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UFRGS -IFCH Departamento ¢ PPG Histéria nme & € ji Ori encig MONITOR: BRUNO CERETTA SCHNORR 2010 Emanuel Bouzon Ensaios Babilénicos Sociedade, Economia e Cultura na Babilénia pré-Crista Colegao Historia 19 c Porto Alegre 1998, ascent) UFRGS ‘mesnros samosas AEPOPEIA DE GILGAMES E SUAS FONTES I Introdugio ‘A epopéia de Gilgame’ deve, indubitavelmente, ser classifi- ‘cada entre as obras mais importantes da literatura sumero-acadiana. O ceélebre assiri6logo alemAo, B. Landsberger, considerava-a como a ‘epoptia nacional babildnica™, E ela é admirada ¢ altamente concei- tuada no s6 entre os assiri6logos, mas, também, entre especialistas de ‘outras éreas do conhecimento. Assim, por exemplo, G.S. Kirk, um especialista do mundo grego, considera a epopéia de Gilgame’ um poema extraordindrio, que deve ser lido e estudado, com cuidado, por todos os estudiosos do mundo cléssico"”'. Com uma obra deste porte, 6s babilénios criaram, muito antes da epopéia grega Iliada, uma com- posigio pottica pica, cujo valor literério pode ser equiparado as sgyandes obras épicas hoje conhecidas; ela nio tem paralelo em ne- huma outra cultura do Oriente Antigo. A epopéia de Gilgame’ é, pois, de grande importdncia para todo homem de cultura, Néo se trata, contudo, de uma obra de interesse puramente literério. Bem interpre- tada, ela certamente, uma fonte historiogréfica de valor inestimével para estudo das idéias © das concepgdes do homem da Baixa Meso- potimia jé desde o 3° milénio a.C., quando apareceram os primeiros textos sumérios da saga de Gilgames. “Cf. B. Landsberger, Einleitung in das Gilgamesh-Epos, em: P. Gareli (ed), Gilgamesh et sa légende, Comtes rendus de la Rencontre Assyriologique In- temationle, Paris 1960, p. 31. Cf. tb. A.L. Oppen-heim, Ancient Mesopota- ‘mia, Chicago & London 1964, p. 255s. “CEG. Kirk, Myth. Its Meaning and Functions in Ancient and other Cul tures, Cambridge 1970, p. 133. (Colegio Historia 19 as Eman! Bown ‘O herdi desta epopéia é Gilgame8, um lendério rei sumério da primeira dinastia de Uruk, que teria vivido no periodo protodinastico II (2750-2600 a.C.). Na lista de stis suméria”, como quinto rei da primeira dinastia de Uruk, depois de Lugalbanda e de Dumuzi, é men- cionado o divino Gilgames, fitho de um desconhecido, senhor de Ku- lab, que reinou 126 anos “, Segundo esta mesma lista ele foi sucedi- do no trono por seu filho Urlugal, que teria reinado 30 anos". Um autor do mundo classico, Eliano, refere-se a um parentesco entre Enmerkar, segundo rei da primeira dinastia de Uruk, e Gilgames € relata um’nascimento envolto em elementos maravilhosos. Segundo Eliano, um mago havia vaticinado a Enmerkar que o filho de sua filha expulsé-lo-ia do trono. Com medo deste anincio, o rei Enmerkar mandou fechar sua filha virgem em uma torre severamente vigiada. Mesmo assim ela deu & luz um filho que os guardas da torre, com medo do rei, jogaram pela torre abaixo. Uma aguia, contudo, salvou o menino aparando-o em sua queda e depositando-o em um jardim de tamareiras. Ele foi adotado e criado pelo jardineiro que the deu o nome de Gilgamos. Uma vez adulto, a profecia realizou-se ¢ ele der- ubou seu avé do trono de Uruk“, Toda a tradig&o posterior, contudo, seguida pelo texto da propria epopéia, considera Gilgame8 como filho da deusa Ninsun ¢ do divino rei Lugalbanda. IL. As fontes sumérias A literatura suméria parece nfo ter redigido uma epopéia, mas ‘composto, apenas, pequenos poemas épicos em tomo da figura do Iendério Gilgames®. Gragas a0 incansével trabalho de reconstrugao “2A digo cléssica desta lista 6 a de T. Jacobsen, The Sumerian Kinglist, AS 11, Chicago 1966. “Cf, T. Jacobsen, The Sumerian Kinglist,p. 82. “CE. T. Jacobsen, The Sumerian Kinglist,p. £2. “Cf, Bliano, De natura animalium, XIL,21. “Cf. A. Falkenstein, Art. “GilgameS” em RLA 3, pp. 357-363; S.N. Kra- mer, The Sumerians, Chicago & London 1963, pp. 185-205; G. Pettinato, 1 Sumer, Milano 1991, pp. 162-183; SIN. Kramer, The Epic of Gilgamesh and its Sumerian Sources, JAOS 64 (1944) pp. 7-23. 126 Colegio Historia 19 rmismosmamonscos de textos sumérios do sumerdlogo Samuel Noah Kramer, conhece- ‘mos, hoje, cinco desses poemas"”. ‘O primeiro desses poemas, que nio foi assumido pela epopéia clissica, relata uma guerra entre Gilgame8, aqui denominado Bilga- mes, ¢ Agga, filho de Enmebaragesi, rei de Kish. Trata-se de uma pequena composigao de, aproximadamente 115 linhas, reconstruida por Kramer a partir de cerca de 11 fragmentos provenientes, em sua quase totalidade, da cidade suméria de Nippur“”. O poema comega com o relato da chegada dos legados de Agga com a intimagao do rei de Kish a que Uruk participe dos trabalhos de. construgio de canais de irrigago no sul da Baixa Mesopotémia. Gilgame’ consulta o conselho dos ancidos e estes 0 aconselham a acatar a ordem de Kish; em um segundo momento, porém, so ouvidos os jovens e estes incitam Gil- ‘game’ a resistir as pretensdes de Kish. GilgameS segue o consetho dos jovens e prepara, juntamente com seu servo Enkidu, a guerra. Cerca- dos, porém, pelas tropas de Kish, os habitantes de Uruk apavoram-se Gilgames envia um voluntério, BIR.HUR.tuys.a, para tratar da paz. ‘com Agga. O enviado de Gilgame’ € feito prisioneiro, maltratado ¢ levado diante de Aga. Nesse interim, um oficial zabardab dos exér- citos de Uruk aparece nas muralhas da cidade e o rei Agga pergunta ao enviado de GilgameS se aquele homem era o seu rei. Cheio de or- gulho BIR.HUR.tuyy.ra responde que, se fosse o rei de Uruk, os exércitos de Kish cairiam prostrados por terra de tanto terror diante do esplendor de Gilgames. Em seguida € o proprio Gilgame’ quem apa- rece nas muralhas de Uruk, Enkidu, que saira nesse momento pelo #"G. Pettinato pensar ter identificado entre os textos de Ebla, um que relata as relagbes do heroi de Uruk com a cidade de Aratta (cf. G. Pettinato, Ebla, Nouvi orizzonti della Storia, Milano 1976, p. 106)Esta identificagio foi, ‘contudo, contestada por D.O. Edzard em Archivi Reali di Ebla, Testi, vol. V, 39, ses esta forma do nome ef. A. Falkenstin, RLA, 3, p.357. “Cf. SIN. Kramer, Gilgamesh and Agga [with Comments by Th. Jacobsen}, ‘American Journal of Archeology 58 (1949) pp. 1-18. Cf. tb. W. Rémer, Das, ‘Sumerische Kurzepos ‘BilgameS und Akka, AAT 209/1 1980; J.S. Cooper, ‘ICS 33(1981) pp. 224 sats; H. Vanstiphout, Aula Orientals 5 (1987) pp. 129 sats Colegio Historia T9 — 127 Emanae Boron portio principal da cidade, ¢ interrogado por Agga: “Escravo, aquele homem é o teu rei? Ele responde: Esse homem é o meu rei”. Aconte- ce, entio, o anunciado por BIR.UR.tuys.ra. Os soldados de Kish, ofuscados pelo brilho divino de GilgameS, caem por terra ¢ sto der- rotados pelo exército de Uruk. O rei de Kish é, contudo, poupado por GilgameS em reconhecimento por alguma intervengao. magnénima anterior de Agga para com o rei de Uruk. Este pequeno poema termi- na com a doxologia: “O’ Gilgames, En de Kullab, o teu louvor & doce”. Um segundo poema sumério, que gira em tomo da figura de Gilgame’, € comumente conhecido como GilgameS e Huwawa. Trata-se de uma composigao trasmitida em duas recensdes, uma mais antiga ¢ mais longa, mas cujo texto encontra-se em péssimo estado de conservago e, até hoje, nfo foi possivel uma reconstrugo completa, 1a segunda é mais recente, mais curta e melhor conservada. A dltima publicagao critica da recenso mais curta foi feita em 1980 por D.O. Edzard‘". A popularidade da verso mais curta é bem testemunhada pela quantidade de testemunhos textuais hoje conhecidos"'. A temé- tica aqui tratada serviu de modelo para as quarta e quinta tébuas da ‘versio ninivita da epopéia. A motivagdo de GilgameS no poema sumé- rio é, contudo, diferente da apresentada na epopéia acédica. O poema sumério comega com Gilgames profundamente impressionado pela experiéncia da morte que ele vé, todos os dias, em Uruk. Ele decide, por isso, realizar algum feito glorioso, cuja fama sobreviva & sua ‘morte. Ele decide partir para a “montanha daquele que vive'”” ¢ gra- var Id o seu nome. Pelo contexto, parece que GilgameS quer derrubar “°F, D.O. Edzard, GilgameS und Huwawa A, 1 203 e Il. Teil, ZA 81 (1981) pp. 165-233. A“ rém, a de SN. Kramer, JCS 1(1947) pp. 3-46. “Viggo cerca de 80 tabuinhas cuneiformes contend este poema e s6 da cidade suméria de Nippur chegaram aos nossos dias 59 textos. 80 poema comega com a formulagdo: ene kurhitilas® geftgn.ni na.an.gub, que Edzard em sua ediglo deste texto traduz: “Wi ihr schon, da sich der Herr einmal zum Berge dessen der leb, begeben wollte...” (cf. ZA 81 (1991) p. 167. il, ZA. 80 (1980) pp. 165- ‘princeps” continua, po- 128 Colegio Histaria 19 ENstOs mamLSsCOS na floresta um determinado cedro. Enkidu, seu servo, aconselha-o a pedir ajuda ao deus solar Utu. Depois de tentar em vao dissuadi-lo do ‘empreendimento, Utu cede ¢ concede-Ihe sete guerreiros munidos ‘com forgas demoniacas. Gilgame’ convoca, além disso, cingiienta ‘voluntatios, sem liames familiares, para acompanhé-lo na campanha a Floresta dos cedros. E narrada, entio, a viagem de Gilgame’ pelas sete montanhas até chegar ao cedro que procurava. Percebendo que GilgameS derrubara 0 cedro, Huwawa"" fere-o com um raio terrivel (ni.te) © o herbi cai em um sono profundo. Enkidu é também, atingi- do e adormece, mas desperta logo, Vendo seu senhor imével, ele faz de tudo para desperté-lo e s6 consegue apés ungi-lo com 30 siclos de 6leo. GilgameS acorda ¢ impetuosamente decide partir para a luta contra Huwawa. Apesar de Enkidu narrar-lhe a experiéncia terrfi- cante que tivera com o monstro da montanha, ndo consegue convencer seu rei a desistir do propésito. Gilgames nao luta diretamente com 0 monstro, adota, antes, uma estratégia astuciosa; ele propée-lhe uma barganha: a troca de seus sete raios terriveis por sete dons especiais. Huwawa aceita a troca e toma-se, sem seus poderes, completamente indefeso. Prisioneiro de Gilgames, pede-Ihe misericérdia. Este esté prestes a ceder mas Enkidu desaconselha-o de libertar Huwawa; isto significaria a morte de GilgameS. Huwawa ofende Enkidu e é decapi- tado por este. Os dois heréis colocam a cabera de Huwawa em um saco e levam-na a presenga do deus Enlil, que, profundamente irritado desaprova o ato dos dois. No fim do poema Enlil dstribui as sete au- ras‘ de Huwawa a sete diferentes destinatérios. Edzard tem, certa- mente, azo quando interpreta o fim do poema como uma etiologia para explicar que diversos setores da natureza e da civilizagao esto ‘cercados de uma aura prépria e, ao mesmo tempo, indicaria uma espé- * Sobre a figura de Huwawa, 0 guardio dos cedros; ef. C. Wilcke, Art ‘Huwawa/Humbaba em RLA 4, col. 530-535, “0 termo sumério para expressar esta realidade ¢ me.lim; os destinatérios desses poderes de Huwawa sfo: o campo, o rio, a montanha, o leo, o junco, o paldcio e a deusa Nungal. A ultima aura Enlil reserva para si mesmo, Colegio Historia 19 129 Eomacul Bowron cie de castigo para GilgameS e Enkidu que, para onde quer que fos- sem, sempre encontrariam alguma aura de Huwawa‘"’, ‘Um outro interessante poema do ciclo de Gilgame8, que tam- bém foi incorporado a sexta tébua da epopéia clissica, foi intitulado GilgameS e 0 Touro Celeste. Trata-se de um poema sumério recons- ‘ruido parcialmente gracas a quatro fragmentos""*. Tanto no poema sumério como na epopéia cléssica a temética tratada é a mesma: © tempestuoso relacionamento entre Gilgames e a deusa principal de Uruk, Inanna. A motivagio para 0 envio do Touro Celeste contra Uruk no poema sumério é completamente diferente do motivo usado na epopéia classica. Nao se trata de um caso amoroso da deusa, mas de problemas de competéncia em seu territério sagrado. Parece que Gilgame8 nao queria respeitar os limites de competéncia e autonomia do templo de Inanna em Uruk*’. © herdi tenta acalmar a deusa com sacrificios e dadivas e avanga nos direitos do templo. Irada, Inanna exige de seu pai Anu, como castigo, o envio contra Uruk do Touro Celeste“ Anu, preocupado com a sorte dos habitantes de Uruk, tenta, em vio, dissuadir sua filha Inanna de seu propésito. Anu entrega, en- to, a Inanna o controle do Touro Celeste, que enviado a Uruk faz um grande estrago nos campos e nos rios. Gilgames e Enkidu enfrentam 0 Touro Celeste e matam-no. O rei de Uruk oferece & deusa os dois chi fres do touro como recipientes para éleo. Mas Inanna, ao ver, de cima do muro de seu templo, © monstro morto fica desesperada e comega a lamentar-se. Enkidu aborrecido com os lamentos da deusa atira-lhe “Cf, DO. Edzard, art. cit, ZA 80 (1990) p. 183. “Cf, J.H. Tigay, The Evolution of the Gilgamesh Epic, Philadelphia 1982, p. 25. Cf. tb. M, Witzel, Sumerische Rezension der Himmelstier-Episode aus dem GilgameSepos, OLZ 34 (1931) pp. 402-409. *E 9 que se pode concluir do inicio do poema onde se lé: “Inanna do céu a Gilgame’ falou: ‘O meu rebanho, de qualquer espécie que seja, eu nfo te concedo; Senhor Gilgames, o meu rebanho, de qualquer espécie que seja, eu ‘no te concedo; julgar em Eanna, no te concedo; dar ordens em meu santo Gipar, nao te concedo; julgar em Eanna, que Anu ama, nfo te concedo; 0 ilgamed, tu és um ser humano e deves permanecer como tal”. “Sobre o Touro Celeste of. R. Borger, art. “Himmelsstier” em RLA 4, col. 413-414 130 Colegio Histaria 19 == isaiosnamtosicas ‘em cima a espédua do touro. O fim do poema sumério no se conser- ‘vou, de maneira que no se pode saber, com certeza, como terminou oepisédio™”, Um quarto poema do ciclo de GilgameS, conhecido, geral- mente, como GilgameS, Enkidu e os infernos, tem cerca de 305 li- nihas e foi reconstruido por Kramer a partir de 37 fragmentos espalha- dos por diversos museus e bibliotecas“. O tema do poema foi incor- porado, em parte, na tébua XII da epopéia cléssica. O poema comera com uma introdueao cosmolégica que narra a criagdo e a divisio do cosmos entre os deuses (I. 1-26). Na linha 27 é introduzido o tema da Arvore Huluppu que crescia a margem do Eufrates e que uma tempes- tade arrancou € arrastou com a correnteza. A pequena drvore é salva por Inanna ¢ plantada em seu jardim; a deusa pretendia construir de sua madeira um leito e um trono. Assim que a érvore cresceu, trés seres diabélicos aninharam-se nela: uma serpente, que nao teme a ma- gia, em suas raizes, o péssaro Anzu‘ em sua copa e a pérfida Lilith’? entres suas folhas. Desesperada Inanna pede ajuda a seu irmao Utu, 0 deus solar dos sumérios, que se recusa ajudé-la. Coberta de lagrimas, Tnanna recorre, entio, a Gilgame’, que vence e expulsa os trés seres diabélicos da érvore. Inanna, cheia de gratidio pelo her6i, oferece-the dois instrumentos musicais, denominados em sumério pukku ¢ yekku. De posse desses dois instrumentos, Gilgame’ transforma a vida dos jovens de Uruk em um verdadeiro inferno, j4 que os obrigava a danas continuas e extenuantes. As preces e lamentagdes das maes ¢ “0 poema sumério termina com palavras humildes de Gilgame’: “Em rela- fo a teu Pai ea Ti, Santa Senhora, grande é 0 meu respeito; ati ofereco 0 Touro, grande é o meu respeito por ti, 0° Senhora, o herdi teme a teu poder inresistvel..” "Cf SIN. Kramer, GilgameS and the Huluppu-Tree, Assyriological Studies, 10 (1938) p. 1 sels. Cf. tb, A. Shaffer, Sumerian sources of Tablet XII of the Epic of Gilgamesh, Ann Arbor, 1963, 1 Sobre as caraceriticas deste pissaro mitol6gico ef. D.O. Edzard, Worter- buch der Mythologie, p. 80s; J.Black and A. Green, Gods, Demons and Symbols of Ancient Mesopotamia, Austin 1992, p. 107s. * Este personagem era na mitologia babildnica um demdnio ef. D.O. Edzard, ‘Worterbuch der Mythologie, p. 48; J. Black and A. Green, op. cit, p. 118. “Colegio HistoriaI9 SSOCOSC*~S«S Eman! Bowron inmis aflitas pelos sofrimentos de seus familiares so, finalmente, ou- vidas pelos deuses, que fazem o pukku e 0 mekku cair no mundo dos mortos. GilgameS, apesar de todos os seus esforgos, no consegue recuperar seus instrumentos musicais. Diante do sofrimento de seu amo, Enkidu oferece-se para buscé-los nos infernos. Ele age, contudo, de maneira imprudente ao desprezar os conselhos de Gilgame’ ¢ aca- ba prisioneiro do mundo dos mortos, GilgameS implora a ajuda de Enlil para libertar 0 seu servo, mas Enlil néo 0 ouve. E, entio, que 0 deus da sabedoria, Enki, entra em cena € consegue que Utu libere o espirito de Enkidu para vir ao encontro de Gilgames. O poema sumé- rio termina com uma descrigfo bastante pormenorizada da sorte de diferentes tipos de pessoas no mundo dos mortos. 0 ltimo dos hoje conhecidos poemas do ciclo de Gilgame’ trata da morte do her6i. Este poema foi conservado em uma tébua de cito colunas, cujo anverso esté quase totalmente perdido € o reverso bastante danificado™”, As dltimas 42 linhas do poema foram conser- vadas em um texto de Nippur, que se encontra, hoje, no muscu de Philadelphia". O texto comega com uma introdugo mitolégica, con- servada de maneira bastante fragmentada; segue com relato de um sonho misterioso interpretado por Enlil, que declara a Gilgame’: os deuses destinaram-no a realeza mas ndo a vida eterna. Depois de uma lacuna de cerca de 10 linhas, é narrada de maneira bastante dramética € comovente a morte de GilgameS, 0 grande rei de Uruk. A tabua de Philadelphia comega com a mengio nfio muito clara de pessoas da corte de Gilgame’, que jazem com ele na sepultura. Este passo parece embrar 0 costume testemunhado no cemitério real de Ur, em que 0 soberano levava todo seu séquito para 0 mundo dos mortos. Gilgames © CFE. Chiera, Sumerian Epics and Myths, Chicago 1934, tb, 24825428. A digo ertica dos fragmentos que conservaram este poema fi feita por SN Kramer, The death of Gilgamesh, em BASOR 94 (1944) pp. 2sets. Das cerca de 450 linhas desta tdbua conservaramse, apenas, cerca de 100. ‘@* Esta tabua cuneiforme estéregistrada no museu de Philadelphia soba sigha UM 29-16-86. Este texto foi publicado por S.N. Kramer em BASOR 94 9944p. 6. Castellino vé um certo paralelismo entre a lamentagto pela morte de ‘Umammu ¢ este texto sobre a morte de Gilgame. Cf. ZA 52 (1952) pp. 9-57, 132 Colegio Hist o € apresentado, em seguida, como o intermedisrio entre o mundo dos vivos e dos mortos. O poema termina com uma doxologia que celebra Gilgame8 como o rei sem rival. IIL. A epopéia pileo-babildnica No fim do século passado, um antiquério de Bagdé oferecia 20 assiriblogo alemo B. Meissner uma tébua cuneiforme, que, con- forme o testemunho do vendedor, seria proveniente de Sippar. Meissner comprou-a para o museu de Berlim** ¢ publicou-a dois anos depois da compra‘”, Trata-se de um fragmento de tabua com 15cm x 7,Sem que contém duas colunas no anverso e duas no reverso com 14 linhas cada. O episédio relatado corresponde ao da décima tébua da versio classica da epopéia de Gilgame8. O tipo de escrita & seme- Ihante ao usado pelos escribas do tempo de Hammurapi. O tema trata- do & 0 encontro de GilgameS com a taberneira Siduri e 0 barqueiro de Utnapsitim, aqui chamado de SurSanabu. O episédio € relatado de ‘maneira bem mais concisa e com acentos diferentes da versio classi ca, Na versio paleo-babildnica o deus Samaé ¢ Siduri revelam a Gil- ‘game§, que o destino dos homens & a morte. A resposta de Sama’ & cura e precisa: “GilgameS para onde estés indo ? A vida que procuras nfo encontrarés””*, A resposta da taberneira é mais humana e tenta consolar 0 heréi aconsethando-o a viver intensamente 0 seu dia-a- dia”. Estas palavras da verso paleo-babilénica parecem mostrar uma ‘sta tabua esté hoje inventariada no museu de Berlim sob a sigla VAT 4105. “'Cf;. B. Meissner, Ein altbabylonisches Fragment des Gilgamosepos. Mit 4 ‘Aetaungen und 2 Lichtdruck-Tafein, MVaG 7(1902) p. 4 ef inhas 22-23. Nas linhas 59 a 73 do texto lé-se: “ A tabemeira assim falou a Gilgames: ‘Gilgame’, para onde estés indo? A vida que procuras, ndo encontards. ‘Quando os deuses criaram os homens, destinaram para eles a morte ¢ retive- ram a vida em suas mos. Por isso, GilgameS, enche 0 teu estomago, entrega- te dia e noite & alegria festeja todos os dias. Canta e danca dia e noite, que tuas vestes estejam limpas, que tua cabega esteja lavada: lavada com égua, Colegdo Historia 19 133 Emonvel Bonzo diferenca de concepgio da morte entre esta versio € a versio ninivita. Na versio ninivita, Utnapistim parece apresentar a morte como uma conseqiiéncia do ditivio, enquanto que na versdo paleo-babi morte esté estreitamente ligada propria natureza do homem*”°. ‘No mesmo ano 0 Prof. Loftus comprava para o British Mu- seum um pedago de tébua cuneiforme, que s6 foi publicado em 1964 por R. Millard®'. Notou-se, entéio, que o fragmento Meissner ¢ o fragmento Loftus pertenciam, provavelmente, a mesma tébua cunei- forme, possivelmente quebrada pelo comerciante iraquiano para ob- ter mais lucro com sua venda. Esta tabua contém duas colunas de 14 linhas; a coluna esquerda conservou a resposta de Gilgames a taber- neira Siduri ea direita a resposta do barqueiro a Gilgame’. Em 1914 o museu da Philadelphia comprou, de um comerci- ante de Bagdé, uma tébua cuneiforme origindria, provavelmente, de Uruk, que pela escrita deve ser mais recente que a tébua de Meissner*”. Contém seis colunas com episédios narrados nas colunas e Il da epopéia classica, seus versos sto, contudo, mais curtos. Pelas indieagdes fornecidas pela prépria tabua, trata-se da segunda tabua de uma série com 240 linhas, das quais, cerca de 20 se perderam. A tébua comeca com Gilgames relatando 4 sua mae Ninsun os dois sonhos premonitérios que tivera; a deusa interpreta-os como um antincio da vinda de Enkidu a Uruk e da origem de uma grande amizade. A partir da linha 45 & narrada a iniciagao de Enkidu a civilizagao através do sexo com a prostituta Sambat. Ele passa, em seguida, pela cabana dos pastores, onde aprende a comer plo ¢ a beber cerveja. Nas linhas 135- 163 & narrado o encontro de Enkidu com um jovem de Uruk, que lhe relata 0 fato de que era noivo mas devia seguir 0 costume introduzido por Gilgame8, que dava ao rei de Uruk o direito de possuir a noiva alegra-te com o filbo que tens em tuas maos, possa tua mulher alegrar-se em teu peito: esta a sorte da humanidade”. ©°Cf.G. Pettinato, La saga de Gilgamesh, p.67, "Cf. CT 46,16; cfr. tb. R. Millard, Iraq 26(1964) pp. 99-105, “sta tdbua, conhecida como a tébua da Pennsylvania, foi publicada em 1917 por S. Langdon em UM 10/3. Langdon julga que seu lugar de origem seja, nfo Uruk, mas Larsa. 134 Colesiio Historia 19 essaiosmamdssioos antes do noivo. Alguns autores interpreteram este texto como uma demonstragio do “jus primae noctis” existente em Uruk. O texto, contudo, nao é claro ¢ a passagem paralela a esta na epopéia clissica esta muito lacunar no permite uma conclusdo definitiva sobre esta questio. Nas linhas finais da tabua Enkidu fica furioso com o relato do jovem noivo ¢ resolve enfrentar o rei de Uruk. O relato da luta en- tre GilgameS Enkidu & narrado de modo semelhante ao da verso ninivita, O texto péleo-babilénico é, contudo, mais completo € menci- ‘ona explicitamente a vitéria de Enkidu sobre Gilgames. Um outro testemunho da epopéia péleo-babildnica é a tabua de Yale, conservada no museu de Yale". Ela foi vendida pelo mesmo comerciante da anterior e apresenta © mesmo tipo de eserita ¢ foi en- contrada, provavelmente, como a tébua da Pennsylvania, em Uruk. Trata-se de uma tabua com cerca de 288 linhas e 0 tema tratado cor- responde ao da tabua Il ¢ III da epopéia cléssica. A-primeira parte é ‘uma continuagao do relato final da tébua da Pennsylvania, com Gil- game’ tentando, em vao, junto & sua mle, fazer que esta aceite Enkidu ‘como seu filho. Diante da negativa da deusa Ninsun e da tristeza ¢ do abatimento, que se abateram sobre Enkidu, Gilgame8, propde, como nna epopéia clissica, uma expedigao floresta dos Cedros, Enkidu, contudo, tenta dissuadir 0 amigo deste empreendimento apelando para a ferocidade e a forga de Huwawa, o terrivel guardido da floresta, dotado por Enlil de sete terrores que o tomavam invencivel. Vendo que Gilgameé nao desiste de seus planos, Enkidu recorre aos ancidos cde Uruk, que tentam demover o rei de seu intento. O rei, porém, con- tinua firme em seus planos e os ancitios acabam concordando com GilgameS e pedindo a ajuda divina para o empreendimento do rei. Se- guem uma prece a Samat ¢ o relato dos preparativos da viagem. A tébua termina com a mengdo aos jovens que pedem aos deuses a ben- ‘so para viagem de GilgameS. A finalidade da campanha de Gilgames Este texto foi publicado pela primeira vez por M. Jastrow e A.T. Clay, An (Old Babylonian Version of the Gilgamesh Epic, Yale Oriental Series, Re~ ccherches, 4/3(1920) pp. 87 sgts . Cf. tb. W. von Soden, ZA $3(1959) pp. 212 sgts.; LH. Tigay, The Evolution of the Gilgamesh Epic, Ap. 8. Colegdo Historia 19 as mane Bong contra a floresta dos cedros ¢ seu guardido € claramente expressa na linha 150 do texto de Yale: garantir-Ihe uma fama imorredoura. ‘Um segundo texto da Pennsylvania™ é um fragmento de bua que contém, apenas, o episédio relatado na tébua Il da epopéia clissica em que Gilgame8 consola o amigo pela recusa de Ninsun com 1 proposta do empreendimento & montanha dos cedros. ‘Testemunhos da versio paleo-babildnica da epopéia sto, tam- bém, os trés textos provenientes de Tell Harmal, antiga Saduppim, uma cidade do reino de E’nunna. O primeiro desses textos foi conser- vado em ume tébua, hoje conservada no Iraq-Museum sob 0 nimero de inventario IM $2265, que relata o quinto sonho de Gilgames du- rante a viagem a floresta dos cedros com a promessa de Samaé de aju- dar o rei de Uruk em seu empreendimento. Trata-se, certamente, do epis6dio narrado nas linhas 144-186 da quarta tabua da epopéia clis- sica. Os outros dois textos do Iraq-Museum esto em péssimo estado de conservagiio, © que toram sua interpretagdo muito dificil. Eles relatam, provavelmente, epis6dios da tabua V da epopéia clissica. ‘Um fragmento de uma tébua cuneiforme encontrado em 1935 durante as escavagdes no templo B de Sama em Nérebtum, uma dade do reino de Esnunna"™, conservou, também, um episédio da epopéia pileo-babildnica de Gilgame’. Este pedago de tébua conser- ‘vou uma coluna de 43 linhas que narra a chegada dos herdis & floresta dos cedros e a morte de Huwawa e corresponde aos fatos relatados na coluna V da epopéia clissica. Deve-se, contudo, notar que a mengi0 ‘aos montes Saria (Hermon) e Labnana (Libano), na linha 13, parecem situar a floresta dos cedros na Siria. “+Trata-se de um texto inédito compiado por A. Westenholz. Cf... Tigay, ‘The Evolution of the Gilgamesh Epic, p. 40 notas | e2 Este texto foi copiado e publicado por JJ.A. van Dijk em Sumer 13 (1957) 91, tdbua 12 ¢ estudada em Sumer 14 (1958) pp. 114sgts. *Esie texto encontra-se, hoje, no Instituto Oriental da Universidade de Chi- cago inventariado sob o nimero A 22007 e foi publicado pela primeira vez, por Th. Bauer, Ein viertes altbabylonische Fragment des Gilgamesh Epos, INES 16 (1957) pp. 254-262. 136 Colegio Historia 19 EssMos maRLONICOS Do periodo babilénico médio, poucos anos antes da composi- ‘go da versio atribuida a Sinleqiunnini, foram encontrados quatro textos com episédios da epopéia. O mais extenso desses textos € a verséo de Ur"”. Este texto comega com Enkidu amaldigoando 0 caga~ dor ¢ a prostituta que o tiraram de sua vida selvagem. Segue a inter- ‘vengio do deus Sama8 que o repreende por suas palavras e Enkidu passa, entio, a abengoar a prostituta. A tébua termina com o comero do relato do sonho de Enkidu com 0 mundo dog mortos. Esta tébua conservou, pois, episédios que a epopéia clissica narra na tébua VIL Os dois fragmentos encontrados em Emar“™, na Siria, relatam epis6- dios da TV e da VI tébuas, respectivamente o medo dos dois herdis e a oferta amorosa de [Star a GilgameS, Um outro testemunho da versio ‘médio-babilénica da epopéia de Gilgame’ foi encontrado em 1955 em “Megiddo ¢ encontra-se, hoje, no Museum of Antiquities de Jerusalém. Este texto foi publicado em 1959 por A. Goetze“e representa o canto inferior de uma tdbua de quatro colunas com cerca de 200 linhas, das uais apenas 26 se conservaram parcialmente. No anverso do texto & narrada a doenga de Enkidu ¢ sua visio do mundo dos mortos, no re- verso a lamentagao de GilgameS pela morte do amigo, fatos relatados na tabua VII da epopéia clissica. Deve-se, contudo, notar que o texto de Megiddo comesa com a noticia do processo movido por Enkidu na Assembléia dos deuses, em que contesta as acusagées de Enlil de que teria violado o lugar sagrado da floresta dos cedros. Enkidu declara

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