kurth sobre Sharaku pode ser aplicada muito bem ¢ com facilidade a joyce. 7. Lev Kuleshoy, Lkustve Kino (A arte do cinema). Leningrado, 1929. 8. Veselaja Kanarejha, filme soviético feito em 1929 por Lev Kuleshov (1899-1970). 9. Vsevolod Ilarionic Pudovkin (1893-1953), realizador, intérprete e tedrico, especialmente conhecido pelos filmes Mar (Mae, 1926) ¢ Konec Sanks Petersburga (O fim de Sto Pesersburgo, 1927) 10. Ns.k: Ilustragio de Jingo Shogaku Shinsei Gaten Dai Roku Gaku Nen Dan Sei Yo (Nivel clementar de deenbo manual para alunos da sexta série). Téquio, Instituto de Educagio, 1910, 11. Kurogo, no teatro Kabuki, ¢ o auxiliar de cena que, todo vestide de negeo, luvas negras sobre as mos ¢ capuz negro sobre 0 rosto, ajuda os intéepretes a carregar ou reticar objetos do palco, a alterar os figurinos ow a ajustar a maquiagem. 12. The Thief of Bagdad, fie notte-americano feito em 1924 por Raoul Walsh (1887-1980). 13, Zvenigora, file saviético feivo em 1928 por Alexander Dovjenko (1894-1956) 14, Chelovek + Kinoapparatom, filme sovistico realizado em 1929 por Dziga Vertov (1896- 1954). 15. Lat chute de la maison Usher, ilme francés realizado em 1928 por Jean Epstein (1897-1953) Dramaturgia da forma do filme’ Na narureza, nunca vemos nada isolado, mas tudo em conexde com alguma outta coisa que estd diante, 20 lado, sob e sobre ela.” GOETHE De acordo com Marx ¢ Engels, o sistema dialético & apenas a reprodugio consciente da marcha dialética tsubstincia) dos eventos externos do mundo.® Assim: A projegéo do sistema dialético de coisas no cérebro na criagdo abstrata no processo de pensamento produz: métedos dialéticos de pensamento; materialismo dialético — FILOSOFIA E tambérn: A projecdo do mesmo sistema de coisas do cridy concretamente sto dar forma produa: ARTE O fundamento desta filosofia é um conceito dindmico das coisas: Ser — como uma evolugdo constante a partir da interagao de dois opostos contraditérios. 49 50 A forma do filme Sintese — surgindo da oposigio entre tese e antftese. Uma compreensio dinmica das coisas ¢ também bésica, no mesmo grau, para uma correra compreensio da arte ¢ de todas as formas artisticas. No campo da atte, este principio dialético de dinamica ¢ incorporado no CONFLITO como © principio fundamental para a existéncia de qualquer obra de arte € de qualquer forma de arte. Porque a arte € sempre conflite: (1) de acordo com sua missio social, (2) de acordo com sua natureza, (3) de acordo com sua metodologia. De acordo com sua misséo social porque: é tarefa da arte tornar manifestas as contradigSes do Set. Formar visGes justas despertando contradigées na mente do espectador, ¢ forjar conceitos invelectuais acuradlos a partis do choque dindmico de paixées opostas. De acordo com sua naturera porgue: sua natureza é um conflito entre a existéncia natural ¢ a tendéncia criativa. Entre inércia organica ¢ iniciativa com um objeto. A hipertrofia da iniciativa com um objeto — os princfpios da ldgica racional — ossifica a arte com tecnicismo matemético. (Uma paisagem pintada se torna um mapa topogrifico, Sao Sebastido pintado se torna um cariaz anatémico.) A hipertrofia da naturalidade orginica — da ldgica orginica—dilui a arte em falta de forma. (Um Malevich se torna um Kaulbach, um Archipenko se torna um escultor de muscu de cera.4) Porque o limite da forma orginica (o principio passivo do sex) ¢a Nanureza. O limite da forma racional (o principio da produgio) é a Indiéstvia, Na intersegao de Natureza ¢ Industria esté a Arte. A légica da forma orginica versus a légica da forma racional produz, em colisio, adialética da forma artistica. A interagdo das dvas produze determina 0 Dinamismo, (Nao apenas no sentido de um continuum espago-tempo, mas também no campo do pensamento absoluto, Também considero 4 insetgao de novos conceitos ¢ pontes de vista no conflito entre concepsio comum ¢ representacio particular como dinamica — como uma dina- mizacio da inércia da percepgéo — como uma dinamizacio da “visio uadicional” em uma nova visio.) Dramaturgia da forma do filme a A quantidade de inservalo determina a pressho da tensho, (Ver na onisica, por exemplo, o conceito de intervalos. Pode haver casos em que a distancia da separagio tao grande que leva a uma pausa —a um colapso do conceito homogéneo de arte. Por exemplo, a “inaudibilidade” de decerminados intervalos.} ‘A forma espacial deste dinamismo ¢ a expressdo. As fases de sua tensdo: ritmo. Isto é verdadeiro pata qualquer forma artistica ¢, na verdade, para qualquer tipo de expresso. De modo semelhante, a expressio humana é um conflito entre reflexos condi- cionados ¢ néo-condicionados. (Nisto no posso concordar com Klages, que, 4) nao considera a expresso humana dinamicamente como um processo, mas estati- camente como um resultado, e que, 4) atribui tudo em movimento ao campo da “alma”, ¢ apenas o elemento em suspenséo a “razéo”> (*Razdo” e “Alma” do conceito idealista aqui correspondem remotamente as idéias de reflexos condicio- nados ¢ nio-condicionados}.) Isto vale para qualquer campo que possa ser considerado como uma arte. Por excmplo, o pensamento légico, considerado como uma arte, mostra 0 mesmo mecanismo dindmico: as vidas intelectuais de Platéo. Dante, Spinoza, ou Newton foram amplamente guiadas ¢ sustentadas por seu prazer na clara beleaa da relacio ritmica ente lei © instncia, espécie ¢ individuo, ou causa ¢ efeito.® Isto também ocorte em outros campos, como por exemplo na fala, onde todo © trabalho, vitalidade ¢ dinamismo nasce da irregularidade da parte em relagio ae leis do sistema como um todo. Em contraste, podemos observar a esterilidade da expresso em Iinguas artifi- Giais ¢ totalmente reguladas, como 0 Esperanto. E deste principio que deriva todo o encanto da poesia. Seu ritmo nasce como um conflito entre a métrica usada e a disttibuticao das ténicas através dessa métrica, © conceito de um fendmeno formalmente estético come uma fungio dindmica é ttansformado em imagem, dialeticamente, pelas sibias palavras de Goeth Arquitetura é misica congelada.” Exatamente como no caso de uma ideologia homogenea (um ponto de vista monistico), © conjunto, tal como © minimo detalhe, deve ser penetrado por um \inico princfpio. Assim, colocada a0 lado do conllito da condicionalidade social e do 52 Aforma do filme conflito da natureea existente a mesodologia de uma arte revela este mesmo principio de conflito, Como 0 principio basico do ritmo a ser criado, e o comego da forma artistica. Arte € sempre conflito, de acordo com sua metodologia. Aqui devernos considerar o problema geral da arte no exemplo especifico de sua forma superior —- cinema. Plano e montagem sio os elementos bisicos do cinema. Monsagem foi estabelecida pelo cinema soviético como o nervo do cinema. Determinar a natureza da montagem 6 resolver o problema espectfico do cinema. Os primeiros diretores consciences, ¢ nossos primeiros teéricos do cinema, consideravam a montagem uma forma descritiva em que se colocam planos parti- culares um apds 0 outro, como blocos de construgio. O movimento dentro desses planos-blocos de construgao, ¢ o conseqiiente comprimento das partes componen- tes, era entao considerado ritmo. Um conceito totalmente falso! Isto significa a definicao de um determinado objeto apenas cm relago & natureza de seu sumo excerno. O processo mecinico de divisio se tornaria um principio. Nao podemos descrever tal relagio de comprimento como ritmo. Disto resultam relagdes mécricas em vez de ritmicas, tao opostas umas as outras quanto o sistema méttico mecinico de Mensendieck em relagio a escola orginico-rfumica de Bode, no que diz respeito a exercicios corporais. De acordo com esta definigéo, compartilhada até por Pudovkin como teérico, a montagem é 0 modo de se desenrolar uma idéia com a ajuda de planos tinicas: 0 ptincipio “épico”. Em minha opinigo, porém, a montagem ¢ uma idgia que nasce da colisdo de planos independentes — planos até opostos um ao outro: o principio “dramatico”.* Um sofisna? Certamente no. Porque estamos procurando uma definigao de toda a natureza, do estilo fundamental e do espitito do cinema a partir de sua base técnica (6tica). Sabemas que o fendmeno do movimento no cinema reside no fato de que duas imagens iméveis de um corpo em movimento, uma seguindo a outra, se funder numa aparéncia de movimento se mostradas seqiiencialmente numa velo- cidade determinada, Esta descrigio popularizada do que aconcece como uma fio tem sua parte de responsabilidade pela incompreensio popular quanto & natureza da montagem que mencionamos acima. Dramaturgia da forma do filme 53 Vamos examinar com mais atencao 0 curso do fendmeno que estamos discutindo — como realmente acorre — c tirat nossas conclusdes a partir dat. Colocadas préximas uma da outra, duas imagens fotografadas iméveis dao a sensagio de movimento. Isto esté certo? Pictoricamente — e frascologicamente, sim. Mas mecanicamente, nao. Porque, na tealidade, cada elemento seqiencial € pereebido nio em seguida, mas em cima do outro. Porque a idéia (ou sensagio) de movimento nasce do proceso da superposigae, sobre o sinal, conservado na memé- ria, da primeira posigéo do obje:o, da recém-visfvel posigio posterior do mesmo objeto. Esta &, por sinal, a razio do fendmeno da profundidade espacial, da super- posi¢do ética de dois planos no estereoscépio. Da superposicao de dois clementos da mesma dimensdo sempre nasce uma dimensio nova, mais elevada. No caso do estereoscépio, a superposicao de duas diferentes bidimensionalidades resulta em tridimensionalidade esteteoscépica. Em outro campo: uma palavra concreta (uma denotagio) colocada ao lado de uma palavra concreta produz um conceito abstrato — como nas linguas chinesa ¢ japonesa, onde um ideograma material pode indicar um resultado transcendental (conceitual). A incongruéncia de contorno do primeiro quadro — jé impresso na mente — com 9 segundo quadro percebido em seguida engendra, cm conflito, a sensagio de movimento. O grau de incongruéncia determina a intensidade da impressio, determina a tensio, que se torna o elemento real do ritmo auténtico. Aqui temos, temporalmente, o que vernos nascendo espacialmente em uma superficie grafica ou pintada. Em que consiste 0 efeito dindmico de uma pintura? O olho segue a diregio de um elemento da pintura. Retém uma impressio visual, que entio colide com a impressio derivada do movimento de seguir a diregéo de um segundo elemento. O conflito dessas direcées forma o efeito dinamico na apreensio do conjunto. 1. Pode ser puramente linear: Fernand Léger ou Suprematismo. IL Pode ser “anedético”. O segredo da mobilidade maravilhosa das figuras de Daumier ¢ Lautrec deriva do fato de que as vétias partes anatémicas de um corpo sao representadas em circunstancias (posig&es) espaciais, temporalmente variadas, disjuntivas. Por exemplo, na litografia de Toulouse-Laurrec da senhorita Cissy Lofius, se se desenvolve logicamente a posigio A do pé, constréi-se um corpo na posigio A correspondente a ele. Mas 0 corpo é representado da joelho para cima ji em posicao A + a. O efeito cinematico de imagens iméveis unidas jé esta estabeleci- do! Dos quadris aos ombros podemos ver A +a +a. A figura se torna viva ¢ dando pontapés! IH. Entre (¢ U reside o primitive futurismo italiano — cal como no “Homem com Seis Pernas em Seis Posig6es” de Balla — porque I! obtém seu efeico retendo a sa A forma do filme unidade natural ¢ a correcgo anatémica, enquanto I, por outro tado, 0 faz com elementos puramente primitivos. Ill, apesar de destruic a naturalidade, ainda nao pressionou em diregdo a absttagio. IV. O conflito de diregdes também pode set de um tipo ideogréfico. Boi deste modo que ganhamos as ricas caracterizagoes de um Sharaku, por exemplo. O segtedo de sua Forga de expresséo extremamente aperfeicoada reside na desproporgito espacial e anatémica das partes — em comparagio com a qual, o nosso ntimere | poderia ser chamado de desproporgdio temporal. Em geral denominada “irregularidade”, esta desproporgao espacial tem sido uma atragio ¢ um instrumento constante dos artistas, Ao escrever sobre os desenhos de Rodin, Camille Mauchair indicou uma explicagio para esta busca: Os maiores artistas, Michelangelo, Rembrandt, Delacroix, todos, num determinado momento do flotescimento de seu genio, abandonaram a falécia da exatidie, como concebida por nossa raz4o simplificadora ¢ nossos olhos mediocres, com 0 objetivo de conseguir fixar iddias, a sintese, a caligrafia pictdrica de seus sonhos.? Dois artistas experimentais do século XIX — um pintor e um poeta — tentaram. estabelecer formulagGes estéticas desta “irregularidade”. Renoir propés esta tese: A beleza de qualquer descrigio vai enconcrar seu encanto na variedade. A naturera odeia tanto 0 vacuo quanto a tegularidade. Pela mesma razéo, nenhuma obra de arte pode ser realmente assim chamada se no foi criada por um artista que acrediva na ireegulatidade e rejeita qualquer forma estabelecida. Regularidade, ordem, desejo de perfeigio (que é sempre uma falea perfeicio) destrocm a arte. A tinica possibilidade de manter 0 sabor da atte € inculear nos artistas € na piiblico a importancia da inregulatidade. Irregularidade é a base de qualquer arte.'° E Baudelaire escreveu em seu didtio: © que nie 4 um pouco distorcide nio tem apelo emocional; disso se segue que a inregularidade — isto é, 0 inesperado, a surpresa e 0 espanto, sio uma parte essencial e caracteristica da beleza.!! Num exame mais profundo da beleza particular da irregularidade como usada na pincura, seja por Griinewald ou por Renoir, pode-se ver que hé uma despropor- fo na relagio entre um detalhe de uma dimensio ¢ outro decalhe de uma dimensdo diferente. © desenvolvimento espacial do tamanho relative de um detalhe em cortes- pondéncia com outro, ¢ a consegiiente caliséo entre as proporgbes projecadas pelo Dramaturgia da forma do filme 55 attista com esse objetivo, resulta em uma caracterizagio —— uma definigzo do assunto representado. Finalmente, a cor, Qualquer tom de uma cor imprime em nossa visio um determinado ritmo de vibracio. Isto nao é dito figurativamente, mas num sentido puramente Fisioldgico, porque as cores so distinguidas umas das outras por seu mimero de vibragies de luz. © matiz ou tom vizinho da cor estd num outro nivel de vibragdo. O contra- ponto (conflito) dos dois — o nfvel retido de vibragdo contra o recentemente percebido — cria o dinamismo de nossa apreenséo da interagdo da cor. Por isso, dando apenas um passo, das vibragdes visuais para as vibragées aciisticas, nos encontramos no campo da rmisica. Do império do espacial-pictérico para o império do temporal-pictérico — onde vale a mesma lei. Porque o contra- ponto ¢, para a musica, néo apenas uma forma de composigéo, mas ao mesmo tempo 0 fator bésico para a possibilidade da percepcao do tom e de diferenciacao do tom. Deve-se dizer também que em todos os casos que citamos vimos em acio 0 mesmo Principio de Comparazéo que nos possibilita a percepgao ¢ definicao em todos os campos. Na imagem em movimenco (cinema) temos, por assim dizer, uma sfatese de dois contrapontos — 0 contraponto espacial da arte grafica, e 0 contraponto temporal da musica. Dentro do cinema, ¢ caracterizando-o, ocorre que pode ser descrito como: contraponto visual. Ao aplicar este conceito ao cinema, ganhamos varias pistas pata 0 problema da gramética do cinema. Bem como uma sintaxe das manifestagbes cinematogtificas, nas quais © concraponto visual pode determinar todo um novo sistema de manifes- taco. (Experiéncias neste sentido sda ilustradas nas paginas posteriores pelos frag- mentos de meus filmes.) Por tudo isto, a premissa bdsica é: O plano nito é de forma alguma um elemento de montagem. O plano é uma céluta (ou molécula) de montagem. Nesta formulagio a divisio dualista de Legenda e plano € Plano ¢ montagem 56 A forma do filme 1. Conflito grafico 2. Conflito de planos 3. Conflito de volumes 4. Conflito espacial 57 Dramaturgia da forma do filme w BaWweED odtuEUIG = oUyuC> o2ne3s3 58 Aforma do filme avanga, na anilise, a uma considerago dialérica como t1@s fases diferentes de uma tarefa homogénea de expresso, com suas caracterlsticas andlogas determinando a homogeneidade de suas leis estruturais, Inter-relagdo das orés fases: Conflito dentro de uma tese (uma idéia abstrata) — se formula na dialética da legenda — se forma espacialmente no conflito dentro do plano — « explode com ctescente intensidade no conflito de montagem entre os planos isolados. Isto ¢ idéntico A expresséo humana, psicoldgica. Este ¢ um conflito de moti- vos, que também pode ser compreendido em crés fases: 1. Totalidade puramente verbal. Sem entonagio — expressio da fala, 2. Expressao gestual (mimica-entonacional). Projegéo do conflico no sistema corporal expressive do homem. Gesto de movimento corporal e gesto de entona- sao. 3. Projegio do conflito no espaco. Com uma intensificasée de motivos, o tiguezague da expressio mimica & jogado no espaco circundante, seguindo a mes- ma formula da distoredo. Um ziguezague de expresso nascendo da divisio espacial causada pelo homem se movendo no espago. Mise-en-scne. Isto nos dé a base para uma compreensio totalmente nova do problema da forma do filme. Podemos enumerar, como exemplos de tipos de conflitos na forma — carac- terfsticos do conflito no plano, assim como do conflito entre planos em colisio, ou montagem: 1. Conflite gréfico (ver Hlusttagao 1). 2. Conflito de planos (ver Hustragao 2). 3. Conflito de volumes (ver Hustracéo 3). 4, Conflito espacial (ver Tlustragio 4). 5. Conflito de luz. 6. Conilito de sempo, ¢ assim por diante. Nota bene: A lista é dos aspectos principais, deminantes. Entende-se naturalmente que ocorrem principalmente come complexos. io. A montagem, serd suficiente dividir qualquer exemplo em duas pecas primérias independentes, como no caso do conflito grafico, apesar de em outros casos poder ser do mesmo modo dividido: 6. (de Outubro) 7. (de Potemkin) Imagens de movimento artificialmente produzidas a.Légicas auujy op euuoy ep ei@nreureg, 6s 60 A forma do Filme Alguns exemplos adicionais: 7. Conflito entre assunto € ponto de vista (conseguido pela distorgao espacial através do Angulo da cimera) (ver Hustraga0 5). 8, Conflito entre assunto ¢ sua natureza espacial (conseguido pela distorao dtica das lentes). 9, Conflito entre um evento e sua natureza temporal (conseguido pela cdmera tenta ou movimento parade) ¢ finalmente 10. Conflito entre toda o complexe érico e uma esfera bastante diferente. Assim, 0 conflito entre experiéncia ética e actistica produz: cinema sonoro, que é capaz de ser realizado como contraponto audiovisual. A formulacao e investigacao do fenémeno do cinema como formas de confli- to criaa primeira possibilidade de se perceber um sistema homogéneo de dramarur- gia visual para todos os casos getais ¢ particulares da questéo do filme. Percebe-se uma dramaturgia da forma visual do filme, to regulada e precisa quanto a existente dramaturgia do argument do filme. A partir deste ponto de vista sobre os meios do filme, as seguintes formas ¢ potencialidades de estilo podem ser resumidas como uma sintaxe do cinema, ou talvez fosse mais correta descrever 0 que se segue como: uma tentativa de sintaxe do cinema. Devemos enumerar aqui varias potencialidades do desenvolvimento dialético derivadas desta proposigao: o conceito da imagem em movimento (consumidora de tempo) nasce da superposicio — ou contraponto — de duas diferentes imagens iméveis. 1. Cada fragmento em movimento da montagent, Cada fragmento fotografado. Definigao técnica do fendmeno do movimento. Mio se trata ainda de uma composi- ¢4o. (Um homem cotrendo. Um rifle disparado. Um espirro de égua.) U1. Uma imagem de movimento artificialmente produzida. O clemento otico bésico usado para composigées deliberadas: Dramaturgia da forma do filme 6 A. Logica Exemplo 1 (de Outubro): a montagem de uma metralhadora sendo dispa- sada, pela intersegio de decalhes do disparo. Combinag@o A: uma metralhadora brilhantemente iluminada. Um plano diferente, num tom menos intenso. Dupla rajada: rajada gréfica + rajada de luz. Primeiro plano do atirador. Combinagao B (wet Hustracio 6): Efeito quase que de dupla exposigéo conseguide por efeito de montagem estrepitoso. Comprimento das pegas de montagem — dois quadros cada Excmplo 2 (de Potemkin): uma ilustragio de agio instantanea. Mulher com pincené. Seguida imediacamente — sem transiggo — pela mesma mu- Iher com o pincené amassado ¢ o olho sangrando: impressdo de um tiro atinginde o olho (ver Ilustracao 7). B. Magica Exemplo 3 (de Potembin): 9 mesmo recurso usado para o simbolismo pictérico. No troar das armas do Potemkin, um leio de mérmore salta, em protesto contra o derramamento de sangue nas escadarias de Odessa (ver Tlustragio 8). Composto de trés planos de trés IeGes de mdcmore do Palicio Alupka na Criméia: um leio adormecido, um leo acordado ¢ um leio levantando. © efeito € conseguido pelo célculo correto de comprimento do segundo plano. Sua superposigio sobre o primeiro plano produ a primeira agio. Isto dé tempo pata se imprimir a segunda posicao na mente. Superpor a terceira posicao sobre a segunda produz a segunda agéo: o ledo finalmente se levanta. Exemplo 4 (de Outubro): © Exemplo 1 mostrou come o tiroteio foi construido simbolicamente a partir de elementos de fora do processo do disparo. Ao ilustrar 0 putsch monarquista tentado pelo general Kornilov, me ocorreu que esta rendéncia militarista poderia set mostrada por uma monta- gem que usasse detalhes religiosos como material. Porque Kornilov definira sua intengdo como uma peculiar “Cruzada” de Mugulmanos (!), sua “Divi- séo Selvagem” caucasiana, junto com alguns cristaos, contra os bolchevi- ques. Entio, intercalamos planos de um Cristo barroco (aparentemente explodindo nos reflexes radiantes de sua auréola) com planos de uma mascara oval de Uzume, Deusa da Alegria, completamente contralda, O conflito temporal entre a forma de avo fechada e a forma gréfica de uma estrela produziu o efeito de uma explosdo instantinea — de uma bomba, ou mortciro (ver Hustragio 9). (A Ilustragio 10, que mostra a possibilidade de exptessividade tendenciosa — ou ideoldgica, de tais materiais, serd discutida mais tarde.)" 62 A forma do filme 8, Imagens de movimento artificialmente produzidas bullégicas Dramaturgia da forma do filme 9. Imagens de movimento artificialmente produzidas b.Mogicas 64 Aforma do filme Até agora os cxemplos mostraram casos primitive posigao de movimento dtico exclusivantente. siolégicos — usando super- IIL. Combinagies emocionais, no apenas com os elementos vistveis dos pla- nos, mas principalmente com cadeias de associagies psicoldgicas. Montagem de associacdo. Como um meio de mostrar uma situagao emocionalmence. No Exemplo 1, tivemos dois planos sucessives A © B, idénticos no tema. Porém, eles néo eram idénticos no que diz respeito 4 posisio do tema dentro do quadro, produzindo dinamizagde de espago — urna impressio de dinamica espacial: O grau de diferenca entre as posigdes A ¢ B determina a tensio do movimento. Para um novo caso, vamos supor que es temas dos Planos A ¢ B nao sio idénsicos. Apesat de as associagées dos dois planos serem idénticas, isto €, associati- vamente idénticas. Esta dinamizagdo do tema, nao no campo do espago, mas da psicologia, isto é, emogao, produi dinamizagao emocional. Exemplo | (em A gv): a montagem do assassinato dos trabalhadores é na realidade uma montagem paraiela desta carnificina com a matanga de um touro num abatedouro, Apesar de os temas serem diferentes, a “matanga” é 0 Dramaturgia da forma do filme 65 elo associative, Isto criou uma poderosa intensificacgo emocional da cena, Na realidade, a homogencidade de gestos desermpenha uma parte importante neste caso para a obtengio do efeito — ambos, 0 movimento do gesto dinamico dentro do quadro, € 0 gesto estitico dividindo 0 quadro grafica- mente, Este principio foi posteriormente usado por Pudovkin em 0 fim de Sdo Perersburgo, na poderosa seqiiéncia em que se intercalam planos da bolsa de valores e do campo de batalha. Seu filme anterior, Mie, teve uma seqiléncia semelhante: 0 rompimento do gelo no rio, paralelo a manifestaggo dos trabalhadores. Tal recurso pode deteriorar patologicamente se 0 ponto de vista — dinamiza- io emocional do tema — se perde. Assim que o diretor perde de vista esta esséncia, a forma ossifica-se em simbolismo literdtio sem vida, e maneitismo estilistico. Dois exemplos de tal uso equivocade deste recurso me ocorrem: Exemplo 2 (de Ousubro): ds agucaradas ladainhas de conciliaco dos menche- viques no Segundo Congreso dos Sovietes — durante a tomada do Palicio de Inverno — séo interpostas mos tocando harpa. Este foi um paralelismo puramente literério, que de modo algum dinamizou o tema. De mado seme- Ihante, em Caddver vivo,!? de Ozep, torres de igrejas (imitando as de Outubro) ¢ paisagens iricas so interpostas a discursos na corte de justiga do promotor ¢ do advogado de defesa, Este foi o mesmo erro da seqiiéncia “da harp”. Por outro lado, a maioria dos efeitos puremente dindmicos pode produzir resultados positives. Exemplo 3 (de Ourzbro): 0 momento dramatico da unio do Batalhao de Motociclistas com 0 Congreso dos Sovietes foi dinamizado pelos planos de todas de bicicletas girando abstratamente, em associago com a entrada dos novos delegados. Deste modo o contetido forternente emocional do aconteci- mento foi transformado em dinimica real. Este mesmo princ{pio — dando nascimento a conceitos, a emogbes, pela justaposicéo de dois eventos dispates —levou a: 1V. Liberago de toda a agdo a partiv da definigéo de tempo ¢ espaco. Minhas primeiras tentativas neste sentido foram feitas em Outubro. Exemplo 1: uma trincheira cheia de soldades parece ser destrufda por uma enorme culatra de canhio, que cai incxoravelmente. Como um simbolo antimilitatista, visto apenas do ponto de vista do tema, o efeito & conseguido através de uma aparente jungio de uma trincheira que existe independente- mente ¢ de um impressionante artefato militar, do mesmo modo indepen- dente fisicamente. 66 A forma de filme Exemplo 2: na cena do purrch de Korniloy, que poe um ponte final nos sonhos bonapartistas de Kerensky. Aqui, um dos tanques de Kornilov sobe e derruba um Napoledo de gesso branco-paris em cima da mesa de Kerensky, no Paldcio de Inverno, uma justaposicio de significado puramence simbélico. Este método foi usado recentemente pot Dovjenko em Arsenal para moldar seqiiéncias inteiras, assim como por Esther Schub ao usar material de arquivo em A Riissia de Nicolau if e Leon Tolstoi.'* Quero dar outro exemple deste método, para contrariar os modos tradicio- nais de se trabalhar com o encedo — apesar de ainda néo tor sido colocado em pritica. Em 1924-25, eu estava pensando na idéia de um retrato filmico de um homem real. Na época, ptevalecia a tendéncia a mostrar o homem real apenas por meio de longas cenas dramaticas sem cortes. Acreditava-se que 0 corte (mmontagem) destuiria a idéia do homem real. Abram Room estabeleceu algo como um recorde aeste respeito quando sou em O barco da morte! planos dramaticos sem corte com 40 metros, ou 135 pés. Considerci (e ainda considero) tal conceito totalmente nao-filmico. Muito bem — o que seria uma caracterizacao linguisticamente certa de um homem? Seu cabelo completamente negro. ‘As ondas de seu cabelo... Seus olhos langando chispa! Seus muisculos de ago... Mesmo numa descricfo menos exagerada, qualquer interpretacao verbal de uma pessoa é capaz de acabar usando uma variedade de cascatas, para-raios, paisa- pens, pdssaros etc. Mas por que o cinema deveria seguir as Formas do teatro ¢ da pintura em ver da metodologia de linguagem que permite que conceitos completamente novos de idéias nascam da combinagdo de duas denotagées concretas de dois objetos concre- to A linguagem esté muito mais préxima do cinema do que a pintura. Por exemplo, na pintura a forma nasce dos elementos abstratos de linha e cor, enquanto no cinema a concretude material da imagem dentro do quadro apresenta — como um elemento — a maior dificuldade de manipulagéo, Entéo, por que n3o se inclinar em diregio ao sistema de linguagem, que ¢ obrigado a usar a mesma mecanica ao inventar palavras ¢ complexos de palavras? Pot outro lado, por que a montagem nao pode ser dispensada em filmes ortodoxos? ‘A diferenciagdo de fragmentos de montagem reside em sua falea de existéncia como unidades singulares. Cada fragmento pode evacar na mais do que uma Dramaturgia da forma do filme 7 determinada associagio. A acumulagio de tais associagSes pode obter 0 mesmo efeito que 0 proporcionado ao espectador pelos meios puramente fisioldgicos do enredo de uma pega produzida realisticamente. Por exemplo, assassinato no palco tern um efeito puramente fisiolégico. Foto- grafado em um fragmento de montagem, pode funcionar apenas como informayizo, como um letreito. O feito emocional comega apenas com 4 reconstrusio do evento por fragmentos de montagem, cada um dos quais vai criar uma determinada associagio — cuja soma serd um complexo abrangente de sensagdo emocional. ‘Tradicionalmente: 1. A mio levanta a faca. 2. Os olhos da vitima abrem-se repentinamente. 3. Suas maos agarram a mesa. 4. A faca ¢ brandida. 5. Os olhes piscam involuntariamente. 6, Sangue espirra. 7. Uma boca solta um grito. 8. Algo pinga num sapato... ¢ clichés cinematograficos semelhantes. No entanto, com telagio 2 agdo como um todo, cada trecho-fragmento & quase abstrato. Quanto mais diferenciados, mais abs- tratos se tornam, provocando néo mais do que uma determinada associacao. Logicamente, nos vem o pensamento: nao se poderia conseguir a mesma coisa de modo mais efetivo se, em lugar de seguir 0 enredo tio subservientemente, se materializasse a idéia, a impresséio de Assassinaro através de uma livre acummulagéo de material associativo? Porque a tarefa mais importante ainda é estabelecer a idéia do assassinato — a sensacao de assassinato, como tal. © enredo nao é mais do que um recurso sem o qual ainda nao se & capaz de contar algo ao espectador! De qualquer modo, um esforgo neste sentido certamente produziria a mais interessante varieda- de de formas. ‘Alguém deveria tentar, pelo menos! Desde que este pensamento me ocorreu, nao tive tempo de fazer a expetiéncia. E hoje estou mais preocupado com proble- mas bastante diferentes. Mas, voltemos 4 principal linha de nossa sintaxe, que pode nos aproximat mais destas tarcfas, Enquanto em I, I ¢ Illa tensae foi calculada para causar cfeito puramente fisioldgi- co — do puramente ético para o emocional —, devemos mencionar também 0 caso do mesmo conflito-tensio servindo aos objetives de novos conceitos — de novas atitudes, isto é, de objetivos puramente intelectuais. 68 A forma do filme 10. Dinamizagao intelectual Dramacurgia da forma de filme 69 Exemplo 1 (de Ousubre): A subida de Kerensky ao poder ¢ & ditadura depois do levante de julho de 1917. Um efeito cémico foi obtido pelos letreiros indicando os sucessivos postos ascendentes (“Ditador” — “Generalissimo” — “Ministre da Marinha —- e do Exército” — etc.) cada vez mais clevados — cortados em cinco ou seis planos de Kerensky, subindo as escadas do Paldcio de Inverno, exatamente com a mesma velocidade. Aqui, um conflito entre a idiotice dos postos ascendentes ¢ o “herdi” subindo o mesmo imutdvel lance de escadas cria um resultado intelectual: a essencial insignificancia de Keren- sky é mostrada satiricamente. Temos o contraponto de uma idéia convencio- nal expressada literalmente pela agéo representada de uma pessoa em particu- lar que é inadequada a suas tarefas rapidamente crescentes. A incongruéncia desses dois fatores causa uma resposta puramente intelectual do espectador custa desta pessoa em particular. Dinamizacio intelectual. Exemplo 2 (de Ousubro): A marcha de Korniloy sobre Petrogrado, sob o lema “Em Nome de Deus e do Pais”. Aqui tentamos revelar o significado religioso deste episédio de um modo racional, Virias imagens religiosas, de um magnifico Cristo barroco a um idolo esquims, foram montadas juntas. O conflico neste caso foi entre 0 conceito ¢ a simbolizagio de Deus. Enquanto idéia ¢ imagem parecem concordar completamente na primeica estdtua mos- trada, os dois elementos se movem para longe um do outro a cada imagem sneessiva (ver Figura 10). Mantendo a denotaggo de “Deus”, as imagens discordam cada vez mais de nosso conceito de Deus, levando inevitavelmente as conclusées individuais sobre a verdadeira natuteza de todas as divindades. Neste caso, também, uma cadeia de imagens tentou obter uma solugdo pura- mente intelectual, resultante de um conflico entre uma preconcepg4o © um descrédite gradual dela através de pessoas propositais, Passo a passo, por um processo de comparar cada nova imagem com a deno- tagio comum, o poder é acumulado atras de um processo que pode set formalmen- te identificado com o da dedugao légica. A decisao de liberar estas idéias, assim como 0 método usado, j4 é concebido intelectualmente. Aconvencional forma deseritiva do cinema leva’ possibilidade formal de uma espécie de racioc{nio cinematografico. Enquanto dirige as emogées, o filme conven- cional propicia uma oportunidade de estirnular ¢ dirigir todo 0 processo de pensit- mento. Estas duas particulares seqiténcias experimentais foram muito combatidas pela maioria dos criticos. Porque foram entendidas como puramente politicas. Nao tentaria negar que esta forma é mais adequada a expressita de teses idealogicamente intencionais, anas lamento que os criticos tenham desprezado complctamente as potencialidades puramente filmicas desta abordagem. 70 A forma do filme Nessas duas experiéncias, demos 0 primciro passo embriénico em diregéo a uma forma totalmente nova de expressio filmica, Em ditesdo a um cinema puta- mente intelectual, livre das limitag6es tradicionais, adquirindo formas diretas para idéias, sistemas ¢ conceitos, sem qualquer necessidade de transigies ¢ pardfrases. Podemos ainda ter uma sintese da arte ¢ da ciéncia, Este seria o nome apropriado para nossa nova era no campo da arte. Seria a justificagio final para as palavras de Lenin de que “o cinema é a mais importante de todas as artes”. Notas 1, Dramanurgie der Film Form. Escrico originalmente em alemdo, em abril de 1929, em Moscou, revista ¢ ampliado em noverbro desse mesmo ano em Zurique, Traduzido para 0 inglés, o texto teve sua primeira publicagio em setembro de 1930 na revista inglesa Clase Up, com o titulo A Dialectic Approach to Film Form (Um enfoque diaiésco da forma da filme). 2. NS.E: In Conversagdes com Eckerman (5 de junho de 1825). 3. NS.E.: Razumoveky, Teoria do materialise histérice, Moscou, 1928. 4, Kasimir S. Malevich (1878-1935), pintor soviético, fundador em 1945 do Suprematismo, autor de textos tedricos em que defendia a pintura sem objeto, Wilhelm von Kaulbach (1805-74), gtavador e pintor alemfo. Alexander Archipendko (*1887), escultor cubista nascido na Russia © radicado na Franga a partir de 1908, 5. NS.E.: Ludwig Klages (1872-1956), Der Geist als Widersacher der Srele, Manique, 1929. 6. NSE: Graham Wallas, The Great Sociery. a psychological analysts, 1928, 7. NSE: In Conversagies com Eckerman (23 de margo de 1829). B.N.S.E.: “Epico” e“dramético” s4o usados aqui em relagéo 4 metodologia da forma— e nio em relagio a contetido ou enredo! 9, NSE: Prefécio de Les Fleurs du mat, de Baudelaise, ilustrado por Auguste Rodin, Paris. 10. N.S.E: Manifesto de Renoir sobre La Société der Irnégutaristes, Paris, 1884, LL. NSE: Charles Baudelaire, Journal intime (13 de maio de 1856). 12. MS. Um exemplo mais simples deste mesmo efeito encontra-se na jungio por um corte direto de dois planas da ciipula de uma igreja que se opdem um ao outro, {Eisenstein se refere aqui a duas imagens de Ousubro montadas pouco antes do trecho que ilustra 9 putich monarquista centado pelo general Kernilov: na primeira, a camera meio inclinada para a dircita, a ciipula da igreja ocupa alinha diagonal do quadro apontando para © canto esquerdo superior. Na segunda, a cimera meio inclinada para a esquerda, a ctipula aponta para o canto direite superior do quadro.] 13. Zivoj mrup / Der lebende Leichnam, filme tealizado em co-produgio entre a Alemanha ¢ a Unido Soviética, inspirado em ‘Tolstoi, ¢ realizado em 1928 por Alexandrovich Ozep (1895-1949). Entre os intérpretes encontra-se VI. Pudovkin. Dramaturgia da forma do filme ca 14, Arsenal, feito em 1929, € 0 quinto filme de Alexandet Dovjenko (1894-1956). Russia Nikolaia Ui Lev Tolstoi, feito em 1928, €0 rerceiro filme de Esther Schub (1894-1959). 15. Buhta smerti, filme soviéticn realizado em 1925 por Abram Matveevich Room (1894- 1976). A quarta dimensdo do cinema’ Hi exatamente um ano, em 19 de agosto de 1928, antes de comesar a mentagem de A dinka geral, escrevi, com relagio 3 visita a Moscon do teatro Kabuki: [No Kabuki]... ocorre uma nica sensagio monistica da “provocacio” teatral. Os japoneses considerain cada elemento teatral nao uma unidade incomensurd- vel entre as varias categorias de sensagdes (dos vérios érgios sensoriais), mas uma unidade tinica do teatro (...]. Dirigindo-se aos vitios érgios dos sentidos, eles cons- ttoem sua soma [de “fragmentos” individuais] em diregéo a uma grandiosa provoca- 40 total do cérebro humane, sem prestar atencio a gual desses vérios caminhos esto seguindo.? Minha descrigio do teatro Kabuki se mostrou profética. Este método se tornou a base pata a montagem de A linha geral. ‘A montagem ortodoxa é a montagem sobre a dominante. Isto é, a combinagéo de planos de acordo com suas indicagées dominantes. Montagem de acordo como tempo. Montagem de acordo com a principal tendéncia dentra do quadro. Monta- gem de acordo com o comprimento (continuidade) dos planos, e assim por diante. Isto € montagem em conformidade com 0 que salta em primeito plano. ‘As indicag6es dominantes de dois planos lado a lado produzem uma ou outra inter-relagZo conflitante, resultando em um ou outro efeite expressivo (estou falan- do aqui de um efeito puramente de montager). Esta circunstincia engloba todos os niveis de intensidade da justaposigéo da montagem — todos os impulses: ‘A partir de uma completa oposigio das dominantes, isto é, de uma construgio dlaramente contrastante, para uma “modulagao” escassamente pereebida de plano a plano; todas os casos de conflito devem, portanco, incluir casos de uma completa auséncia de contlito. Quanto 4 dominance. Esté fora de questéo considerd-la algo independente, absoluta ¢ invariavelmente estdvel. Existem meios técnicos para se trabalhar © plano de modo que sua dominante seja mais ou menos espectfica, mas de modo nenhumy absoluta. 72 A quarca dimensto do cinema 73 ‘As caracteristicas da dominante so varidveis e profundamente relativas. Uma revelagao de suas caracterfsticas depende da combinasao dos planos, que depende da dominante! Um circulo? Uma equate de duas quantidades desconhecidas? Um cachorro tentando morder o proprio tabo? Nao, isto € apenas uma definigéo exata de uma lei cinematografica. Um fato. Mesmo se temos uma segiléncia de fragmentos de montagem. Um velho grisalho, Uma velha grisalha, Um cavalo branco, Um telhado coberto de neve, ainda estamos longe de ter certeza se esta seqiiéncia esta trabalhando em diregao a uma indicasao dominante de “velhice” ou de “brancura’. “Tal seqiiéncia de planos deve prosseguir por algum tempo antes que finalmen- te descubramos aquele plano-guia que imediatamente “batiza” todd a seqiiéncia em uma “dire¢do” ou outra, Eis por que é aconselhdvel colocar este plano identificador © mais prdximo possivel do inicio da seqiiéncia (numa construsio “ortodox.”). ‘Algumas vezes se torna até necessério fazer isto com — um letreiro. Estas consideragGes excluem completamente uma declaragio nfo-dialética da questio que diz respeito & nica significagdo de um quadro dentro de si mesmo. O quadro cinematogrdfico nunca pade ser uma inflextvel lesra do alfabeto, mas deve set sempre um ideograma multissignificativo, E pode ser lide apenas em justaposi- lo, exatamente como um ideograma adquire significagéo, significado e atk prontin- cia especificos (ocasionalmente em oposicio diametral um a0 outro) somente quando combinado com um indicador, em separado, de leitura, ou de minimo significado — um indicador para a leitura exata — colocado ao lado do hierdglifo bisico. Para diferenciar-se da montagem ortodoxa em conformidade com as domi- nantes particulares, A linha geral foi montado de modo distinto. Em lugar de uma “aristocracia” de dominantes especificas, usamos um método de igualdade “demo- exatica” de direitos de todas as provocagbes, ou estimulos, considerando-os um sumério, um complexo. ‘A questo € que a dominante (com todas essas limitagSes reconhecidas sobre sua telatividade) parece, apesar de set o mais poderoso, estar longe de ser 0 tinico estimulo do plano. Por exemplo: o sex-appeat de uma bela estrela norte-americana ¢ conseguido através de muitos est{mulos: de textura — do tecido de seu vestido; de luz — da ilurninag3o equilibrada ¢ enfitica de sua figuras racial-nacional (positivo para uma platéia norte-americana: “um tipo norte-americano nativa", ou negativo “colonizador-opressor” — para uma placéia negra ou chincsa); de classe social etc. 74 A forma do filme (todas colocadas juntas numa unidade férrea de sua esséncia reflexofisiolégica). Em uma palavta, 0 estimulo central (seja ele, por exemplo, sexual como em nosso exemple) € conseguido sempre através de todo wm complexe do processo secundario, ou fisioldgico, de uma atividade altamente nervosa. O que ocome na actistica, ¢ particularmente no caso da mtisica instrumental, corresponde inteiramente a isto. Ai, junto com a vibragéo de um tom dominante bdsico, vem uma série completa de vibragdes semelhantes, chamadas de tons maiores ¢ tons menores. Seus impactos uns cantra os outros, seus impactos com a tonalidade bdsica, e assim por diante, englobam essa tonalidade bésica em um conjunto total de vibragées secun- datias. Se na acistica estas vibragGes colaterais se tornam meramente elementos “percurbadores”, essas mesmas vibracdes, na miisica — na composigio, se tornam um dos mais significatives meios de causar emogées utilizados por compositores experimentais de nosso s¢culo, como Debussy ¢ Scriabin.* Encontramos a mesma coisa também na ética, Todos os tipos de aberragées, distorgdes ¢ outros defeitos, que podem ser remediados por sistemas de lentes, também podem ser levados em conta composicionalmente, proporcionande uma série completa de efeitos composicionais definidos (usando lentes com um Angulo de visio que varia entre uma 28mm ¢ uma 310mm). Em combinagées que exploram essas vibragdes colaterais — que sio simples- mente o prdprio material filmade — podemos conseguir, como na musica, @ comple- xo harminico-visual do plano. A montagem de A linha geral & construida com este método. Esta montage éconstrufda nao sobre dominantes particulares, mas toma como guia a estimulagio total através de todos os estimulos. E 0 complexo de montagem original dentro do plano, nascendo da colisao ¢ combinagio dos est{mulos individuais inerentes a cle. Estes estimulos sdo heterogéneos em relagdo a suas “naturezas externas”, mas sua esséncia reflexofisiolégica os une numa unidade férrea, Fisiolégica na medida em que sua percepcio ¢ “psiquica”, ela é meramente 0 processo fisiolégico de uma atividade nervosa mais elevada. Deste modo, atrés da indicagio geral do plano, estd presente a soma fisioldgica de suas vibragdes como um sodo, como uma unidade complexa de manifestagées de todos os seus estimulos, Esta é a “sensagdo” peculiar do plano, produzida pelo plano como um todo. Isto fz do plano um fragmento de montagem, compardvel As cenas isoladas do mécodo Kabuki. A indicacao basica do plano pode ser considerada a soma final de seu efeito no cortex do cérebro como um todo, nao importam os modos pelos quais os estimulos acumulados foram unidos, Assim, a qualidade dos rotais pode ser colocada lado a lado em qualquer combinagao conflituosa, deste modo revelando inteiramente novas possibilidades de solugées de montage. Aquarta dimensto do cinema 75 Como vimes, na forga da propria génese destes mérodos cles devem ser acompanhados por uma extraordinria qualidade fisiolégica. Como naquela musica que constréi suas obras com o uso duplicado de harmonias. Nao 0 classicisme de Beethoven, mas a qualidade firioldgica de Debussy e Scriabin. Aextraordinatia qualidade fisiolégica da emogio causada por A linha geral foi notada por muitos de seus espectadores. A explicagao pata isto € que A linha geral é 0 primeire filme montado sob o principio harménico-visual. Este método de monta- gem pode ser verificado de um modo muito interessante. Se na fulgurante cinematografia do futuro, a montagem atonal certamente seré usada simultaneamente com a montagem que segue a indicasio dominante, como sempre acontece no inicio — 0 novo método se afirmaré numa veemente questo de principio. A montagem atonal, em seus primeitos passos, teve de adotar uma linha de clara apasigiéo & dominante. Existem muitas instancias, é verdade — ¢ em A linha genal também —, nas quais combinagées “sintéticas” de montagem tonal ¢ atonal jd podem ser encontra- das. Por exemplo, em A linha geraf, o climax da procissio religiosa (para rezar pelo fim da seca), ¢ a seqiiéncia do gafanhoto e da segadeira, sio editadas visualmente de acordo com as associagées sonoras, com um desenvolvimento expresso que jé existe em sua “semelhanga” espacial. De interesse metodoldgico particular, é claro, s40 as construgdes completa mente determinadas pela deminante. Nelas, a dominante aparece na forma de uma forraslacéo pucamente fisioldgica da sarefs. Por exemplo, a montagem do infcio da procissio religiosa € feita de acordo com “graus de saturagio de calor” dos planos individuais, ou 0 infcio da seqiiéncia da fazenda estatal é feito de acordo com uma linha de “carnivorismo”. Condigaes fora da disciplina cinematografica proporcio- nam as mais inesperadas indicagies fisiolégicas cntre materiais que sio logicamente (tanto formal quanto naturalmente) absoluramente neutros em suas relagdes uns com os outros. Ha neste filme inumerdveis casos de jungSes de montagem que satirizam abertamente a montagem ortodoxa, escoldstica, de acordo com a dominante. O modo mais facil de demonsttar isso é examinar o filme na mesa de montagem. Sé entio podem-se ver claramente as jungdes de montagem perfeitamente “impossi- veis” que abundam em A linha geral, Isto também ir4 demonstrat a extrema simplicidade de sua métrica, de suas “dimensbes”. Grandes segées inteiras de algumas seqliéncias séo feitas de fragmentos perfeitamente uniformes em comprimento ou de pequenos fragmentos repetidos de modo absolutamente primitivo. Todo o esquema de nuangas, intricado, ritmico ¢ sensual, dos fragmentos combinados é conduzido quasc exclusivamente de acordo com uma linha de trabalho sobre as vibragées “psicofisiolégicas” de cada fragmento. 76 A forma do filme Foi na mesa de montagem que detectei o objetivo claramente definido da montagem particular de A linha geral, Isto ocorreu quando o filme teve de ser condensado e diminufdo. © “&xrase criativo” obride na reunido e montagem —o “axtase criativo” de “ouvir ¢ sentit” os planos —, tudo j4 era passado. Redugdes ¢ cortes nao requerem inspiragio, apenas técnica ¢ habilidade. E 15, examinando a seqiéncia da procissio religiosa na mesa, néo pude adequar a combinagio de seus fragmentos a nenhuma das categorias ortodoxas, nas quais podemos aplicar nossa pura experiéncia. Na mesa, desprovidas de movimen- to, as razbes para sua escolha parecem completamente incompreensiveis. O critétio para sua reuniao parece estar fora do critério cinemnatogréfico formalmente normal. E aqui observa-se um curioso paralelo posterior entie a harmonia visual ¢ musical: ela no pode ser encontrada no quadro estético, exatamente como nio pode ser encontrada na escala musical. Ambas s6 emergem como valores genufnos na dinamica do processo musical ou cinematografico. Conflitos harménicos, percebidos mas nao esctitos na escala, néo podem emergir sem 0 processo dialético da passagem do filme através do aparelho de proje¢ao, ou do desempenho por uma orquestra sinfSnica. Estd provado que a harmonia visual é uma pega real, um elemento real de— uma quarta dimensdo! No espago tridimensional, espacialmente inexpressivo, que 96 surge existe na quarta dimensio (tempo acrescentado as trés dimens6es). A quarta dimenséo?! Einstein? Ou misticismo? Ou uma piada? E hora de parar de ficar com medo deste novo conhecimento de uma quarta dimensio. O proprio Einstein nos assegura: O individuo ndo-matemdtico, quando ouve falar de coisas “quadridimensionais”, ¢ romado por um misteriose artepio, por um sentimento que nao é diferente do despertado pelas reflexdes sobre o desconhecido. Porém, nao hé declaragio mais lugar-comum do que a de que © mundo no qual vivemos é um continuum espago- tempo quadridimensional.4 Possuindo um instrumento de percepcio tio excelente como o cinema — mesma em seu nivel primitive — para se obter a sensagio de movimento deverfa- mos aprender logo a nos orientar concretamente neste continues espaco-tempo quadridimensional, ¢ nos sentir t4o & vontade como em nossos préprios chinelos. E em breve estaremos colocando a questao de uma quinta dimensao! A montagem atonal ¢ revelada como uma nova categoria entre os outros processos de montagem conhecidos até agora. O significado aplicado deste mévodo é, desde logo, imenso. E eis por que este artigo aparece em um ntimero dedicado a0 cinema sonoro!* ‘A quarta dimensio do cinema 7 No artigo citado no inicio, a “jungio inesperada” — uma semelhanga entre 0 teatro Kabuki ¢ o cinema sonoro, escrevi sobre 0 método contrapantistico de combinar as imagens visuais ¢ auditivas: Para dominar este métado, deve-se desenvolver em si mesmo um novo sentido: a capacidade de reduzir as percepqGes visuais e auditivas a um “denominador comum” E no entanto, ndo podemos reduzir percepgGes auditivas ¢ visuais a um deno- minador comum. Blas sio valores de dimensdes diferentes. Mas harmonia visual ¢ harmonia sonora sfo valores de uma substiincia singularmente medida. Porque, se 0 quadro é uma percepeéo visual, ¢ a tonalidade uma percepcio auditiva, as tonalida- des visuais, assim como andisivas, so uma sensagdo toralmence fisioldgica. E, conse- qlientemente, sio do mesmo sipo, fora das categorias sonoras ou auditivas, que servem como guias, que levam & sua consecugio. Sobre a atonalidade musical (uma vibrago) nfo se pode apenas dizer: “Eu ouge’ Nem sobre a atonalidade visual: “Eu vejo”. Pata ambos, uma nova férmula uniforme deve entrar em nosso vocabulério: “Bu percebo”. A teoria ¢ a metodologia da harmonia atonal vém sendo cultivadas ¢ tornadas familiares por, entre outros, Debussy ¢ Scriabin. A linha geral inaugura 0 conceito da atonalidade visual. E do conflito polifénico entre as aconalidades visuais ¢ auditivas nascetd a composigéo do cinema sonoro sovittico. Notas 1. Kina chetyrek izmerenii, Bsctito em julho de 1929 ¢ publicado no jernal Kino, de 27 deagosto deste mesmo ano. 2. Ver Uma inesperada jungdo, p.27-34. 3. NR: A partir deste ponco, Eisenstein passa a desenvolver uma teoria de montagem cuja rerminologia cle foi buscar na miisica. As citagbes explicitas A nove mulsica de Debussy ¢ Sesiabin, bem como as explanacdes sobre a questio da tonalidade dominante versus entrechoque de virias tonalidades, sem dominante a dar 9 tom, deixa claro que ele se referia d masica atonal, Mas, come observa a certa altura do segundo capitulo — “Sincronizagao dos sentidos” — de O sentido do filme, fez uso de um termo talver no muito preciso, ¢ usou overtone, que em inglés significa harménica (0 substantivo, ¢ nao 0 adjetivo), que ¢ cada um dos sons de uma série hatmBnica (o jogo multiple de harménices resultando portanto na atonalidade). As versdes francesa ¢ castelhana desta obra nada fixecam para solucionar 0 problema, adotando o adjetive “harménico” ou a expressio “supratonal” para traduzir montagem “overtonal”. Prefetimos, como uma contribuigio desta verso brasileira 2 clara compreenséo do leitor, adotar “atonal” e “atonalidade” alternando-os &s vezes com “harménico” 78 A forma do filme ¢ harmonia” onde cabia melhor nas frases, pata que, assim, « idéie de Sergei Bisenstein fosse jamente raduzida, 4. NS.E: Albert Einstein, Relarivity the Special and General Theory 5. A edigdo do jornal Kizo em que este texto foi originalmente publicado reunia os relatdrios do Congreso Nacional sobre Cinema Sonoro realizado em Moscou no comeso de agosto de 1929. Métodos de montagem' Em todas as artes, ¢ em todas as descobertas, a expe- ritneia sempre antecedeu os preceitos. No correr do tempo, designou-se um método pata a prética da in- vensgio., GOLDONI Seria a montagem atonal um método ndo-relacionado com nossa experiencia pré- via, transplantado artificialmente para a cinematografia, ou simplesmente uma acumulagéo quanticativa de um atributo que dé um salto dialético e comeca a funcionar como um novo atributo qualitativo? Em outras palavras, seria a montagem atonal um estdgio dialético de desen- volvimento dentro do desenvolvimento geral do sistema de métodos de montagem, colocando-se em sucessiva relagéo com as outras formas de montagem? Estas sio as categorias formais de montagem que conbecemos: 1. Montagem Mésrica O critétio fundamental desta construgio sto os comprimentos absolusos dos frag: mentos. Os fragmentos séo tinicos de acordo com seus comprimentos, numa formula esquematica correspondente 4 do compasso musical. A realizagio esté na repeticao desses “compassos”. A tensio € obtida pelo efeito da aceleragio mecanica, ao se encuttatcm os fragmentos, a0 mesmo tempo preservando as proporgées originais da formula. Base do método: compasso trés por quatro, tempo de marcha, tempo de valsa (3/4, 2/4, 1/4 etc.), usado por Kuleshov; degeneracéo do método: montagem métrica usando uma medida de irregulatidade complicada (16/17, 22/57 etc). Tal compasso deixa de ter um efeito fisiolégico porque contraria a “lei dos dmeros simples” (relagses). Simples relagées, que déo uma clarcza de impressdo, re 80 A forma do filme sio por esta razio necessitias, para uma mixima eficiéneia, Séo por isso encontra- das em saudaveis clissicos de codos os campos: na arquiveturas na cor de uma pintura; numa composigéo complexa de Scriabin (sempre clara como cristal nas rolagbes entre suas partes); em mrises-en-scones geométricas; num preciso planeja- mento estatal etc. Um exemplo semelhante pode ser encontrado no O undécimo ano, de Vertov, onde 0 ritmo mé:tico ¢ mavematicamente tio complexo que apenas “com uma régua” pode-se descobrir a lei proporcional que © governa. Nao pela impressdo conforme percebida, mas pela medida. Nao quero dizer com isso que o ritmo deva ser reconhectvel como parte da impresséo percebida. Pelo contrdrio. Apesar de irreconhecivel, ele € no entanto indispensivel para a “organizacio” da impressio sensual. Sua clareza pode fazer funcionar em unissono a “pulsacéo” do filme e a “pulsagéo” da platéia. Sem tal unissono (que pode ser obtido por varios meios ) ndo hé come haver contato entre os dois, A complexidade excessiva do ritmo métrico produz um caos de impress6es, em vez de uma clara tensio emocional. Entre estes dois extremos de simplicidade ¢ complexidade, existe um terceiro uso da monragem métrica: alternando dois fragmentos de comprimentos diferentes de acordo com 0s dois tipos de conterido destes fragmentos. Exemplos: a seqiiéncia do leaginka, cm Outubro, ¢ a manifestagio patridtica em O fim de Sao Petersburgo* (O iiltimo exemplo pode ser considerado um cléssico no campo da montagem puramente métrica,) Neste tipo de montagem métrica o contetido dentro do quadro do fragmento esté subordinado ao comprimento absolute do fragmento. Pot isso, apenas 0 carter dominante do contetido do fragmento é considerado; esses seriam planos “sindnimos’ > 2. Montagem Ritmica Aqui, a0 determinar os comprimentos dos fragmentos, 0 contetido dentro do quadro ¢ um facor que deve ser igualmente levado em consideragio. ‘A determinagio abstraca dos comprimentos dos fragmentos dé lugar a uma relagao eléstica dos comprimentos reais. Aqui, o comprimento real no coincide com o comprimento matematica- mente determinado do fragmento de acordo com uma férmula métrica. Aqui, seu comprimento prético deriva da especificidade do fragmento, e de seu comprimento planejado de acordo com a estrurura da seqiiéncia. E bastante poss(vel aqui encontrar casos de total idensidade métrica dos fragmentos com suas medidas ricmicas, obtidas através de uma combinagao dos fragmentos de acordo com sen contetido. Metodos de montage a1 A tensio formal pela accleragao ¢ aqui obtida abreviando-se os fragmentos no apenas de acordo com o plano fundamental, mas também pela violagio deste plano. A violago mais efetiva € conseguida com a introdugéo de material mais intenso num tempo facilmente distinguivel. A seqiigncia da “escadaria de Odessa’, em Potemkin, € um exemple claro disto, Nela, a marcha ritmica dos pés dos soldados descendo as escadas viola todas as exigéncias métricas. Esta marcha, que nao est sincronizada com o ritmo dos cortes, chega sempre fora de tempo, ¢ esse mesmo plano se apresenta como uma soluggo completamente diferente em cada uma de suas novas aparig6es. O impulso final da tensdo € proporcionado pela transferéncia do ritmo dos pés descendo para outro ritmo — um novo tipo de movimento para baixo — 0 préximo nivel de intensidade da mesma atividade — 0 carrinho de bebé rolando escada abaixo. O carrinho funciona como um acelerador, diretamente progressive, dos pés que avangam. A descida degrau a degrau passa a descida de roldio. Compare-se isto com 0 exemple citado acima, de O fim de Sao Petersburgo, onde a intensidade é obtida reduzindo-se todo e qualquer fragmento a0 minimo requetido pelo compasso métrico. Tal montagem métrica € perfeitamente adequada para solugdes de tempo de marcha igualmente simples, mas € inadequada para necessidades ritmicas mais complexas. Quando se forga sua aplicacéo em um problema dessa natureza, comete-se urn erro de montagem. Isto explica uma seqiiéncia tio malsucedida como a danca de mascara rcligiosa em Tempestade sobre a Asia.® Executada com base em um comple- xo ritmo métrico, desajustado do conteudo especifico dos fragmentes, ela nem reproduz o ritmo da ceriménia original, nem organiza um citmo cinematografica- mente eficiente. Na maioria dos casos deste tipo, s6 se consegue provocar perplexidade no especialista, ¢ apenas uma impressio confusa no espectador leigo. (Apesar de que a mulcta artificial de am acompanhamento musical possa dar algum apoio a uma seqiiéncia tio capenga — como acontece no exemplo citado — a fraqueza bdsica continua presente.) 3. Montagem Tonal Este termo & empregado pela primeira vez. Expressa um estigio além da montage ritmica. Na montagem rftmica ¢ o movimento dentro do quadro que impulsiona 0 movimento da montagem de um quadro a outro. Tais movimentos dentro do quadro podem ser dos objetosem movimento, ou do olho do espectador percorren- do as linhas de algum abjeto imével. a2 A forma do filme Na montagem tonal, o movimento € perccbido num sentido mais amplo. O conceito de movimentagéo engloba todas as sensazbes do fragmento de montagem. Aqui a montagem se baseia no caracter(stico som emocional do fragmento — de sua dominant. O tom geral do fragmento. Com isso nao quero dizer que o som emocional do fragmento deva ser medido “impressionisticamente”. As caracteristicas do fragmento neste aspecto podem ser medidas com tanta exatidao como no caso mais elementar da medida “pela régua” na montagem métrica. Mas as unidades de medida diferem. E as quantidades a serem medidas também. Por exemplo, o grau de vibrago da luz em um fragmento nfo é captado apenas pela célula de selénio de um forémetros cada gradacao desta vibragio € perceptivel a olho nu. Se damos a designagéo compatativa e emocional de “mais sombrio” a um fragmento, também podemes achar para tal fragmento um coefi- ciente matemitico para o seu grau de iluminagio. Este é um caso de “tonalidade de luz”. Ou, se o fragmento € descrito como tendo um “som agudo”, & possivel encontrar, arrds dessa desctigdo, os muitos elementos angulados agudamente den- tro do quadro em comparagio com outros elementos de forma. E um caso de “wonalidade gréfica”. ‘Trabalhar com combinagées de vatiados graus de suavidade de foco ou graus variados de “agudeza” seria um uso tipico de monragem tonal. Como disse, isto se basearia no som emocional dominante dos fragmentos. Um exemplo: a “seqtiéncia da neblina” em Poterskin (antecedendo o lamento da massa sobre 0 corpo de Vakulinchuk). Aqui a montagem baseou-se exclusivamente no “som” emocional dos fragmentos — nas vibragGes ritmicas que nio afetam alteragaes espaciais. Neste exemplo ¢ interessante o fato de, ao lado da dominance tonal bésica, uma dominante rftmica secundaria, acesséria, também estar agindo. Isto liga a construgao tonal da cena a tradigao da montagem ritmica, cujo desenvol- vimento posterior ¢ a montagem tonal. E, como a montagem ritmica, esta também é uma variagao especial da montagem métrica. Esta dominante secunddria ¢ expressa em moyimentos de mudanga escassa- mente perceptiveis: a agitagio da d4guas o leve balango das béias e dos barcos ancorados; o vapor subindo vagarosamente: as gaivotas mergulhando graciosamen- te na dgua, Rigorosamente falando, estes também sio elementos de uma ordem sonal. Sio movimentos que progridem de acordo com caracteristicas tonais, em vez de espaciais-ritmicas. Aqui, mudangas imensurdveis espacialmente séo combinadas de acordo com seu som emocional. Mas o principal indicador para a reunido dos fragmentos estava de acordo com seu elemento bésico — vibragdes dticas de luz (graus variados de “sombra” ¢ “luminosidade”). E a organizagio dessas vibragbes revela uma total identidade com uma harmonia em tom menor na miisica, Ao Métados de montagern 83 mesmo tempo, este exemplo dé uma demonstra¢do de consondncia ao combinar 0 movimento como mudanga com o movimento como vibragdo de luz. Tensfo crescente neste n(vel de montagem também é produzida por uma intensificagao da mesma dominante “musical”, Um exemplo especialmente claro de tal intensificagdo ¢ fornecido pela seqiéncia da colheita atrasada em A linha geval. A construgio deste filme como um todo, assim como nesta seqiiéncia parti- cular, vincula-se a um processo construtivo bésico. A saber: um confliso entre argumento ¢ sua forma tradicional. Estruturas emotivas aplicadas a material ndo-emocional. O estimulo é trans- ferido de seu uso comum como situagéo (por exemplo, como o erotismo é geral- mente usado em filmes), para estruturas paradoxais em tom. Quando “o pilar da atividade” é finalmente descoberto — ¢ uma mdquina de escrever. O touro herdie a vaca heroina casam-se alegremence, Nao ¢ o Santo Graal que inspira tanto davida quanto éxtase — mas uma desnatadeira. ‘Assim, o fom menor temitico da cotheita € resatvido pelo tom maior temético da tempestade, da chuva. Sim, ¢ até mesmo a colhcita empilhada — tradicional tema bisico de fecundidade, sempre reluzindo sob o sol —, €uma solugao do tema menor, molhada, como esté, pela chuva. Aqui o aumento da tensio ocorre através do reforgo interno de um acorde dominante inflexivel — pelo sentimento crescente dentro do fragmento de “opres- sfo antes da tempestade”. ‘Como no exemplo anterior, adominante tonal — movimento come vibragio de luz — ¢ acompanhada por uma dominante rftmica secundétia, isto é, movimen- to como mudanga Aqui cle ¢ exprimido pela ctescente violéncia do vento, definida por uma transferéncia de correntes de ar para torrentes de chuva — uma analogia definida com a transferéncia dos passos descendo para o cartinho rolando escada abaixo. Em estrutura geral, o elemento vento-chuva, em relagéo 4 dominante, pode ser identificado com a ligagdo, no primeiro exemplo (a neblina no porto), entre seu balanco ritmico e seu desfoque reticular. Na realidade, o carter da inter-relagao € bastante diferente. Em contraste com a consonancia de primeiro exemplo, temos aqui o contrario. Aaglomeragao nos cus de uma massa negra, ameagadota, é contrastada com a forga dinamica intensificada do vento, ea solidificagéo implicita na transigéo de correntes de ar para torrentes de dgua € intensificada pelas saias, dinamicamente soptadas pelo vento, ¢ 0s feixes espalhados da colheita. ‘Aqui, uma colisio de tendéncias — uma intensificagSo do eseético ¢ uma intensificagao do dinamico — nos d4 um claro exemplo de dissonancia na constru- G4o de montagem tonal. Do ponto de vista da impressio emocional, a seqiiéncia da colheita exemplifi- cao tom menor tragico (ativo), distinco do tom menor litico (passive) da seqiiéncia da névoa no porto. 84 A forma do filme E interessante que em ambos os exemplos a montagem se desenvolve com a crescente mudanga de seu elemento bisico — cart no “porto”, do cinza-escuro para 0 branco enevoado (analogia com a vida — o amanhecer); na “colheita’, de cin- za-claro para negro-grafite (analogia com a vida — aproximagio de uma crise). Isto & ao longo de uma linha de vibragdes da luz aumentando de freqiiéncla em um caso, e diminuindo de freqiéncia no outro, Uma construgéo em métrica simples foi elevada a uma nova categoria de movimento — uma categoria de significagao superior. Isto nos leva a uma categoria de montagem que podemos chamar apropriada- mente d 4, Momtagem Atonal Em minha opinido, a montagem atonal (conforme descrita no ensaio anterior) é organicamente o desenvolvimento mais avangado ao longo da linha de montagem tonal. Como indiquei, é distinguivel da montagem tonal pelo célculo coletivo de todos os apelos do fragmento. Esta caracterfstica eleva a impressio de um colorido ielodicamente emocio- nal, uma percepgio diretamemte fisieldgica. Isto também representa um nivel relacional com os nfveis anteriores. Estas quatro categorias sdo métodos de montagem. Blas se cornam conserugdes de montagem propriamente ditas quando entram em relagbes de conftiro umnas com as outras — como nos exemplos citados. Dentro de um esquema de relagdes muituas, ccoando ¢ conflitando umas com as outras, elas se movem em diregio a um tipo de montagem cada vez mais fortemente definido, cada uma crescendo organicamente a partir da outta. Assim, a transiggo da mé:rica para a r{emica ocorreu no conflito entre o comprimento do plano e 0 movimento dentro do plano. ‘A montagem tonal nasce do conilito entre os prinefpios ritmicos ¢ tonais do plano. E finalmente — a montage atonal, do conflito entre o tom principal do fragmento (sua dominante) e uma aronalidade. Fssas consideragées proporcionam, em primeiro lugar, um critério interessan- te para a apreciagdo da construgao da montagem de um ponto de vista “pictérico”. O pictorialismo é aqui contrastado com “cinematicismo”, pictorialismo estético com realidade fisiolégica. Discutir 0 pictotialismo do plano cinematografico € ingénuo. Isto é tipico de pessoas que possuem uma cultura estética respeitavel mas que nunca foi aplicada de forma Idgica ao cinema. A este tipo de pensamento pertencem, por exemplo, as opinides sobre cinema de Kasimir Malevich,’ O verdadeiro aprendiz de cinema nao Métodes de montagem 85 pensaria em analisar o plano cinematografico de um ponto de vista idéntico ao da pintura paisagistica. © que se segue deve ser considerado um critétio do “pictorialismo” da cons- trugio de montagem no sentido mais amplo: © confflito deve set resolvido dentro de uma ou outra categoria de montagem, sem permitir que o conflito seja wma entre diferentes categorias de montagem. Uma cinematografia verdadcira sé comega mesmo com a colisio de varias modificagées cinematograficas de movimento e vibracao. Por exemplo, o conflito “pictérico” entre uma figura ¢ o horizonte (seja um conflito estdtico ou dindmico, nao importa). Ou a altctagao de fragmentos diferentemente ilurninados apenas de ponto de vista de conflitantes vibragies de luz, ou de um conflito entre a forma de um objeto e sua iluminagio etc. Também devemos definir o que caracteriza o efcito das varias formas de montagem sobre o complexo psicofisiclégico da pessoa na ponta receptora. A primeira, a categoria métrica, é caracterizada por uma vigorosa forga moti- vadora, E capaz de impelir o espectador a reproduzir externamente a agao percebi- da. Por exemnplo, o concurs de segadura em A linha geral é montado deste modo. Os diferentes fragmentos sdo “sinénimes” — contendo um unico movimento de segadura de um lado a0 outro do quadro; ¢ eu ri quando vi os membros mais impressiondveis da plavéia balangando silenciosamente de um lado para o outro, numa velocidade crescente a partir do momento em que os fragmentos foram acelerados pela reducio. O efeito foi o mesmo que o de uma banda de percussio € metais tocando uma simples marcha. Chamei a segunda categoria de ritmica. Também poderia ser chamada de emotiva-primitiva. Aqui o movimento é mais sutilmente calculado, porque apesar de a emogao ser também resultado do movimento, o movimento no é uma mudanga externa metamente primitiva. A terceira categoria — tonal — poderia também ser chamada de emotiva-me- Iédica. Aqui o movimento, que jé deixou de ser uma simples mudanga do segundo caso, passa distintamente para uma vibragéo emotiva de uma ordem mais ala. ‘A quatta categoria — um fluxo fresco de puro fisiologismo — remete, com ais alto grau de intensidade, & primeira categoria, de nova adquitindo um grau de intensificagao pela forga direta de motivagao. Na muisica isto é explicado pelo fato de que, a partir do momento em que tons harménicos podem ser ouvidos paralelamente ao som bésico, cambém podem ser sentidas vibragSes, oscilagdes que deixam de impressionar como tons, mas sim, em vez disso, como substituiges puramente fisicas da impresséo percebida. Isto se refere particularmente a instrumentos de timbre fortemente pronunciado com uma grande preponderincia do princfpio da atonalidade. A sensacio de deslocamento fisico € algumas vezes liveralmente obtida: carrilhdes, érgéos, enormes tambores turcos ete, 86 A forma do filme Em algumas seqiigncias, A linha geral é bem-sucedida na efetivagao de jungées das linhas tonal e atonal, Algumas vezes elas até colidem com as linhas métricas ¢ ritmica. Como nos vérios “angulos” da procissao religiosa: os que caem de joelhos diance dos (cones, as velas que derretem, os suspitos de éxtase ete. E interessante notar que, 20 selecionar os fragmentos para montagem desta seqiiéncia, inconscientemente nos munimos de provas de uma igualdade essencial entre ritmo ¢ tom, estabelecendo esta unidade de gradagio de modo muito seme- Ihante 4 que jé havlamos estabelecido anteriormente entre os conceitos de plano € montagem. Assia, som é um nivel do rirmo. Em consideragéo aos que esto alarmados com essas reduges a um denomi- aador comum, e com a extenséo das propriedades de um nivel até outro, com um objetivo de investigacao e metodologia, lembro a sinopse de Lenin sobre os elemen- tos fundamentais da dialética hegeliana: Estes elementos podem set aptesentados de um modo mais decalhado, assim: .. 10} um proceso infinddvel de noves aspectos, relagdes etc... reveladores; 11) um proceso infinddvel de percepgio humana cada vez mais profunda das coisas, aparéncias, processos, ¢ assim por diante, da aparéncia para a esséncia e da esséncia menos profunda para a mais profundat 12) da coexisténcia para a causalidade ¢ de uma forma de conexio ¢ interdependéncia para ourra, mais profunda, mais geral; 13) recorréncia, no nivel mais alto, de conhecidos tragos, atributos erc., do nivel mais baixo, ¢ 14) volta, por assim dizer, ao velho (negagao da negasao)...° Depois desta citagio, quero definir a seguinte categoria de montagem — uma categoria ainda mais alta: 5. Montage Inteleceual Amontagem intelectual é a montagem nao de sons atonais geralmente fisiolégicos, mas de sons ¢ atonalidades de um tipo intelectual, isto ¢, conflito-justaposiggo de sensagées intelectuais associativas. ‘A qualidade de gradagio & determinada pelo fato de que nao hd diferenga de principio entre 0 movimento de um homem balancando sob a influéncia da montagem métrica elemenear (ver acima) e 0 processo intelectual dentro deste, porque o pracesso intelectual ¢ a mesma agitagio, mas no campo dos centros nervosos superiores. E se, na instancia citada, seb a influéncia da “montagem de jazz”, as mos ¢ jocthos de alguém tremem ritmicamente, no segundo caso tal tremor, sob a influén- Méodos de momtagem 7 cia de um grau diferente de apelo intelectual, ocotre de modo idéntico através dos tecidos dos sistemas nervosos superiores do pensamento. Apesar de, julgados como “fendmenos” (aparéncias), eles parecerem de fato diferentes, do ponto de vista da “esséncia” (processo), potém, eles sem divida sio identicos. Aplicando a experiéncia do trabalho com linhas inferiores a categorias de ordem superior, isto permite atacar o préprio coracéo das coisas ¢ fendmenos. Assim, a quinta categoria ¢ a atonalidade incelectual. Um exemplo disso pode ser encontrado na seqliéncia dos “deuses” em Ouru- bro, onde todas as condigées para sua comparacio dependem de um som de classe exclusivamente intelectual de cada fragmento em sua relagio para com Deus. Digo classe, porque apesar de 0 principio emocional set universalmente humano, 0 princ{pio intelectual ¢ profundamente matizado pela classe. Esses ftagmentos séo reunidos de acordo com a escala intelectual descendence —empurrando o conceito de Deus de volta a suas origens, forcando o espectador a perceber intelectualmente esse “progresso”. Mas isto, é claro, ainda nfo é 0 cinema intelectual que venho anunciando hd alguns anos! O cinema intelectual serd aquele que resolver o conflico-justaposigio das harmonias fisiolégica ¢ intelectual. Construindo uma forma completamente nova de cinematografia — a realizacio da revolucao na historia geral da cultura; consttuindo uma sintese de cigneia, arte ¢ militancia de classe. Em minha opiniao, a questio da atonalidade é de ampla significagao para o futuro do nosso cinema. Cada vez mais atentamente devemos estudar sua metodologia ¢ investigéla, Notas 1. Kine chetyreth izmerenit If. Escrito entre setembro ¢ dezembro de 1929, como complemento do texto anterior, para publicasio na revista inglesa Clore Up. O ensaio aparece na edigio de abril de 1930, com o titulo de Methods of Montage, the fourth dimension in she Kino Hl (Métodos de monsagem, ¢ quarta dimensdo no cinema il) ern seqiiéncia a primeira patte publicada na edigdo do més amerior. 2.NS.E: Memoirs of Goldoni, Nova York, 1926. 3. Odinnanane, filme sovidtico feito em 1928 por Daiga Vervov (1895-1954), Num texto escrito cm fevercira deste mesmo ano o realizador advertia que o documentério tinha “uma monta- gem mais compleza, que obriga o espectador a uma tensio maior e, para ser percebido, uma atengio particular” 4. Konee Sankr Petersburga, filme soviético realizado em 1927 por Vsevolod Pudovkin (1893- 1953), a8 A forma do filme 5. Pelo menos duas seqiincias de Outubro sao feitas com planos sinoaimas. A lembrada aqui por Eisenstein, a da danga de confraternizacie depois da libertacio dos presos, onde os planos dos pés e dos rostos das pessoas que dangam se alternam, ¢ a da repressto as manifescagSes populares de julbo que no comego alterna as planos do sesto do soldado que dispara e o detalhe do cano de metrathadora. 6. Potomac Ghengis Khana, filme sovistico realirado em 1929 por Vsevolod Pudovkin (1893- 1953). 7. Kasimir Malevich (1878-1935) pintor soviético criador do suprematismo ¢ defensor da pintura sem objeto, “uma teoria do conhecimento sem objeto, quer dizer, um modo de ver os fendmenos em que a conscincia deve recusar todo © conhecimento do objeto parz rorné-to mais objetiva”. Autor de intimeros manifestos ¢ ensaios entre 1915 ¢ 1930, alguns esctitos em russo, como Ot Kubizma futurizema & supreraatiza. Nowy! chivopisnyi realiam (Do cubismo e futuriemo ao suprematioms. Novo reatiomo na pinturd) publicado em Moscou em 1916; outros em alemio, como Einftbrung in die Theorie de: additionalen Elementes der Malerei bneroducto 3 teoria do elemenso adicional na pintura) publicado em 1927 no n® 2 de cevista do Bauhaus, Bauhaus Zeitschrift fir Gertaltung. 8. NSE: Vladimir liich Lenin, Filosofikiye eeadi, Moscou, 1947, p.192-3. Sirva-se! Stephen. (Olha para trds). Entéo aquele gesto, no mé- siea, ndo odores, serla uma linguagem universal, 0 talento de linguas tornando visivel nao 0 senso estabe- lecido, mas a primeira enteléquia, o ritmo estrutural, JAMES JOYCE” Discussdes sobre “diversio” versus “entrecenimento” me irritam. Tendo gasto mui- tas horas-homem com a questie do “entusiasmo” c “envolvimento” da platéia num. impulso unido e geral de absorgao, a palavra “diversio” me parece adverséria, esttanha e inimiga, Toda vez que se diz que um filme deve “entreter”, ougo uma vor! “Sirva-se!”, ‘Quando o ilustre Ivan Ivanovich Pererepenko “Ihe oferece rapé, ele primeiro lambe a borda da sua caixinka de rapé com a lingua, ¢ entao bate nela com o dedo, apresentando-a a vacé, e se vocé ¢ conhecido, diz: ‘Posso me atrever, meu caro senhor, a pedir-the que se sirva?’ E se vocé nao 0 conhece, ele diz: “Posso me atrever, meu caro senhor, apesar de nao ter a honra de saber seu cargo, nome e sobrenome, a pedir-the que se sirva?” Mas quando Ivan Nikiforovich Dovgochkhun lhe oferece rapé, “coloca a caixinha de rapé em sua mio ¢ diz apenas: ‘Sirva-se!”. Estou com Ivan Nikiforovich, com seu direto “sirva-se!”. A tarefa do cinema é fazer com que a plattia “se sirva”, nao “diverti-la”. Atrair, nao divertir. Proporcionar munigéo a0 espectador, nfo dissipar a energia que levou ao teatro. “Entretenimento” néo é na realidade um terme totalmente indcuo: sob ele h4 um processo ativo, bastante concreto. Mais precisamente, diverséo ¢ entretenimento devem ser entendidos apenas como um ato quantitative de se apodetar do material temético interior, ¢ de modo algum come um poder qualitative. Quando tinhames filmes que “atralam”, 140 faldvamos de entretenimento. Nao tinhamos tempo pata ficatmos abortecidos. Mas entao esta atragio se perdeu em algum lugar. A capacidade de construir filmes que atrafam foi perdida. E comegamos a falar de entretenimento. 89 30 A forma da filme E impossivel perceber este tiltimo objetivo, sem primeiro dominarmos o método anterior. O slogan favor do entretenimento foi considerado por muitos como apoio a um determinado elemento retrégrado e, no pior sentido, como uma perversio da compreensio em relagio as premissas ideolégicas de nossos filmes. Precisamos uma vez mais dominar um método, um guia diretive para incor- porar obras de arte instigantes. Ninguém pode nos ajudar nisto. Devemos fazé-lo nés mesmos. E sobre a questo de como fazé-lo — pelo menos de como nos prepararmos para fazé-lo, que quero falar. Reabilitar a premissa ideolégica nao ¢ algo a ser imposto de fora, “com os cumprimentos do Repertkom”,> mas deve ser pensado como um processo bésico, vivificador, poderoso, que fertiliza nada menos do que o elemento mais surpreen- dente do trabafho criativo da diregio do cinema — o “tratamento” dado pelo diretor. Esta é a tarefa deste ensaio. Eexiste uma ocasiao bastante concteta pata isto — principalmente em cone- x40 com a formulagio do trabalho pedagégico do terceiro ano, ou ano da gradua- $0, do curso de diregio do Instituto Estatal de Cinema, no qual, de acordo com o programa de ensino, os alunos devem iniciar 0 dominio criativo do trabalho de diregio. Os talmudistas do método — os ilustres marxistas académicos — podem me criticar, mas quero abordar este tema ¢ este ensino de modo simples, como a vida — como o trabatho. Porque, na realidade, ninguém até agora sabe concretamente como tratar dele, ¢ se esconde atrds de citagSes, académicas ou nao. Durante algum tempo, durante anos, me preocupei com certos poderes so- brenaturais que transcendem o senso comum € a razio humana ¢ que pareciam indispensaveis para a compreensio dos “mistérios” da diresao criativa de cincima. Para dissecar a musica da diregdo criativa de cinema! Dissecar, mas nio como um cadaver (4 mancira de Salieri}, a musica da direcdo criativa de cinema — este deveria ser nosso trabalho com os formandos do Instituto. Abordamos este problema de modo simples, ¢ néo a partir de uma posicfo pteconcebida de métodos escoldsticos. E ndo ser nos caddveres de obras cinemato- grdficas despastadas que examinaremos os processos de produgio de nossos pré- ptios trabalhos. © teatro anatémico ¢ a mesa de disseogio so os campos de teste menos adequados para o estudo do teatro. E 0 estudo do cinema deve continuar insepar4vel do estudo do teatro. Construir a cinematografia a partir da “idéia de cinematografia”, e de princt- pios abstratos, é bérbaro e estipido. Apenas através da comparagio critica com as formas primitivas mais bdsicas do espetdculo é possivel dominar criticamente a metodologia do cinema. Sirva-se! ” Acctitica deve consistir em comparar ¢ contrastar um determinado fato nao com uma idéia, mas com outro fato; para isto, ¢ importance apenas que ambos os fatos sejam investigados o mais cuidadosamente possivel, ¢ que ambos apresentem, em relagio um ao outro, momentos diferentes de desenvolvimento. Estudaremos esta questo na vida do processo criativo. E esta serd nossa forma fundamental de agit. Devemos construir simultaneamente um processo de trabalho ¢ um método. E devemos proceder nao & maneira de Plekhanov, a partir de posigdes preconcebi- das de um “mécodo geral” para o caso concreto particular, mas através de determi- nado trabalho concteto sobre materiais particulares esperamos chegar a um mérodo de criago cinematogrifica para dicetor. Para este objetivo, devemos desvendar o processo criativo “intimo” do diretor em todas as suas fases ¢ mudangas, € colocd-to diante da platéia, “totalmente exposto”, Muitas surpresas estdo armazenadas para a juventude, que estd cheia de ilu- sbes. Em relagéo a uma determinada obra, posso, por um momento, colocar-me a favor do “entretenimento”? Vamos citar um dos maiores de todos os “entretenedo- res” — Alexandre Dumas, pai, em cujo nome Alexandre Dumas, filho, se descul- pou assim! “Men pai é 0 meu bebé grandio — ele nasceu quando eu ainda era ctiancinha.”” ‘Quem no sc encantou com a harmonia cldssica da estrutura labirintica de O conde de Monte Cristo? Quem mio foi atingido pela légica mortal que enlaga entrelaca os personagens ¢ eventos do romance, como se essas inter-telagbes existis- sem a partit de sua prépria concepgio? Quem, finalmente, nao imaginou aquele momento estético quando, de repente, no cérebro daquele “negro gordo”, Dumas, ircompeu a futura arquitetura do romance com todos os seus detalhes ¢ sutilezas, com o titulo, Le comze de Monte Crista, brilhando na fachada? E esta visio desperta © eco habitual: “Ah, se eu pudesse fazer uma coisa assim! E como é apradével teconhecer, a0 saborear esse manjar, como uma composi¢ao tio memordvel foi realmente criada e moldada. Como a fabricagio deste livro se deu com diligéncia feroz — nao através de um lampejo divino. E um trabalho de eseravo que mouteja tanto quanto sob 0 agoite de um capataz. Dumas tinha tealmente ascendéncia eréole, tendo nascido no Haiti, como “Toussaint EQuverture, 0 heréi de um filme que quero fazer, O cdnsud negro® O apelido do avé de Duras — general Thomas Alexandre — era “Dem@nio Negro”. E 0 proprio Dumas era chamado de “negro gordo” por sens contemporineos invejosos e rivais. Um certo comentarista, com o humilde nome de Jacquot, escon- dido atrés da sonoridade mais pomposa de “Eugene de Mirecourt”, publicou um. 9 A forma do filme ataque intitulado Fibrique de Romans: Maison Alexandre Dumas et Cie., no qual fer uma conexdo entre as origens ¢ os métados de Dumas: Arranhe a pele do Sr. Dumas ¢ encontrard o selvagem... Ble devora bacatas tiradas pelando das cinzas da lareira e as devora sem titar as cascas — um negro! [Come precisa de 200.000 francos por ano], contrata desertores intelectuais ¢ eraducores por saldtios que os degradam & condigio de negtos trabalhando sob 0 chicote de um mulaco!? “Seu pai era negro!” alguém gritou-lhe na cara. “Meu avé era um macaco’, ele respondeu. Parece ter sido mais sensfvel & acusacio de “fabrica de romances”. Apenas uma vez Dumas ficou realmente ofendido. Béranger, de quem ele realmente gosrava, escreveu pedindo-lhe para incluir um exilado interessante “entre os intime- ros mineiros que ele empregava para desencavat 0 minetal que transformava em lingotes de prata’; e Dumas respondeu: “Querido velho amigo: Meu unico mineito € minha mio esquerda, que mantém o livro aberto, enquanto minha mio direita trabalha doze horas por dia.” Ele estava exagerando. Tinha colaboradores, “mas tal como Napoledo tinha generais”.!° E bastante dificil trabalhar com tal frenesi. Mas é ainda mais dificil conseguir qualquer coisa adequada sem este frenesi. Milagres de composicio — séo apenas uma questo de persisténcia ¢ de tempo gasto durante o “o petfodo de treinamento” em uma biografia. Do ponto de vista da producividade, este periodo do romantismo se distingue pela louca velocidade de seus tempos criativos: em oito dias (de 19 a 26 de setembro de 1829), Victor Huge escreveu 3.000 linhas de Hernani, que revolucionou o teatro clissico; Marion Delorme em 23 dias; Le Roi samuse em 20 dias; Lucréce Borgia em 11 dias; Angelo ema 19 dias; Marie Tudor em 19 dias; Ruy Blas em 34 dias. Isto também se reflete quantitativamente. A heranga literéria de Dumas, pai, totaliza 1.200 volumes. Idéntica oportunidade de ctiar tais obras ¢ igualmente acess{vel a todos. Examinemos O conde de Monte Cristo em particular. Lucas-Dubreton nos revela a hiscéria de sua composigao. Durante um cruzeire pelo Meditertineo, Dumas passou perto de uma pequena ilha, onde néo pode aportar porque o lugar “estava ea consumace’.’ Era a ilha de Monte Cristo. O nome impressionou-o naquela ocasiio. Alguns anos mais tarde, em 1843, ele combinou com um editor a publicagéo de um trabalho a ser chamado Impressions + Em francte no original: em ectado de rebelito. Sirva-se! 93 de voyage dans Paris, mas precisava de um enredo romantico. Entio certo dia, par sorte, ele leu uma histétia de vinte paginas, Le Diamant et la vengeance, escrito no perlodo da segunda Restauragio ¢ incluide num volume de Peucher, La Police devoil- dée, Atingiu o alvo. Ali estava o tema com o qual sonhara: Monte Cristo deveria descobrir seus inimigos escondidos em Paris! Entao Maquet teve a idéia de contar a historia do caso de amor entre Monte Cristo e a bonita Mercedes ¢ a traigao de Danglats: ¢ os dois amigos iniciaram uma nova trilha — Monte Cristo, de impresses de viagem em forma de romance, se transformou num romance puro e simples. O abade Faria, um louco nascido em Gos, que Chateaubriand vira tentar em véo matar um candtio hipnotizando-o, ajudou a aumentar o mistério; € 0 Castelo de If comesou a aparecer no horizonte...! E assim que as coisas acontecem. E reconstruir tais coisas tal como ocorrem, patticipar desta experigncia, patece-me © processo mais itil ¢ produtivo para um estudante, Os “metodistas’, que pregam o contrdrio ¢ aprovam outras “receitas”, estdo simplesmente desperdigando nosso precioso tempo. Mas 0 “acaso” aqui € muito menos importante do que possa parecer, € a “regularidade” dencto do processo criativo é percebida e detectada. H4 um método. Mas toda vilania reside nisto: de posigdes metodolégicas preconcebidas, nada brota. E uma tempestuosa corrente de energia criativa, nao regulada por um método, produz ainda menos. Tal andlise da construgéo de obras de arte, passo a passo, explicard a mais rigorosa regularidade que governa cada apoio da superestrutura, com as quais elas nascem das premissas sociais ¢ ideoldgicas bésicas. Ea febre dourada de ganhar dinheiro e de auto-entiquecimento da época de Luts Filipe ¢ nada menos do que um fator determinante da conhecida lenda sobre a fabulosa riqueza do ex-marinheiro que se torna um onipotente conde, nao menos determinante do que as memérias de infincia de Dumas sobre Xerazade ¢ os tesouros de Ali Baba. E © préprio fato de um marinheiro pader se tornar um conde significava que “qualquer um” podia. Na caca 20 oura ¢ aos titules aristocréticos, o marinheito, Dantes, que se tornou o fabulosamente rico conde de Monte Cristo, serviu como um espléndido “ideal social” da burguesia, que estava enciquecendo. Nao & sem cazao que a esta imagem sao dadas as feigdes de um auto-retrato idealizado. Porque o préprio Dumas, junto com os outros, se banhava no turve mar de oure suspeito acumulado através de dibias especulagées no seinado de fe roi bourgeois. “Um milhao? Esta ¢ exatamente a quantia que geralmente carrego no bolso!” Num grau idéntico, esta declaragSo foi o ideal inatingivel, tanto do “negto gordo”, na época.o soberano literdrio do jornal, do fewilleton’ e do mundo draméti- * Em feancés no otiginal: folhétimn. 94 A forma do flme co de Paris, que esbanjava palavras e dinheiro com igual inconseqiéncia, quanto das amplas hordas de trapaceiros ¢ escroques gananciosos, que destruiram a vida econdmica de Paris. Porém, para sentirmos em sua plenitude quo intensamente essas premissas sociais, econdmicas e ideolégicas determinam cada uma das menores mudangas de forma, ¢ quio inseparavelmente elas estdo unidas em seus processos, deve-se independente e conscientemente tracar um ciclo ctiativo continuo ¢ completo do inicio ao fim. E claro que © mais interessante seria pegar um outro Goethe ou Gogol, colocd-lo diante de uma platéia c ordenar que escrevesse a terceita parte de Fausto ou criasse novamente 0 segundo volume de Abnas mortas. Mas nem mesmo temos um Alexandre Dumas vivo 4 nossa disposi¢éo, Assim, nés do terceiro ano do Insticuto nos transformamos num diretor ¢ criador coletivo de cinema. O instrutor é nada mais do que prinmus inter pares — o primeiro entre iguais. O coletivo (¢ mais tarde cada membto, individualmente) trabalha passando por todas as dificuldades ¢ tormentos do trabalho criativo, por todo o processo de formacéo criativa, da primeira indicagio fraca, vaga, do tema, até a decisio de se os botées da jaquera de couro do ultimo extra se adequam aos objetivos da filmagem. A tarefa do instrutor € apenas, através de um habil ¢ bem programado impul- so, emputrar © coletivo em diregao das dificuldades “normais” ¢ “frutfferas”, em- purrar 0 coletivo na diregao de uma apresentagio correta e distinta (para o préprio. instrutor) exatamente destas questGes, as quais, uma vez respondidas, levam & construgdo ¢ nao a infrutiferes palavrérios “em torn” do assunto. E assim que se ensina a voar num circo. O trapézio ¢ impiedosamente retido, ou entio 6 aluno encontra um punho cerrado em vez da mao que 0 ajuda, se 0 seu Himingestd cxrado. Nenhuum grande dano se ele ¢ projetado uma ou duas vezes para fora da rede de seguranga, nas cadeiras em redor da arena, Na préxima vez nio cometerd o mesmo erro. Com cuidado idéntico, em cada estagio do desenrolar do proceso ctiativo, 0 material secundério e a experiéncia do “pasado herdado” deve, no lugar apro- priado, ser postos nas mios dos confusos e assustados “guerteitos”. Isto néo é 0 suficiente, se nZo se tem & mao o exaustivo ¢ sintético gigante do cinema, que cada vez mais forma em seu prdprio terreno uma sélida técnica, mais forte que a “heranga do passada” ¢ que o “herdeito viva”. Em crés anos um curso sistemdtico sobre temas especiais substituiu, no Insti- tuto, um fino verniz de palestras esporédicas dadas por todo tipo de “proeminen- tes” profissionais do cinema. Estas pessoas corriam pata o Instituto como corriam para pegar um bonde, escranhas ¢ sem relagéo umas com as outras, exatamente como pastageiros de um bonde, correndo para a salda o mais répido possivel, depois de despejar por 45 minutos algo desconectado ¢ episédico. Entao eles safam da vista de scus espantados prostlitos, para a étbita de suas atividades privadas. Sirva-se! 95 Este “pequeno episédio” também teve de ser reconstruldo de um modo fundamental. Dentro do plano do curso geral, especialistas sio convidados, na hora apropriada, para trarar de casos definidos, concretos, num estégio definide do movimento geral do processo criative desenvolvido. Para tratar daquela questao particular em que é especialista. Tudo isto tem por objetivo um amplo projeto pelo qual o coletivo ou, mais tarde, 0 individual, é responsivel até 0 fim. Ac nos livrarmos dos “pequenos episédios” do plano de ensino, também nos livramos dos “pequenos episédios” dignos de pena preparados por formandos, Estes pequenos “ésudes” dos alunos, misceldneos ¢ lamentdveis, mas autogratificances, até mais curtos em inteligéncia do que j4 sdo em metragem, devem ser climinados por serem completamente improdutivos. Depois de trabalhar num projeto de formatura do nivel, digamos, de uma catedral, 0 arquiteto formado se vé em geral construindo algo acessivel a qualquer um — um banheiro, Mas depois de desenhar para sua formatura um pequeno pissoir,’ parece atriscado voltar-se para, sim, o que quiserem! E assim, ano apés ano, vemos isso acontecer com alunos formados no Instituto. Isto rem de ser fundamentalmente climinado. E verdade que na platéia um filme é dividido em episédios separados. Mas todos csscs episédios estéo pendurados na corda de um dnico conjunto ideolégico, composicional ¢ estilistico. A arte da cinematografia nfo esté na selegao de um enquadramento extrava- gante ou em captar algo por um surpreendente angulo de camera. A atte esté no fato de cada fragmento de um filme ser uma parte orginica de um conjunto organicamente concebido. Estas partes, organicamente pensadas ¢ fotografadas, de uma composicao geral e de amplo significado, devem ser segmentos de algum todo, e de modo algum études vagos ¢ etrantes. Nestes segmentos filmados, nos episddios nfo-filmados mas preparados planejados para precedé-los ou segui-los, no desenvolvimento dos planos ¢ listas de montagem de acordo com o lugar destas partes do conjunto — sobre tal base, a irresponsabilidade criativa sera realmente liquidada entre os estudantes. Do infcio ao fim, seu trabalho ser examinado, simultaneamente com demonstragées de até onde eles sao capazes de realizar na pritica 0 conceito geral firmemente planejado; apesar de neste estagio nao ser ainda o conceito individual do estudante, mas o conceito trabalhado coletivamente, isto jé ensina a ardua ligao de autodisciplina. Autodisciplina que seré ainda mais necessdria no momento em que 0 conceito for individual ¢ préprio. + Em fiancés no original: mictério. 96 A forma do filme ‘Mas antes de atingir este tiltimo estdgio, esta ultima fronteira, jé chegando a producéo fora da escola, os estudantes passam por uma longa lista de “especialistas” vivos € mortos. Num determinado estagio isto assumird a forma de uma longa discussio sobre © tipo, imagem e cardter dos personagens de seu projeto. As cinzas de Balzac, Gogol, Dostoiévski ¢ Ben Jonson vio se revolver cm tais discussées. Surgiré a questo da personificagio de tal tipo, imagem ou personagem. Aqui dependeremos da confissio de Kachalov sobre scu trabalho no papel do “Barao” em Os trés da rua Mechenskaia,'* Batalov conversard conosco, ou Maxim Shtrauch nos informard sobre a mecinica para criar Rubinchik em A rua da alegria, de Zarkhi. Movendo-nos através das florestas da construcao da histéria, dissecaremos com Akstnov os esqueletos dos elisabetanos, ouviremos Dumas, pai, e Viktor Shklovski? sobre o esbogo das estruturas da histéria, ¢ sobre os métedos das obras de Welunann. E entio, tendo repassado situacSes dramdticas com os falecides John Webster, Nathan Zarkhi ¢ Volkenstein, deveremos analisar como essas situagGes si0 colocadas em palavras, Alexei Maximovich Gorki provavelmente nao se recusard a nos iniciar nos métodos de escrever o didlogo para Basfonds ou Yegor Bulichev e outros. Nikolai Erdmann nos contars como séo feitas suas pegas. E Isaac Babel falard da textura specifica da palavra ¢ da imagem e da técnica do extremo laconismo dos significa- dos expressivos da literatura — Babel que, talvez, saiba na prética, mais do que qualquer um, o grande segredo, que “ago nenhum pode entrar no coragéo humano com um efeito tao forte quanto o de um ponto final colocado na momento certo”.'E ele pode falar de como, com este laconismo, foi criada sua inimitavel, maravilhosa (c longe de ser suficientemente apreciada) peca Sunset. Este € talvez 0 melhor exemplo de excelente didlogo dramdtico dos tiltimos anos. “Tudo isto surgird nos estdgios correspondentes do processo criativo, progres- sivo e Unico, de nosso diretor coletivo em seu filme. A fusdo dos estdgios separados com excursdes analiticas independentes nao é ao estranha. Construsio de tema c historia pode algumas vezes ser completamente independente do desenvolvimento cm palavras. Nao sie tanto O inspetor geral quanto Almas morras brilhances exemplos do desenvolvimento de histérias “inspi- radas” a Gogol por Pushkin? ‘A questo de um acompanhamento musical para os meios sonoros. A questio dos meios materiais. Andlise de vatios exemplos de nossa “heranga” também em outras dteas, ¢ cada qual a partir do Angulo daquela necessidade especial onde ela, ¢ peculiarmente ela, pode ser duplamente util. James Joyce ¢ Emile Zola, Honoré Daumier ¢ Edgar Degas. Toulouse-Lautrec ou Stendhal. Sirva-se! 97 E, demorada ¢ minuciosamente, secé analisada pelos especialistas marxista-le- ninistas a questo da correta formulagio ideolégica do problema do ponto de vista do tratamento do tema ¢ de sua compreensio social. Deste modo, esperamos afiangar quem, mobilizado pela experiéncia ¢ qualificado por um roteiro experi- mentado, serd capaz de criar filmes. Ea parte mais séria ¢ interessante deste trabalho —a parte central do trabalho ctiative do diretor — é treinar estudantes em “tratamento” e trabalhar com eles © processo de come isto acotre ¢ € feito. Trabalhamos essencialmente com uma trivialidade tio pouco experimental de obras pereebidas simplificadamente, que simplesmente no temos oportunidade de observar obras originais, vivas, criativas, que tém um tratamento e concepgio social intimamente relacionados, com a forma desenvolvida, Nossas obras estio num eal nivel de simplificagio que lembram o famoso desenho animado da fabrica de salsichas automatica: de um lado enttam caixas com algas contendo porcos, do outro lado as mesmas caixas surgem, agora contendo salsichas. Entre o esquematico ¢ descarnado esqueleto do slagan, e a pele vazia de firma externa, nfio hd camadas de carne e musculo vivos, tangiveis, Nao hd drgdos que atuem relacionados uns com os outros. E logo as pessoas se surpreendem porque a pele est4 suspensa de maneira disforme. E porque por baixo de sua lamentavelmente débil simplificacao despontam os ossos pontudos de uma percepdo mecanica das temiticas “sociais”. Sem came ¢ sem miisculos sufi cientes. Fis por que Yegor Bulichew ¢ outras, de Gorki, foi recebido com uma alegria tao undnime, Apesar de a obra ndo ter dado resposta a um problema bisico nosso: os homens e mulheres mostrados nele nao so ainda nostos, e de hoje. Continuaremos aesperar que eles surjam na mente de Alexei Maximovich.' Por outro lado, aqui hd carne. Aqui hé musculo. E esta carne foi feita hoje, quando a0 nosso redor, no palco ¢ na tela, néo existem “homens em caixas’, sobre 03 quais Tchekov escteven, mas simplesmente caixas sem homens. Enquan- to isso, firmemente empacotadas por citagdes vulgares, nossas obras parecem 0 arame farpado da cruel verdade, coberto de musselina — ¢ ficamos espantados porque o sangue nao circnla através dessas farpas, ¢ a musselina nao bate com pulso acelerado. Do sublime ao ridiculo basta um passo. De uma idéia subliminarmente estabelecida como premissa, formulada pot um slogan, a uma obra de arte viva — hé milhares de passos. Se dermos apenas um passo, obteremos apenas o resultado ridiculo de acomodar o Lixo do presente. Devemos comegar a aprender como fazer obras acabadas, ridimensionais, partindo dos padrées chapados ¢ bidimensionais com uma “ligagio direta” do slogan para a histéria — sem baldeagao.

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