Você está na página 1de 27
da psicologia/psicanalise nos estude sobre a loucura, da antropologia na estudo das festas, do imapinirio, ete. etc. Sem aprofundar mais esta exemplificagito, quero reforgar no entanto a idéia de que a interdisciplinariedade, nos dois sentides a que me referi é uma questo que merece nossa atengao quando discutimos os problemas da claboragaa de dissertagics‘teses, pois a0 mesmo tempo que é fundamental para a apropriagaio de nowas temdticas para a amilise histarica, fem a contrapartida de poder diluir 0 esforgo de investigagio nunta analise sem referéneins clacas ¢, portanto, com resultades também ambiguos, +e O tema das linhas de pesquisa c das dissertagdes, como se pode abservar € mullifacctado ¢ merece uma reflexto continuada em nossos Programas de pés-graduagiio. Concluindo este texto, espera haver trazida alguns elementos que provoquem a discussia destas quesides temas que sio vitais para 0 desenvolvimento de padréics de exccléncia de ensino ¢ pesquisa em nossos Curses © Programas de Pés-Graduagio em Histéria. lod anos SU em candigées de conhecer tais leis pela observagde, de Ihes prever os efeitos, conseqaentemente, de fazer convergir parao fim que se propée, descle que empregue essas fargas de maneira conforme a natureza clelas” fopud LOURO, 1983, p. 81). Pelo trecho acinva, pode-se peroeber que o autor nega 0 voluntarismo individual ¢ postula que a vinica agao possivel dos homens na histéria consiste em desvendar as leis da evolugdo social ¢ as par em marcha, Contudo, a sua tcoria, na forma como foi apropriada pelos historiadores, acabou privilegianda a atuagiia dos grandes omens e, portante, dando destaque io género biogrifice. Tal apropriagao deriva de alguns elementos intrinsecos a0 pasitivismo. Inicialmente deve-se salientar que a historia feita com esta perspectiva enfoca predeminantemente 9s acontecimentos polilicos © tem por base uma abordagem empirista dos documentos pitblicos ¢ oficiais, j4 que os historiadores pesitivistas aspiratm a uma relagto neutra ¢ objctiva com o passado. Em consegitéacia, apreendent sobretudo as ages individuais cos lideres politicos, inais visfveis cm tais foules. Aléin disso, devido 4 sua inspiragio politica conservadera, segundo a qual eabe acs mais capazes ditigirem a sociedade, esta historiografia cemtra seu foco nos homens ligados 4s elites politicas, mililares, sociais © cullurais a quem se alribui o fazer da historia Partindo destes referenciais, os bidgrafos positivistas eclebram os herdis da sociedade, dignes de servirem de exemple pira seus contemporaneos. Interessa a estes pesquisadares os atos piiblicos ¢ as seitos woldveis dos personagens enfocadas, dispastes em um ‘a cronalégica e linear, que aponte pata a evolugio ¢ para o progresso que (ais individuos experimentaram ao longo da vida. ‘Um exempla de trabalho preduzido com este enfoque €0 livro "Siemens ifustves clo Rio Grande do Sul”, escrito pelo historiador positivista gavicho Aquiles PORTO ALEGRE (sd) e publicado inicialmente em 1917. Nesta obra, 0 autior constréi uma séric de biografias de “rio-grancenses notavets” visanda “a educagdo civica dos nossos jovens patrieios, poneo-lhes diente dos olhos exemplos dignos de serem imitaclas” (p. 13) Na biografia de Jolio de Castilhos, por exemplo, Porto Alegre diz. queo mesmo “of um eestes intividuos excepcionats, vindos an mundo para servirem de exemplo™ (pp. 93-94) cum "super homem de seu partide” (p. 99). Neste texto é explicila a perspectiva clitista do autor - “# alnas, domind-las, dirigi-fas™ ~ © a idéia de que os “grandes homens” conhecem a “nareha da histéria” quanda compara Castilhos a um "profeda (p. 94), Saliento ainda que a atengio do autor recai exclusivamente sobre a je nascen pare cativer 167 apontam pura problemas que esto no centro do debate historiopriiflin contemporanco: as relagées entre individuo © sociedade, entre unl fragmentagiio do social, entre narragdo ¢ explicagao ¢ entre piiblico © privat para citar alguns exemplos, Visando colaborar com esta reflextio, examina, no presente artijeo, os seguintes t6picos; | - a trajetéria da biografia em trés importantes correniten que marcaram o conhecimento histérico a partir do sécula XEX: 0 positivist 9 marxismo ¢a Escola dos Anais; 2 - 0 resgate atual do géncra no Ambit a nova histéria francesa, do grupo contemporaneo de historiadores britdinicos ie inspiragdo marxista, da micro-hist6ria italiana e da psico-histériay 4 - 0% principais problemas que normalmente se colacam ao pesquisador inveressand em realizar uma pesquisa biografica ¢ 4 - a praposta de se constrain Wi) biografia a partir da perspectiva da vida colidiana Obviamente que o cxameaprofundado de tais quesides demandaria vin levantamento bibliografico mais exaustiva ¢ uma reflexdo mais refinada do que 0s possiveis nesic espago, Meu objetivo é sobretudo mapear um €: trabalho, através do exame de algumas obras significativas, sintetizande ¢ analisanda pontos que normalmente aparecem dispersos na bibliogeatia L- A TRAJETORIA DA BIOGRAFIA NO AMBITO DO CONHECIMENTO HISTORICO. Segundo LIMA F.. “as relagdes entre a biografia e a histéria séio tito anligas quanta a propria histéria enquante disciplina” (1994, p. 2), Assim, a investigagao sobrea trajeléria deste género deveria ter come panto de pariida, pelo menos. a Antigitidade Classica, Porém, uma abordagem de tal extensio ullrapassa os limites possiveis ao presente artigo. Por isso, inicied minha analisc no século XEX, quando a hist6ria se constituiu enquanto disciplina autonama € com prelensdes cientificas, A partir dai, privilegici irs correntes. que influenciaram profundamente 9 conhecimento historico contemporineo: o positivismo, 9 marismo ea Escola dos Anais Auguste Comte, findador da positivismo, assim se pronunciou sobre 0 papel do individu na historia: “Em geval, quancdo 0 homem parece exercer uma grande influencia, née &, de modo algum, por stes préjprias forgas que sto mutto poucas. Sda sempre forsas exteriores que agem par ete, segunda leis sabre as quais ete nada pode, Todo o seu poder reside na inietigencia que 0 poe 166 Ainda neste sentido, LOURO comenta a posigiio de Engels sobre a relagio entre indivfduo e histérla. Para cla, o autar “Chama atengdo pare que 0 historiador se preacupe menes com os grandes homens ow com seus motives sim mais com as agdes éontinuadas que se iraduzent em grandes ransformagbes historicas, A histivia no é feila pelas decisdes desses homens iudividuatmente, come também nto & resultado de algo que estd fora deta. Os homens fazem a histéria dentro de un contexte especifica, com determinccda base econdmica e lute de classes. Engets afirma mesnio que o sungimento de um grande honem em delerminado lugar 8 casnebidade & assim, se ele fosse suprimide, haveria a neeessidacle de substitti-to ¢ ouiro entde apareceria" (LOURO, op. cit, p. 84). Percebe-se, assim, por que, na historiageafia marsista, a biografia foi considerada como wn génere menor, Afinal, qual seria o sentido de se esiudar trajetérias singulares se as mesmas tm wm peso minime, ou nula, na explicagao das tramas histérieas? Par que resgatar os individuos se estes podem ser facilmente intercambiiveis? A Escola dos Anais cmergiu como uma reagiia @ historiografia de inspiragao positivista, Os historiadores deste grupo, surgida cm 1929, combateram a histéria politica tradicional, entrada na atuagio dos grandes homens; prapuscram a colabor cincias humanas menos alcntas as agées individuais (especialmente a geogeafia, a sociologia ¢ a economia), introduziram a nogio de hisiévie-problenra ¢ reivindicaram uma histéria-total, preacupada com todos as aspectas do fazer human, Em sua fase inicial, que vai aproximadamente até «a Segunda Grande Guerra, houye espage para a produgiio de estudos biagraficos, principalmente por parte de Lucien FEBVRE, um dos fundadares da revista Annales, Poréin, seus trabalhios sabre Latero (1956), Rabelais (1974) ¢ Margarida de Navarra (144) diferenciam-se substancialmente das biografias positivistas, Neste sentido, deve-se salicutar que o autor redux a awlonomia dos grandes personagens, inscrindo-os no contexto em que viveram, visto aqui come um limite para a livre atuagia individual, Nas palavras de FEBVRE, “f...) 0 individuo & sempre o que sua épace eo seu meio soctal permitem’” (sid, p 221) Alémn de inserir os personagens enfocados em redes sociais mais amplas, Febyre os oma como pontos de partida para reflexaes sobre temas abrangentes, ais comma: 0 protestantisma, no caso de Latero; a possibilidade do ateismo no 169 trajetéria pitblica do biografada, descrita como uma evolugdo linear: da Vil) académica na Faculdade de Dircito em Sio Paulo até a gidria na presideiicla do estado do Rio Grande da Sul. Esta forma de se encarar a historia ¢, conseqiicntemente, as biownillian praduzidas sob sua égide, foram fortemente contestadas pelo marxisino ¢ poli Escola dos Anais. Marx encarava a histéria como um processo de descnvolvimento di individuo que s6 se completaria com 9 fim da sociedade de classes; até entiha a mesma se daria através de relagSes sociais que silo “indispenceveiy independentes davantade dos horrens" (apd LUKES, 1988, p. 192), Segunlo fal concepedo, © primiro fata bistérico nde é o hamem mas sina necessidacle de producao da vida material: “os homens tert uma historia pelo fate de servi brigados a produzir sua vida e de terem de a fazer de um determinado moa 60" (MARK, od, p. 35) Comentarde a postura marxista sobre o tema, diz LUKES: aquante flosofia da histéria (...) @ marxiswo propde uma teoria do desenvolvimento de individa, como, aliés, muftas outras teorias do sécila XIX, Como eténcia soctal, rejeita as explicagdes claboracas vn fermos das propésitos, attitudes & crencas individuals, preferindy consider a-las, clas préprias, como maiéria a ser explicada”™ (LURES, op. eit.) Em termos gerais, pode-se dizer que o marsisme descontrou o individue ha sua explicacdo da sociedade ¢ da transformagdo social, condicionando a aluagao desic a una determinagso mais ampla; a producain das condigces matcriais de existéncia, Por isto, as anilises histéricas construidas com tal inspiragéio enfocam sobretudo as grandes estruturas sociais, sobretude a infra. esirutura cconémica, ¢ 6 movimento de sujeitas coletivos, iis classes © proprio Mars ilusira esta perspestiva uo livro “O78 Brumdrio ae fuis Bonaparte” (1978). Emborao titulo remeta a um personagem individual, O meso BAG Assume, ao longo da narraliva, a papel de protagonista, Dermanecendo subsumido a dindmica da tua de classes. Diz 0 autor: “Os fomens frcem suc propria histéria, mas ndo a fazem como querem: nto a fazent sob cireunstdnchas de sua excolhee sii sob aqnetas com gue se deffoniam divetamente, legadas ¢ transmitidas peta pasado" (p. 329). Por este molivo, Segundo cle, Luis Bonaparte nao ascendeu ao trano devido as suas qualidades bessoais; ao contrario. foi “a iuta de classes na Franca [quel crion Cireunsténicias ¢ comdicdes que posstbilitaran a und personagem mediaare ¢ Srotesca desempenhar un papel de heréi” (p. 325). 168 2- O RESGATE ATUAL DO GENERO BIOGRAFICO PELOS HISTORIADORES Nos ditimos anos, sobretudo a partir da década de 80, assiste-se a um redespertar do interesse dos historiadores pelos estudas biogrificos. As razties deste fito sto variadase relacionam+se tanto com @ contexte social da disciplina quanto com a sua tcansformagio tedrica. Em terms contextuais, deve-sc considerar que a massificagio da sociedade contempordnca (cm como contrapartida a procura da identidade individual, ou soja, os homens voltan-sc aa passada em busca de referenciais para sua conduta no presente. Além disso, a crise atual do cspago public - evidenciada pelo individualism exacerbado ¢ pela critica as formas tradicionais de participagiio politica ¢ social - faz com que as pessoas se interessem por vasculhar minuciosamente a viela privada das outros, sobre(udo dos personagens destacndos, 0 que (alvez explique 0 grande sucesso editorial das biegrafias. Obyiamente que este interesse repercute na produgaa des historiado No Abita tedrieo, a volta da biografia est relacionada com a crise da paradignta estruturalis(a, que havia orientade uma parte cansiderdvel da historiografin a partir dos anos 60. De acordo com esia vertente, a histéria deveria, “antes de mais nada {...) identificar as estrituras e as relagdes que, ladependentemente das percepedes e «das intengdes dos individuos, comand as mecanismas econémicos, organiza as relagdes soctais, engendram as formas do discurso”. Em contrapartida, os historiadores atuais “quiseram restaurar 9 papel das indivtdwos net coustrusdo dos lagas sociais” (CHARTIER, 1994, p.p. LOL ¢ 102), Assim, a recuperagiio dos sujeitos individuais pelos historiadares pode ser vista como uma reagiio aos enfoques excessivamente niacro-estruturais, descarnados de éumanidacde, que carasterizaram boa parle da medernidade histeriogréfice: 0 modo de produgiio de Marx ¢ a longa duragao de Braudel, par exemplo, Metodologicamente, esta mudanga implica no reco da hisiéria quantitativa e serial © na avango dos estudos de caso ¢ da migra histai Por fim, no circulo maisestritamente académico, € importante salicntar a aproximagao da his(6ria com a antropologia, na qual o resgate das histérias de vida j4 é uma praxe; © com a literatura, preecupada com as técnicas de construgao das personagens O retorno da biografia é um movimento internacional € perceptivel em diversas correntes hisloriograficas recentes. Analisarei, nesta scqao, algumas das que mais se destacam na renovaciio de género, quais sejam: a meya historia ss Ww século XVI, no caso de Rabelais, ¢ a relagao entre religiia ¢ moralismo na thesia centtiria, no caso de Margarida de Navarra. Enfim, cm uma perspectiva de histéria-problema, as biografias febvreanas nao se csgolam em si mesmas mas seryem como vias de observagao da Sociedade. Com oinisio da Era Braudel, a biogratia perdeu seu espago nos Annales. A maioria dos historiadores deste grupo voltou-se para a histéria econétaica ¢ social, influengiades, cm termos contextuais, pelos problemas da recuperactio européia do pés-guerra e, cm termos (céricos, pelo paradigm esteuturalista. Fernand BRAUDEL, cm artigo célebre de 1958 (1990), afirmou a existéncia de pelo menos trés temporalidades na histéria: 0 tempo curto dos eventos ¢ das agdes individuais, 0 tempo médio das conjunturas © 0 tempo longo das estruturas. Para cle, a primeira temporalidade é a do jornalista por sera mais superficial e caprichosa, devendo o histariadar ocupar-se dos ciclos médios¢ das “prisdes de fonga duragao”, Em seu livro mais importante (1983), profundatiente infuenciado pela geografia, © autor (omou como ponte de referencia um grande personagem. o rei da Espanlia Felipe Il, Porm, como afirma LE GOFF, “na céiebre tese de Fernand Braudel, o herdi é o Mediterraneo 2 ndo Felipe i], mas agui Braudel se distancic com efeito de seu mestre Febvre, 0 descarte do grande homem e de biografia pertencem mais 4 fase braudeliana dos Anmates que ao periods inicial” (L989, p, 49) Metodolagicamente, a segunda fase da Escola dos Anais foi marcada pela quantificagio, em. que qualquer age humana servia como um dado para a construgao de amplas sétics estatisticas, ainico meio capaz de captar os movimentos de longa duragio. Imbuidos deste espirito, Pierre CHAUNU (apr ANDRES-GALLEGO, 1993, p, 20) ¢ LE ROY LADURIE (apud STONE, 1991. pp. 36-37) prockimaram a morte da biografia, Segundo este iltimo, (..) @ historiografia atwal fescreve em 1972], com stia proferéncia pete quaniificdvel, pela estatistica ¢ estrutural, fal abrigaca a eliminar para sobreviver Nas tltimas décadas, cle praticameme condenon @ morte (..) a blografia individwad”. Enfim, ao criticarem a Nistoriografia de inspiragaio positivista, na qual a biogtafia ocupava um lugar de destaque, tanto os historiadores marxistas quanto es da Escola dos Anais. sobretudo na fase braudeliana, acabaram menosprezando as possibilidades deste géacra e optando par enfoques macro- estraturais ¢ lotalizantes. Segunda CHAUSSINAND-NOGARET, a biografia foi vista como “o imadefo de historia wadteionsl, mais senstvel d cronologia & Sranisies homens que ds estriuturas © as merssas” (1986, p, 86) ee 170 “¢..J eu podia ser acusada de trair o ‘espirito dos Annales’. Mu era, com ufeite, o primeire dentre os epigenos de Marc Boch # Lucien Febure escrever a biografia de um ‘grande homem Mas wa realidade aacei ndo me desviava nem um milimetro de met percurso. A tinica modificacdo = das mais importantes, reconheco «= diziarespeito a forma. Eu estava voltande sem rodeios & narrativa, Contavar ume historia, seguinde o flo de wm destino pessoal. fas continuava atendo-me 4 histéric-peoblema, & historia questdo. inka pergumta continuava sendo a mesmia: que é a sociedade feudal ?” (1993, p.p. 137-138). Guilherme Marechal, portanto, diferencia-se profundamente das biografias (radicionais de corle posilivista pois ndo se limila a narrar factualmente os diversos momentos da vida de um individuo. Procura, pelo contririo, examinar, na dimensio da individualidade ¢ por dentro da narrativa, quesiées mais amplas da sociedade feudal tais como: a constituigao das redes de vassalagem, as relagées de poder, o papel da mulher e dos fillhas nas familias da nobreza, as concepgdes sobre a morte, entre autros aspectos. Enfim, o autor nao considera Livra come uma ruptura na sua trajetéria intelectual, j4 que os problemas continuam os mesmos das pesquisas macro-analiticas por ele realizacas, mudando sim o faco de observagao c a forma de expasigito dos resultados, Eni suas palavras: “6.) 0 particular (...) 86 me interessava quands me taformava sobre 0 coletiva, Overdadeire tema do livre udo é Guilherme, mas a cavalaria, seu ideat, ax vatores que eta afirmava respeitar, E também wnt sistema polities, o ‘fendalisma’, pois através desse caso concrete e firncionainento de suas engrenagens pade ser descoberto com muito maior clareza que wos tratados au nas cartas” (4993, p. 137) Concluindo: na nova histéria francesa, a volta da biografia associa-se com autras voltas (no caso do livro de Duby, a volta da narrativa), Contude, este relorno nao significa a reiomada de superados enfoques tradi sim a reapropriagio de antigos géneros cm fungiio de uma problemdtica renovada, No que tange A bingrafia, ela é considerada como uma via para a observagao de problemas mais amplos, inserindo-se, assim, na perspectiva de hisiévia-probleme da tradigiia dos Anmates O grupo contemporanco de historiadores britinicos de insp murxista constituiu-se nos anos 40, congregando historindores coma Eric Hobsbawm, Edward Thompson e Christopher Hill, ligados ao Partido Comunista da Inglaterra (PCD. Em 1956, com a invasita da Hungria pela jonais mas francesa, o grupo contemporaneo de historiadores britanicos de ‘ta, a micro-histéria italiana ¢ a psice-histéria. A nova histévia francesa corresponde a terceira geragao que assumin a diregao da revista Armales, reivindicando a heranga ¢ a continuidade da Escola. Uma das caracteristicas deste grupo o in(cresse por géncros que haviam sido desprezados pela tradi gio das denefes, sobretudecm sua fase brauceliana, Proclamam, entdo, a volta do acontccimento, a volta da hisl6ria-narrativa, a vella da histéria politica ¢ também a volta da biografia. Contudo, como afirma LE GOFF, “esses voltas sta equivocos. Se cada uma delas pode ser aceita bela nove histéria ese as partiddrios da nova historia ndo raro detas deran o exempta, & porque cade um desses géneros histéricos (ou quase) volta com uma problemitica prafiundamente renovada”™. Especificamente sobre a biografia, diz o autor: “...) a biografia histérica nova, sem reduzir as grendes personagens a wma explicagde socioligica, esclareee-as pelas estruturas e estuctir-as através de suay fangdes ¢ seus papéis” (1990, pp. 7-8) Porém, ndo siio apenas “as grandes personagens” que merecem a atengao dos novos historiadores. Alids, um dos tragos mais significatives do género bingrifico ma atualidade & a sua extensio A geste comm. aos populares. Comentando este fato, afirma BURKE, “o renascimento [da biegrafial néo é Simplesmente unt retorno ao passaco. A biografia historia & praticada por diferentes razbes e assume formas diferentes. Pade ser o meio de entender a mentotidade de um grupo. Unia dessas formas é a vida de individuas mais oie uienos comms” (L991, p.p, LO3-104). A wajetéria de wm dos expoentes deste grupo, Georges Duby, ilustra a problenvitica cnvolvida no resgate da biografia pela nova histéria francesa Duby, 1edicvalista, realizou seus primeires traballios seguinde a tradicaa da histéria ccondmica ¢ social dos Aniales, Sua tese, publicada em 1953, teve come Lema a sociedad na regitiode Macon, Posteriormente, a partir da década de 60. sous estudos voltaram-se para.o mbit das mentalidades, das ideologias, da roprodugao cultural ¢ do imaginario social (of. BURKE, op. cit., p.p, 86-88 eDUBY, 1993), Em 1984, 0 historiadar publicou uma biogratia de Guilherme Marechal, cavaleiro que foi regente da tei da Inglaterra Ricardo IIL (DUBY, 1987). A obra ¢ escrita como um romance, sem pausas analiticas © com as sitagdes documeutais, nfo referenciadas, intercaladas com a fala do autor. A harrativa acampanta a vida de Guilherme que, partindo do nada, morteu rico e celebrade coma o “melhor cavaleira de mundo Sobre o livro, comenta DUBY: 172 Contudo, nao deixa de articular a atuacdo do individuo biografado com a comtexto no qual esta se realizou: ‘Fm velagae ao sécuto XVIL as décadas decisivas sito as de 1640.4 1060. Nelas, a figura preponderante ¢ Oliver Cromwell, Oualquer estude sobre sua pessoa, par conseqiéncia, nde serd apenas biografia de uni grande homem. Deverd incorporar os acantecimentas da épaca ent que efe viveu ¢ que se reveleram cruciais para 0 postertor desenvolvimento da fnglaterra e de seu império. Espero sugerin neste estuclo, algunas das inplicacdes gue decorreram dos atos de nossa biografada” (p. 14) © embasamenta marxista de Hill faz com que sua andlise privilegic a insergito classista de Cromwell, Assim, este time é considerado como um precursor dos “grandes pleheus”. ou seja, da burguesia inglesa: “Crownrel prefigura os grandes plebeus que se efevariant por seus préprios méritos € governariant a Inglaterra na século NVITE (p, 232). Finalizando, nota-se que o livra de Hill aproxima-se, por algunas de suas caracteristicas (sobreludo 0 enfoque politico ¢ a organizagiio cronolégica da narrativa), das biegrafias tradicionais. O diferencial ¢ a tentativa constante de relacionar o personagem analisado com o seu contexto, privilegiando-sc neste Gllimo, a agiie das classes sociais e também as conflitas religiosos, A micro-histéria italiana é, sogundo LEVI, “essenciafmente uma praticn histeriogréjica em que suas referencias tedricas so variadas ¢, ent verlo sentido, ecléticas” (1992. p, 113), Tal pritica difundiu-se internacionalmente a partir dos anos 70 c, sabretuda, nes 80, mas seu nticlea original & constituido pelo grupo dos historiadores italianos ligados i revista “Quaderni Storici” Esla tendéneia apresenta-se come uma das possiveis solugdes para a crise dos grandes sistemas explicalives, rejeitando poréi as vertentes invacionalistas ¢ estetizantes que emergirm aa historiogeafia recente no Ambita da chamada condigio pés-modera, © problema fundamental da micra-historia diz respeito a eseala de observagiia dos problemas pesquisades. Nas palavras de LEVI ¢op. cis.) “A miceo-histiria como una priticea é essencialmente baseada Go ua escala de observagde, em ume andlise microscépica e ent wn estucte intensive do material documental” (p. 136), “Parca micro-histirka, a redugdo da escala é um procedimento Unido Sovictica ea revelagia dos crimes stalinistas, a maior parte deles desligou-se do Partido. & partir dai, scm abandonar o marxisme, passaram a icar determinadas ortodoxias dessa corrente teérica ¢ a incorporar lemas até entilo pouce explorados pela mesma comoa histéria do movimento aperario ou da cultura popular. Uma das preocupagses fundamentais destes pesquisadores é a recuperagiio da dimensao subjetiva dos processos sociais, negligenciada pelas tendéncias estnuturalistas do imarxismo. E. P. THOMPSON, por excmplo, em scu livro “A formacao dé classe operdria inglesar” (1987), rejeila a nogio cconomicista de chasse social = “ume quanticeacde de homens que se encaniva numa cera proporedo conn os weios dle produgita” - e-considera que a mesma & “an fendmens histévico que unifica tuna série de acontecimentos dispares 2 aparenteniente desconectactos, tanto na matéria prima da experiéncia came na consciéacia” (p.p. 9 ¢ 10) Embora nia seja um estudo biagraficn, “vl formagdo... ” revelao interesse do autorem “¢.... avatiar o papel das excofhas ¢ das acdes conscientes dos sores bumanos na hisibria” (HALL, 1987). Tal objetive evidencia-se no profiicig da obra “Esiou tentande resgatar @ polire tecelao de mathas, 0 meeiro sudiite, © fecelao do ‘pasolete’ tear manual, o artesiio ‘uidpico' e mesino o iledido seguidor de Joanna Southcall, dos imensos ares supertores de candescenténeta de posteridade. Seus aficios e teadigoes padiam estar desaparecencda, Sua hostitidade frente aa nove industriatisine podia ser relrégrada. Seus ideais comunitérios padiam ser fantasiosex. Snas conspiracdes insurrectonais podiam sex tenerdvias, Mas eles viveraun nesses tempos de oguda periurbagao social, ends nie. Stax aspiragbes eran validas nas fermos de sna propria experiencia: se foram vitinias aeidentais da historia, continuant a scr, comdenacios em vida, vitimas acieeniais” (p. 15), Neste trabalho, portan(o, o autor resgata as experiéncias individuals como constitutivas do fazer-se da classe operiria inglesa. Christopher HILL, pelo angulo da histéria politica, escreveu uma biografia de Oliver Cromwell, lider da Revolugdo Ingiesa do sécwla XVIL (1988) Nea, o autor destaca a importincia decisiva da agio do personagem para a historia da Inglaterra como, porexemplo, na seguinte passagem: “assim, pare 9 bem ¢ para o mal, Oliver Crounvell presidin as grandes decisiies que determinaram a fitura trojetéria da histéria inglesa e imindial” {p. 232). Ox Ca) en sLIGS centrado em uma trajetéria singular, ¢ busca apreender diversos aspecios da vida do personagem cnfocada: "/..) suas idéias ¢ sentimentos, fantasias e aspiragbees, (J suas alividades econémicas, ..) @ vida de seus filhas” (p. 16), Por fin, fica explicita no livro a perspectiva classista que orientou a pesquisa = “una andlise de classes é sempre melhor que una interclassista” (p. 32} +, 0 que aponta para 0 cmbasamento marxista de Ginzburg. Jaa psico-histéria nifo é exatamente uma tendéncia recente c nem tem uma acionatidade definida. Refere-se, de modo geral, aos historiadores que, em diversos momentos ¢-m diferentes lugares, buscaram no instrumental da psicologia © da psicandlisc elementos para explicar as agdes humanas na historia Segundo SZALUTA, “a ponte jarte da psico-histéria é a biografia, nesta categoria do campo da psico-historia (..) que a teoria é mais deseavolvida e Jambém 6 onde se fazem os trabalhos mais desenvolvidos ne ponta de vista da psico-histéria”” (1987, p, 108). Afinal, sc uma parte considerivel do instrumental da psicologia foi pensada cm fungao de situagdes individuais, nfo &.2 foa que o mesmo scja aplicado na histéria prefereucinlmente ao estudo viografica O proprio FEBVRE [oi influenciado pela psicologia de Charles Blondel ¢ Henri Wallon, escrevendo diversas artigos nes quais discutia as relacécs entie estes campos do suber. Segunda ele, “fa psicologia, conhecimento 0 da fingédo mental, [deve] necessariamente (..) mauter relagdes conlinuas con as disciplinas mal definidas que confundinos sob o nome iradicionel de Historia {...)” (sd, p. 205) O maior represcntante atual da referida tendéucia é 0 historiacor alemao, aiiando nos Estados Unidos, Peter Gay, embora o mesmo ngio adinita 0 rétula do psico-historindor: “wen objetive ¢ infegrar a psicotogia a histéria, Nao se trata porianto de psice-histéria (..), pas de historia informada pela patcandlise, Hai ad une diferengal” (GAY, L988, p. 17), Esla posiura deriva de sua critica aos reducionismos da psico-histéria que, muitas vezes, descontextualizando os personagens, levau ein conta apenas as pulses internas das mesmos, Porém, de acordo com a definigao geral de psico-histéria por iim proposta neste artigo, pode-se enguadrar 0 autor em tal corrente. Gay buscow na psicanilise freudiana elementos para analisar a relagdio dos individuos biografados cont os scus contentos. “6.20 historiacor traz para a vida sobre a qual estd escrevend on pare as passagens biograficas que afustad sua narrative ov andlise, unt Comprowietimente com a meio social relevante, wna senstbilidade informada e treinada sobre as niundos nos quais 0 sew objeto vivew. WF centrado em uma trajétéria singular, ¢ busca apreender diversos aspectos da vida do personagem enfocado: “(...) suas idéias e sentimentos, fantasias € aspiragies. (...) suas atividades econdmicas, (...) a vida de seus filhos” (p 16). Por fim, fica explicita no livro a perspectiva classista que orientou a pesquisa - “uma andlise de classes é sempre melhor que uma interclassista” (p. 32) -,0 que aponta para o embasamento marxista de Ginzburg, Jaa psico-histéria ndo é exatamente wma tendéncia recente ¢ nem tem uma nacionalidade definida. Refere-se, de modo geral, aos historiadores que, em diversos momentos ¢ em diferentes lugares, buscaram no instrumental da psicologia ¢ da psicandlise elementos para explicar as agées humanas na historia Segundo SZALUTA, “o ponto forte da psico-historia é a biografia. nesta categoria do campo da psico-histbria (...) que a teoria é mais desenvolvida e também é onde se fazem os trabathos mais desenvolvidos no ponto de vista da psico-historia” (1987, p. 108). Afinal, se uma parte considerdvel do instrumental da psicologia foi pensada em fungao de situagdes individuais, néio é a toa que o mesmo seja aplicado na histéria preferencialmente ao estudo biogrifico. O préprio FEBVRE foi influenciado pela psicologia de Charles Blondel e Henri Wallon, escrevendo diversos artigos nos quais discutia as relagdes entre estes campos do saber. Segundo ele, “(..) @ psicologia, conhecimento cientifico da fungéo mental, [deve] necessariamente (...) manter relagdes continuas com as disciplinas mal definidas que confundimos sob 0 nome tradicional de Historia (..)” (s/d, p. 205). O maior representante atual da referida tendéncia é 0 historiador alemao, atuando nos Estados Unidos, Peter Gay, embora 0 mesmo nao admita o rétulo de psico-historiador: “mew objetivo é integrar a psicologia a historia. Nao se trata portanto de psico-histéria (...), mas de histéria informada pela psicandlise. Vai ai uma diferenga!" (GAY, 1988, p. 17). Esta postura deriva de sua critica aos reducionismos da psico-histéria que, muitas yezes, descontextualizando os personagens, levou em conta apenas as pulsdes internas. dos mesmos. Porém, de acordo com a definigaio geral de psico-histéria por mim proposta neste artigo, pode-se enquacrar 0 autor em tal corrente. Gay buscou na psicanalise freudiana elementos para analisar a relagiio dos individuos biografados com os scus contextos. (...) 0 historiador traz para a vida sobre a qual esta escrevendo, ou para as passagens biograficas que ajusta é sua narrativa ou andlise, um comprometimento com o meio social relevante, uma sensibilidade informada e treinada sobre os mundos nos quais 0 seu objeto viveu. amos OO 177 Espera-se que possia, ¢ exika, um sentido firme, profissionalmente disciplinado sobre 0 espago ¢ 0 tempo, sabre as possibiidades e coergées piblicas. Obviamente, ndo se pode usar uma psicologia que o deixaria atolado nox dominios exoléricos de pulsdes fantasimiticas e em dramas mentats misterioses que devem ser decifrados. Mas a psicologia psicanalitica, embora as vezes possa ser pensada assim, & nucle menos isso. : Freud construit as trithas que ligam a biografia & histéria a partir dos materiaix humanos mais fundamentais: amor ¢ ddio. KE: apenas, acreditow, permitem aos grupos imparem lagos sdlides que fornan os scus membros stbmissos, ativos € intelerantes” (1289a, p. 125). ses Ao tralar das experigncias afetivas da burguesia no século XIX, o autor novamente abordou as rclagécs entre individuo e sociedade 178 claro que a rigor ndo houve experiéncia burguesa na sécula NIN nem em qualquer outro: howve tio-somente experiéncias de burgeeses. Conforme & do conkecimento de todo historiador imbuldo- de alguma tendéncia psicanalittc, a experiéncta de wnt indivtduo aifere, ainda que levemente, da experioneta de qualquer outro. Eserever IN, introduzir-ne téo a historia da experiéncia burguesa no século | inquisitivanente quanto for possivel na menialidade da classe mécia, inplica arriscar-me a generatizagtes bastante arrojadas. 85.0 idividio ama ¢ odvia, aprimora seus gastos na arte ¢ 10 mobilidrio, sente-se coniente nos momentax de reatizagde, ansioso em tempos de perigo e furiose com os agentes que the provocam alguma privacdo; sé 0 Individua se regozija como pader ou tanga sobre a mundo sua vinganga, O mois 6 metifore. Cina merdfora todavia necessiria, Poix todes os seres huananos compartithan pelo menos sua humenichade - suas paixdes, sua trajetoria emrdiregao a maturidade, suas necessidades irreprimiveis, E cada quad estabelece seus lags saciais, pertence acufturas parcicis que 0 expoem a conjuntos previsiveis de experiéncias, os quais constituem familias suficientemente semethantes entre si para seduzir o histortadar a enilir fulgamentos coletivos, A filingdo religiosa, a vizinhanca urbana, a comunidade tingwistica &, no séeuto 4 WN, a ofasse social, motdan 0 indivicuo de forma a tornd-lo reconhecivel como membro de diversas saciedadtes, (...j E por isso que ox meandros a psicancilise, suas teortas € suas técnicas, podem constrtir justamente aquela poute entre a experiencia Individual ea coletiva (..). Pots 0 individuo, visto pela Gtica psicanalitica, & wn indivicue social” (L938, p, 22, grifo meu). Assim, cocrentemente com o modelo freudiano, Gay procura demonstrar que delcrminadas experiéneias individuais podem ser gencralizadas, ainda que de forma metafori que os seres Inumanos possum uma esséneia: a sua fumanidade, Esta thima s0 se realiza concrctamente nas diversas “eulturas parciais” ~areligiio. lingua, a classe social - das quais cada pessoa participa, © que determina certas regularidades que podem ser apreendidas pelo historiadoz, E neste sentido que sc torna possivel fazer a ponte entre as “experiénoias de burgweses” ¢ a “experioncia burguese Esic historiador utilizou-se do metodo psicanalitico para biegrafar 0 fundador da ps ise Sigmund Freud (1989b). Com tal objetivo, analisou 0 soles por ele registrados, as associagdes de palavras c es atos falhos eXpressos ct cartas pessmais ¢ nos Iralades cientificos. Porém, niio limitou a investigag’io & subjetividade do porsonagem mas sit procurow analisar sua insergao familiar, profissional, cultural, social, entre outros aspectos. Diz 0 autor (ou) nde Kesitel em empregar suas descobertas (de Freud}. ¢ na medida do possivel seus métodos, para explorar a histéria de sea propria vida. Mas no permiti que elex monapelizassem minha arengas, Como historiadon, situet Freud e sua obra nos varios contextos relevantes: a profissde psiquidtrica que ele subverseu e revolucionon; a cuitura austriaca em que foi abrigado a viver coma judeu descrente ¢ miédico pouco convencional; a sactedade curopéia que, durante a ict dle Freel, passow polos terrivets traumas da guerra ¢ da citadura toralitivia; @ a cultura ocidemtal como we todo, wa cultura cuja percepgéo de si mesma ele transformou irreconhecivelmente para sempre” (p. 17) Enfim, ¢ possivel constatar que a psico-historia na atualidade tem como meta fundamental desvendar os caminhos que ligam a subjetividade individual ao contexte social. Realizar un balango de conjunta destas diversas correntes © autores pode ser tcimeritio. Afinal, se slo perceptiveis os pontos de comiato entre cles, nao o sda menos a variedade de preocupagdes ¢ as diferengas de enfoque. Contudo née me furtarei de indicar alguns tragos comuns que caracterizam a género biogrifico na atualidade, pelo menos no campo do conhecimento historico. Em primeiro lugar, a preocupagdo central dos bidgrafos continua sendo desvendar os miiltiplos fis que ligam um individue ao seu contexto, sem cair nem no individualisma exacerbado (como nas biografias tradicionais), nem na dcterminagao estrutural estrita (como nas andlises marxistas © braudel Assim, diversos estudos biograficos contemporineos buscam relaciona personagens enfocados com dimensdes saciais mais amplas. Par exemplo: Guilherme Marechal. com a cavalaria medieval; Cromwell, com os grandes plebeus ingleses do século XVIT; Menocchio, com a cultura camponesa do século XVI. ¢ Freud, com a cultura ¢ a sociedade européias do sécule passado. As estratégins para estabelecer esta relagao silo bastante diversificadas: Duby vale-se da nogie de histéria-problema dos strates; Hill, da caracterizagio social, religiosa ¢ politica da Inglaterra setecentista: Ginzburg, da observacao do pracesso de cireularidade da cultura através de uma escala micro ¢ Gay, do mitodo psicanalitico contextualizado. A escolha dos persanagens biagrafades também guarda intcresse: néio apenas 0s grandes homens - como Guilherme Marechal, Oliver Cromwell © Signvund Froud - merecem esta dignidece , mas também os homens eomnuns, a genie miida, como a moleiro Menocchio, Outre aspecto importante. ¢ que perpassa todos os trabalhos mencionados, ¢ 0 cstile mais literdrio da escrita (onuita préximo do romance), oarater de relato des textos biognificos. Tal flo mostra que, inevitavelmente, um dos passos decisivos da biografia consiste em contar @ histéria de um personagem. Entretanto, pelo menos nos casos citados, a narracao nao excluia explicagio de diferentes aspectos das trajetérias individuais, bem como dos contextos cm que as mesmas se realizaram, Por fim, mas no menes importante, percebe-se que os referidos historiadores buscam resgatar facctas diversificadas dos personagens biografados ¢ n4ia apenas, come nos trabalhos de inspiragao positivista, a vida pliblica ¢ os feitos notéveis. Emergem, emlao, em seus trabalhos, entre outros aspectos, OS Sentimentos, o inconscicnte, a culitira, a vida privada, a insergiio classista, politica c religiosa e a vida cotidiana como espaco significative da existéncia bum Estas questées sugeridas pela historiogafia recente serdo discutidas mais detalhadamente nas segdies seguintes, quer levando-se em conta os impasscs atuais do género biografico, quer sob a forma de uma proposia de construgio das biografias pela perspectiva da vida cotidiana. na. 180 3- IMPASSES ATUAIS DO GENERO BIOGRAFICO; AS (FALSAS) OPOSICGES QUE SE COLOCAM AO HISTORIADOR QUE PRETENDE CONS- TRUIR UMA BIOGRAFIA Discutirei este 1dpico a partir de quatro oposigdes que normalimente se colocam aa historiador interessado em realizar uma pesquisa biografica: individuo X sociedade, biografia cnquanto narragia X biografia enquanto explicagiio; individuo como unidade X individuo fragmentado ¢ vida publica X vida privada, a) Individuo X Sociedade Pierre BOURDIEU considera “infeiramente absurda etentificamente” a oposigaio cnire individue ¢ sociedade (1990, p, 45). ki CARR vale-se de uma expresso da linguagem comum para definir o problema; “a pergunla sobre 0 que ven primeira - a sociedade ou o individuo ~ & como a pergunta sabre o ove e a galinhe" (1982, p, 31), ‘Conmds, esta opasicao, muitas vezes enunciada em outros termos - homem X contexto, sujeite X estrutura, voluntarismo X deicrminismo, tiberdade X necessidade - reside no centro do pensamento ocidemtal, pelo menos desde a Grécia clissica. Exemplificando a questo, diz Alvin GOULDNER: "quando Edipo peca, a terra ce Tebas sofre por ele, mas Edipo pode pecan A let eo destino se impden aos seres humanos, mas estes nao so rebés, @ podem conformar-se com seu desing au lutar contra ele” (1985, p, 50, grifo do autor). al (cnsiio também est presente na (cologia orista (livre arbitrio X lei natural, no marxismo (yeja-se a ambigtiidade do conceito de praxis), na sociologia académica (subjetividade humana X objetividade da existéncia social) e na filosofia moderna (existencialisino X estraturalismo). na discussio de tema to complexe foge aos limites do presente artigo. Porém, nite é possivel ignoré-lo quande se pensa na construgao de uma biografia, Neste sentido, as quesides so mumerosas ¢ complicadas; Come relacionar @ individuo com o seu contexta? Qual é o peso da determinagio estrutural na condugaa das ages humanas? A subjetividade individual também niio ¢ construtda socialmente? Os historiadores-bidgrafos procuram resalver (ais problemas através de diversas expedientes: descrevendo 0 contexto coma um pane de finda para a livre atuagio do personagem central (como nas biografias positivistas), buscando neste comtexto a explicagie para a agio individual (Hill) eu encarande 0 individuo como uma via de accesso para o exame de questées mais amplas , 181 (Duby ¢ Ginzburg). Nos trabalhos de GAY, a tensao entre o individual e 0 social também est presente como, por exemplo, nesta frase extraida da biografia de Mabel Loomis, jovem burguesa norte-americana do século XIX, mbora 0 fluxo de sens devaneios astobiagraficos fizesse de Mabel Loonsis uma lipica representanie de sua época e de sua classe, sta franqueza zrifos inirospectiva e sua lucidez a distinguiam notavelmente" (1988, p. 63, meus). Oscila-se, portante, entre a representatividade de Loomis em relagio ao scu contexto © a sua singularidade pessoal, Nao pretendo aqui indicar a melhor maneira de se resolver o velho problema da relagio entre o individuo ea histéria, Mesmo porque, como procurci demonstrar, este nila ¢ resolvivel ¢ sim constitutive do pensamento acidental. Penso, contudo. que uma das tarefas fundamentais do sénero biografice & contribuir para a presente discuss, recuperanda, através de diferentes estratégias, a tensdo, ¢ no a aposigaa, entre o individual ¢ @ social, ) Biografia enquanto narragio X Biografia enquanto explicagia A partir do século XIX, a historia, buscando a afirmagdo de sua cientificidade, afaston-se da literatura. Verificou-se, enlfo, a “praserigéo da dimensdo literaria do discurso histérico ¢.,.), mais precisamente, a tendéneia em negara narratividede come wode adequate de exposigde da escrita hisiérica” (CEZAR, p. 2), Nes ullimes anos, contudo, prockama-s¢ a “volta da histéria-narrative:”, Para STONE, csta se diferenciaria da historia estrutural por ser mais descritiva do que analitica e por direcionar seu enfoque ao homem ¢ nao as circunstineias. Haveria ainda uma maior preocupagae, por parte dos historiadores narratives, com os aspectos retéricos na apresentagia de seus textos. Nas palavras deste autor: ‘A narrative aqui designa a organizagde de materials numa ordem de sequénein cronofigiea @ a concentragao do conteiide numa tinica estiria coerente, cmbara passuinde sit-(ramas Nenhum historiadar narrativo, no sentido em que aqui os defini, detra @ anilise totalmente de laco, mas cla née constitié 0 arcabougo de sustentacdo em tarno do qual consiréem sua obra” (1991, p.p. 13-14) Debatendo com Stone, HOBSBAWM criticou a idéia de wma contradig&o entre os historiadares narrativos c os estruturais, Segundo este tiltimo, “pare quase todos efes [os hisloriadores narrativos], 0 acontecimento, o individue, e mesmo areconstrugiia cle elgum estado de espirito, @ mnoco de pensar 0 passado, 182 anos 2 (Duby © Ginzburg). Nes trabalhos de GAY, a tensao entre o individual © © social também esté presente como, por exeimplo, nesta frase extraida da biografia de Mabel Loomis, jovem burguesa norte-amoricana do século XIX; “Embora o fluxo de seus devaneios autobiogrdficos fizesse de Mabel Loomis uma (pica representante de sua época ede sua classe, sua franqueza jatrospective e sua Iucidez a distinguiam notaveimente” (1988, p. 63, grifos meus), Oscila-se, portanta, cntre a representatividade de Loomis em relagao ao scu confexto © a sua singularidade pessoal. Nao pretendo aqui indicar a melhor maneira de se resolver © velho problema da relagio entre o individu ¢ a historia, Mcsma porque, como procurei demonstrar, este nao € reselvivel ¢ sim constitutive do pensamento ocidental, Penso. contuda, que uma das tarefas fundamentais da género bingnifico ¢ contribuir para a presente di perando, através de diferentes estratégias, a tensdo, ¢ nao a opesigio, entre o individual ¢ @ sacial. usstin, re b) Biografia enquanto narracio X Biografia enquanto explicagio 4 partir do século XIX, a histéria, buscande a afirmagao de sua cientificidade, afasiou-se da literatura. Verificau-se, entiia, a “proserigda da dimensdo literdria do discurso histérico (...), mats precisamente, a fendéncia em negar 4 narratividade coma modo adequade de expasigao da escrita Aistérica” (CEZAR, p. 2). Nos ultimes anos, contudo, proclama-se a “volta da historia-narrativa”, Para STONE, esta se diferenciaria da histéria estrutural por ser mais descritiva do que analitica e por direcionar seu enfaque ao hamem e nilo as cireunstincias, Haverin ninda una maior preocupagiio, por parte dos historiadores narrativos, com os aspectos retaricos na apresentagdo de seus textos, Nas paliyras deste autor: “A narrative aqui designe a organizagdo ce metertats mama ordem de sugiléneia eromoligica e a concentragio do contenido numa tinica estorta coerente, embora possuinde sub-tramas. Nenhuan historiador narrative, #o sentido em que aqui os defini, deixe a andlise totalmente de facto, mas ela ndo constitti @ arcabouge de sustentagao em torno do qual constréem sua obra” (1991, pp. 13 1b. Debatendo com Stone, HOBSBAWM criticou a idéia de uma contradigiio cuire os historindores narrativos ¢ os estruturais. Scgundo este time. “para qitase todes eles [os historiadores narrativos|, 0 aconlecimente, o individuo, & mesma areconstrugdo de aigum estado de espirito, a meco de pensar o passada, 182 mnicroscépio, ao invés de um telescépio, Na medida em que cancordamas que estamos estudando o mesmo cosmo, a opgdo entre o microcosme eo macrocasme 6 ume questao de escotha da técnica adequacda” (op. cit., p.p. 44-45). ¢) Individuo unitario X Individuo fragmentado Anteriormente mencionei que as biografias de inspiragio pasitivista buscavam reconstruir, de forma linear, a vida de um individuo “desde 0 nascimento até. a morte”, sobretuca em seus aspectos piblicos, a fim de ressaltar a grandeza do personagem examinado, Tal pretensio assentavasse em uma visto de homem, ou de alguns homens, tributdria do projeto burgués da ustragiio; um ser unitario, cocrente, plenamente racional ¢ objetivo, que conhece as leis da histéria eas p&e em marcha Este “sujeifo madicional plene” (WELLMER, 1984, p. 321), tipico da modernidade ilustrada, foi estilhagacto cm duas frentes: no Ambito mesmo do discurso moderno e pela critica da pds-modernidade. No primeiro caso, ressaltam-se, por exemplo, as contribuigdes de Marx (que destacou o peso dos condicionamentos matcriais na candugio das agdes humanas), de Freud (que apontow para a presenga do irracienal nas priticas ¢ representagdes dos individuos) ¢ da filosofia da linguagem {que, sebretude com Wittgenstein, criticou a idéia do sujeito individual como fonte dos significades lingitisticos), Ji os pés-madernas, de mancira geral, assinalaram a fragmentagio do homem ha sociedade contemporinea @ enfatizaram as dimensdes ndo-racionais de delirio ¢ de sonho que Ihe so inerentes. Assim, a concepgiia do individua como unidade que atravess linecarmente o periedo de uma vida foi fortcmente contestada. Para DE CERTEAU, cada homem deve ser entendide como “wn locus no qual uma incoerente e freqdentemente contraditéria pluralidade de determinagoes relacionais interagem™ (1984, p. xi) BOURDIEU, por sua vez, criticando 0 método das histérias de vida ‘opés-seao que chamou de “iusto biogrdfica”’. Para ele, os pesquisadores que ulilizam tal método partem de wma nogio de identidade “entendicta como constdncia a si mesmo de um ser responsdvel, ou seja, previsivel ow pelo utero tictigive?™, oposto no" sujeite fracionadio, mulltiplo ” da realidad (1986, p. 70), Segundo o autor, esta concepeaia tem por pressuposto o entendimento de que “(J wma vida é inseparavelmente 0 Conjunto dos acontecimentos de uaa existencia individual coneebicla como uma historia eo relato desta historia fe tambént ] (.) que ‘a vidla* constitud tun todo, um comjuato amine % 184 anos everente e orientado, que pode e deve ser apreendido como expressdo unitiria de wna “imtengdo' subjetiva ¢ obyetiva, de um projeto (..) Esta vida organizada como uma historia se desenrela segundo wna ordem cronoligica que & também una ordem ligiea, desde um comego, uma origem, na duplo sentida de ponte de partida, de inicio, mas tanrbéns de principio, de razdo de ser, de causa primeira, até seu termine que é também: wm'fim, uma meta” ( op.cit., p, 69). Visando ramper com esta idéia de uma identidade individual unitiria © imulayel, diversos historiaderes buscam capturar os personagens biografados a partir de miltiplos éngulos. Duby, por exemplo, examina a atuagite politica € 05 feitos notdveis de Guilherme Marechal, mas nfo deixa de lado as relagbes. familiares ©a subjetividade deste individuo, J4 Ginzburg analisa pensamentos 2 sentimentos do moleiro Menocchio, articulando-os com a sua insergiio classista, Gay, finalmente, eruza diversos planos ao biografar Freud: a familia, a trajetéria intelectual, as motivagdes inconscientes, a situagiio dos judeus na Viena do séoulo XIX, entre outros, Nestes estudos, a pluralidade de enfoques permitiu 0 enriquecimento das andlises biograficas ¢ niio levou ao esfacelamento dos personagens examinados. Portanto, romper com a idgia de individuo unitdrie nflo significa necessariamente identificar a biografia com uma frsde, mas sim explorar todas as potencialidades do género, aproximande-o da multifacetada existéncia concrota dos homens, d) Pablico X Privado De forma geral, os historiadores-bidgrafos negligenciavam a vida privada de seus personagens, por ser no Ambilo publico que se realizam es feitos notdveis, dignos de seem registrados. A privacidade s6 vinha A tona para reforgar as qualidades morais do biografado. Esta postuea é cocrente com 0 contexte da modernidade quando, sobretudo a partir do século XTX, procurou- se estabelecer uma nitida divistio entre o privada e @ ptiblice (cf. PERROT, 1991) Na histariografia atual, contuda, veri ese um interesse crescente pela dimensao privada da existéncia humana. Segundo PERROT, este deslocamento corresponde a uma reagio ao “peso «io polifieo”, que levou os historindores a reffetiv sobre os mecanismes de poder & @ buscar na conira-peso dos pequenos grupos, & até dos individues, resisténcias efcazes, barreiras necessdrias ao controle social”, Qu soja, nos intersticios da vida privada encontrariam-se espagos de resisléncia as imposigées macro-saciais, Outro-aspecte abordado pela autora éa “exaltaedo dos particularismos 185 ¢ das diferencas" que marca o mundg atual come contrapartida “a massifteagao crescente das ideologias, dos discursos ¢ das praticas” (op. cit., p. 9, grifo meu). Tuis preoeupagdes contemporiineas projetam-se tambéin para o passado como, por exemplo, no estude de Ginzburg sobre o moleiro Menacchio. Este Ullimo representa um barrzira i hegemonia do discurso da Igreja no século XVIe pode ser lide como uma exaltagde da diferenga. A curiosidade sobre 9 privado, como ja foi dito, explica também o sucesso editorial das biografias, eseritas ou mio por historiaderes, junto ao grande piiblico, Conheecr a intimidade do outro nos minimos detalles tornou-se wm passatempo para intimers Icitores, “etmplices mais ou menos voluntarias de ‘veverismo’” (SOUZA-LOBO, 1989, p. 29). Assim. 0 exame das articulagdes entre 0 piblico ¢ 0 privada deve ser uma das preocupagtcs dos historindores-bidgrafos. Segundo SOUZA-LOBO "a ‘démarche’ biagrdfica iuuina @ complexidade das relagdes entre vida plitlica ¢ vida privact e das experiéncias individuats ¢ coletivas" (fd, ibich), ‘al problematica é visivel nas biografias recentes, como nos trabalhos mencionados de Duby, Ginzburg c Gay, nos quais a dimensio privada (a familia, a subjetividade, a sexuialidade, entre outros aspectos) tem um peso considerivel andlise, Com estas consideragaes, de carater exploratério, busquci apentar para a complenidade das questoes teérico-mctodalégicas envalvidas na constr de wma biografia, Espero, ainda, ter explicitado o meu posicionamento sobre as oposigties indivicueysociedade, narragaofexplicagia, unidade/fragmentagio © plblico’privado: as mesmas me parecem falsas j4 que a andlise biografica exige um constante deslocamento, ¢ nao um isolamento, entre os pélos mioncionados Tentanda dar conta dos complicados problemas elencados nesta segiio, apresento a seguir uma proposta de investigagito: a construgae de biografias a partir da perspectiva da vida colidiana. 4- UMA PROPOSTA DE INVESTIGACAO: A BIO- GRAFIA PELA PERSPECTIVA DA VIDA COT! DIANA Como ressaltei anteriormente, as biografias tradicionais vollam-se, via de regra, para aqueles personagens a quem se alribui a fazer cer histéria Recuperam, portanto, de forma privilegiada, as agdes politicas, os atos 186 conscientes, ag deliberagées racionais, as rupluras da rotina, 0 lado piblico da existéncia. as manifestacdesnotdveis enfim, Este viés deixa auscnic, ou resgata apenas como material de consirugdo, a vida didria, 0 inconsciente, © privado, as agdes mintsculas. Con estas indicagdes, j se pode perceber uma abordagem no minime incompleta. Por que, entio, eleger o cotidiano como foco privilegiado de smilise? Em primeiro lugar, porque esta perspectiva triz para a biografia sua matéria mais extensa, a vida didria. Ocotidiano éa vida de todos os dias, dos gestos, ritos ¢ rilmos repetidos diariamente, Seu espago 0 do automatice, da rotina, do instimtive, do familiar, do conhecido: “para que o honem possa ser homem, deve efetuar automaticamente diversas ages vitals. istas agdes sho tanto mats perfeitas & mais benéficas, para o homem, quanio mais perfeitamente estejam ae da reflexdo" (KOSIK automatizadas ¢ menos passem através cha consciénes 1963, p. LOT), Esta sucesso repetitiva do dia-a-dia comporta contetidos bastante heicrogéneos: engloba a vida familiar, o trabalho, as relagdes de vizinhanga, 0 lager. entre outros aspectas. Além dissa, na cotidiano, 0 homem pode permanecer imerso na alicnagde (favorecida pelo automatisme das atividades diiirias), sujeitado a mecanismos de disciplina, mas também pode exercer sua crialividade c constituir formas de resisténcia 4 ordem estabelecica, Assim, HELLER (1989) reconhece que, apesar da grande afinidade entre alienagito & cotidinidade, esta Ultima permite no homent wna margem de manobra e ago, de individuncdo © configuragaa de novas altitudes, PETERSEN, igualmente, afirma que “o histortadr nde pode pensar unilateratmente 0 catidiano como a campo ie onde se gera a alienargdo ou onde se gera a resistencia eaeriagao” (1994, p. 121). Deve-se levar en conta também que os diversos clementas, priticas potencialidades presentes no cotidiane nao constituem simplesmente uma massa cadtica, pois possuem uma hicrarquia interna, social ¢ historicamente determinada, Por exemplo, com o desenvolvimento da sociedade industrial, a Ambito do trabalhoe da alicnagio foi extremamente dilatado, embora conserve brechas ¢ fissuras que possibilitam a resisténcia ¢ a cringe, Obviamente que todos estes aspectos curiquecem sobremancira a construedo de uitia biografia J que pecmitem ao histariador compreender as possibilidades ¢ os limites da trajetéria individual examinada Além disso, a perspectiva de cotidiane contribui para a pesquisa. biognifica ao trazer para a analise wma dimenséo universal, ontologicamente insuprimivel, presente ey todo modo de existéncia humana. A cotidianidade esti presente em qualquer esfera da vida do homem: no Ambito publica e na 187 alividade humano-genérica (a arte, a ciéncia, o trabalho criador, ‘as) escolhida conscientc ¢ autonomamente utiliza nun a pritxis social ¢ politica, entre out (of, HELLER, op. cit., p. 27). Esta suspensfio € temporaria © nao implica o rompimento com a cotidianidade ¢ sin um vat-e-vem cnire a vida didria ¢ o humano-genérico, Os homens que passam por tal experiéncia podem abter zanhos de consciéncia possibilidades ce compreensao ¢ transfirmagio de cotidiano singular e coletiv Nas palavras de FALCAQ, “esta suspensdo da vide cotidiana nao é firga: & nim cirettite, porque se sai dela e se retorna a ela de forma modificnda, A medida que estas suspensdes se tornant freqrentes, a reapropriacaa do ser genérico & mais profunda ¢ @ percepede de cotidiana fica mats enriquectda (1984, p. 27), Enfim, na feliz expresso de LUKACS, nao existe uma “rurcifa chinesa” (apud NETTO ¢ FALCAO, L984, p. 69) separando as dimensdes ‘colidiana e nfo cotidiana da vida. Portanto, um dos ganhas de se construir uma biografia pela perspectiva do colidiano € a possibilidade de compreender coma o individuo enfocado transitou, ou nfio, chire as cxigéncias da vida didriae as dimensdes mais amplas da existéncia, cit um contexto histérico especifico. REFERENCIAS BIBLIOGRAFIC. ANDRES-GALLEGO, José. “La nueva histéria como rete", In; ANDRES- GALLEGO, José (org.). New history, novelle histoire: hacia una huewa historia, Madrid, Actas, 1993 BOURDIEU, Pierre. “Fieldwork in philosophy’. In: Coisas ditas. Sao Paulo, Brasiliense. 1990 ‘Lilusion biographigue”, Actes de la recherche cn sciences sociales, (62-63): 69-72, juin., L986 BRAUDEL, Fernand. “a longa duragda”. In: Historia ¢ ciém ais. Lisboa, Presenga, 1990. __. O Mediterraneo eo mundo mediterranico na época de Filipe IL. Lisboa, Martins Fontes, 1983. 2 v. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). A Revolugdo Fran- cesa da historiografia, Sdo Paulo, UNESP, 1991 CARR, E. H. Que € histéria? Rio de Janciro, Paz e Terra, 1982 CEZAR, Temistocles. “Cansideracdes acerca do estatuta do texto histd- rico", Mistéria cm Revista. Pelotas, EdUFPel, n, 2 (no prelo). soci- AUNSS 189 CHARTIER, Roger, “A historia hoje: dividas, desafios, propostas”. Es- tudos histéricos, Rio de Jancira, val. 7m. 13, £994. CHAUSSINAND-NOGARET, Q, “Biographique (ffistotre}". In; BURGUIERE, André (org,). Dictionnaire des sciences historiques Paris, PUF. 1986. DE CERTEAU, Michel, The practice of everyday life, Berkeley/Los Angeles/Londres, University of California Press, 1984. DUBY, Georges. 4 histéria continua, Ria de Janciro, Zahar/UPRJ, 1993 Guilherme Marcehal ou o methor cavaleiro do mundo. Rio de Janeiro, Graal, 1987. FEBYRE, Lucien. Autour de I'Heptaméron. Paris, Gallimard, 1944, Combates pela histéria, Lisboa, Presenga, s/d Le probléme de Pincroyance du 16 sigcle, Paris, A. Mich 3 um destina, México, F.C.E., 1956 GAY. Peter, A experién jt Rainha Vitoria a Freud: a edu- cagio dos sentidos. So Paulo, Companhia das Letras, 1988 Freud para historiaderes, Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1989a. ___. Freud: uma vida para nosso temp, Sado Paulo, Compan: Letras, 1989b GINZBURG, Carlo, O queija e os vermes: o cotidiano © as idéias de um moleiro perseguide pela Inquisigae, Sao Paulo, Campanhia das Le- tras, 1987 GOULDNER, Alvin, Los dos mos. Contradicciones y anomatias cn el desarrollo de la teoria. Madrid, Alianza, 1985. HALL, Mic! 1. “OQbrifha da heterodoxia”. Leia, Sao Paulo (105). jul. 1987. HELLER, Agnes, © coti 1989. HILL, Christopher. O eleito de Deus: Oliver Cromwell ¢ a Revolugio Inglesa, S40 Paulo, Companhia das Letras, 1988 HOBSBAWM, Eric. “O ressurgimenio da narrativa. Alguns comentdri- os”, RI Revista de Historia, Campinas, IFCH/UNICAMP. Inverno 1991 KOSIK, Karel, Dialdetica de loc LE GOFF, Jacques (org). A hi 1990, ____. ‘Ul historia do cotidiane”. In; DUBY. Georges ¢ outros, Histéria ¢ nova histé . Lisboa, Teorema, 1986. ___. “Comment éerire une biograpiie historique aujourd’hui?". Le Débat. Numéro 54, mars-avril 1989. 1974 das: noc a historia. Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, nereto. México, Grijalbo, 1963. a, So Paulo, Martins Fontes, 10: LEVI, Giovanni, “Les usages de ta blographie”. Annales, E. S. C., Pa tis, Armand Colin, 44 année, mimero 6, noy.-dec. 1989. “Sobre a micro-histéria”. In; BURKE, Peter (arg.). A eserita da histéria: nowas perspectivas, Sao Paulo, UNESP, 1992. LIMA FILHO, Henrique Espada R. Histéria social e subjetividade: con- ideracdes em torno da biografia, Trabalho apresentade no XI En- contro Regional de Histéria da ANPUH/ Niiclea Regional de Sijo Pau- lo. Campinas, 5 a 7 de setembre de 1994, mimes. LOURO, Guacira Lopes. "Que Aistéria estamos ensinando? ”. Educagho © realidade, Porto Alegre, 8 (2):79-91, maio/ngo, 1983, LUKES, Steven. Verbete “/nuivictue ”, In: BOTTOMORE, Tom (ed.). Di- ‘rio do pensamenta marsista. Ria de Janeiro, Zabar, 1988 MARX, Karl. “O48 brumdrie de Luis Bonaparte”. In: Marx. Sio Paulo, Abril Cultural, 1978. ___ ¢ ENGELS, Friedrich. A idenlogia atema, Lisboa, Presenga. s/d. NETTO, José Paulo ¢ FALCAQ, Maria do Carmo. Cotidiana: canbe ento € critica. Sao Paulo, Cortez, L984 ORIEUX, Jean. arte do bidgrafe". In: DUBY, Georges ¢ outros. His- © nova histéria, Lisboa, Teorema, 1986. PERROT, Michelle (org.). Histéria da vida privada 4: da Revolucio A Primeira Guere Paulo, Companhia das Letras, L991 Ivia R. F “1 renovagdo da historiagrafiae 0 tema da vida cofidiana: dexfazendo atguns equivecos”. In: MAUCH, Claudia eo tos. Porto Alegre na yirada do século XIN: cultura © sociedade Parto Alegre/Canoas/Sio Leopoldo, Ed, da Universidade-UFRGS/Ed. ULBRA/ Ed, UNISINOS, 1994. PORTO ALEGRE, Aquiles, Hemens ilustres do Rio Grande do Sul, Por- to Alegre, ERUS, sfd. SCHMIDT, Benilo Bisso. Uma reflexao sobre o género biogrifico: a jetévia do mi ista Antonio Guedes Coutinho na pers- pectiva de sa ida cotidiana (1868-1945). Porto Alegre, Dissertagao de mestrado cm Historia - UFRGS, 1996 SOUZA-LOBO, Elizabeth. “Emma Goldman - revotugao ¢ desencanto: do piblice ao privads”, Revista Brasileira de Hist6ria, Sao Paulo, v. 9.0. 18. pp. 29-41, ago 89/set. 89. STONE, Lawrence, “0 ressurgimento da narrativa. Reflexdes sobre uma nova veltha histéria”. RM ~ Revista de Histéria, Campinas, IFCH/ UNICAMBP, Inverno 1991 SZALUTA, Jacques. La psychohistoire. Paris, PUF, 1987, p. LO8, THOMPSON, PA formagio da classe operari de. Rio de Janciro, Paz e Terra, 1987 __4 de la teoria. Barcelona, Grijalbo, 1981 TORRES, Félix, “Du champs des Annales a la biographie: reflexions sur Je retour d'un genre”, In: Problémes et methades de la biographic, Actes du colloque, Paris, Sorbonne, 3-4 mai. L983. WELLMER, Albrecht. “La dialeetica de modernidad y posmodernidad In: CASULLO, Nicolas. El debate modernidad/Posmodernidad Buenos Aires, Punto Sur, 1984 inglesa I: a drvore or HY) 192 ami

Você também pode gostar