Você está na página 1de 6
1 Desconfianca Sempre tentei ser justa com minhas filhas. Anastacia € Drizela sdo as meninas mais doces ¢ adordveis do reino e nenhuma delas jamais faria mal a uma mosca, Sinto que tenho de contar a todos sobre nossa relagio com Cindy, a irma de criagio delas. Muitas pessoas acreditam que maltratamos Cindy e somos cruéis com ela. Até nos acusam de fazer dela uma serva em sua prépria casa. Esto enganadas. Em primeiro lugar, Anastacia e Drizela sempre foram criaturas delicadas, meninas sensiveis que se magoam facilmente. Quando me casei com o pai de Cindy, elas eram timidas como ratinhos. Cindy, por outro lado, era um pouco estranha, estava sempre fugindo para o quintal para conversar com os animais. Mas ela parecia ter uma natureza boa e desejei que cla pudesse ser amiga de minhas filhas e ajuda-las a superar sua timidez. Na €poca, eu nao sabia disso, mas seria como fazer uma raposa brincar de pega-pega com bebés coelhos, ————————_pr———____ bene Lembro-me do dia em que comecei a suspeitar de que Cindy nao fosse tao doce como parecia ser. Foi hé algum tempo, durante a visita anual do senhor Capezio. Ele estava medindo os pés das meninas para fazer sapatos, como fazia todos os anos. Primeiro, ele mediu os pés de Anastacia e Drizela — Mamma mia! — gritou. — Nao posso acreditar! Vocés duas calcam ntimero 40! No ano passado, calcavam 35! Minhas filhas tinham onze € doze anos, € haviam passado por um grande crescimento. Elas eram conscientes disso, pobrezinhas. — Mamie! — murmurou Anastécia —, isso é mau? — Meus pés so grandes demais? — disse Drizela, com a voz trémula — Claro que nao! — eu thes assegurei. — Pés grandes so um sinal de inteligéncia, nao sao, senhor Capezio? Ele ndo me respondeu. Estava medindo os pés de Cinderela. —Tamanho 33! Nem um milimetro a mais do que no ano passado! Sao como fiorelli, como pequenas flores! — exclamou, admirado. Cindy protestou, como se 0 elogio a encabulasse. Mas pude sentir um sorriso malicioso. Minhas meninas ficaram envergonhadas. SNe 2 Uma grande mudanca Misses meninas haviam sido feridas. Podia perceber isso em seus olhos, em suas vozes trémulas ¢ por andarem o dia todo de roupao. Precisava agir antes que Cindy atacasse novamente, como uma serpente, a autoestima de minhas filhas. Assim, no dia seguinte a visita do senhor Capezio, aconselhei minhas filhas a ficarem longe de Cindy. — Vocés estario muito ocupadas com suas novas responsabilidades! — expliquei. — A partir de agora, Anastacia, vocé serd responsavel por chegar na hora para suas ligdes de miisica, colher as flores para a mesa de jantar © colocar sua roupa suja no cesto. E vocé, Drizela, se encarregard de calgar luvas limpas em suas aulas de danga, tocar o sino do jantar ¢ decidir que roupas precisam ser consertadas. Elas me olharam desanimadas. Era muito servico. Entao, Drizela perguntou: —E Cindy? Ela nao teré novas responsabilidades? — Claro! — respondi. — Cindy lavard e passaré todas as roupas. Ela varrerd, esfregard o chao ¢ tiraré 0 p6 dos méveis. Também nos servird o café da manha, consertard as roupas ¢ alimentara os animais. — Parece justo — disse Anastdcia. Lagrimas correram de meus olhos. Que meninas boas ¢ corajosas eu tenho! 3 O que é justo, ¢ justo Peat anos. Apesar de Cindy trabalhar muito, ela nunca estava ocupada demais para conspirar contra minhas meninas. Ela sabe que Anastécia tem pavor de ratos. Pois, em uma manha, escondeu um rato enorme debaixo da xicara de ché de minha pobre filhinha. Nunca havia ouvide gritos tao horriveis. Eles me deixaram apavorada e Drizela, histérica. As meninas ficaram com os nervos t4o abalados que tive de chamar o senhor Sédative, especialista francés em doengas nervosas, e o senhor Cerebrum, psicanalista austriaco. Mesmo com a ajuda desses médicos renomados, minhas meninas demoraram a se recuperar. Quando elas finalmente estavam bem de novo, iniciei as ligdes de musica. Para meu alivio, Anastécia tocava sua flauta lindamente, sem um erro. Drizela cantava como um anjo, sem desafinar uma nota. Cindy entéo entrou na sala de miisica, trazendo um convite real. O Rei realizaria um baileem homenagem ao Principe e estévamos todas convidadas! Estava pulando de alegria e minhas filhas também, até que Cindy falo — O convite diz que todas as mogas solteiras do reino estao convidadas — disse, balancando seu cabelo loiro, piscando com seus longos cilios e dando uma pirueta. — Sou solteira, 0 que significa que também sou convidada. Imediatamente, a flauta de Anastacia caiu no chlo as maos de Drizela foram até sua boca ¢ ela comegou a roer as unhas, nervosa. Meu instinto maternal deu o sinal de alerta, mas o que eu poderia fazer? Eu precisava ser justa. Falei entZo as garotas que, se elas terminassem todas as suas tarefas € vestissem trajes adequados, todas poderiam ir, até mesmo Cinderela. Sem mais uma palavra, Anastacia saiu correndo para pegar flores ¢ escolher seu traje, enquanto Drizela decidia quais de suas roupas precisavam de conserto. Eu estava orgulhosa delas. Alegres, elas terminaram essas dificeis tarefas € passaram o resto do dia se preparando para o baile. Cindy, por outro lado, demorou muito para terminar suas poucas tarefas — ela demorou horas limpando os ferros da lareira e mais ainda polindo a sopeira. As oito horas da noite, ela ainda nao havia terminado de polir as facas de peixe. Nao € preciso dizer que ela ainda estava de avental ¢ lengo na cabega. Nés jé estavamos prontas, claro, e como seria rude fazer 0 cocheiro esperar, demos adeus & Cindy. Eu deveria supor que ela faria um tiltimo esforgo para nos atrasar, ¢ ela assim o fez. Estévamos andando em direcao & porta de safda quando ela desceu pela escada usando um vestido medonho que parecia ter sido costurado por roedores. — Hi lugar para mim na carruagem? — perguntou. Pessoas nos acusam de sermos indelicadas com Cindy, mas olhei para minhas filhas ¢ fiz um grande favor & Cinderela naquele momento. Dissemos a ela, da maneira mais gentil possivel, que seu vestido nao era adequado ¢ que ela deveria ficar em casa Nossa intengdo era poupé-la de uma grande vergonha. Surpreendentemente, ela nao ficou nem um pouco agradecida. A Sem outra explicacao Queia Ihes dizer que minhas filhas foram apresentadas ao Principe e que o fascinaram, mas, que tristeza, nao foi isso que aconteceu. Elas 0 conheceram ¢ ele foi muito gentil, mas, quando tentaram prender sua atencdo, ele mal respondeu — estava claramente concentrado em outro lugar. Depois de alguns gracejos distraidos, ele desculpou-se € saiu correndo. Minhas meninas ficaram muito desapontadas. — Mamae — choramingou Drizela —, ele quase ndo conversou conosco! —E nem nos tirou para dangar! — reclamou Anastacia. — Ele no tirou ninguém para dangar — afirmei, e era verdade. A orquestra estava tocando ¢ 0 saldo de baile estava repleto de lindas mogas, mas elas dangavam entre si. © Principe estava fora das vistas de todos. 1s “preciso it a fundo nisso”, pensei ¢ corri para o banheiro, que estava repleto de maes frustradas. Nao foi surpresa notar que o assunto principal era o comportamento estranho do Principe. Eis que uma mie entra com a noticia de que © Principe estava no jardim, dangando valsa com uma jovem! — Quem é ela? — perguntaram todas ao mesmo tempo, como em um coro. — Nao tenho a menor ideia — respondeu a mie, irtitada. — Ela deve ser estrangeira (© que ocorreu depois foi muito vergonhoso, Antes de eu poder sair em direcao ao jardim, fui empurrada, ou melhor, pisoteada por um bando de mies sem educacio. Por causa da multidao, no consegui olhar bem a misteriosa jovem. $6 consegui vé-la ao longe. “Ha algo estranhamente familiar nela”, pensei. De qualquer forma, eu tinha outras preocupagées. © baile havia sido uma grande decepgao para minhas meninas. Poderiam elas superar esse trauma ou recomecariam a andar pela casa de roupo? Nao podia saber. © senhor Capezi entregar veio na manha seguinte, para sapatos de minha filhas. — Ouvi dizer que o Principe se apaixonou ontem a noite por uma pequena ¢ bela jovem de cabelos dourados — disse. “Aquela com quem cle dangava no jardim”, pense’ iner rel — continuou —, mas essa jovem usava sapatos fcitos de cristal! Em todos os meus anos como sapateiro, nunca ouvi falar disso! — Soube também — disse cle —, que ela fugiu do palacio a meia F. agora, 0 Pr sal -noite, deixando um dos sapatos para tris. neipe quer encontrar essa bela jovem ¢ © com cla. — Isso sera facil! Ele deve ter 0 scu enderego — fi ci. — Nao, essa € a questo. Ele sé tem o sapatinho de cristal! — respondeu o senhor Cape Zi0..— Ele sabe que a jovem cujo pé couber no sapato sera sua noiva. Agora mesmo, 0 Graio-Duque por cle, logo estara aqui — Vocé esti dizendo que o P st percorrendo 0 Reino. Passei ‘incipe se casaré com a mulher que conseguir calgar © sapato de perguntei, ¢ cle me disse que sim. istal? — ntio, minhas meninas ainda tém chance! Uma delas conseguira calgar 0 sapato, seguramente”, pensci — Deixe-me acompanhé-lo, senhor! — disse, conduzindo 0 sapateiro até a porta. — Ah, mais uma coisa — ele disse, assim que abri a porta. — Dizem que o sapato de pequeno. istal € muito, muito Em meus desesperados esforgos para tirar minhas meninas da cama, quase nao notei Cindy. Se cla nao tivesse derrubado as bandejas de café da manha, eu provavelmente nao a teria visto ali Mas cla as derrubou enquanto cu contava pa Drizela acerca da busca do Principe pela jovem misteriosa c implorava para que ela lavasse 0s p do Duque. © barulho assustou-me, mas 6 que me assustou ainda mais foi a resposta de Cindy quando Ihe pedi que limpa: porta cantarolando uma valsa! s antes da chegada se a sujeira. Ela me ignorou! Depois, sait pela c > baile! Era a mesma valsa que estava tocando no baile Naquele exato momento, minhas preocupagdes com minha meninas mudaram — para pior. Com certeza, Cinderela havia ido ao baile. Mas como? Fiquci quebrando a cabega. E, finalmente, compreendi Nao gosto de usar a palavra “magia negra”, mas, nessas circunstancias, precisava: MAGIA NEGRA! Cindy havia usado poderes méagicos, obviamente malignos, para transformar-se em uma dama, it ao baile ¢ colocar um feitigo no Principe. Quando pensei nas coisas que ela poderia fazer em seguida, meu sangue gelou. i 4 i 4 i 5 Quando coisas més acontecem a filhas boas Tenno muitas lembrangas tristes daquele dia. Nao deveria ter trancado Cindy em seu quarto, mas a enviado diretamente ao doutor Cerebrum em sua clinica para problemas mentais. Alguns anos de descanso atras daquelas janelas com barras fariam bem a ela ¢ teriam salvado minhas filhinhas da humilhago que se seguiu. Cindy usou seus poderes magicos para sair do quarto. Ela desceu as escadas antes que o Duque partisse. Como nem Drizela nem Anastacia tinham conseguido calgar 0 sapato, apesar de terem tentado com todas as suas forgas, o Grao-Duque estava para partir. Os eventos que se seguiram so nebulosos para mim. Lembro-me de que Cindy estendeu os pés para 0 Grao-Duque ¢ que Anastacia comegou a gritar de raiva Lembro-me também de que Drizela comecou a arfar, com falta de ar. Acho que tentei afasté-las com minha bengala, mas nao tenho certeza disso. © que sei € que, com a confusao, © sapato de cristal voou antes que Cindy 0 calcasse, caiu no chao € quebrou-se em mil pedagos. Minhas filhas ¢ eu gelamos. O Grao-Duque suava. Mas Cinderela sorria e, como por magica, ela materializou outro sapato! No preciso dizer que o sapato serviu perfeitamente, pois para isso serve a magia negra. 6 Olado bom Orem. enquanto tomdvamos ché, Anastacia comegou a reclamar. Ela sempre faz isso. — Cindy casou-se com o Principe — queixou: com a boca cheia de bolo —, e nés, nao! Antes que eu pudesse lembrar as duas de que niio se fala com a boca cheia, Drizela me interrompeu dizendo: “se, — Nid € justo! — Meninas! — disse a elas. — Vejam pelo lado bom! Temos satide, estamos juntas € temos um novo criado. __ Toquei o sino para chamar Rumpelstiltskin, que veio a passos répidos com uma travessa de bolinhos quentes, saindo em seguida. — Sinto algo estranho sempre que ele chega perto de nés — murmurou Anastécia. — Sel do que esté falando, ele esté sempre amuado! — observou Drizela. — Ele € rapido, eficiente ¢ discreto — disse. — ‘Temos sorte em té-lo aqui. E imagino que ele nunca ir nos enfeiticar como alguém que conheco. Logo, qual o Problema de precisar dar a ele um salério? Pelo menos, nao preciso me preocupar mais. E isso sim € uma grande béngio. fi tod

Você também pode gostar