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O Último Lobisomem

Victor Biancardine
O ar mostrava-se pesado, a fumaça de um cachimbo aceso preenchendo-o. Sen-
tado numa sala de estudo, envolto de livros, estava um homem alto, pálido, olhos e ca-
belos castanhos. Seu nariz protuberante parecia ter sido delineado delicadamente, e seu
queixo forte apenas adicionava à sua aparência bruta porém bela. Um restolho de barba
repousava em sua face, negro como a noite.
Abriu os olhos, acordando. Em seus primeiros momentos de consciência, ouviu
o crepitar baixo e calmante de sua lareira, acesa em sua frente. Seus olhos sóbrios e can-
sados foram atraídos para o espelho acima da mesma. Sentiu uma pontada aguda de dor
em seu peito, uma mistura de auto-piedade e depressão. Sentado estava numa cadeira
luxuosa, em sua biblioteca particular, mas nada sentia senão o peso horrífico da noite
sobre seus ombros. Bufou com tristeza, fechando o livro que lia antes de adormecer.
Oliver Twist, ele dizia. Publicado havia menos de um ano. Não importava, ele concluiu.
Não havia mais livro que pudesse entretê-lo.
Colocou o livro em sua mesa, apagando a vela em seguida. Sentiu a brisa refres-
cante da noite vindo de sua janela, e aproveitou-a enquanto podia. Em alguns instantes,
a brisa se foi, deixando-o sozinho outra vez. O homem bufou, olhando ao redor do apo-
sento sem esperanças de distrações. E então, seu olhar concentrou-se no espelho.
Os olhos, ele decidiu. Os olhos são a pior parte. Sentou-se ereto na cadeira, fi-
tando a si mesmo com repulsa. Com o tempo, passara a odiar a própria face. Do que
adianta, continuou a pensar, uma vida cheia de livros, mas livre de emoções? Olhe para
si mesmo. Você é patético. Desde que…
Parou, assustado. Os olhos, ele pensou, por que eles choram? Olhos azuis fita-
vam-no, lágrimas escorrendo. Ele percebia o medo, o terror, a angústia. Os olhos implo-
ravam-lhe piedade, imploravam por ajuda. Mas não haveria ajuda. A piedade havia aca-
bado. Não havia saída, não havia escapatória. Com um passo…
— Não! — O homem gritou, interrompendo-se. O som ecoou pelo quarto, to-
mando qualidades assustadoras imediatamente. Suspirando, ele se apoiou na cadeira,
esfregando as têmporas. Estou ficando louco? Ele perguntou, mas não houve resposta.
Jamais havia respostas.
Alguns minutos depois, ele se levantou. Sua boca estava seca, e ele muito dese-
java uma bebida. A porta estava fechada, fato que o surpreendeu. Segundo sua memó-
ria, havia deixado-a aberta. Deu de ombros, e abriu-a. Em seus pés, estava um lobo,
deitado com tristeza.
— Olá Johann — ele abriu um sorriso terno —, como você está hoje?
“Estou excelente, Benjamin,” ele imaginou o lobo falando “e como o senhor
passa?”
— O mesmo de sempre, velho amigo. — Fez carinho em Johann, sorrindo de
forma triste. Sem ele, pensou, estaria morto. Depois de alguns segundos, levantou-se do
chão, espanando as roupas, e andou pelo corredor gótico e sombrio até seus aposentos.
As janelas eram grandes, e de relance, Benjamin viu o fogo distante dos moradores do
vilarejo, cada vez mais próximo. Ignorou-os, eram brutos e incivilizados.
Quinze passos, ele contou. Quinze passos de sua biblioteca pessoal até seu quar-
to. Quinze passos amaldiçoados. Todos eram. Parou diante da porta do seu quarto. Não
agüentaria vê-lo outra vez. Não queria vislumbrá-lo. Não queria abrir a porta. Não, de-
cidiu-se já passou da hora de se lamentar. Com receio, apartou-a.
O quarto estava como ele se lembrava. A cama estava desarrumada, os lençóis
de seda ainda amassados em seu pé. A janela estava aberta, deixando a brisa entrar. Em
frente à cama estava uma escrivaninha cheia de livros em branco, peneiras, estojos de
tinta e papéis avulsos. Seu armário de madeira feito à mão na Itália tinha suas gavetas
abertas, com todas as roupas jogadas ao redor. Acima dele, Benjamin achou o que que-
ria: álcool.
Dois copos de vidro encontravam-se ao lado de uma garrafa transparente de uís-
que, Jack Daniel’s. Em tempos mais felizes, seu servo havia lhe assegurado da qualida-
de da marca. Lembrou que, quando percebeu que o uísque era excelente, dera uma nota
de cem para o servo como sua forma de agradecimento.
Bufou sem determinação, e serviu-se um copo. Deu-lhe um olhar roto, e tomou
tudo de uma só vez, fazendo uma careta ao engolir. O amargo ainda era amargo, ainda
bem. Divertiu-se por um momento com esse fato, e bebeu mais um copo. Depois, tomou
outro. E, com o quarto copo, terminou a garrafa.
O mundo ainda era ensolarado. Era uma noite calma de Abril, com as flores bro-
tando na Primavera. Ambos estavam em sua caminhada noturna, dois amantes sob o
luar. E a besta espreitava. Os apaixonados seguiram pelo caminho cimentado, passando
por cima de um rio, rindo, contando histórias, sendo jovens. E a besta se aproximava.
Por fim, os dois deitaram-se na grama, rodeados de flores, sob o luar. Tomados pelo
momento, eles se amaram. E a besta atacou.
Benjamin acordou. Estava deitado no chão, largado. Seu copo jazia quebrado ao
seu lado, irreparável. Johann o observava cauteloso, verificando, para o espanto do ho-
mem, se ainda estava vivo. Ele ponderou se ele queria devorá-lo ou se estava genuina-
mente preocupado consigo. Sem provas para nenhuma das evidências, decidiu não pen-
sar nisso. Levantou-se.
Não sabia quantas horas passaram — se é que passaram —, nem há quanto tem-
po Johann estava sentado do seu lado, mas ele sabia de uma coisa: Precisava de mais
uísque. Espanou-se, e saiu do quarto.
O saguão do castelo era majestoso, com sua arquitetura de tirar o fôlego, seus vi-
trais minuciosamente construídos, seus móveis de primeira qualidade, e o sentimento de
que tudo aquilo era de uma era de outrora, que jamais retornaria àquela terra. No segun-
do andar, que era apenas a passada para os corredores e aposentos, encontrava-se Ben-
jamin, andando até o primeiro andar, à cozinha e à adega.
Passou pela sala de jantar, espetacular com seu tamanho gigantesco, e foi até a
cozinha, tão larga que se poderiam fazer refeições para duzentas pessoas em apenas um
lugar. Procurou a porta para a adega, achando-a em alguns segundos. Entrou, engolfan-
do-se com a visão de centenas de garrafas de vinho e bebidas.
Andou despreocupado por entre as fileiras de barris, passando a mão pela madei-
ra de forma sutil. Continuou a marcha por alguns instantes, bebendo copos e mais copos
de vinho, antes de chegar ao centro da adega onde guardara sua carruagem, que jamais
usaria novamente. Sem medo, adentrou. Se fechasse os olhos, ainda podia lembrar…
O dia estava claro naquele Outono agradável. Benjamin andava de carruagem,
acompanhado de sua amada. Contemplavam as flores, os cheiros, a alegria. Tudo estava
bem, e porque não haveria de estar? O Sol aquecia-os, a brisa envolvia-os, e a vida era
bela. Michael, o cocheiro, conversava com si mesmo, como sempre fazia.
— Lorde Benjamin! — Winston correu ao seu encontro, exasperado. Seu físico
tornava-lhe difícil e inabilitado para corridas, mas ele as fazia de qualquer forma. Arfou
por ar, acariciando o próprio bigode. Quando recuperou o fôlego, começou: — Senhor,
os aldeãos estão inquietos. Sete peças de gado sumiram nesta semana das fazendas, rou-
bando-os de alimento e fonte de renda.
— Isso me parece sério. Sabemos qual é a causa desses desaparecimentos?
— Não, senhor. Os moradores insistem que é um… Não, não sabemos a causa.
— Winston parecia desconfortável, apoiando o próprio peso de um pé para outro.
— Espere, o que os aldeãos insistem em?
— Nada, senhor. Apenas superstições retrógradas e juvenis, como são comuns
aos ignorantes. — Fez um gesto com a mão, indicando sorrateiramente Michael. — Na-
da para se preocupar. — Adicionou com um sorriso.
— Bobagem, Winston. Se for da preocupação dos aldeãos, então deve ser algo
importante.
— Bem, senhor, eles acreditam… Que é um lobisomem, senhor. — Winston
sempre usava „senhores‟ demais quando estava nervoso.
— Um lobisomem! — Benjamin gargalhou com gosto. — Excelente piada.
Bem, diga aos moradores que…
— Isso não é tudo, senhor. Dizem que tal lobisomem anda pelo bosque durante a
noite, caçando vítimas humanas. — Winston tirou sua cartola, girando-a nas mãos. Gos-
tava de vestir-se como um lorde, embora não o fosse.
— Certo. — Benjamin sorriu como de costume. Seu sorriso sempre ganhava
multidões — Eis o que faremos: Você diga aos aldeãos que cuidaremos deste… Pro-
blema, e aumente a segurança das fazendas. Provavelmente são ladrões. E, diga também
que Meredith — apontou para sua esposa — e eu faremos uma inspeção do bosque, à
procura de… Lobisomens. — Zombou.
Winston fez um sinal para Michael, e partiu. O cocheiro, por sua vez, atiçou os
cavalos, movendo a carruagem para frente. O Lorde não sabia naquele momento, mas
aquele era o começo do fim.
Um baque acordou Benjamin, assustando-o. O chão tremeu com o impacto, e ele
pôde ouvir o som longínquo dos aldeãos atacando os portões do castelo. Soltou uma
risada zombeteira, e saiu do depósito. Cambaleou com alguma dificuldade — o sono
ainda dominava boa parte de si — ao saguão, aonde deitou no chão de mármore.
Outro baque inundou a propriedade. Os gritos insultantes e ignorantes de rufiões
invadiram suas orelhas por entre as frestas, obrigando-o a se levantar. Com o terceiro
estrondo, sua ira aumentou. Com o quarto, ele passou a gritar.
— Vocês me querem?! — Desafiou os cidadãos do outro lado dos portões —
Desejam minha carne?! Meus ossos? Pois bem! Venham! Tiraram de mim tudo, me
acusam e me difamam, e agora querem minha cabeça. Pois que venham! Tirem de mim
esta miséria ignóbil que me opuseram! Venham!
E então, com um golpe final, os portões cederam.

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