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Caverna de Safira

Victor Biancardine
O Sol me aquecia, branco como mármore, conforme eu adentrava na caverna.
Meredith havia de me ter abandonado, e o som dos pássaros me ensandeciam. As
paredes eram frias, azuis como safira, lisas ao toque. Uma escada natural fazia minha
passagem para afundo.
O piso era de mármore, se corretamente me recordo. Uma casa vitoriana de
província, que excentricidade. Sua pele era macia ao toque, frágil sob minhas mãos. Seu
corpo era esbelto, tanto quanto uma estátua. Tanto quanto uma estátua…
A caverna me confortava, me aquecia, me acolhia. Sua parceria era bem-vinda, e
muito desejada. Desci os degraus de terra dura, conforme minhas mãos gentilmente
confortavam suas paredes elegantes, cada vez mais escuras.
Seus olhos eram o que mais me atraíam. Seus lábios eram carnudos, seus seios
perfeitamente definidos. Sua postura, seus quadris. Inclusive seus pés me agradavam,
afavelmente sofisticados. Ela sorria como um arco-íris. Ela nunca mais sorriu para mim.
Esfreguei-me, procurando calor. Sem o Sol, a caverna era fria, infértil. Ao meu
redor, apenas o breu. Ao longe, o som de água atraiu minha atenção. Seguindo meus
instintos, fui em direção à fonte, memorizando o caminho conforme andava.
O rio corria pelo subterrâneo com força, seguindo Sul conforme levava consigo
os pesares do mundo acima. Caminhei por sua margem, o ar esfriando conforme eu
progredia. Respirava pesadamente, buscando uma fonte de luz. A caverna me
expulsava, me arrefecia, me repudiava, mas eu prossegui.
Ela primeiro me ofereceu a mão. A mão, o olhar e um beijo. Sua classe deixava-
se esbanjar, conforme suas risadas enchiam meus ouvidos. Enchiam-nos de prazer, de
vontade, de desejo. Suas bochechas coraram no dia que fizemos amor. Depois, fora seu
sangue.
Um grão de luz se acendeu na caverna, iluminando meu caminho. Agradeci-o
silenciosamente, seguindo caminho. As paredes, agora iluminadas, mostravam rabiscos
primitivos, de uma era longínqua. Examinando-os, podia jurar que vi uma aliança.
Notas subitamente ecoaram pelo ar, reverberando uma sinfonia amaldiçoada.
Tentei ignorá-la, mas ela se provou persistente demais para mim. Desci a passos largos
a caverna mal-iluminada, escapando daquele som sem origem ou razão. O riacho
desapareceu sob rocha funda aos meus pés, deixando-me desacompanhado com o som.
Aquele maldito som.
Com um baque, o grão de luz se extinguiu, deixando-me sozinho naquele lugar
demoníaco. Mas não mais eu precisava de sua luz. As paredes safira da caverna
floresciam com luzes rabiscadas em um azul claro. Sob o brilhar anti-natural, segui
caminho para as profundezas da caverna.
Ela dançava no salão, rindo e cantando. Seu vestido de pérolas chacoalhava com
graça ao vento e à música, delineando seu corpo sedutoramente, mas mantendo a
sutileza que viria a esperar de si. Vossos passos eram tão lindos como no dia que
primeiro os ouvi. Até mesmo em sua morte, sua expressão era serena.
Depois de muito andar, cheguei a um lugar calmo da caverna. Não havia luz, ou
mesmo passagens. O ar era estagnado, mas eu me sentia seguro ali. Descansei,
recostando-me contra as paredes de safira.
Olhando acima, via estrelas. Elas sorriam para mim, dançavam com calma. Sua
melodia era a de uma dor passageira, que se exauria com um suave toque, ou um chorar
pesaroso. E elas continuaram. Cantaram, dançaram, zombaram de mim. Estrelas
amaldiçoadas, estrelas malditas, estrelas detestáveis.
Levantei, querendo sair daquele lugar amaldiçoado, mas o caminho de volta
havia sumido. Estava preso. O som venenoso das gargalhadas de minhas companheiras
estrelas me alcançou, enquanto tentava fugir. Elas me prenderam no lugar, de pé, no
centro da sala. E giraram. E giraram. E riam. E riam. E me encobriam com luz. Luz
acusadora, luz discriminatória, uma luz recheada com o ódio de mil gerações.
E então, tão rápido quanto apareceram, elas sumiram. Deixaram-me sozinho
mais uma vez. Mas eu não estava sozinho. Senti comigo uma presença, tão ameaçadora
quanto era sedutora. O corredor em que agora me encontrava era estreito, e não havia
ninguém, mas eu podia sentir. E a Presença estava próxima.
Corri. E corri, e corri. A Presença me perseguia, me encurralava, brincava
comigo. E eu tentava escapar, e tentava, e tentava. Mas sempre ganhava, sempre me
superava. Com cada passo em minha direção que a presença demoníaca trazia, as luzes
aumentavam. Toda vez que eu escapava, elas diminuíam. A Presença me sentia, assim
como eu a sentia. Ela não era deste mundo, embora conseguisse dominá-lo com
facilidade.
E então, o silêncio. Havia a Presença desistido? Estava eu delirando, caído
vítima de suas abominações? Decidindo-me por não dar-lhe chances, segui sem rumo
pelos corredores. E ouvia música. E ela amaldiçoava-me.
“Pobre pobre homem” Ela cantava, sussurrando em meus ouvidos “Foi para trás,
deu-se ao luxo, perdeu a corrente, esqueceu a cruz” E eu corri. E tentava escapar. Das
suas cantigas, de suas promessas quebradas, suas risadas amaldiçoadas.
E por fim, eu caí. Deixe-me tropeçar, por cima do chão de terra dura eu corri,
mas ao buraco caí. E caí. E caí. Sem fim e sem esperanças, na escuridão eterna sem
lembranças, eu caí. Tentava escalar, mas não havia como me apoiar, não havia como me
segurar. Eu cairia para sempre. Para sempre aprisionado.
E como o riacho que chega ao rio, eu cheguei ao chão. Andei tropegamente,
analisando meus arredores. Não havia sinal da Presença, da música, nada. A paz seria
minha companheira, apesar de apenas por enquanto. Comecei ao Norte, procurando um
caminho para fora daquele lugar maldito, e o que ouvi me enfurecera.
Risadas. E gemidos. De prazer. Andei depressa, me concentrando em não ouvir
tais escárnios, quando, das trevas avante e sem aviso, a face dele surgiu, sorridente
como a Lua. E ele ria. E ele ria. E o amaldiçoado ria. E eu o enforquei, com mãos estas
que ainda lembram-se de vosso sangue. Ele ria, conforme o ar esvaía-se de seus
pulmões, e ele riu conforme morria, como o cachorro que era. E, para meu choque,
Meredith tomou seu lugar. Sorrindo.
Abalado, corri na direção oposta, mas a risada de Meredith me seguia, contando
das proezas amorosas de Maximillien, rindo-se de suas escapadas românticas,
insultando-me como a uma criança. E eu a amaldiçoava, a xingava, por pulmões e
lábios, a chamei de todos os nomes, a rameira maldita. E ela simplesmente ria.
Em cada escrito nas paredes de safira, a cabeça decepada e sorridente de
Meredith surgia, me seguindo incondicionalmente. E incondicionalmente, eu fugia. Fugi
até não ter mais fôlego, fugi até minha visão ficar embaçada, fugi até cair no chão,
desistindo.
Mas eu não estava mais sozinho. De todos os cantos, a Presença havia retornado.
Ela me encurralara, e eu não tinha para onde escapar. Trevas envolviam-me, sedutoras e
perigosas como a noite em si. E a Presença me chamava. Ela me chamava por nome, e
dizia sobre minha vida, coisas que até mesmo eu não sabia, mas que sentia ser verdade.
E ela me dominou, trevas cobrindo meus olhos, ouvidos e boca.
No coração da escuridão, uma visão destacava-se do breu, e ela me aterrorizava.
Um homem, alto como um prédio, com asas que poderiam cobrir o pacífico, composto
de trevas tais que ele se destacava do breu ao redor. Seu olho era do meu tamanho, e ele
estava fechado. A Presença tomara forma.
— Eu — A Presença disse, sem usar palavras, embora se fizesse ser entendida
— Sou H’rath, e sou seu deus.
Não quis acreditar. Ele não poderia estar falando a verdade. Era mentira.
— Criei a Terra e o Universo, e todos vocês são fruto de mim. Sirva-me, e
poupar-lhe-ei.
— Não! — Gritei, bradando minha fé — Jamais servirei um senhor tão vil
quanto vós.
— Vil? És vós quem tem as trevas em si. Olhe para si, e veja quem realmente és.
E H’rath abriu seu olho, e eu gritei. E gritei por mil noites, pois me mostrava a
mim como realmente era. Não era de minha escolha servi-lo: Eu já o era. Sua forma era
minha forma, e eu gritei. E eu chorei. E eu o servi.

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