Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
No Brasil, nos últimos quinze anos, foi disparado um movimento editorial nas
comunidades indígenas que colocou em circulação a produção escrita de várias
etnias. Com apoio de órgãos governamentais e não governamentais, em sua maioria
financiada pelo MEC, essas publicações deram a ler a diversidade cultural e
lingüística existente no território nacional.
Entre os anos de 2004 e 2008, por exemplo, por meio de edital da Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), foram publicados
mais de 60 livros de autoria indígena1. Isto é, livros cujos autores são os próprios
índios.
Quando nos deparamos com esses livros, podemos nos perguntar: que tipo
de obras são essas? Livros didáticos, livros poéticos, livros infanto-juvenis? Fontes
históricas, antropológicas? Pertencem à História da Literatura Universal? À História
da Literatura Brasileira? Compõem o corpus moderno de uma Literatura indígena
emergente?
Sabemos que todos esses livros são resultados do contato entre os povos
indígenas e a sociedade ocidental. Foram produzidos em espaços de catequização
e, mais recentemente, de formação escolar intercultural, nos quais missionários,
professores e/ou pesquisadores não índios transmitiram aos povos indígenas um
saber específico, relativo à cultura do impresso.
Como pensar/como avaliar hoje o alcance da introdução da escrita alfabética
e da prática de edição de livros nas comunidades indígenas? É possível pensar que
tais livros, quase sempre produzidos como materiais didáticos para as escolas
indígenas, têm se constituído como importantes veículos de afirmação cultural,
política e epistemológica desses povos? Certamente, tais livros, escritos por meio de
gestos cognitivos e estéticos, ou seja, gestos tradutórios, abrem caminho para que
possamos ler/escutar as narrativas indígenas pelas mãos/vozes dos próprios povos
indígenas.
Eis um fenômeno cultural bastante complexo. Maria Inês de Almeida oferece-
nos uma interpretação desse fenômeno em sua tese de doutorado Ensaios sobre a
literatura indígena contemporânea no Brasil (1999). Relata como a confecção do
material didático para a implantação de escolas indígenas tornou-se um grande
laboratório intercultural. Analisa, por meio dessa experiência editorial, como os mitos
e histórias orais contados pelos povos já não se deixam domesticar pela nossa
lógica ocidental. Ressalta as características semióticas desse objeto cultural que
desponta, com seu trânsito entre culturas:
A possibilidade de estarem os índios escrevendo em suas línguas e em
língua portuguesa, publicando, sem contudo, abandonarem suas próprias
linguagens, traça no idioma mesmo do dominador uma Geografia dos
rebeldes, dos que se deixam ficar fora da chamada Civilização Ocidental.
(...) Na prática de uma escrita indígena em língua portuguesa, o propósito
será de dar a ler ao mundo, dádiva que cria legentes, suas imagens e a
imagem de suas vozes. Se as narrativas indígenas estavam restritas a
condição de mitos, vivos na oralidade, mas letra morta nos registros
científicos, agora, mudadas em texto elas fazem parte de uma estética do
fulgor, da pujança, da repartição dos dons... (ALMEIDA, 2009, p. 61-66).
Mas quem de nós deixar-se-ia perder numa floresta? Quem de nós habitaria a
floresta sem tentar dominá-la com códigos urbanos, com jaulas para os animais
selvagens, com uma bússola para desmerecer a luz do sol e a copa das árvores?
Ou, pelo gesto inverso ao de Benjamin, por qual caminho seguiria o habitante
da floresta nas ruas da cidade? Sem o som do graveto ao ser pisado; sem os
diversos tons do mutum, da jacutinga, da jacupamba, do macuco, do chororão; sem
que possa recolher, para sustento e remédio, as ervas perfumosas da floresta4? Por
qual caminho transitável esse habitante, que não se perde na floresta, cruzaria as
ruas labirínticas da cidade? Ou registraria, senão no corpo e na terra, os primeiros
vestígios de seu sonho?
Uma geografia biográfica
Breve conclusão
É possível que, com a língua literária, com a prática coletiva de edição, com o
diálogo intercultural, aproximemo-nos do desenho estético do mundo Maxakali, sem
deslocá-lo para nossa visão acostumada. Um caminho para um novo encontro entre
as línguas da cidade e da floresta. Por isso, apostamos que o texto será capaz de
criar geografias biográficas que atravessarão o papel e recomporão a floresta.
Entretanto, e este é o ponto duro de nosso pensamento, não estamos
imaginando que o livro trará a floresta de volta como num passe de mágica, ou como
nas estórias encantadas. Não queremos insistir numa utopia ocidental que esquece
que há um ressalto entre a natureza e a cultura, entre a literatura e o mundo, entre o
livro e a floresta. Esse ressalto é precioso porque nos indica que sempre haverá
outras formas, outros mundos no mundo - que não há tradução exata entre saber
xamânico e científico. A diversidade de vida pode corresponder a outra diversidade
de vida. Desde que haja entre elas um ressalto, acreditamos, é possível conceber a
pervivência das línguas.
1
Projeto 8273 SECAD-MEC/FALE-UFMG: Catálogo de Obras Indígenas. Disponível em:
<http://www.letras.ufmg.br/bay/uploads/arqQv6U25_port.pdf>. Acessado em: 25 fev. 2010. Sobre o conceito de
“experiência de autoria”, conferir: MONTE, Nietta Lindenberg. Sobre o nascimento e o crescimento dos autores
e da autoria no cenário intercultural brasileiro: ou algumas reflexões sobre a história da autoria na
experiência amazônica brasileira. Disponível em:
<http://www.letras.ufmg.br/bay/sites/literaterras/niettatexto.htm>. Acessado em: 25 fev. 2010.
2
Sobre a questão do estilo indígena na Literatura Brasileira contemporânea, conferir: ALMEIDA, Maria Inês de.
A escrita da comunidade ou um estilo indígena na literatura do Brasil. In: PERES, Ana Maria Clark (org.) O
estilo na contemporaneidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005, v.1, p. 97-106.
Disponível em: <http://www.letras.ufmg.br/poslit>.
3
Inicialmente, a versão em português para o nome do projeto foi estabelecida como sendo A cura da terra
maxakali. Posteriormente, os professores indígenas propuseram outra tradução, mais literal: Vamos ensinar a
cuidar de nossa terra.
4
Este é o título da pesquisa do professor Ibã Kaxinawá, com quem os professores Maxakali (Gilmar, João Bidé
e Joviel) também se encontraram durante viagem de pesquisa ao Acre.
5
A vegetação das aldeias foi devastada (para a atividade pecuária, anterior à demarcação), com exceção de
pequenos resíduos de Mata Atlântica entre as localidades de Pradinho e Água Boa.
Referências bibliográficas
ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentada: experiência literária em terra indígena. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2009.
______ . Ensaios sobre literatura indígena contemporânea no Brasil. São Paulo, 1999. Tese
(doutoramento em Comunicação e Semiótica) - PUC/SP.
ALVARES, Myriam Martins. Yãmiy - os espíritos do canto: a construção da pessoa na
sociedade Maxakali. Campinas, 1992. Dissertação (mestrado em Antropologia) - UNICAMP.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas, v. II, Rua de mão única. 5. ed. São Paulo: Brasiliense,
1995.
BICALHO, Charles. Tradução e Tradição Maxakali. Revista Letras, São Paulo, v.49, n.1,
p.117-135, jan./jun. 2009.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro, Rocco, 1987.
BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa, Relógio D`Água, 1984.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vols. 1, 3, 4,
5. São Paulo, Editora 34, 1997.
DELEUZE, Gilles. Critique et clinique. Paris: Minuit, 1993
LLANSOL, M. G. O Senhor de Herbais: breves ensaios literários sobre a reprodução estética
do mundo, e suas tentações. Lisboa: Relógio d'Água, 2002.
______. Um beijo dado mais tarde. Lisboa: Rolim, 1991.
________. Um falcão no punho. Lisboa: Relógio d’Água, 1995.
MAXAKALI, Gilberto et al. O livro que conta histórias de antigamente. Belo Horizonte:
MEC/SEE-MG: Projeto Nordeste / PNUD, 1998.
MAXAKALI, Gilmar. Livro de cantos rituais Maxakali. Belo Horizonte: FUNAI/ SEE/MG, 2004.
POVO MAXAKALI. Penãhã: livro de Pradinho e Água Boa. Belo Horizonte: FALE/UFMG:
CGEEI/SECAD/MEC, 2005.
MAXAKALI, Rafael et al. Hitupmã'ax: Curar. Belo Horizonte: Fac. Letras da UFMG; Cipó
Voador, 2008.
BOLIVAR, E. E.; FERREIRA, M. T. Relatórios do Projeto "Cura da Terra". BH: 2007-2009
(inéditos).
RANCIÈRE, J. J. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
______. A partilha do sensível: estética e política. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2005.
ROSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. Campinas: UNICAMP, 1998.