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O tempo antigo entre os Suruí/Aikewára:

um estudo sobre mito e identidade étnica

Luiza de Nazaré Mastop-Lima

Belém, PA
Fevereiro 2002
Capa:
Faixa emplumada frontal produzida pelos Suruí/ Aikewára. Coleção de J. F. Beltrão.
Reprodução (redução em 40%) de desenho de Socorro Lacerda, estudante do curso de
História e bolsista da Universidade Federal do Pará. Arte final de Luiza Mastop-Lima.

FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA DO


CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DA UFPA

Mastop-Lima, Luiza de Nazaré


O tempo antigo entre os Suruí / Aikewára: um estudo sobre mito e
identidade étnica / Luiza de Nazaré Mastop-Lima ; orientadoras : Carmem
Izabel Rodrigues e Jane Felipe Beltrão. – Belém, 2002.

Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal do Pará, 2002.

1. Índios Suruí - História. 2. Etnologia. I. Universidade Federal do


Pará. II. Título.

CDD 980.41
Tempo antigo entre os Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e
identidade étnica
Luiza de Nazaré Mastop-Lima

Dissertação apresentada ao Mestrado em


Antropologia, Departamento de Antropologia,
Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Pará sob a orientação da
Profª. M. Sc. Carmen Izabel Rodrigues e da Profª.
Dr.ª Jane Felipe Beltrão.

Belém, PA
Fevereiro 2002
Tempo antigo entre os Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e
identidade étnica
Luiza de Nazaré Mastop-Lima

Dissertação apresentada ao Mestrado em


Antropologia, Departamento de Antropologia,
Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal do Pará sob a orientação
da Profª. M. Sc. Carmen Izabel Rodrigues e da
Profª. Dr.ª Jane Felipe Beltrão.

Este exemplar corresponde à redação final da


dissertação defendida e aprovada pela Comissão
Julgadora em 14 de fevereiro de 2002.

Banca:
Profª. M. Sc. Carmen Izabel Rodrigues (orientadora) ____________________________
Profª. Dr.ª Jane Felipe Beltrão (orientadora) ____________________________
Prof. Dr. Roque de Barros Laraia (examinador) ____________________________
Prof. Dr. Raymundo Heraldo Maués (examinador) ____________________________
Prof. Dr. Gutemberg Armando Diniz Guerra (examinador ____________________________
suplente)

Belém, PA
Fevereiro 2002
O tempo antigo entre os Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e identidade étnica

Luiza de Nazaré Mastop-Lima

RESUMO: Para os Suruí/Aikewára mitos e histórias de contato interétnico caracterizam


o tempo antigo. Mitos e histórias expressam costumes e tradições, representando traços
culturais fundamentais à identidade étnica do grupo. A existência de marcas culturais
indica manutenção de fronteiras que caracterizam os Suruí como grupo étnico
diferenciado dos demais grupos indígenas e sociedades não-indígenas. Pessoas mais
velhas e experientes do grupo ensinam aos mais jovens, por meio de mitos e histórias de
contato, significados de animais, especialmente aves, árvores e outras plantas, existentes
no meio ambiente com o qual interagem. É a partir da interação com o meio ambiente
também que os membros mais jovens do grupo aprendem com os mais velhos a extrair
matérias-primas necessárias ao fabrico de artefatos e pigmentos naturais básicos à
pintura corporal utilizada principalmente em rituais como o Sapurahái e a Festa dos
Karuára. Mitos, histórias de contato, artefatos, pintura corporal e rituais marcam a
identidade étnica do grupo e são analisados a partir de referenciais teóricos da
Antropologia estrutural e da Análise de Discurso.

Palavras-chave: Suruí/Aikewára, Mitos, Histórias de Contato, Meio Ambiente, Fronteiras,


Identidade Étnica.

The meaning of Old Time among the Suruí/Aikewára: a study of myth and ethnic
identity

ABSTRACT: For the Suruí/Aikewára myths and the history of interethnic contact
constitute the old time. Myths and stories of the group’s culture and traditions represent
essential cultural marks for the ethnic identity of the group. The existence of such
cultural marks indicate the boundaries that identify them as a distinct ethnic group,
different from other indigenous groups and non-indigenous societies. Through oral
narratives of the myths and the history of interethnic contact, older and more
experienced individuals in the group teach the younger the meanings of animals,
especially birds, trees and other plants that inhabit the environment with which they
interact. It is also through this interaction that the younger individuals in the group learn
how to extract the natural materials into which artifacts and pigments are transformed
for the use in body painting as part of ritual preparation such as the Sapurahái and the
Karuará Festival. Myths, stories of contact, artifacts, body painting and rituals establish
the ethnic identity of the group and have been analysed through the tools provided by
the theoretical framework of Structural Anthropology and Discourse Analysis.

Key words: Suruí/Aikewára, Myths, History of Interethnic Contact, Environment, Boundaries,


Ethnic Identity.
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ...........................................................................................i
ABREVIATURAS UTILIZADAS .......................................................................iv
ÍNDICE DE DESENHOS ......................................................................................v
ÍNDICE DE FOTOGRAFIAS ..............................................................................vi
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES ...............................................................................v
ÍNDICE DE MAPAS .............................................................................................v
ÍNDICE DE QUADRO E TABELA ....................................................................ix

1. De atalaia entre os Suruí/Aikewára ...................................................................1

2. Tibungando entre os Suruí/Aikewára ................................................................5


Conhecendo a aldeia ...........................................................................................................6
Vivendo o quotidiano da aldeia: aprendendo mais sobre os Suruí/Aikewára ...................17
Lutando pela sobrevivência ...............................................................................................26
Agricultura .................................................................................................................26
Caça ...........................................................................................................................28
Pesca ..........................................................................................................................29
Coleta e comercialização ...........................................................................................31
Entre católicos e evangélicos, ainda Suruí/Aikewára ........................................................35
O fascínio pela própria imagem .........................................................................................42
Emergindo do tibum: o prazer da aprendizagem ...............................................................44

3. Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára ............................................45


Fincando um dos troncos: identidade étnica .....................................................................48
Fincando o outro tronco: mitos, histórias do contato e interação com o meio ambiente ..63
Entretecendo os fios de algodão: o revelar da identidade étnica Suruí/Aikewára ............69
Preparando os punhos: o retomar das idéias .....................................................................78

4. Aprendendo a significar a vida com os mais velhos ........................................80


Memória e identidade ........................................................................................................83
Mitos e histórias do contato: exercício de análise .............................................................88
O mito a partir da perspectiva estruturalista .............................................................88
Antropologia e Análise de Discurso .........................................................................92

5. Marcando fronteiras: rituais e corpo ..............................................................109


Os rituais .......................................................................................................................112
O corpo .........................................................................................................................125
Sobre a pintura corporal ......................................................................................127

6. Suspendendo a atalaia .................................................................................132

Referências
• Obras de referência
• Bibliografia referida

Anexos
1. Ficha para levantamento de dados
2. Mitos e histórias de contato
Agradecimentos

No “tempo antigo,” tomando emprestada a expressão dos Suruí, tempo em que a


dissertação ainda não existia, muitos personagens ajudaram a construí-la. Aprendi, com
pessoas mais experientes, e também com as ainda pouco experientes, a (re)significar
minha experiência pessoal e profissional. Como aprendiz de gente e de antropóloga,
agradeço:

A Manoel Pereira de Lima e Maria José Mastop de Lima, o apoio e a


compreensão em entender minhas sucessivas ausências de casa.

À Maria José Mastop de Lima, pelo incentivo e incansável assistência a meus


projetos de vida.

A Manoel Pereira de Lima Júnior, Carlos Henrique Mastop de Lima, Henrique


Carlos Mastop de Lima, Marília Mello Coelho e Manoely Fernanda Coelho de Lima, por
compreenderem meus momentos de “reclusão.”

A Carlos Henrique Mastop de Lima, pela amizade e companheirismo, com que


sempre pude contar.

À Marcilene Silva da Costa, amiga para todas as horas, que sempre me lembrou
da beleza da vida, trazendo a nossas conversas música e poesia, marca também
registrada em suas cartas.

À Rita de Cássia Domingues Lopes, pela parceria já há seis anos de trabalho, que
espero ser renovada. Fico feliz em termos vivenciado à mesma época o trabalho de
campo nas aldeias, nosso ritual de passagem no aprendizado da Antropologia.
ii

A Luis Junior Costa Saraiva, César Augusto Martins de Souza e Rita de Cássia
Domingues Lopes, pelo interesse e dedicação às reuniões do grupo de estudo, com a
preocupação de realizar um trabalho responsável.

À Maria do Socorro Lacerda Lima, Elenflávia Palheta Mesquita, Carlos Eduardo


Chaves e Levi Alcântara de Lima, amigos do PROINT, sempre dispostos a me ajudar.

À Maria do Socorro Lacerda Lima, pela paciência e dedicação à arte de desenhar,


atribuindo aos desenhos dos artefatos produzidos pelos Suruí/Aikewára, leveza e
fidelidade aos detalhes, características que marcam seu estilo, tornando-o inconfundível.

À Loyde Santos, que tão prestativamente me acolheu em Marabá à primeira


viagem a campo.

Às amigas Eliane e Oliveira, kamarakusó que conheci na aldeia, e que, assim


como eu, iniciaram a experiência de trabalhar em área indígena. Nossas conversas na
aldeia ajudaram a amainar as saudades de casa.

À Eliane Franco Martins pela colaboração ao trabalho e à divertida companhia


em expedições pela floresta com os Suruí.

A Eimar Araújo, administrador regional da FUNAI em Marabá, e à sua família


por me haverem recebido em sua casa, em meio às viagens à aldeia. A Eimar agradeço
as “caronas” e expresso minha admiração ao trabalho que realiza junto aos grupos
indígenas.

À Jane Felipe Beltrão, orientadora responsável que acompanhou


meticulosamente cada passo da realização do trabalho. À Carmen Izabel Rodrigues, por
me orientar na descoberta de diversos grupos indígenas a partir de seus mitos.
iii

À Jane Felipe Beltrão, amiga admirável por seu profissionalismo, solidariedade,


alegria e justiça, a quem considero, à moda dos mitos, “heroína civilizadora” com quem
aprendi etapas necessárias ao artesanato do trabalho acadêmico. Obrigada.

À professora Ana Suely Arruda Câmara Cabral, por me haver iniciado no


aprendizado de línguas indígenas, o que me permitiu aprender com os Suruí, palavras e
frases que eles quiseram me ensinar, ajudando a diminuir a distância entre nós.

Às instituições que me apoiaram para a realização do trabalho: Universidade


Federal do Pará, através do Departamento de Antropologia do Centro de Filosofia e
Ciências Humanas e da Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação; Fundação
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES); Fundação
Nacional do Índio (FUNAI).

À Mureirú Suruí e Ywynuhu Suruí, pela paciência e cuidado ao guiar meus


passos pela floresta, e manter nossa amizade inclusive na rua.

Aos Suruí/Aikewára, que me ensinaram outra maneira de significar a existência


no mundo, mostrando-me que agir conforme ao que se crê confere às pessoas a condição
humana, a condição de gente. Obrigada por permitirem minha estada na aldeia,
possibilitando-me viver diferentes etapas de meu aprendizado de gente e de
antropóloga.
ABREVIATURAS UTILIZADAS

AIPA Associação Indígena do Povo Aikewára


APITO Associação dos Povos Indígenas do Tocantins
CIMI Conselho Indigenista Missionário
CVRD Companhia Vale do Rio Doce
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNASA Fundação Nacional de Saúde
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
PI Posto Indígena
ÍNDICE DE DESENHOS

1. Casa da aldeia 1 14/15


2. Casa da aldeia 2 14/15
3. Araráw 110/111
4. Atutú 110/111
4. Faixa emplumada frontal 118/119

ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES

1. Croqui da aldeia 6/7


2. Esquema da dança 119/120
3. Motivos da pintura corporal Suruí/Aikewára 129/130

ÍNDICE DE MAPAS

1. Sudeste do Pará 5/6


2. Área Indígena Sororó 29/30

ÍNDICE DE QUADRO E TABELA

Quadro 1. Nomes próprios Suruí e seus significados 111


Tabela 1. Dados demográficos Suruí/Aikewára - 2001 20
ÍNDICE DE FOTOGRAFIAS

1. Entrada da Área Indígena Sororó 6/7


2. Nerona fazendo vassoura 12/13
3. Casas da aldeia 1 14/15
4. Casas da aldeia 2 14/15
5. Festa de kamará na casona da aldeia 23/24
6. Mureirú colhendo arroz 26/27
7. Arikasú e sua família colocando arroz para secar 26/27
8. Homem Suruí abrindo o tronco para retirar alimento 26/27
9. Homens assando as larvas 26/27
10. Mairá se alimenta de um pequeno jabuti 26/27
11. Produtos da caça – macaco 28/29
12. Produtos da caça – paca 28/29
13. Araci tirando iscas do coco babaçu 29/30
14. Awatiwai pescando na mata 29/30
15. A alegria em conseguir o alimento 29/30
16. Mureirú preparando fogueira para assar os peixes 29/30
17. Pesca com timbó, o cerco aos peixes 30/31
18. Api carregando timbó 30/31
19. Ehapikan batendo timbó 30/31
20. Acampamento na mata 32/33
21. Casco de jabuti com leite de castanha-do-pará 32/33
22. Suruí e evangélicos na Casa de Reuniões 40/41
23. Arihera e as netas tecendo rede de dormir 46/47
24. Sawara’a fabricando araráw 110/111
25. Sapurahái 1 113/114
26. Sapurahái 2 113/114
27. Armando a Tokása 1 116/117
28. Armando a Tokása 2 116/117
29. Armação da Tokása 3 116/117
30. Cobrindo a Tokása 116/117
31. Vista lateral da Tokása 116/117
32. Homens Suruí à espera de iniciar o ritual 117/118
33. Entrando na Tokása 117/181
34. Awasaí e Arikasá com seus adornos 118/119
35. Meninas ornadas com atutú 119/120
36. Festa dos Karuára 1 119/120
37. Festa dos Karuára 2 119/120
38. Evitando poeira 120/121
39. Acelerando o passo 120/121
40. Homens e meninos na Tokása 1 121/122
41. Homens e meninos na Tokása 2 121/122
42. Homens e meninos na Tokása 3 121/122
43. Muretama e demais mulheres/meninas aguardando a saída dos 121/122
homens/meninos
44. Enquanto Muretama espera, vê-se a marca da dança no chão 121/122
45. Adorno pendurado à entrada da Tokása 121/122
46. Adornos pendurados às paredes da Tokása 121/122
47. Saindo da Tokása 121/122
48. Desfazendo a Tokása 1 123/124
49. Desfazendo a Tokása 2 123/124
50. Desfazendo a Tokása 3 123/124
51. Awarini apreciando o final da Festa dos Karuára 124/125
52. Maria ralando jenipapo para o preparo da tinta 128/129
53. Irene pilando carvão para o preparo da tinta 128/129
54. Pintura corporal de homens 129/130
55. Pintura corporal dos mais velhos e do cacique 129/130
56. Pintura corporal de meninos 129/130
57. Pintura corporal de mulheres/meninas 129/130
Jabuti - pintura corporal Suruí/Aikewára
1. De atalaia1 entre os Suruí/Aikewára

O interesse em estudar grupos indígenas surgiu durante a graduação, quando


fui bolsista de iniciação científica, desenvolvendo trabalho sobre a relação entre
pensamento mítico e identidade étnica entre os índios Ticuna, habitantes da fronteira
Brasil, Colômbia e Peru. O estudo, no entanto, era sobre os Ticuna e não entre eles,
já que não tive oportunidade de realizar trabalho de campo entre o grupo.
Desenvolver trabalho de campo entre um grupo indígena representava para mim
passo importante para a formação de aprendiz de antropóloga.

Realizar trabalho de campo entre os Suruí/Aikewára representava algo mais


próximo do que o fazer entre os Ticuna, pois os Suruí habitam a região sudeste do
estado do Pará, entre os municípios de São Domingos do Araguaia e São Geraldo do
Araguaia, tendo a Serra das Andorinhas, os rios Araguaia, Itacaiúnas e Tocantins
como importantes referenciais para o território do grupo. A localização dos Suruí
tornava o acesso à aldeia mais viável, uma vez que moro e estudo em Belém. Além
do que, era de meu interesse estudar um grupo indígena no Pará e conhecer mais
sobre a pluralidade cultural amazônica. Foi esse desejo que me levou a apresentar
proposta ao Mestrado em Antropologia da Universidade Federal do Pará para
trabalhar junto aos Suruí/Aikewára, realizando pesquisa também sobre pensamento
mítico e identidade étnica.

Classificado como um grupo Tupi, o grupo Suruí/Aikewára apresenta marcas


que os aproximam dos demais grupos Tupi mas também os particularizam. A
mitologia é um tema, segundo Rodrigues (1995), “privilegiado” em relação aos
estudos sobre os Tupi, desde os registros de cronistas e viajantes, os primeiros a
tentar entender a mitologia e a cosmologia Tupi, conforme Laraia (1986). O trabalho
de campo me mostrou que junto aos mitos estão as histórias que narram a saga do
grupo a partir do contato, contrastando com o modo de vida antes do contato, as
quais denomino “histórias de contato.” O objetivo da pesquisa é verificar que

1
Conforme o Novo Dicionário Aurélio, “ficar de atalaia, atalaiar,” significa vigiar, observar, ficar de
sobreaviso. Uso a expressão para referir a experiência de campo, tendo no atalaiar ponto fundamental
para desenvolver a pesquisa entre os Suruí/Aikewára.
De atalaia entre os Suruí/Aikewára 2
Mastop-Lima, 2002

aspectos das narrativas míticas e históricas Suruí revelam marcas da identidade


étnica do grupo, aproximando-os e particularizando-os em relação aos demais grupos
Tupi. Além de pesquisar mitos e histórias de contato, tinha interesse em perceber
como a interação dos Suruí/Aikewára com o meio ambiente a partir de suas
narrativas também revelava marcas étnicas. É a partir de mitos e histórias de contato
que pretendo estudar a relação das narrativas e do meio ambiente com a identidade
étnica Suruí/Aikewára.

A pesquisa entre os Suruí/Aikewára inserir-se-ia na linha de pesquisa


Antropologia das Populações Amazônicas, vinculada ao referido Mestrado. Inserido
na mesma linha de pesquisa também estava o estudo de Rita de Cássia Domingues
Lopes, que realizou trabalho de campo junto aos Xikrín do Cateté, localizados, assim
como os Suruí, no Sudeste do Pará. Na expectativa de vivermos um ritual de
passagem em nossa formação partimos, eu e Rita Domingues Lopes, em julho de
2000 para a nossa primeira viagem a campo. Nosso ponto de referência era Marabá,
onde fazíamos compras para levar às aldeias, e seguíamos para as respectivas áreas
de estudo.

A primeira viagem a campo durou cerca de 10 dias, em que realizei um


survey junto aos Suruí/Aikewára. Minha entrada na aldeia deu-se como professora
de Legislação de Trânsito, pois havia dois Suruí que tentavam obter a Carteira
Nacional de Habilitação e tinham dificuldade quanto à Legislação.

A entrada como “professora” dava-me um lugar na estrutura de organização


do grupo, que até então era desconhecida por mim. A começar pelo fato de que os
Suruí me mudaram de alojamento, pois antes de chegar à aldeia sabia que ficaria
alojada na enfermaria, onde fica alojada a maioria das pessoas que desenvolve
alguma atividade na área. Como eu era “professora,” a primeira informação dada
pelo cacique Mairá foi que eu ficaria na escola, que passou a ser referência para mim
na aldeia, meu alojamento às vezes que estive na Área Indígena Sororó, como é
chamada a terra ocupada pelos Suruí. Foi o que ocorreu no meu retorno em fevereiro
de 2001, permanecendo na aldeia até abril do mesmo ano.
De atalaia entre os Suruí/Aikewára 3
Mastop-Lima, 2002

Outro aspecto de minha entrada como “professora” foi que os Suruí


esperavam que eu desempenhasse a mesma atividade toda vez que estivesse na
aldeia. Assim eu o fiz. Minha aproximação com a escola e com os alunos
possibilitou a coleta de mitos e histórias contadas pelos Suruí. Como os
Suruí/Aikewára me informaram, a floresta é o espaço privilegiado para a narração de
mitos e histórias que referem ao modo de vida do grupo antes e depois do contato.
Além de espaço privilegiado, havia também tempo preferido para as narrativas, a
época em que as chuvas são escassas, aproximadamente entre os meses de setembro
e dezembro, possibilitando maior estada na floresta. Acontece que a realidade
institucional em que eu estava inserida permitia-me ficar meses em campo apenas
entre fevereiro e abril, época em que os Suruí não costumam permanecer muitos dias
na floresta, como o fazem no período da estiagem.

Pelo que me relataram, na floresta os Suruí mais novos ficam em silêncio


escutando as narrativas dos mais velhos e experientes do grupo, aprendendo sobre ser
Aikewára (“nós, a gente”), como se auto-denominam. Uma vez que havia um
aparente “empecilho” à obtenção das narrativas, o trabalho junto à escola possibilitou
aplicação de metodologia empregada na Antropologia. A escola passou a ser um
espaço a mais para a manifestação da identidade étnica do grupo, à medida em que a
partir dela narrativas Suruí puderam ser registradas também através da escrita. Foi
através da escola que registrei a maioria das narrativas apresentadas no trabalho,
outras registrei por meio de conversas informais e gravações com as pessoas mais
velhas e experientes do grupo, narradores por excelência, e com alguns dos ouvintes
que se destacaram entre os demais, talvez pelo fato de serem filhos ou netos de
narradores especialistas.

Ainda em busca de estar com os Suruí na floresta no período por eles


indicado como favorável às narrativas, retornei à aldeia ao final de agosto de 2001.
Não pude, no entanto, permanecer com eles na floresta, pois estavam todos
concentrados na aldeia para a realização da Festa dos Karuára, ritual relacionado à
agricultura e à religião do grupo, comemorado, segundo o cacique Mairá, de dois em
dois anos. A observação do ritual revelou mais aspectos da identidade étnica do
De atalaia entre os Suruí/Aikewára 4
Mastop-Lima, 2002

grupo, que procuro demonstrar ao decorrer dos capítulos que compõem o trabalho.

Ao primeiro capítulo convido o leitor para tibungar no universo


Suruí/Aikewára. É um capítulo basicamente etnográfico em que relato aspectos do
modo de vida do grupo, atividades produtivas realizadas, situações de contato e o
valor de minha experiência junto aos Suruí.

Utilizando a imagem da fabricação das redes de dormir entre os


Suruí/Aikewára mostro, ao segundo capítulo, como mitos, histórias de contato e
interação com o meio ambiente podem ser entendidos como um tecer de tramas que
revelam a identidade étnica do grupo. Para tanto, apresento a bibliografia referente
ao conceito de identidade, às narrativas históricas entre grupos indígenas, à mitologia
entre grupos Tupi e os Suruí, e o trabalho de campo como ferramentas necessárias ao
tecer da identidade étnica Suruí/Aikewára.

Mitos e histórias de contato são apresentados, principalmente, no terceiro


capítulo, em que discuto a importância de pessoas mais velhas e experientes para a
memória coletiva entendida como componente do sentimento de identidade, e realizo
um exercício de análise das narrativas Suruí a partir de referências da Antropologia e
da Análise de Discurso.

Desenvolvo o quarto capítulo a partir de uma das histórias de contato narrada


por um aluno da escola indígena Moroneikó Suruí, que trata de costumes e tradições
ainda realizadas ou não pelo grupo. A história permite chegar até a realização da
Festa dos Karuára e à concepção de corpo para os Suruí, revelada também a partir de
seus mitos. Quanto ao corpo, destaco a importância da pintura corporal, composta
por motivos que expressam a interação do grupo com o meio ambiente, revelando
marcas étnicas.

Ao retomar pontos do trabalho, à conclusão, procuro tecer informações que


me revelaram os Suruí/Aikewára como um grupo étnico que mantém fronteiras que
os identificam e os diferenciam perante os demais grupos indígenas e sociedades
não-indígenas, baseada nos mitos e histórias de contato, considerados por mim
marcas da identidade étnica do grupo.
“Guian era o Dono da Água, só mostrava a água para irmã.
Antoinká não gostava desse Deus, de Paricot, porque ele era muito
inteligente. Só gostava de Andarob.
Foi a irmã que achou água. Só pegava água de sororoca para
Paricot beber; mas para o preguiçoso tirava da terra, do olho
d’água, para o preguiçoso beber. O fruto do cajá ela tirava da
árvore para dar para o preguiçoso. Já o caído no chão, ela dava
para Paricot.
- Que vou fazer? - pensou Paricot
Achou a água que a mana escondia. Pegou um pauzinho e abriu o

Peixe – pintura corporal Suruí/Aikewára


olho d’água. Começou a riscar, como menino brincando. O
risco que fez destampou a água.
Começou a correr o mundo, mas para ele era um pulinho, um
instante, era assim como ir à roça e voltar. Abriu a água. Fez o
Guaporé mais largo, fez o Mamoré mais violento. Do jeito que
pensou, fez a água, fez a água salgada que é o mar. O igarapé
incha e já o mar não incha, seguindo o que Paricot pensou. Quer
dizer, incha, mas tem praia, não alaga.”
(MINDLIN & NARADORES INDÍGENAS, 1999: 63)
2. Tibungando1 entre os Suruí/Aikewára2

Os Suruí/Aikewára são uma etnia indígena classificada junto ao tronco


lingüístico Tupi e ocupam, juntamente com outras 14 etnias, a região sudeste do Pará,
tomando como referencial o rio Tocantins.3 O mapa 1 mostra a localização da Área
Indígena Sororó, ocupada pelos Suruí/Aikewára, assim como a localização das demais
etnias que ocupam a região sudeste do Pará.

Segundo Mairá, cacique dos Suruí/Aikewára, a partir do Censo 2000 realizado


pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a Área Indígena Sororó
pertence aos municípios de Marabá, São Domingos do Araguaia e São Geraldo do
Araguaia. A área está localizada a aproximadamente 110km de Marabá, a 50km de São
Domingos do Araguaia e a 55km de São Geraldo do Araguaia.

O acesso à área é feito pela rodovia BR-153, em carro particular, em ônibus que
faz a linha Marabá (PA)-Araguaína (TO), em vans que saem de Marabá ou de São
Domingos do Araguaia com destino a São Geraldo do Araguaia, ou ainda em
caminhonete que faz linha até São Geraldo do Araguaia. Gasta-se aproximadamente
uma hora e meia saindo de Marabá até a aldeia, se o deslocamento for feito em carro

1
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, tibungar significa “cair na água, mergulhar, afundar-se.” Aprendi
a palavra quando uma das mulheres Suruí acalentava uma criança, dizendo-lhe que logo, logo iam ao
açude para tibungar muito. A reação da criança foi de imediata alegria. Tibungar no açude é uma das
brincadeiras preferidas das crianças, é mais do que mergulhar, é mergulhar com muito prazer, com muito
sabor. Feito o menino que começou a riscar o lugar da água com um pauzinho e um novo mundo se
revelou, tibungar representa minha experiência perante o revelar do mundo dos Suruí/Aikewára.
2
Aikewára é como os Suruí se auto-denominam. Aikewára quer dizer “nós, a gente.” Suruí do Pará é
outra denominação dada ao grupo, para distingui-los dos Suruí de Rondônia. Sobre o assunto, consultar
Ricardo (1985).
3
Ver Mapa 1. As demais etnias são: Kreje, Munduruku, Tembé, Urubu Kaapor, Guajá (n.º 6 no mapa -
Área Indígena Alto Rio Guamá); Tembé (n.º 565 - Área Indígena Turé-Mariquita); Turiwara (n.º 306 -
Área Indígena Tembé); Anambé (n.º 11 - Área Indígena Anambé); Amanayé (n.º 10 - Reserva Indígena
Amanayés); Asurini do Tocantins (n.º 320 - Área Indígena Trocará); Parakanã (n.º 236 - Área Indígena
Paracanã); Gavião Parkatejê (n.º 193 - Reserva Indígena Mãe Maria); Isolados do rio Tapirapé (n.º 423 -
Rio Tapirapé/Tuere) e Xikrín do Cateté (n.º 80 - Área Indígena Xikrín do Cateté).
Mapa 1. Sudeste do Pará
Fonte: RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas do Brasil, 1996-2000. São Paulo: ISA, 2000.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 6
Mastop-Lima, 2002

particular ou van; duas horas nos ônibus, e 50 minutos indo na caminhonete que sai de
São Domingos do Araguaia.

Aproximadamente à altura do km 93 da BR-153, as placas começam a anunciar a


existência de área indígena. No km 95 da BR-153 encontra-se um muro branco e verde
com um portão de ferro, onde está escrito em fundo branco a identificação da área: Terra
Indígena Sororó/Comunidade Indígena Suruí/Entrada Proibida. A parte do muro que
segue após o portão traz a referência do Governo Federal, da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI) e do número do decreto de homologação da área (Foto 1).

Mostrado o caminho que leva à aldeia saindo de Marabá, gostaria de convidar os


leitores para tibungar comigo no universo Suruí/Aikewára, ultrapassar o portão de
acesso à Área Indígena Sororó, conhecer os vários “ambientes” que compõem o que os
Suruí/Aikewára chamam propriamente de aldeia (Ver croqui da aldeia), tentar entender
o lugar que os “ambientes” ocupam na sociedade Suruí e, a partir deles, conhecer o
desenrolar de algumas das relações sociais na aldeia.

Conhecendo a aldeia

O portão de ferro que dá acesso à aldeia fica fechado por cadeado e próximo a
ele encontra-se uma guarita alta, usada pelos homens Suruí/Aikewára para a vigilância
da área. A alguns metros do portão, à esquerda, está uma casa em madeira, onde morava
o índio mais velho da aldeia, Mikwá, utilizada agora pelos vigilantes da aldeia que a
ocupam dia e noite. Mikwá foi morar próximo ao conjunto de aproximadamente 40
casas que compõem a aldeia. Da BR-153, a estradona, como chamam os
Suruí/Aikewára, segue-se 2 km por um caminho coberto por uma fina camada de asfalto,
até chegar à aldeia propriamente dita.

Passando a casa de Mikwá encontra-se o curral. Mais à frente do curral, também


à esquerda, avista-se um conjunto de três casas construídas por ocasião de broca de roça
Luiza Mastop-Lima
Foto 1. Entrada da aldeia
Luiza Mastop-Lima

Ilustração 1. Croqui da aldeia


Tibungando entre os Suruí/Aikewára 7
Mastop-Lima, 2002

por uma das famílias Suruí/Aikewára. Alguns metros depois das casas, vê-se o Posto
Indígena (PI) da FUNAI. O PI está localizado em lugar estratégico, segundo ressaltou
Eimar Araújo, administrador regional da FUNAI em Marabá, pois foi construído no alto
de uma elevação do terreno que permite ter uma visão ampla da aldeia. Onde o PI se
localiza é também a entrada do açaizal, um dos espaços da área utilizado pelos
Suruí/Aikewára para lavar roupa e tomar banho, muito apreciado pela água limpa. O
açaizal é também o lugar aonde os Suruí/Aikewára vão buscar limão, maracujá ou ingá.
Era lá que Awasaí, o pajé da aldeia, morava com sua família à época em que fui pela
primeira vez até a Área Indígena Sororó.4

À descida da ladeira em que está o PI o caminho ainda segue reto, fazendo uma
curva mais adiante, quando podemos visualizar mais de perto, à direita, as casas que
compõem a aldeia. Foi essa a imagem que prendeu minha atenção até próximo ao final
do caminho de asfalto, onde se encontra a enfermaria da área.

A enfermaria é uma construção em madeira, com piso de cimento e cobertura de


telha de barro. Dois grandes cômodos dividem a enfermaria. Um deles serve de
alojamento à auxiliar ou técnica em enfermagem5 designada para trabalhar na área pela
Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) ou pela Associação dos Povos Indígenas do
Tocantins (APITO), da qual os Suruí/Aikewára são uma das nove etnias integrantes.6 O
outro cômodo corresponde à enfermaria mesmo, chamada pelos Suruí/Aikewára de
farmácia.

Ambos os cômodos estão divididos internamente. O alojamento da enfermeira


possui sala, cozinha, dois quartos e banheiro, além de uma pequena área de serviço,
4
Estive entre os Suruí/Aikewára pela primeira vez em julho de 2000, quando passei dez dias na Área
Indígena Sororó realizando um survey sobre a cultura que desejava estudar. Em fevereiro de 2001 retornei
à área, lá permanecendo sessenta dias, até fins de abril de 2001. Retornei à área em fins de agosto de 2001
para observar a festa dos Karuára realizada, segundo Mairá, de dois em dois anos e, pelo que observei,
considerada uma retomada das tradições do grupo. O tempo de permanência na área por ocasião da festa
foi de 15 dias. Mais adiante farei a descrição da festa, quando tratar da relação da festa, dos mitos e das
histórias de contato narradas por eles com a identidade étnica do grupo.
5
Usarei a palavra “enfermeira” para me referir à auxiliar ou técnica em enfermagem que responde pela
área, por ser esta a palavra utilizada pelos Suruí/Aikewára para designá-la.
6
As demais etnias que compõem a APITO são: Anambé, Amanayé, Asurini, Atikum, Gavião Parkatejê,
Guajá, Guarani e Xikrín do Cateté.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 8
Mastop-Lima, 2002

usada para lavar louças e roupas. A única geladeira da aldeia fica no quarto próximo à
cozinha. A geladeira é a gás e usada para conservar vacinas e alguns alimentos levados
tanto pela enfermeira quanto pela professora, pelo chefe do posto ou por alguma outra
pessoa que permaneça algum tempo na área, como foi meu caso. Os Suruí/Aikewára
também dela fazem uso, guardando algum alimento ou mesmo refrigerantes, em dia de
festa na aldeia, ou quando é dia de pagamento das duas professoras e das merendeiras
Suruí/Aikewára, ou mesmo quando os aposentados vão até São Domingos do Araguaia
para receber suas aposentadorias e fazer suas compras. Um dos quartos do alojamento
contém duas camas de solteiro e um guarda-roupa. No outro quarto não há camas, mas
em ambos os quartos há escápulas para armar redes.

A enfermaria é a primeira referência em relação a hospedar alguém que realize


trabalhos temporários na área, justamente por sua infra-estrutura. A farmácia subdivide-
se em dois cômodos: um reservado aos remédios, onde os Suruí/Aikewára são atendidos
ou esperam por atendimento; outro com uma cama alta e suporte para soro, onde algum
dos Suruí/Aikewára fica quando necessário, que também serve como alojamento. Na
farmácia há também um banheiro. Além dos dois cômodos maiores que compõem a
enfermaria, há entre eles outro pequeno cômodo, utilizado como depósito não para os
remédios, mas para materiais como por exemplo balança, ração para os peixes do açude,
entre outros. Um avarandado também compõe a farmácia.

A importância que a enfermaria assume na aldeia não é apenas por servir de


alojamento ou por ser um lugar ao qual os Suruí/Aikewára vão em busca de remédio.
Ela também funciona como um ponto onde se propagam informações, sejam as
referentes aos acontecimentos internos à aldeia, sejam as referentes ao relacionamento
dos funcionários com os índios, dos funcionários com eles mesmos, dos funcionários
com a FUNAI, a FUNASA ou a APITO e do relacionamento dos índios com eles
próprios e com os funcionários. Os divulgadores de informações são os índios e os
próprios funcionários.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 9
Mastop-Lima, 2002

Quando chega alguém à aldeia, a primeira parada é na enfermaria. Logo chegam


os Suruí/Aikewára para saber de quem se trata e os comentários não tardam a começar.
Os Suruí/Aikewára são bilíngües, falam Português e a língua Suruí. Se quem chega à
área é alguém que ainda não havia ido lá, as primeiras palavras que os Suruí/Aikewára
dirigem àquela pessoa são em Suruí, assim como os comentários que fazem a seu
respeito. Pelo contexto e pela ajuda dos funcionários que trabalham entende-se que
estão falando da pessoa “de fora,” pois a palavra mais pronunciada por eles nesse
momento é kamará, que significa “branco, o de fora.”7 Eles também se dirigem em
Suruí a quem já tem mais tempo de contato com eles, como por exemplo algum
funcionário da FUNAI, para que possam se certificar de que o kamará ou a kamarakusó
aprendeu um pouco sobre eles, com eles.

No avarandado da farmácia há um banco comprido de madeira muito utilizado


pelos Suruí/Aikewára para ficar ao menos uns poucos minutos durante o dia, e conversar
enquanto esperam algum medicamento ou mesmo para conversar com os funcionários.
Os assuntos mais correntes são a conduta da enfermeira que foi substituída, o
comportamento da professora branca e as atitudes do chefe de posto. Com o tempo de
permanência na área, em que se vai conhecendo mais o grupo, eles também passam a ser
tema das conversas na enfermaria. Os Suruí/Aikewára são muito observadores e fazem
questão de deixar clara sua opinião a respeito de alguém, explicitando o que os agrada e,
principalmente, o que os desagrada na pessoa.

Na minha primeira estada entre os Suruí/Aikewára, depois que todos que foram
ver quem havia chegado falaram comigo em Suruí, uma das mulheres me disse, em
Português, que eu podia guardar minha bagagem num dos quartos do alojamento da
enfermaria. Depois que guardei minha bagagem, retornei ao avarandado da farmácia e
7
Além de kamará, os Suruí/Aikewára também utilizam as palavras uarasú, turí e akwáw para designar os
“brancos.” A palavra mais usual, no entanto, é kamará. A impressão que me deu é que as demais
palavras podem ser usadas quando os Suruí/Aikewára não desejam que os kamará que conhecem um
pouco da língua Suruí fiquem sabendo que são o assunto de alguma conversa entre eles. Durante o
período que estive na área, verifiquei apenas o uso da palavra turí, que dá nome a uma das danças
realizadas no ritual que chamam Sapurahái. Também usaram turí à ocasião da festa dos Karuára, mas o
uso me pareceu estimulado pela presença de dois Parakanã que passaram a residir na aldeia. Kamarakusó
é a palavra utilizada por eles para designar as “mulheres brancas.”
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 10
Mastop-Lima, 2002

fiquei por lá em pé, meio desconfiada e até envergonhada, pois os comentários e risos a
meu respeito não cessavam.

Um dos homens, que depois soube ser um kamará, falou para eu sentar no banco
junto de outras mulheres. Uma delas, que pela marca das linhas do rosto, pela pele um
tanto engelhada, carregando as marcas de um quotidiano de trabalho sob o sol,
aparentava ter aproximadamente 40 anos, cortava as unhas dos pés com um canivete.
Suas unhas tinham resquícios de esmalte. Ela se voltou em minha direção e perguntou
em Suruí o meu nome. Como respondi que não entendia o que ela falava, o homem que
me havia dito para sentar foi quem traduziu a frase e outras mais que vieram: se o
motorista da FUNASA que nos havia levado era meu marido e qual o propósito da
minha ida à aldeia. O fato de eu responder que ele não era meu marido e que eu não
tinha marido foi motivo de risos para os que lá estavam.

Quando eu disse que tinha ido à aldeia para conhecê-los, foi motivo de
reprovação por parte de Arihera, a mulher que me fazia as perguntas. Pelo que pude
perceber, desempenhar um papel na sociedade Suruí/Aikewára é muito importante, pois
a estada de um kamará na área tem de ser justificada por algum trabalho que ele
desempenhe junto a eles. E o trabalho tem de ser voltado para a comunidade, seja pela
escola, seja pela enfermaria, seja pela implantação ou acompanhamento de algum
projeto na área, seja por uma reunião religiosa. Enfim, a estada na aldeia deve justificar-
se por uma situação de troca mais imediata ou mais prolongada.

Bem, continuemos nossa excursão/incursão pela aldeia. Da enfermaria vê-se a


garagem do único carro da aldeia, estilo pick up. A garagem foi construída em madeira
e alvenaria; ao lado dela há um conjunto de quatro casas, três delas de palha e uma de
madeira, coberta de palha, que pertencem ao pajé e a seus filhos casados.

Em frente à enfermaria ficam as cinco caixas d’água que abastecem a aldeia.


Sob a armação de madeira que as sustenta foram construídos dois banheiros em
alvenaria, um de uso masculino e outro de uso feminino. Entre os Suruí/Aikewára, os
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 11
Mastop-Lima, 2002

que mais fazem uso desses banheiros são as pessoas mais jovens, as crianças e alguns
dos casais. Ao lado das caixas d’água há uma pequena construção em alvenaria, onde
fica o gerador de energia elétrica da aldeia.

Ao final do caminho de asfalto que leva até a enfermaria, encontram-se duas


casas de palha que marcam, juntamente com duas outras casas de madeira, o espaço
ocupado por uma das famílias. Entre os Suruí/Aikewára observei que, de maneira geral,
quando um novo casal se constitui a esposa vai morar junto dos pais do marido, podendo
ocorrer variações, como é o caso das filhas de Arihera, que moram junto dela, e não
junto aos pais de seus maridos.8 Em relação às quatro casas a que me refiro aqui, por
exemplo, elas pertencem a Arihera e a suas três filhas casadas. Uma das filhas, agente
de saúde na aldeia, não é casada, mas possui uma casa pelo fato de já ter uma filha,
portanto, uma família.

O motivo de morar só com a filha dá-se pelo fato de que o pai de sua filha é um
enfermeiro kamará, que trabalhou na aldeia na época em que a FUNAI ainda respondia
pela questão da saúde indígena. Por ser kamará e principalmente por ser um antigo
funcionário da FUNAI, não foi permitida sua permanência na aldeia.

Continuando a andança pela aldeia, ao lado das duas casas de palha pertencentes
às filhas de Arihera, mencionadas anteriormente, está a Casa da Cultura ou, como
chamam os Suruí/Aikewára, Casona ou Casa de Reuniões.9 Trata-se de uma construção
em alvenaria, coberta com telhas de barro, com um amplo salão, de paredes vazadas e
piso de lajota. O salão possui dois bancos corridos em alvenaria e revestidos com lajota,
ao longo das paredes laterais; ao final do salão há um quadro negro, duas máquinas de
costura e dois cômodos, um que serve como escritório e o outro é uma cozinha.

8
Na literatura antropológica sobre parentesco, esse padrão de residência é designado como “residência
patrilocal.” Sobre o assunto, consultar entre outros: Schusky (1973) e Augé (1978).
9
A Casa da Cultura foi construída e assim batizada pelo padre Luís, padre italiano que trabalha em
Marabá e visita freqüentemente a aldeia. Os termos Casa de Reuniões e casona são os mais utilizados
pelos Suruí/Aikewára. O ambiente da casona será retomado mais adiante, juntamente com outros
exemplos de relações sociais que se desdobram a partir dela.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 12
Mastop-Lima, 2002

No escritório há uma mesa, duas cadeiras, uma televisão e um vídeo. À parede


do escritório estão fotos emolduradas de algumas etnias indígenas, feitas durante os
Jogos Indígenas realizados em Marabá no ano de 2000. Há fotos dos Gavião, dos
Tembé e dos Suruí, que nos Jogos eram Aikewára, devidamente pintados e
paramentados, com seus adornos de cabeça, arcos e flechas.

As máquinas de costura são utilizadas pelas mulheres Suruí/Aikewára para


reparar e fabricar as próprias roupas, principalmente as das crianças. Os Suruí/Aikewára
costumam se reunir à noite no salão da casona para assistir televisão. Só há uma
televisão na aldeia, que fica sob a responsabilidade de Mairá, que procura selecionar os
programas que eles assistem. Segundo palavras de Mairá, ele procura ter esse controle
sobre a televisão para evitar que os demais membros do grupo “aprendam o que não
presta”. Os programas preferidos pelos Suruí/Aikewára são as novelas, os noticiários e
principalmente futebol. É na casona também que eles fazem suas reuniões internas,
reuniões com os “de fora” e as festas de kamará, como mostrarei a seguir.

Antes de continuar e adentrar o espaço das aproximadamente 40 casas que


compõem a aldeia, gostaria de dizer que a aldeia foi toda cercada pelos próprios
Suruí/Aikewára como forma de evitar que o pequeno rebanho bovino, eqüino e caprino
que possuem a invada, destruindo a plantação de coco babaçu e açaí que realizaram em
parte do pátio da aldeia, ou que passe para o açude, contaminando a água. Até mesmo
os lugares que dão acesso à Aldeia Velha e à roça da comunidade, por exemplo, são
cercados a fim de que os animais não estraguem a plantação das roças.

Tomando a abertura em frente à enfermaria e ao lado das caixas d’água, segue-se


por um caminho aberto em meio a uma vegetação rasteira que se encontra com a cerca
do quintal da casa de Awarini. A casa de Awarini tem as paredes e o teto de palha; a
porta da entrada da casa é em madeira. Durante o dia a porta fica aberta por causa do
calor e uma portinhola impede cachorros e galinhas que andam pelo pátio da aldeia de
entrar.
Luiza Mastop-Lima
Foto 2. Nerona produzindo vassoura
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 13
Mastop-Lima, 2002

O piso da casa é de chão batido, que é molhado antes de ser varrido com
vassoura feita de cipó, que os Suruí/Aikewára mesmos fazem (Foto 2). A casa tem dois
compartimentos, um deles é usado como quarto, separado do outro por paredes de palha.
O outro compartimento é ao mesmo tempo sala, quarto e cozinha. Na extremidade
oposta ao quarto fica um fogão de barro, também feito por eles. Próximo ao fogão
encontra-se um jirau, usado para lavar louças e alguns alimentos. Perto do jirau há uma
porta que dá acesso ao quintal, onde são criadas algumas galinhas e ao fundo do qual há
um pequeno cercado em madeira que serve de banheiro.

Há também nesse compartimento uma mesa de madeira e bancos também de


madeira, uns mais compridos, outros menos. Prateleiras para agasalhar as panelas e um
armário também fazem parte da decoração da casa. Algo que me chamou a atenção foi o
fato de os Suruí/Aikewára usarem os espaços que ficam entre as palhas das paredes para
guardar alguns de seus objetos: vara com anzol, pedaços de espelho, pente, fotos,
cadernos, facões, entre outros. Os espaços na armação da casa que ficam entre o teto e
as paredes são usados para guardar arcos e flechas, entre outras coisas.

Os troncos de árvores que servem à armação da casa são utilizados para armar as
redes durante a noite e servir de suporte para elas durante o dia, quando os
Suruí/Aikewára as enrolam, esticando-as e deixando-as estendidas mesmo acima de suas
cabeças, para não atrapalhar o movimento no interior da casa durante o dia.

As demais casas da aldeia apresentam praticamente as mesmas características


que encontramos na casa de Awarini, à exceção de algumas delas que são construídas
em madeira e cobertas de palha, nem todas têm quintal, mas todas possuem jiraus. Uma
outra diferença da casa de Awarini para algumas das casas da aldeia é que a casa de
Awarini não possui janela, que encontramos em outras casas da aldeia. Tanto algumas
das casas que são construídas em palha como as que são construídas em madeira têm
janelas, todas em madeira. O interessante é que as janelas não são costumeiramente
usadas, não têm função como as portas.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 14
Mastop-Lima, 2002

As casas da aldeia costumam imitar as casas de regionais10, já não são mais as


casas tradicionais que os Suruí/Aikewára construíam. Segundo eles, antigamente viviam
todos numa única casa, grande e sem divisões internas em cômodos nem janelas.
Chamou-me a atenção o fato de as janelas das atuais casas da aldeia terem pouco ou
nenhum uso, porque por mais que sejam semelhantes às dos kamará, o modo de ocupá-
las é diferente, respeita a concepção que os Suruí/Aikewára têm de como utilizá-las; o
que é funcional para os kamará não necessariamente o é para eles (Fotos 3 e 4;
Desenhos 1 e 2). O fato me chamou mais atenção ainda quando perguntei a uma das
mulheres como se falava “janela” em Suruí e ela me disse que não tinha, era “upuga
mesmo”, que é a palavra usada para “porta.”11

A maioria das casas, mesmo as que não possuem quintal, têm duas entradas, uma
na frente e outra nos fundos. Todas são divididas internamente por paredes em madeira,
palha ou mesmo lençóis, para marcar o espaço dos quartos. Os quartos são geralmente
reservados aos casais e crianças pequenas, mas a distribuição de pessoas no interior das
casas varia.

Numa das noites em que fui convidada para jantar mutum cozido na casa de
Maria e Arikasu pude observar um pouco da variação da distribuição das pessoas no
interior das casas.12 Na casa de Maria e Arikasu há dois quartos, uma sala, uma cozinha

10
Sobre o assunto, conferir Laraia & DaMatta (1967).
11
A questão da construção de casas de “branco” em aldeias indígenas é algo que faz parte da própria
reivindicação das sociedades indígenas que têm seus recursos naturais explorados por empresas como a
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), por exemplo. Para citar dois exemplos, na aldeia dos Gavião e
dos Xikrín do Cateté a maioria das casas da aldeia são em alvenaria, construídas a partir de convênios com
a CVRD, mas o uso que fazem delas é diferente do que os brancos fazem. Na aldeia Gavião por exemplo,
segundo Beltrão (1998a), na parte de trás das casas os Gavião constróem cozinhas em madeira e palha
onde costumam ficar. Em conversa com Rita de Cássia Domingues-Lopes, que realizou trabalho de
campo entre os Xikrín do Cateté à mesma época em que estive entre os Suruí/Aikewára, tomei
conhecimento de que também na aldeia Cateté onde a maioria das casas é em alvenaria os Xikrín
construíram cozinhas também em madeira e palha onde realizam algumas de suas atividades tradicionais e
passam a maior parte do dia. Para saber mais sobre o assunto, consultar Beltrão (1998a) e Domingues-
Lopes (2002).
12
Gostaria de chamar a atenção para algo que os Suruí/Aikewára fazem questão de mostrar: o cuidado que
têm quanto ao preparo dos alimentos. Os alimentos são devidamente lavados e cozidos, principalmente as
caças e os peixes. Os Suruí/Aikewára fazem questão de que os kamará saibam que eles têm todo o
cuidado com os alimentos e fazem questão também de fiscalizar se os kamará que estão na área também
têm o mesmo cuidado que eles. Esse é um parâmetro de comparação importante para eles não só em
relação aos kamará, mas também em relação a outras etnias indígenas. Pude perceber isso a partir da
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Desenho 1. Casas da aldeia 1
Foto 3. Casas da aldeia 1

Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima

Desenho 2. Casas da aldeia 2 Foto 4. Casas da aldeia 2


Tibungando entre os Suruí/Aikewára 15
Mastop-Lima, 2002

e um banheiro ao fundo do quintal. Nela moram eles e seus oito filhos, cinco do sexo
masculino e três do feminino. O filho mais velho do casal tem por volta de 20 anos e
dorme em um dos quartos juntamente com dois de seus irmãos, com idades entre 10 e 11
anos. Sy’a, o filho do casal de 15 anos, dorme com um irmão de seis anos em redes
armadas no espaço que fica entre os dois quartos, que serve também de sala. No outro
quarto dormem Maria e Arikasu, Hisé, filha de cinco anos, e Inamorów, filha de dois
anos. Não consegui saber ao certo onde dorme a filha de 14 anos do casal, A’i.

Além de dormir em redes, os Suruí/Aikewára também dormem em camas, mas


não é em todas as casas que se encontram camas. Assim como não é em todas as casas
que há fogão a gás, mas todas, invariavelmente, possuem fogão de barro. Pequenos
rádios de pilha são comuns de serem encontrados nas casas. A emissora de rádio mais
ouvida pelos Suruí/Aikewára é a Rádio Clube do Pará, filial de Marabá, pois além de se
distraírem com as músicas, divertem-se também com o serviço de mensagens passadas
no ar, que a rádio oferece. Eles ficam maravilhados quando o locutor “manda um
abraço” para algum deles em especial, como acontece geralmente em relação a Mairá,
ou quando o cumprimento é para todos.

Andando pelas proximidades da aldeia encontramos algumas grotas, usadas para


lavar roupas, louças e para o banho. Além das grotas há um açude na área, onde os
Suruí/Aikewára desenvolvem um projeto de piscicultura. No açude são criados peixes
conhecidos pelos Suruí/Aikewára e que eram encontrados em seu território. Com as
mudanças de aldeia - fugindo de seus inimigos tradicionais e dos brancos - e a
demarcação de suas terras, os Suruí/Aikewára ficaram confinados numa área de poucos
recursos hídricos, o que representa um dos aspectos a ser levado em conta quanto aos
problemas relativos à alimentação do grupo.

reação deles quando algum funcionário que trabalha na área os compara com outras etnias indígenas e os
elogia quanto ao cuidado que têm. Talvez esse cuidado seja reflexo da atuação dos agentes indígenas de
saúde na área. O que quero chamar atenção é para o fato de que os Suruí/Aikewára fazem questão de
cultivar, manter e mostrar esse traço de sua identidade.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 16
Mastop-Lima, 2002

Em relação às mudanças de aldeia, quando estive pela primeira vez em campo,


Awarini me contou que o grupo mudou a aldeia de lugar pelo menos cinco vezes. Com
a unha comprida do dedo mínimo da mão direita ele fez um pequeno mapa no chão
mostrando como era o território dos Suruí/Aikewára e a ordem das mudanças. Dos
lugares das antigas aldeias apontados por ele no mapa que desenhou no chão, tive a
oportunidade de estar com os Suruí/Aikewára em alguns deles: Aldeia Velha, Aldeia da
Pedra e Aldeia do Meio (Ver croqui da aldeia).

A Aldeia Velha fica a cerca de uma hora e meia da atual aldeia, seguindo pelo
caminho que leva à atual roça da comunidade. As ruínas do antigo PI da FUNAI ainda
são vistas lá; não há vestígios da disposição das casas na Aldeia Velha que, pelo relato
dos Suruí/Aikewára, era bem diferente do que se vê na aldeia atual, visto que as casas
estavam dispostas de maneira retangular. Segundo o que eles me disseram, da Aldeia
Velha eles mudaram porque na época das chuvas as casas alagavam, mas outros fatores
devem se juntar a esse para explicar a mudança.

O acesso à Aldeia da Pedra dá-se por um caminho à frente da casona, onde fica
agora o mandiocal, e que leva também a algumas de suas roças. Para chegar à Aldeia do
Meio, toma-se um caminho próximo ao açude e anda-se cerca de duas horas e meia para
chegar até lá. Todos esses espaços são constantemente ocupados pelos Suruí/Aikewára,
pois estão em suas rotas de caça ou vão até eles para coletar algumas frutas, como é o
caso do cupuaçu e da bacaba na Aldeia do Meio, por exemplo. Próximo à Aldeia da
Pedra os Suruí/Aikewára coletam mangas.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 17
Mastop-Lima, 2002

Vivendo o quotidiano da aldeia: aprendendo mais sobre os Suruí/Aikewára

Durante o período em que permaneci na aldeia algumas situações em especial me


chamaram a atenção em relação à construção da identidade Suruí/Aikewára. Relatarei
aqui algumas delas.

Quando cheguei pela primeira vez à área, como relatei há pouco, notei que
Arihera tinha as unhas dos pés pintadas de esmalte, e percebi depois que muitas das
mulheres tinham suas unhas pintadas assim. O fato de as mulheres Suruí/Aikewára
usarem esmalte não chamou apenas a minha atenção. A professora branca que
trabalhava na aldeia à época em que estive lá pela primeira vez, preocupada com a
questão, resolveu perguntar a uma das mulheres em tom reprovador porque elas usavam
esmalte, já que esmalte era de uso de mulher branca e não delas. Ao que a mulher
Suruí/Aikewára respondeu: “Vocês não gostam de usar nossos colares, nossas pulseiras,
nossos brincos? Não gostam de se pintar como a gente? A gente gosta de esmalte e de
batom também.”

O episódio me chamou a atenção porque a idéia que me foi passada na FUNAI


em relação aos Suruí/Aikewára foi a de que eles eram os índios mais “fraquinhos” da
região, tanto econômica quanto culturalmente, dando a impressão de que estavam
perdendo seus traços culturais com muita facilidade e rapidez.

O que pude perceber durante o período que permaneci entre os Suruí/Aikewára


veio ratificar a resposta dada pela mulher à professora, no sentido de que o fato de eles
usarem roupas e acessórios de “branco” não significa necessariamente que estejam
perdendo suas tradições. Pelo contrário, é comum vermos mulheres e meninas
Suruí/Aikewára pintadas com jenipapo ou urucu, apesar do esmalte nas unhas. O
esmalte aqui é um exemplo de que, no contexto da sociedade Suruí/Aikewára, os
“enfeites de branco” não são utilizados em substituição ao que tradicionalmente eles
usam como adorno. Uma leitura possível de ser feita, tomando a resposta da mulher, é
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 18
Mastop-Lima, 2002

que elas não deixam de ser índias porque usam esmalte ou batom, nem tampouco nós
nos tornamos índias porque usamos os adornos por eles fabricados.

Outra situação foi em relação à linguagem que eu deveria empregar ao me


relacionar com eles. Como estava interessada em saber sobre seus mitos e histórias de
contato, a pessoa que me foi indicada como narradora desde a FUNAI foi Awasaí, o
pajé. Aos primeiros dias em que estava na aldeia uma das mulheres se aproximou de
mim, Tymykong, que fiquei sabendo depois ser filha de Awasaí. Foi ela quem guiou
meus passos até ele.

Fui até a casa de Awasaí com Tymykong pelo menos duas vezes sem conseguir
encontrá-lo, pois ele estava ocupado com os afazeres da roça. Consegui encontrá-lo à
terceira tentativa, dessa vez acompanhada por Maria, uma das mulheres da aldeia.

Maria e Muretama, esposa de Awasaí e mãe de Tymykong, explicaram a Awasaí


na língua deles sobre o que eu estava interessada em pesquisar na aldeia. Como Awasaí
não fala Português e entende pouco, elas me ajudaram a me fazer entender, traduzindo
para ele o que eu perguntava, e traduziam para mim o que ele falava.

Ao decorrer da conversa, que estava sendo gravada, percebi que Maria


reformulava todas as perguntas que eu pedia para Muretama fazer a Awasaí, apesar de
Muretama entender e falar Português. O fato despertou minha atenção para perceber a
inadequação da linguagem que eu estava utilizando e me fez aprender a ouvi-los. Ao
ouvi-los, pude perceber que a fronteira entre nós poderia não estar apenas nas diferentes
línguas que falamos, mas também na língua que nos “aproxima,” o Português. Ao me
aproximar mais do Português por eles empregado, pude entender com mais facilidade as
relações que se desenrolaram na aldeia. Tive de aprender a ouvir para aprender a
perguntar, o que me ajudou bastante na observação de seu modo de vida.

Mas o fato de ter sido Maria a me ajudar a enxergar o modo como deveria
conduzir minha comunicação com os Suruí/Aikewára não foi à toa, pois Maria é advinda
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 19
Mastop-Lima, 2002

da nossa sociedade, chegou à aldeia quando tinha 15 anos, casou com um dos Suruí e
mora lá há mais de 20 anos.

A presença de Maria na aldeia foi um outro fator de “surpresa” em relação aos


Suruí, pois, como falei anteriormente, não foi permitido o casamento ou a união entre
um kamará e a agente de saúde Suruí que mora na aldeia.

Apesar de não ser permitido o envolvimento com kamará, há na aldeia pelo


menos cinco casos de Suruí/Aikewára casados com kamará. Três deles com homens
“de fora” e dois com mulheres, as kamarakusó, como chamam os Suruí/Aikewára para
as mulheres brancas. A maioria dessas uniões, apesar de aceitas atualmente, devido o
tempo de integração no grupo que os kamará possuem, sofreram muita resistência por
parte dos membros da sociedade Suruí/Aikewára, principalmente dos mais velhos,
segundo o que eles mesmos me relataram. Apenas um dos casos de uma kamarakusó
casada com um dos homens ainda não é aceito pelos demais membros da sociedade
Suruí/Aikewára.

É comum encontrarmos atualmente casos de jovens rapazes Suruí/Aikewára, na


faixa etária de 15 a 20 anos, que saem da aldeia para “procurar mulher na rua.”13 Isso
ocorre pelo fato de que as mulheres da aldeia em idade de casar, preferencialmente entre
11 e 15 anos, já têm seus pares. Há mais rapazes em idade de casar que moças na aldeia.
Segundo relatos de dois rapazes Suruí/Aikewára que costumam sair da aldeia em busca
de parceiras, eles o fazem porque todas as mulheres da aldeia “já têm dono e o jeito é
procurar na rua.” O lugar preferido por eles para buscar parceiras é São Geraldo do
Araguaia pois, segundo eles, lá há muita mulher. A curiosidade e o exotismo que
envolvem a figura do índio são fatores favoráveis ao sucesso das buscas.

13
Rua é como os Suruí/Aikewára chamam para os espaços fora da aldeia que envolvem o contato com os
brancos. Dessa forma, rua são as cidades que eles freqüentam, os povoados próximos à aldeia, as
fazendas que fazem limite com a Área Indígena Sororó.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 20
Mastop-Lima, 2002

O problema em relação a parceiros não é atual, visto que o grupo sofreu uma
depopulação após o contato com a sociedade nacional, chegando a população
Suruí/Aikewára a ser composta por 40 indivíduos no início da década de 60 até meados
da mesma década. Laraia (1963) referiu “arranjos poliândricos”14 realizados pelos
Suruí/Aikewára para solucionar o problema da depopulação; os dados demográficos
referentes ao grupo tratados por Ricardo (1985) e Beltrão (1998b) mostram que o grupo
conseguiu vencer o fantasma da depopulação. Atualmente os Suruí/Aikewára são 237
indivíduos, mas ainda há disparidades em relação à quantidade de homens e mulheres
em idade de casar. A Tabela 1 a seguir mostra dados demográficos atuais dos
Suruí/Aikewára.

Tabela 1. Dados demográficos Suruí/Aikewára - 200115


Faixa etária Mulheres Homens Total
00 a 01 08 10 18
02 a 05 15 19 34
06 a 10 27 19 46
11 a 15 15 19 34
16 a 20 13 12 25
21 a 30 18 21 39
31 a 40 08 05 13
41 a 50 08 06 14
mais de 50 04 10 14
Total 116 121 237

Aparentemente, a tabela mostra equilíbrio entre o número de mulheres e homens


em idade de casar, o que não acarretaria maiores problemas quanto à questão de
parceiros. No entanto, o que a tabela não mostra é que nas faixas etárias em questão
existem pessoas casadas e solteiras. Das mulheres que se encontram na faixa etária entre
11 e 15 anos, oito delas já são casadas, permanecendo, portanto sete ainda solteiras. Dos
homens na faixa etária entre 15 e 20 anos, oito também estão casados, restando dez
14
“Poliandria” é o termo de parentesco empregado quando uma mulher possui vários maridos. Sobre o
assunto, consultar, entre outros: Schusky (1973) e Augé (1978).
15
O censo foi realizado por mim em setembro de 2001, com a colaboração da agente de saúde indígena
Mureirú Suruí.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 21
Mastop-Lima, 2002

solteiros. O equilíbrio parece persistir, pois, idealmente, sete mulheres poderiam ser as
esposas dos sete homens solteiros, restando três ainda por casar.

Acontece que a situação não é tão simples quanto parece, porque entre os rapazes
solteiros estão aqueles que estabelecem contato mais recorrente com a rua, e acabam
levando os demais em suas buscas por mulheres, não resolvendo, portanto, o problema
dos parceiros. Ao se envolverem com “mulheres da rua,” começam a colocar em
questão a qualidade do relacionamento que estabelecem com as mulheres da aldeia,
sendo-lhes mais atraente o relacionamento “de fora.” Mas vale ressaltar que as pessoas
mais velhas da aldeia procuram enfatizar para os mais jovens que devem casar com as
mulheres da aldeia, pois devem aumentar a população Suruí, para que o grupo continue
a existir como grupo indígena.

Além das uniões com kamará, há na sociedade Suruí casamentos com índios de
outras etnias. Há dois casos de mulheres Suruí/Aikewára casadas com índios Parakanã,
morando na aldeia Parakanã, e casos de mulheres Suruí/Aikewára casadas com índios de
outras etnias, mas que moram na aldeia Sororó16 Arihera, por exemplo é casada com
Umasu, índio Tapirapé.17 Há também o casamento de um índio Guajajara com uma das
mulheres Suruí/Aikewára. O casamento do jovem Guajajara com a jovem Suruí foi
possibilitado pelo fato de uma família Guajajara morar entre os Suruí/Aikewára há
pouco mais que um ano.

Maria Lúcia, a mulher Guajajara que mora entre os Suruí/Aikewára, relatou-me


que sua família foi morar na aldeia porque estava na Casa do Índio em Marabá, para
tratamento de malária, e estava com dificuldades para retornar à sua aldeia de origem.
Umasu, que em certo período desempenhou o papel de cacique na aldeia Sororó,
16
Gostaria de chamar a atenção para casamentos com os Parakanã pelo fato de que não são uniões “ao
acaso”, mas que têm origem histórica e mítica. Ouvi relatos na aldeia de que os Suruí/Aikewára advêm de
um único grupo, também composto por Parakanã e Asurini do Tocantins. Segundo relatou-me Ywynuhu
Suruí, houve uma disputa interna no grupo por causa de uma ave, semelhante a um papagaio, que
ocasionou a cisão do grupo em três outros: os Suruí/Aikewára, os Parakanã e os Asurini do Tocantins. Na
produção antropológica também encontramos referência à origem comum dos grupos e à cisão do grupo
do qual advieram. Sobre o assunto, consultar: Laraia & DaMatta (1967) e Santos (1994).
17
Umasu é, segundo Laraia, descendente do clã karajá. Sobre o assunto, consultar Laraia & DaMatta
(1967). No capítulo seguinte tratarei do assunto.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 22
Mastop-Lima, 2002

também se encontrava na Casa do Índio à época e convidou Zé Vicente, marido de


Maria Lúcia, para ficar um tempo com a família na aldeia Sororó. A família de Zé
Vicente e Maria Lúcia lá se instalou e começou a participar das atividades produtivas da
aldeia. O casamento do filho deles com a jovem Suruí/Aikewára, somou-se à
participação que tinham na aldeia e possibilitou a permanência deles na Área Indígena
Sororó.

Ainda em relação aos casamentos com kamará, o caso de Maria é exemplo de


uma união bem sucedida com uma kamarakusó. Além do tempo que mora na aldeia
ajudar para o sucesso da união, Maria desempenha um papel importante na sociedade
pelo fato de ser uma das mulheres mais indicadas para a pintura corporal e por reter
conhecimentos de tratamento tradicional de saúde, obtidos num treinamento junto às
mulheres realizado pela Pastoral da Saúde na aldeia. Maria entende e fala Suruí e,
devido sua facilidade para aprender, também põe em prática os conhecimentos
adquiridos com os Suruí/Aikewára em relação à cura de doenças. Sua atuação é em
relação a saberes mais imediatos, como por exemplo o de saber que planta colocar sobre
um ferimento.

A presença dos kamará é verificada, além dos casamentos, também nas festas
que os Suruí/Aikewára promovem na casona.

De forma não muito regular, os Suruí/Aikewára promovem festas na aldeia ao


som de forró18 e brega.19 As festas não precisam ter necessariamente um motivo especial
para acontecer, mas épocas como por exemplo o carnaval, não passam despercebidas na
aldeia. Isso é reflexo do contato em pelo menos três situações: quando os
Suruí/Aikewára vão até a rua; quando a rua vai até eles pela visita dos regionais à aldeia
e quando a rua chega até eles pela televisão.

18
A apreciação do forró pelos Suruí explica-se também pela presença e influência de nordestinos no Sul
do Pará, que é a população com quem os Suruí/Aikewára têm maior contato.
19
Ritmo paraense muito tocado em festas e mesmo no quotidiano do povo paraense, nos bares, nas casas,
nas emissoras de rádio locais.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 23
Mastop-Lima, 2002

Em dia de festa, os homens dão vez às calças jeans, aos tênis, às camisas de
botão ou estilo gola polo. As mulheres variam o visual com saias, blusas de alças,
vestidos e também calças jeans. As sandálias de tiras e saltos substituem as de borracha
de todo dia. Os lábios são pintados com o mais vermelho batom e os acessórios para os
cabelos usados pelas kamarakusó ganham mais brilho por ocasião das festas. (Foto 5)

Fiquei impressionada, principalmente com as crianças, ao ver como os


Suruí/Aikewára gostam e sabem dançar bem os dois ritmos a que há pouco me referi.
As crianças vão às festas geralmente acompanhadas por seus pais; quando eles se
retiram, elas também o devem fazer, salvo se algum irmão e/ou irmã mais velhos se
responsabilizam por elas, o que não acontece com muita freqüência visto que longe da
presença dos pais eles costumam ficar mais à vontade para dançar e namorar. Além das
crianças e das moças e rapazes em idade de casar, os casais mais jovens da aldeia
também freqüentam as festas; os casais mais velhos raramente aparecem na casona.
Quando algum dos casais mais velhos aparece nas festas é para verificar o
comportamento dos jovens ou para reclamar da altura do som, além de adverti-los de
que devem “saber brincar.”

Mairá, o cacique, costuma anunciar as festas e estar presente, juntamente com


sua mulher e filhos, ao início delas. Das festas de que participei não o vi dançar em
nenhuma delas, mas incentivou todos a fazerem, inclusive eu. Mahu, irmão de Mairá é
quem controla o som, até porque o aparelho lhe pertence. O aparelho de som de Mahu é
a controle remoto, com possibilidade de tocar até cinco CD’s. O aparelho é umas das
atrações da festa, já que aparelhos eletrônicos desse tipo causam verdadeira fascinação
aos Suruí/Aikewára. Apesar de ser o preferido, o aparelho de som de Mahu não é o
único utilizado. Nas festas também utilizam o aparelho de som de um dos kamará que
mora na aldeia, embora seja de qualidade inferior ao de Mahu.

Os homens que têm mais contato com a rua costumam levar bebida alcoólica
para as festas, que bebem escondido enquanto Mairá e os mais velhos estão presentes na
casona. Não só os índios mas também os kamará convidados para as festas levam
Luiza Mastop-Lima
Foto 5. Festa de Kamará na casona da aldeia
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 24
Mastop-Lima, 2002

bebida alcoólica para a aldeia. Quando Mairá e os mais velhos se retiram, a bebida
começa a aparecer mais, tanto em relação às garrafas mesmo, quanto em relação ao
comportamento dos homens, que ficam muito eufóricos, e não mais querem parar de
dançar. O problema que advém da euforia é que eles querem dançar não importa com
quais mulheres, o que acaba despertando ciúmes. Os maridos ficam enciumados se suas
mulheres dançam com outro homem, principalmente se for um kamará; as mulheres, se
seus maridos escolhem para dançar alguma mulher de quem não gostam; o mesmo
acontece com namorados e namoradas.20

Além disso, há também as kamarakusó que freqüentam as festas a convite dos


Suruí/Aikewára. Elas vêm de povoados próximos à aldeia como por exemplo Some
Home, São Raimundo e São Pedro. Se um dos homens casados escolhe para dançar uma
kamarakusó o ciúme de sua mulher é mais acentuado do que se ele escolhesse uma das
mulheres da aldeia. O casal geralmente acaba discutindo e tendo a mulher de se retirar
mais cedo da festa e o homem permanece lá. No dia seguinte, a discussão e o resultado
dela são os principais comentários entre os Suruí/Aikewára, que costumam reprovar a
atitude do marido.

Eu ficava com muito receio de participar das festas de kamará porque já sabia
que as mulheres eram muito ciumentas. Mas não tive como me furtar de participar da
primeira a que fui convidada.

Logo que a música começou, todos ficaram sentados nos bancos da casona
olhando uns para os outros; alguns ficavam à entrada da casona conversando. As
primeiras pessoas a quem eles se dirigem para começar a dançar são os kamará que
trabalham na aldeia e os que foram convidados especialmente para a festa. Leva de
quinze a vinte minutos até que alguém se candidate a “abrir a festa.” Em geral, quem
inicia a dança são os próprios Suruí/Aikewára e depois eles nos tiram para dançar.

20
Os Suruí me relataram que no tempo antigo os casamentos eram acordados desde a infância dos
esposos, mas que atualmente não praticam mais o costume. Penso que isso se deu por influência do
contato, que trouxe a noção de namoro para os Suruí. Pelo período que permaneci em campo percebi que
os primeiros parceiros escolhidos nem sempre correspondem aos parceiros para os casamentos.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 25
Mastop-Lima, 2002

Apesar do receio, aceitei fazer parte das danças. Eles queriam saber se eu “era
boa de forró.” Como pareci passar no teste, além de dançar com alguns dos rapazes e
dos homens casados, tive também de dançar com algumas moças, mulheres e crianças.
Achei muito bom ter dançado com um dos meninos, porque ele me elegeu seu par na
festa, o que me deixava fora da mira dos ciúmes das mulheres.

É muito comum entre os Suruí/Aikewára meninas dançarem com meninas,


mulheres casadas com outras mulheres casadas e mulheres com meninas, tudo depende
do desempenho no salão. Mas os meninos não dançam com outros meninos e muito
menos os homens com outros homens, imitando o padrão regional, afinal de contas não
foi isso o que eles aprenderam nas festas em que freqüentam na rua.

As festas não costumam durar muitas horas, em vista do controle do uso de óleo
diesel que alimenta o gerador de energia elétrica e pelo barulho que proporcionam,
incomodando aos que dela não tomam parte, como os mais velhos e os Suruí que se
dizem evangélicos. Os convidados “de fora,” após a festa, ficam hospedados na casa de
quem os convidou.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 26
Mastop-Lima, 2002

Lutando pela sobrevivência

Entre as atividades produtivas realizadas pelos Suruí/Aikewára estão a


agricultura, a caça, a pesca, a coleta e, com o contato, a comercialização dos produtos de
coleta como é o caso, principalmente, da castanha-do-pará. Os dados apresentados a
seguir foram coletados a partir de observação e participação nas atividades produtivas,
além de um inventário junto ao grupo sobre sua interação com o meio ambiente que
ocupam, utilizando fichas elaboradas a partir dos trabalhos de Evans-Pritchard (1978) e
Adrião (2001).

Agricultura

Uma das marcas dos grupos Tupi, segundo Laraia (1986) é o fato de serem
excelentes agricultores. Entre os produtos cultivados por eles destacam-se: mandioca
(manióg), milho (awatí), fava (kumaná), feijão (kumanarona), banana (pahakurona),
cará (branco e roxo), inhame (koro’onuhú), macaxeira (ikatú) e arroz (awatíapupisáw)
(Fotos 6 e 7), introduzido na cultura Suruí a partir do contato. Laraia (1986) ainda
destaca o cultivo de fumo, algodão, urucu e jenipapo.

Para o preparo das roças, os Suruí/Aikewára utilizam o sistema de coivara, que


envolve a queima da terra a ser cultivada. Após a queimada, eles costumam ir até as
roças e se alimentar de animais que morreram na queima ou de larvas encontradas nos
troncos de coco babaçu que não foram totalmente queimados. Pelo barulho produzido
ao baterem nos troncos de coco babaçu, os Suruí/Aikewára identificam se existem ou
não larvas; se existirem, eles abrem o tronco com um machado, retiram as larvas, assam-
nas nas brasas dos troncos que ainda queimam e as comem com sal e farinha. (Fotos 8, 9
e 10)21

21
Sobre as vantagens da técnica de coivara para a agricultura indígena, consultar Ribeiro (2000).
Luiza Mastop-Lima
Foto 6. Mureirú colhendo arroz
Luiza Mastop-Lima
Foto 7. Arikasú e sua família colocando arroz para secar
Luiza Mastop-Lima
Foto 8. Homem Suruí abrindo o tronco para retirar alimento

Luiza Mastop-Lima

Foto 9. Homens assando as larvas


Luiza Mastop-Lima

Foto 10. Mairá se alimenta de um pequeno jabuti


Tibungando entre os Suruí/Aikewára 27
Mastop-Lima, 2002

Quanto ao fumo, seu cultivo está relacionado à fabricação de cigarros compridos,


utilizados em rituais pelos Suruí/Aikewára. Um exemplo disso é o ritual que o pajé
realiza quando alguma mulher deseja engravidar. Segundo o que os Suruí/Aikewára me
relataram, quando uma mulher casa e demora a engravidar, o pajé vai até a porta de sua
casa, entoa uma canção e defuma a casa e a mulher. Não tive a oportunidade de
presenciar a pajelança com alguma das mulheres Suruí, mas gravei a música, na qual o
pajé imita o choro de um bebê.

Além dos relatos do sucesso do ritual entre as mulheres Suruí, ouvi também
relatos de que Awasaí havia obtido sucesso com a antropóloga Fernanda, que
acompanhava a antropóloga Jane Beltrão em trabalho na área, no ano de 1998. Eles
consideram Awasaí como pai do filho de Fernanda. Quando estive em campo em
setembro de 2001 pude observar Awasaí realizar a pajelança que engravida mulheres
para a antropóloga Pascale Robert, que se encontrava na área para verificar projetos de
criação de frangos em áreas indígenas da região, a fim de acompanhar projeto
semelhante na área em que trabalha. Além desse ritual, também verifiquei o destaque ao
fumo durante a realização da Festa dos Karuára, descrita mais adiante. Afora os rituais,
o fumo é quotidianamente utilizado, principalmente pelos mais velhos.

O algodão era por eles cultivado para servir como matéria-prima para a
fabricação de fios utilizados para tecer suas redes de dormir e as tipóias nas quais as
mulheres carregam seus filhos. Quando estive em julho de 2000 na área ainda vi
algodão colhido na casa de Muretama e Awasaí. Muretama inclusive fez uma
demonstração de como é fabricado o fio de algodão a partir de um fuso com base de
pedra. Além da casa de Muretama, outro lugar em que encontrei fusos foi na casa de
Arihera, que me explicou que o fuso era usado para fabricar o Aikewára nimó, o fio feito
pelos Aikewára, e que agora eles já não plantam mais algodão e compram o fio “na mão
do kamará”.

O urucu e o jenipapo, constituem a matéria-prima básica para o preparo de tintas


que são usadas para a pintura corporal do grupo. Mais adiante mostrarei a técnica
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 28
Mastop-Lima, 2002

empregada pelos Suruí/Aikewára para o preparo das tintas e a diversidade da pintura


corporal, assim como seu significado.

Caça

Pelo que observei no período em que estive em campo, a caça é atividade


constantemente praticada pelos Suruí/Aikewára do verão ao inverno, as duas estações do
ano marcadas por eles como o período de chuvas e de seca.

A caça é uma atividade masculina e pode ser feita individual ou coletivamente.


Por vezes as mulheres acompanham seus maridos às caçadas, mas só até determinado
ponto; elas os esperam ir atrás dos animais e trazê-los. Os homens caçam coletivamente,
geralmente, quando algum deles ao voltar de uma caçada individual vem com a notícia
de que avistou uma vara de porcos do mato. No dia seguinte os homens seguem em
grupo para caçar os porcos e voltam com cerca de cinco ou sete porcos. Os principais
animais caçados pelos Suruí/Aikewára são: porco do mato/porcão (tasahú); veado
(misára); anta (tapi’ira); paca (karuaruhú); cotia (akutí); macaco (ka’i); jabuti (sautí);
tatu (tatú). (Fotos 11 e 12) Além desses, eles também abatem algumas aves como por
exemplo araras, tucanos, mutuns, papagaios entre outras, das quais eles se alimentam e
aproveitam as penas para fabricar seus artefatos. O produto da caça coletiva é dividido
entre os que moram na aldeia. O produto da caça individual é dividido entre os parentes
que compõem o grupo residencial.

Ao andar com os Suruí/Aikewára pelo mato, pude observar que as técnicas


empregadas por eles para a caça envolvem o conhecimento dos hábitos dos animais,
principalmente em relação aos alimentos que consomem, indicativo de que o lugar está
“bom de cotia,” por exemplo, ou então de veado, anta, paca. Os Suruí também
empregam a técnica da espera, que consiste em passar a noite no mato, no verão, armar a
rede de dormir entre duas árvores que estejam “boas” de determinada caça e esperar até
que o animal venha se alimentar, quando é abatido pelo caçador. Outra técnica é a
Luiza Mastop-Lima
Foto 11. Produtos da caça - macaco

Luiza Mastop-Lima

Foto 12. Produtos da caça - paca


Tibungando entre os Suruí/Aikewára 29
Mastop-Lima, 2002

preparação de pequenas armadilhas camufladas com palmeiras de coco babaçu, às quais


eles chamam de tukása. As técnicas aqui descritas também são temas nos mitos que me
relataram, como veremos ao terceiro capítulo.

Pesca

Tive a oportunidade de participar de uma pescaria com os Suruí/Aikewára no


outro lado da reserva que é cortada pela BR-153, no Cupú. O Cupú é um castanhal
próximo ao grotão Água Fria (Ver Mapa 2) e uma das rotas de pesca para os
Suruí/Aikewára. Para se chegar até lá sai-se cedo da aldeia e anda-se cerca de oito
quilômetros, partindo do portão da área indígena. Depois, anda-se mais cerca de um
quilômetro mata adentro até chegar ao grotão. Da pescaria que participei, a caminho do
grotão, na mata, os Suruí/Aikewára pararam para quebrar coco babaçu e tirar as larvas
que se criam dentro dos frutos, os gongos ou os inatá howg - em língua Suruí - que são
utilizados como iscas para os peixes. (Fotos 13 e 14)

Após pegarem suas iscas, os Suruí/Aikewára preparam seus anzóis para a pesca.
A pesca é realizada ao longo do curso do grotão, mata adentro. Os peixes são em geral
pequenos, não chegando a medir dez centímetros de comprimento. Quem pescou por
essa ocasião foram as mulheres e as crianças. Enquanto elas pescavam, os homens
caçavam. Horas depois, entre meio-dia e uma hora da tarde, com os peixinhos todos
enfiados em pequenos galhos com bifurcação, os Suruí/Aikewára se encontraram em
duas cabanas construídas por eles no mato. (Fotos 15 e 16) Alguns dos homens já
estavam lá preparando o que caçaram. As mulheres dirigiram-se para uma grota
próxima às cabanas para tratar dos peixes. Depois retornaram para colocar os peixes
para assar sobre um jirau construído acima de uma fogueira. Geralmente come-se o que
se pesca, cada um come o que pescou. A caça é dividida por todos e a refeição é
acompanhada de muita farinha. Para o preparo dos peixes e da caça os Suruí/Aikewára
Mapa 2. Sudeste do Pará
Fonte: RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas do Brasil, 1990/95. São Paulo: ISA, 1996
Luiza Mastop-Lima
Foto 13. Araci tirando iscas do coco babaçu

Luiza Mastop-Lima

Foto 14. Awatiwai pescando na mata


Tibungando entre os Suruí/Aikewára 30
Mastop-Lima, 2002

não utilizam qualquer espécie de tempero, o que fazem é adicionar sal e caldo de limão
sobre os alimentos depois de assados.22

Um outro tipo de pescaria é a realizada com o uso de timbó, um cipó tóxico


encontrado na mata. Para a pescaria com timbó, a uma certa altura do curso da grota em
que se vai colocar o timbó, é feita uma barreira com palmeiras de coco babaçu para que
os peixes que forem envenenados com o timbó não possam ir “morrer longe.” (Foto 17)
Os Suruí/Aikewára cortam o timbó em pedaços de aproximadamente meio metro de
comprimento e os amarram em pequenos feixes, os levam para a beira da grota e batem
nos feixes com um pedaço de madeira à guisa de uma borduna ou um porrete. (Foto 18 e
19) Ao baterem no feixe é como se o cipó fosse descascando e liberando o veneno.
Depois de bater no feixe, eles o lavam nas águas da grota, produzindo espuma, que vai
se espalhando pela água e matando os peixes. Eles me explicaram que os peixes
morrem porque o veneno afeta o oxigênio da água, asfixiando os peixes, que têm de
emergir para tentar respirar, sendo nesse momento capturados.

Enquanto esperam o efeito do timbó sobre os peixes, alguns dos homens


preparam arcos e flechas para matar os peixes antes que o veneno tenha agido
completamente sobre eles. Por vezes também matam os peixes a golpes de terçado.
Depois de algumas horas de atuação do timbó, eles se dirigem à barreira de palmeiras
para pegar os peixes mortos. A pescaria com o timbó é característica do verão e o lugar
preferido por eles para a pescaria é Água Preta, pela maior concentração de água e de
peixes (Ver mapa 2).

22
Além de pescarias na mata, mais raramente acontece de os Suruí/Aikewára pescarem nos açudes das
fazendas próximas à aldeia, como ocorrido durante a Semana Santa, influenciados que estavam pelos
regionais quanto à crença de que o consumo de carne vermelha é proibido à essa época. Por não
consumirem carne de caça à época da Semana Santa, e pelo fato de não disporem de fartos recursos
hídricos em suas terras, os Suruí/Aikewára organizam pescarias aos açudes das fazendas vizinhas.
Luiza Mastop-Lima
Foto 17. Pesca com timbó, o cerco aos peixes

Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima

Foto 19. Ehapikan batendo timbó


Foto 18. Api carregando timbó
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 31
Mastop-Lima, 2002

Coleta e comercialização

As frutas são alimentos muito apreciados pelos Suruí/Aikewára. Entre as que são
encontradas na floresta as preferidas são: cupuaçu, manga, banana, bacaba e açaí. À
época dessas frutas é comum os pais mobilizarem seus filhos para a coleta delas na
mata. Algumas das frutas que consomem são cultivadas nos quintais das casas, como
por exemplo caju e limão. Embora com menos freqüência, também consomem graviola,
abacaxi e bacuri. Além das frutas, os Suruí/Aikewára também coletam mel para vender
nas cidades próximas à aldeia e principalmente para os funcionários da FUNAI.

À primeira vez que estive na aldeia pude participar da coleta de mel com
Muretama, Awasaí, sua filhinha, dois dos filhos de Tymykong e Tarew, também filha de
Muretama, acompanhada de Tawé, seu marido.

Ao identificarem a árvore que tinha a espécie de mel que estavam à procura, os


homens puseram-se a derrubá-la. Enquanto isso, eu, Muretama, Tarew e as crianças
esperávamos num local não muito próximo à árvore. Cerca de uma hora e meia depois,
escutávamos o estalado da árvore que estava por cair e Muretama insistia para que se
fizesse silêncio para que o barulho não atraísse as abelhas que, segundo ela, eram muito
brabas. Minutos depois, ouvimos o barulho da árvore ao cair. Muretama e Tarew
dirigiram-se, então, para o local da queda da árvore a fim de atearem fogo em algumas
palhas secas, para que se produzisse fumaça para afastar as abelhas enquanto os homens
retiravam os favos de mel do interior da árvore.

O mel coletado foi transportado para a aldeia em baldes de plástico e em folhas


amarradas em forma de concha por Muretama. Depois de espremer os favos para
separar o mel, as mulheres o coaram e o armazenaram em garrafas com capacidade para
um litro. O destino do mel coletado além do consumo e do preparo de xaropes era a
comercialização. Além do mel o outro produto comercializado pelos Suruí/Aikewára,
como falei anteriormente, é a castanha-do-pará.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 32
Mastop-Lima, 2002

A coleta de castanha-do-pará entre os Suruí/Aikewára começa por volta do mês


de dezembro e vai até o mês de março, e por vezes até o mês de abril, dependendo da
safra. Para a coleta da castanha os Suruí/Aikewára passam de cinco a dez dias no mato,
em casas feitas por eles próximas às colocações de castanha.

O tempo de permanência deles no mato depende da quantidade de alimentos


levados para suprir as necessidades das famílias que para lá se deslocam. Em geral, as
casas são uma armação em madeira, amarradas com cipó e cobertas de palha de coco
babaçu, sem paredes; lá ficam algumas panelas, pratos, copos e colheres, guardados em
sacos de sarrapilheira, à espera de uso.

Os Suruí/Aikewára costumam levar para os dias que passam no mato café,


açúcar, bolacha de água e sal, arroz, óleo - que eles chamam de gordura - e farinha. A
farinha é um alimento muito apreciado por eles e uma das principais bases de sua
alimentação. A quantidade de farinha que se leva interfere no tempo de permanência no
mato, visto que à medida que o tempo decorre, os alimentos vão ficando escassos e a
farinha passa a ser o principal acompanhamento ao que caçam e pescam.

A castanha que os Suruí/Aikewára coletam é também consumida por eles durante


o período que permanecem no mato. Em um dos acampamentos que visitei no mato
pude verificar que eles costumam ralar parte da castanha coletada para retirar o leite e
com ele cozinhar alguma caça ou mesmo jabuti, outro alimento bastante apreciado por
eles (Fotos 20 e 21). A castanha coletada é armazenada em sacos de sarrapilheira na
própria barraca.

No retorno à aldeia, após alguns dias no mato, eles não levam a produção de
castanha, pois para o transporte da castanha dependem de animais de carga como burros,
cavalos ou jumentos, que nem todos os Suruí/Aikewára possuem. O transporte da
castanha até a aldeia pode ser feito conduzindo os animais pelo mato, o que se
caracteriza como uma tarefa masculina, ou então “por fora” da reserva. Para esse tipo de
transporte, Mairá reúne alguns dos homens e vão no carro da aldeia ou num pequeno
Luiza Mastop-Lima
Foto 20. Acampamento na mata

Luiza Mastop-Lima

Foto 21. Casco de jabuti com leite de castanha-do-pará. Encostada no esteio, a


paxiúba em que se ralou a castanha
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 33
Mastop-Lima, 2002

trator com carroceria, ao qual chamam de jerico, por estradas que passam pelas fazendas
e povoados que fazem limite com a Área Indígena Sororó.

O transporte com animais demora mais e atende a poucas famílias, uma ou duas
em geral. O transporte com o carro ou o trator atende a mais famílias. Outro fator que
dificulta o transporte da castanha pelo mato é que como essa é a época das chuvas, há
muita lama, água empoçada no mato e grotas com nível de água que se eleva nesse
período, que os animais não podem atravessar, tendo-se de esperar que o nível da água
baixe.

Os sacos de castanha que chegam à aldeia ficam guardados nas casas das
famílias que foram coletá-la, à espera do caminhão fretado pelo cacique Mairá que
transporta a castanha até São Domingos do Araguaia ou Marabá, onde a castanha é
comercializada. Pelo que pude ver quando acompanhei os Suruí/Aikewára em uma das
vezes em que foram vender castanha em Marabá, há compradores certos para a castanha,
pessoas com as quais eles já tratam há muitos anos, até porque há em Marabá
estabelecimentos comerciais que trabalham especificamente com compra e venda de
castanha. É claro que apesar disso, há flexibilidade de negociação com outros
compradores, dependendo do preço pago pelo hectolitro da castanha no mercado23.
Enquanto estava em campo vi uma vez um comprador de castanha ir buscá-la na aldeia.

O dinheiro arrecadado com a venda da castanha é usado para comprar alimentos


para os Suruí/Aikewára. Parte das compras é feita em Marabá e parte em São Domingos
do Araguaia, onde os Suruí/Aikewára costumam comprar à crédito num dos comércios.
É em São Domingos do Araguaia que os aposentados da aldeia fazem suas compras;
quando recebem têm de pagar as despesas do mês anterior.

Os Suruí/Aikewára reclamam da forma como está estruturada a coleta da


castanha atualmente, pois não têm condições de permanecer no mato o tempo necessário
para a coleta da safra de castanha. Devido a pouca quantidade de mantimentos que
23
Sobre o assunto, consultar Laraia & DaMatta (1967); Ricardo (1985) e Beltrão (1998b).
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 34
Mastop-Lima, 2002

podem levar, eles têm de fazer rápidas incursões ao mato e retornar à aldeia a fim de
vender a castanha, comprar alimentos e poder retornar ao mato para completar a coleta.
O processo acaba se tornando cansativo e dispendioso, pois gasta-se mais dinheiro com
frete de caminhão para levar a castanha para vender em Marabá.

A fim de solucionar o problema os Suruí/Aikewára tentam negociar junto à


CVRD e à FUNAI apoio financeiro ou material.24 Foi esse o caráter da reunião realizada
entre o pessoal da CVRD, a FUNAI e a comunidade no dia em que cheguei à aldeia pela
segunda vez que estive na área.

Durante a reunião, Mairá apresentou as reivindicações dos Suruí/Aikewára,


arroladas por ele numa folha de papel que trazia à mão. Entre as reivindicações
constavam: a) vigilância da área; b) pagamento aos motoristas da aldeia; c)
transporte/retirada da castanha da área para comercializar na rua.

A vigilância da área faz-se necessária porque os Suruí/Aikewára ainda enfrentam


problemas com brancos que invadem suas terras para retirar madeira ou para caçar. Foi
reivindicado um salário para os motoristas porque eles têm de estar à disposição da
comunidade, o que acaba dificultando que desenvolvam as atividades necessárias à
subsistência de suas famílias. Quanto à questão da castanha, mostrei anteriormente as
dificuldades envolvidas em relação à coleta, transporte e comercialização.

A partir da reunião ficou acordado que quanto à questão da vigilância Mairá


designaria dez homens para fazer a vigilância da área, a CVRD entraria com rancho,
combustível para o carro e uniforme (jaquetas e botinas); a FUNAI se encarregaria da
munição para as armas. Em relação aos motoristas, a CVRD pagaria uma ajuda de custo
de R$ 151,00 (cento e cinqüenta e um reais) - à época correspondia a um salário mínimo
- que não aumentaria necessariamente com o aumento do salário mínimo, mas que seria

24
A atuação da FUNAI e da CVRD na Área Indígena Sororó através de “projetos produtivos sustentáveis”
e a comercialização da castanha aproxima os Suruí da categoria “povos indígenas de comércio
recorrente”, a partir da classificação socioambiental da ocupação humana da Amazônia, elaborada por
Lima & Pozzobon. Sobre o assunto, consultar Lima & Pozzobon (2001).
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 35
Mastop-Lima, 2002

um recurso a ser negociado. A preocupação do pessoal da CVRD era a de que se o


recurso que estava destinando aos motoristas fosse encarado como um salário, isso
estimularia que os demais Suruí/Aikewára também reivindicassem um salário e não mais
realizassem suas atividades tradicionais, ficando dependentes da CVRD. É preciso que
se diga que, ao contrário do que acontece com os Gavião e com os Xikrín do Cateté, por
exemplo, a atuação da CVRD na Área Indígena Sororó não se dá por meio de convênios
permanentes, e sim por acordos esporádicos, intermediados pela Procuradoria da
República, considerando que os Suruí/Aikewára estão na área de influência da CVRD.25

Quanto à questão da castanha ficou decidido que a CVRD fretaria um caminhão


para transportá-la da aldeia até o local de comercialização, o que acabou por não
resolver o problema maior em relação ao tempo de permanência no mato para a coleta.
Além desses pontos, ficou acordado também que a CVRD liberaria recursos para a
compra de pelo menos mais duas motosserras para os Suruí/Aikewára, e forneceria
combustível para o funcionamento delas.

Entre católicos e evangélicos, ainda Suruí/Aikewára

Quanto à questão religiosa na aldeia, chamou-me a atenção o fato de os


Suruí/Aikewára estarem divididos em católicos e evangélicos. A Igreja Católica faz-se
presente na área por intermédio do Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Havia
uma irmã morando na área com os Suruí/Aikewára, irmã Alice. O propósito de ter um
representante do CIMI em áreas indígenas é o de acompanhar todas as atividades
realizadas pelos índios dentro e fora da aldeia; conhecer a realidade das aldeias,
acompanhar as lideranças indígenas ou representantes da comunidade em reuniões que
tratem de seus direitos, entre outras coisas.26

25
Conferir Laraia & Santilli (1997).
26
A informação me foi dada por Eliane Franco Martins, integrante do CIMI e professora na área à época
do trabalho de campo.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 36
Mastop-Lima, 2002

Irmã Alice teve de sair da Área Indígena Sororó por motivo de doença e não
retornou a pedido dos próprios índios que, preocupados com seu estado de saúde,
temiam que ela voltasse e tivesse recaídas, pois como eles mesmos relataram, não
tinham como cuidar dela. Outro fator que contribuiu para o pedido dos Suruí/Aikewára
foi o fato de que por ficar doente muitas vezes, irmã Alice não podia os acompanhar em
suas atividades de caça, pesca, ou mesmo à roça.

Mas essa informação só surgiu quando uma outra irmã, irmã Fátima, foi
designada para trabalhar na aldeia. Ao contrário de irmã Alice, natural das Filipinas,
irmã Fátima está acostumada a um ritmo de vida mais próximo do vivido pelos
Suruí/Aikewára. Irmã Fátima cresceu num ambiente de trabalho na roça, caça e pesca
numa das cidades do interior do Pará, o que favoreceu sua aproximação com os índios.
Os Suruí/Aikewára a elogiavam muito porque ela os acompanhava à roça e ia caçar e
pescar com eles, e logo fizeram a comparação dela com irmã Alice, dizendo que irmã
Fátima mostrou que era uma “mulher forte”.

Além de ter uma irmã morando na área, o CIMI também atua junto à escola
indígena, indicando professoras brancas para trabalhar lá e pela visita periódica à aldeia
de Padre Nelo e Irmã Rebeca. Irmã Rebeca visita a área desde 1975 e Padre Nelo desde
1978; durante suas visitas, promovem missas, batizados e casamentos entre os
Suruí/Aikewára, segundo o que eles próprios me relataram. Enquanto permanecem na
área, Padre Nelo e Irmã Rebeca ficam hospedados na casa de uma das famílias.

Tive oportunidade de estar presente em uma das missas realizadas por Padre
Nelo e Irmã Rebeca na aldeia. No dia anterior à missa, Padre Nelo e Irmã Rebeca
avisaram a todos que no dia seguinte haveria missa. No dia da missa, eles se levantaram
por volta das seis horas da manhã, e saíram buzinando pela aldeia, arrebanhando os
Suruí/Aikewára, que por volta das sete horas estavam reunidos na casona. Uma
máquina de costura serviu de altar, coberta com uma toalha branca, bordada com uma
cruz.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 37
Mastop-Lima, 2002

A impressão que me deu foi que o padre realizava um grande teatro, ao qual os
Suruí/Aikewára assistiram com muita atenção. À certa altura da missa, na hora do
Evangelho, o padre falou sobre um acontecimento em Jericó.27 Nesse momento, os
Suruí/Aikewára tomaram a palavra e começaram a contar como se dava a distribuição de
comida no tempo antigo.28

Arikasu, um dos homens Suruí/Aikewára, levantou-se e começou a explicar que


naquele tempo eles traziam farinha e banana para a aldeia, concentrando a produção
num lugar determinado pelo capitão, como chamavam ao cacique, que era quem ficava
encarregado por distribuir para cada pessoa o que eles haviam produzido. Arikasu falou
também que eles faziam caruji, um mingau com castanha e urucu, distribuído
juntamente com a banana e a farinha, e que realizavam dança para acompanhar a
distribuição.

Daí então, Awarini e Umasu também se puseram a falar. Eles falavam ao


mesmo tempo, reforçando o que Arikasu tinha contado. Depois, o padre retomou a
palavra e Awarini saiu da casona, voltando minutos depois com duas cuias feitas de
cabaça. Assim que teve oportunidade, Awarini foi até o “altar” com suas duas cuias e
mostrou ao padre como era que o capitão usava as cuias para distribuir os alimentos.

27
“35 Sucedeu, porém, que quando Jesus ia chegando a Jericó, estava sentado à beira da estrada um cego
pedindo esmola. 36 E ouvindo o tropel da gente que passava, perguntou que era aquilo. 37 E
responderam-lhe que era Jesus Nazareno que passava. 38 No mesmo tempo se pôs ele a bradar, dizendo:
Jesus, Filho de Davi, tem de mim piedade. 39 E os que iam adiante repreendiam-no para que se calasse.
Porém ele cada vez gritava mais Filho de Davi, tem de mim piedade. 40 Então Jesus, passando, mandou
que lho trouxessem. E quando ele chegou, fez-lhe esta pergunta, 41 dizendo: Que queres que te faça? E
ele respondeu: Senhor, que eu veja. 42 E Jesus lhe disse: Vê, a tua fé te salvou. 43 E logo imediatamente
viu, e o foi seguindo, engrandecendo a Deus. E todo o povo, assim que isto presenciou, deu louvor a
Deus.” (São Lucas, 18: 35). À primeira vista, a passagem bíblica não tem muito a ver com a reação
desencadeada pelos Suruí/Aikewára, mas ela está relacionada com o comentário que Padre Nelo fez a
respeito dela. Padre Nelo falou que as pessoas não foram solidárias ao cego quando Jesus passava,
pedindo que se calasse, e que os Suruí/Aikewára deviam ser solidários uns aos outros para resolver os
problemas que enfrentam, o da escassez de alimentos é um deles, por isso a referência feita pelos
Suruí/Aikewára ao tempo em que havia fartura na aldeia, em que todos tinham o que comer.
28
O tempo antigo a que os Suruí/Aikewára se remetem é retratado por narrativas míticas, histórias de
contato deles com outros grupos indígenas e com sociedades não-indígenas e histórias que relatam o
quotidiano de pessoas que compunham sua sociedade e não mais existem, vítimas que foram do contato e
que deixaram saberes tradicionais aos que sobreviveram e às gerações subseqüentes, que preservam,
recriam e criam as tradições do grupo.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 38
Mastop-Lima, 2002

Em seguida, o padre deu continuidade à missa. Acabada a missa, Awarini ficou


conversando com Irmã Rebeca, que me chamou para tomar lugar na conversa. Awarini
contou que as cuias que foi buscar, quando novas, servem para dar banho em criança
chorona. Segundo ele, pega-se uma peneira nova e coloca-se sobre a cabeça da criança
e, com a cuia, joga-se água sobre a peneira e a cabeça, com o que a criança deixa de ser
chorona.

Awarini também contou que se a criança estiver dando trabalho para dormir,
basta levá-la às seis horas da manhã junto ao pé de uma planta chamada arumã, abaná-la
com sua folha, que ela passará a dormir cedo. Ainda em relação a recursos da floresta
utilizados por eles, Awarini falou do uso de um cipó chamado iposurú, parecido com um
ingá, cuja casca serve como remédio para feridas e para dores.

Um outro tipo de reunião religiosa na aldeia foi um culto evangélico. Quando foi
realizado o culto na aldeia, o comportamento dos Suruí/Aikewára foi notadamente
diferente. Para a realização do culto foram à aldeia um pastor e quatro pessoas da
Assembléia de Deus. O culto teve mais gente que a missa, talvez pelo horário em que
foi realizado, à noite, quando os Suruí/Aikewára já haviam feito as tarefas do dia. Outro
fator que pode ter influenciado na maior presença ao culto foi o fato de que os
evangélicos, para arrebanhar gente para o culto, levaram pirulitos para distribuir entre as
crianças e também entre os adultos.

Os evangélicos trabalharam muito junto às crianças, ensaiando os hinos do culto


com elas e apresentando-lhes uma curta peça teatral do diálogo entre uma formiga e um
dos evangélicos. Das quatro pessoas que foram com o pastor, duas ficavam
responsáveis pela peça; uma pelo violão e outra pela animação em relação aos hinos. As
crianças se divertiram muito durante o culto, cantando os hinos e assistindo à peça; os
adultos divertiram-se também mas, ao contrário do que ocorreu na missa, tiveram uma
participação mais passiva. O que talvez contribua para a pouca participação dos adultos
no culto em comparação com a missa seja o período de conhecimento e o grau de
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 39
Mastop-Lima, 2002

entrosamento que os Suruí/Aikewára têm com Padre Nelo e Irmã Rebeca, que já atuam
na área há mais de 25 anos, o que não se aplica ao pastor que lá esteve.

Pelo que vi, a participação dos Suruí/Aikewára nas missas e nos cultos dá-se pelo
menos sob três formas: há os que participam dos dois eventos indiferentemente,
principalmente as crianças; há os que se dizem católicos e não participam dos cultos
evangélicos; há os que se dizem evangélicos e não participam das reuniões católicas. Há
também quem fale que vai participar do evento de quem “levar mais coisas” para
distribuir na aldeia.

Os Suruí/Aikewára que assumem a identidade de católico ou evangélico são os


que têm maior contato com a sociedade não-indígena em torno da aldeia, em geral, os
que moraram alguns anos fora da aldeia. Quem nunca morou fora da aldeia ou quem
pouco tempo passou fora da área não tem restrições quanto à participação em qualquer
das reuniões religiosas.

Ao meu ver há pelo menos duas leituras possíveis do objetivo das reuniões
religiosas quanto a reforçar a crença em Deus e arrebanhar prosélitos: penso que talvez
elas surtam mais efeito entre os Suruí/Aikewára que já tinham um contato maior com a
prática delas, como é o caso dos que têm mais contato com a rua, aos que contato mais
esporádico têm, elas parecem ser uma boa oportunidade de diversão, em que eles ficam
reunidos cantando; elas representam uma forma de descontração/recreação para o grupo.

Penso isso baseada nos comentários feitos após as reuniões religiosas e no


próprio comportamento dos Suruí/Aikewára durante elas. O que eles querem saber é se
estão cantando direito, alto, bonito, se acompanharam os cânticos com os gestos que lhes
foram ensinados, como os kamará fizeram para chamar-lhes a atenção, como a formiga
do teatro fala fino e é engraçada. Enfim, o que quero dizer é que eles não saem das
reuniões com ares de pecadores arrependidos, pelo contrário, saem muito alegres,
tecendo comentários sobre o desenrolar das reuniões. Lembro aqui da presença das
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 40
Mastop-Lima, 2002

religiões dos brancos na aldeia porque isso marcou a fala de Mairá, durante o episódio
de contato ocorrido na aldeia com um grupo religioso, que relato a seguir.

À época do carnaval, eu estava na aldeia e pude testemunhar o comportamento


dos Suruí/Aikewára perante um grupo teatral de universitários evangélicos. Referi-me a
esse episódio anteriormente quando falava das reuniões religiosas na aldeia.

O grupo chegou à aldeia sem avisar e entrou na área porque um funcionário da


FUNAI havia chegado horas antes e não havia trancado o portão a cadeado. À época, o
trabalho de vigilância na área ainda não era realizado de forma mais sistemática. Os
Suruí/Aikewára só deram por conta disso quando se depararam com o ônibus de viagem
que transportava os estudantes, já perto da Casa de Reuniões. Mairá logo chegou para
falar com os kamará. O funcionário da FUNAI também foi até lá para tentar ajudar
Mairá a conduzir o encontro.

Em poucos minutos toda a aldeia estava na Casa de Reuniões para saber da


novidade. (Foto 22) O grupo de universitários evangélicos levou pães, roupas e
bombons para os Suruí/Aikewára. O funcionário da FUNAI foi quem primeiro tomou a
palavra, apresentando os Suruí, passando-a em seguida para Mairá.

Mairá apresentou a comunidade como Suruí, contou um pouco dos caminhos que
o grupo percorreu até ter suas terras demarcadas e como ele se tornou cacique. Mairá
disse que os Suruí/Aikewára fugiam dos Kayapó, seus inimigos tradicionais, pela
floresta. Quando nascia alguma criança, eles a matavam para o choro da criança não
denunciar aos perseguidores o paradeiro dos Suruí/Aikewára. Segundo Mairá, seu pai
havia sido cacique, morreu quando ele ainda era pequeno e a comunidade o escolheu
para substituir o pai. O que Mairá também fez questão de deixar clara foi a crença dos
Suruí/Aikewára em Deus, o “Deus de vocês” como disse ele, assim como dizer que eles
também têm os deuses deles.
Luiza Mastop-Lima
Foto 22. Suruí e evangélicos na Casa de Reuniões
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 41
Mastop-Lima, 2002

O movimento gerado na aldeia pela visita do grupo de estudantes foi curioso,


pois quotidianamente os Suruí/Aikewára não usam seus adornos, à exceção de alguns
colares e pulseiras feitos de ossos e sementes, que eles próprios fabricam. Com a
chegada do grupo de estudantes, os Suruí/Aikewára foram às suas casas e colocaram
todos os adornos que os pudessem identificar como índios, como Suruí/Aikewára.

Apareceram os araráw, os atutú, as braçadeiras, os labretes e mais colares e


pulseiras. Os araráw são enfeites de cabeça, semelhantes a um cocar, feitos de penas de
arara ou mutum, palha de coco babaçu e fio de algodão para uso masculino. Os atutú
são também enfeites de cabeça, feitos de penas de arara ou tucano e fio de algodão, que
se diferenciam dos araráw pelo uso, feminino, e pelo formato, pois as penas ficam
dispostas num tufo sobre a cabeça. Os labretes são adornos feitos de ossos ou de
miçangas que atravessam o lábio inferior dos meninos, jovens e homens adultos. O fato
de os labretes estarem em uso atualmente pelos Suruí/Aikewára é encarado por eles
como um retorno a práticas tradicionais, já que os mais velhos da aldeia possuem o lábio
inferior furado.

Talvez também essa reação tenha sido desencadeada pelo fato de os estudantes,
por constituírem um grupo teatral, estarem com seus rostos maquiados, como os de
artistas circenses. Os Suruí/Aikewára se arrumaram para receber as visitas, tal qual
fazemos, pois não se costuma receber as pessoas em nossas casas apresentados de
qualquer maneira. Os contatos dos Suruí/Aikewára com os religiosos na área, pelo que
pude perceber, podem ser interpretados como situações de manifestação da identidade
étnica do grupo e afirmação das fronteiras que marcam a diferença entre as duas
culturas.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 42
Mastop-Lima, 2002

O fascínio pela própria imagem

A relação dos Suruí/Aikewára com a própria imagem me chamou a atenção, pois


eles gostam muito de se ver em fotos e em filmes. Quando fui pela primeira vez à
aldeia, Mairá fez questão de me mostrar alguns álbuns de fotografias dos
Suruí/Aikewára, feitas na aldeia. Nas fotos, além das imagens deles, há também as de
enfermeiras e professoras que trabalharam na área, e até fotos de alguns antropólogos.
À minha primeira visita à Casa da Cultura, Mairá também fez questão de me mostrar as
fotos que estão penduradas na parede do escritório.

Enquanto eu estava na aldeia, ou mesmo andando com eles pela cidade, quando
eles me viam com a máquina fotográfica logo tratavam de pedir “Luiza, tira o nosso
foto.” Eu procurava atender a todos os pedidos. Em uma das ocasiões em que estive em
Marabá durante o período do trabalho de campo, revelei alguns dos filmes com as fotos
que fiz na aldeia e as entreguei aos Suruí/Aikewára. Eles ficaram muito alegres, pois
sempre me cobravam as fotos, diziam que era para eu as entregar mesmo. Como eles
viram que eu cumpri com o acordo, as encomendas aumentaram: os pais queriam fotos
de seus filhos, as crianças delas mesmas, os maridos de suas mulheres, as mulheres de
seus maridos, e os casais de si. Houve também quem quisesse fotos comigo e fotos
minhas, segundo eles para poder mostrar a quem andar pela aldeia.

Eles também gostam muito de se ver em vídeo. Gostam não apenas de se assistir
como também de assistir a documentários sobre os Jogos Indígenas, congressos sobre
povos indígenas. Mas os preferidos deles são mesmo os vídeos caseiros que os mostram
em Água Preta.29 Água Preta, juntamente com Cajueiro, foram também lugares de onde
os Suruí/Aikewára utilizavam os recursos naturais para fazer remédio antigamente,
segundo o que me relatou Itamaré.

29
Os vídeos caseiros foram feitos por um estudante de agronomia, Júlio César, que realiza pesquisa na
área em relação à classificação que os Suruí fazem dos solos. Júlio César Araújo é aluno da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e filho do administrador regional da FUNAI em Marabá.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 43
Mastop-Lima, 2002

Outro vídeo mostra-os na Serra das Andorinhas, referida por eles como lugar
sagrado, que fazia parte do território tradicionalmente ocupado por eles, mas que fica
fora da demarcação de suas terras. Itamaré disse que há gente do grupo enterrada na
Serra das Andorinhas e que lá eles iam também para caçar.

Atualmente, os Suruí/Aikewára não vão com tanta freqüência à Serra das


Andorinhas, mas quando vão é por ocasião de algum passeio organizado pelo pessoal da
FUNAI a pedido da comunidade, ou quando o conseguem com algum político da região.
Um dos principais atrativos para eles, hoje, em relação à Serra das Andorinhas é o banho
de cachoeira, quando eles mostram o quanto são destros com água, apesar dos escassos
recursos hídricos de que dispõem em suas terras. Ao contrário do que ocorre com a
Serra das Andorinhas, o contato deles com Água Preta é mais recorrente.

A idéia que formei a partir da relação deles com a imagem foi a de que, longe de
parecer narcisismo, eles gostam de se ver porque lembram que um dia já tiveram a
própria existência ameaçada aos primeiros anos de contato; o fantasma da depopulação
ainda é uma lembrança muito forte. Além do que, verem-se retratados e filmados é uma
forma de saber que estão sendo percebidos, e representa também uma maneira de manter
registrados aspectos de sua cultura que podem ser transmitidos para os “de dentro” e
mostrados para os “de fora.”
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 44
Mastop-Lima, 2002

Emergindo do tibum: o prazer da aprendizagem

Tibungar entre os Suruí/Aikewára representou para mim aprendizagem


constante, à medida que me deixei “pegar pela mão” e me deixar conduzir por seu
universo. Aprendizagem que se revelou quando eles me fizeram entender que não
bastava estar na área com eles, mas que era preciso participar e colaborar de alguma
forma com a vida na aldeia; que era preciso saber ouvi-los para saber como falar com
eles.

Quando pude me aproximar mais deles, pude ver o que se revelava com o tibum.
Pude participar de suas reuniões internas, ajudar nas reuniões com os “de fora;” aprender
a superar as dificuldades em campo; rir com eles das piadas que faziam sobre mim,
especialmente em relação à falta de intimidade com a mata, que me rendeu tropeções e
quedas inesquecíveis; desfrutar da receptividade e paciência deles ao me conduzirem
pela mata a fim de me mostrar suas terras; fazer refeições em suas casas ou recebê-los
em minha casa na aldeia; participar de suas festas; gravar suas músicas e depois ouvi-las
junto com eles; participar de pescarias e compartilhar um pedaço bem assado de tasahú
ou de karuaruhú quando voltavam de suas caçadas. Para mim foram experiências que,
além de mostrar o modo como os Suruí/Aikewára concebem seu lugar no mundo, me
ensinaram a maravilha de se trabalhar com pessoas e principalmente com pessoas de
uma cultura diferente da nossa. Além da riqueza do trabalho de campo numa sociedade
indígena, o tibungar entre eles permitiu que eu emergisse com a certeza de que a
interação com eles me proporcionou também crescimento pessoal.
“Uma lenda, registrada
g por
p Mário Ypiranga
p g
Monteiro, conta como apareceu a rede de dormir,
que o homem não conhecia, dormindo no chão em
cima de folhas, como os guaribas. Tamaquaré,
cunhado de Jurupari, casou-se com a anta, e não
quis dormir no chão, com medo de que os outros
bichos a machucassem. Por isso, Jurupari mandou
o compadre tucano ajudá-lo a fazer uma rede.
Este amarrou cipó-ambé, fez um trançado e
Detalhe - rede de doormir Suruí/Aikewára

colocou-o no alto, bem escondido dos outros que


viviam ‘lá embaixo, na terra.’ Foi assim que o pajé
Tamaquaré pôde dormir com sua mulher, mas
pediu ao tucano que não contasse a ninguém que
eles haviam dormido numa rede Aconteceu
rede. Aconteceu,
porém, que o tucano embebedou-se com caxiri
numa festa do pajé e acabou contando tudo.
Quando Tamaquaré ficou sabendo, puxou muito
zangado o bico do tucano, e com tanta força que
o deixou assim bem grande. Por isso, o tucano tem
hoje esse bico, e só fala ‘nhem-nhem.’’”
nhem nhem.

(CASCUDO, 2000: 577)


3. Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára

No capítulo anterior mostrei aspectos da organização social dos


Suruí/Aikewára, além de descrever aspectos de suas atividades produtivas e de
situações de contato. O que me levou a tibungar entre o grupo foi o interesse,
inicialmente, em seus mitos e na interação dos Suruí/Aikewára com o meio
ambiente, visando, a partir desses pontos, observar a relação entre eles e a identidade
étnica do grupo.

Estando entre os Suruí/Aikewára pude verificar que além dos mitos,


precisaria atentar para as narrativas referentes ao contato deles com a sociedade não-
indígena. Toda vez que pedia para que me contassem suas histórias ou quando
tomavam a iniciativa de fazê-lo, acompanhando os mitos, falavam-me também de
histórias que revelavam seus costumes e tradições antes mesmo do contato, dos
personagens responsáveis pelos saberes ainda hoje presentes no quotidiano do grupo,
assim como pelos saberes que não mais são praticados, em vista das transformações
ocorridas no modo de vida do grupo a partir da situação de contato.

Mas antes mesmo de estar entre os Suruí/Aikewára, era preciso treinar o olhar
para o campo, como nos ensina Cardoso de Oliveira (1996). O treinamento se
iniciou com leituras específicas sobre o grupo e, no decorrer do trabalho, ampliou-se
com bibliografia referente aos Tupi, especialmente em relação à mitologia tupi,
tomando corpo com o trabalho de campo e o contínuo apoio na bibliografia, tanto a
específica ao grupo e aos Tupi, quanto a referente à identidade étnica, para então
construir o trabalho. Como se deu o tecer de tramas que revelam os Suruí/Aikewára
é o objeto deste capítulo.

A idéia de tratar o capítulo como um tecer de tramas vem de uma situação de


campo, em que aprendi com mulheres, homens, jovens e crianças Suruí/Aikewára a
tecer redes de dormir. Além de constituir informações etnográficas sobre o grupo em
relação a um dos elementos de sua cultura material, o tecer de tramas também
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 46
Mastop-Lima, 2002

possibilita analogia relativa ao próprio tecer de tramas sociais que os revelam


etnicamente como Suruí/Aikewára.

Para tecer suas redes de dormir, os Suruí/Aikewára fincam no chão dois


troncos de árvores não muito grossos, formando um tear, a uma distância um do
outro correspondente ao comprimento que desejam da rede. Os troncos têm
aproximadamente a altura 1,50m, o que os guia para a largura da rede. O lugar onde
é montado o tear muda conforme a situação, pode ser montado no interior das casas,
à frente delas, nos quintais. Se fabricam rede em época de chuvas, a tendência é
montarem seus teares no interior das casas, na sala ou na cozinha, perto da porta,
para aproveitarem a claridade do dia; se o fazem no verão, os locais preferidos para
montar os teares são os quintais, onde se refrescam ao vento que sopra. Além da
rede de dormir, com fios de algodão os Suruí/Aikewára também fabricam tipóias
(tupása), empregando técnica semelhante. A diferença principal apontada por eles
para o fabrico da tipóia é a de que ela deve ser começada e terminada no mesmo dia,
já a rede de dormir pode ficar mais de um dia armada no tear.

A rede de dormir Suruí caracteriza-se por um trabalho em trama, no qual se


destacam dois elementos: a urdidura e a trama.1 A urdidura é a série de fios montada
no tear, que é entretecida pela trama (RIBEIRO, 1987: 395). A trama representa o
fio contínuo ou separado que enlaça ou entretece a urdidura, formando o tecido
(RIBEIRO, 1987: 395). O urdir da rede Suruí/Aikewára é realizado na horizontal,
por isso o tear que serve de pilar para a urdidura é classificado por Ribeiro (1987)
como tear com urdume na horizontal 2 (Foto 23).

Com fios de algodão os Suruí/Aikewára vão contornando os dois troncos,


usando-os como suporte para a urdidura da rede. A partir daí, os fios são

1
Ribeiro (1987: 395) assim define o trabalho em trama: “[s]istema de tecelagem em que intervêm dois
elementos - urdidura e trama - que se entrecruzam de forma a constituir um tecido. Compreende as
técnicas de: entretecer (weaving), entretorcer (twining), contratorcer (coutertwining).”
2
Ribeiro assim informa sobre o tear: “[o] tear com a urdidura na horizontal - que é o mais difundido
entre grupos indígenas do Brasil - compõe-se de dois esteios de madeira fincados no chão (pode-se
utilizar os da própria casa), distantes um do outro o necessário para conferir à obra que se deseja tecer
o comprimento adequado. Ao redor dessas traves é feito o urdimento, sendo a trama passada
verticalmente, de baixo para cima, pela torção de dois fios que se sobrepõem um ao outro, englobando
em cada meia volta, um ou mais geralmente, dois fios do urdume... Nesse caso, dispensa-se qualquer
acessório. Apenas os dedos se ocupam da tramação.” (1987: 355)
Luiza Mastop-Lima
Foto 23. Arihera e as netas tecendo rede de dormir
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 47
Mastop-Lima, 2002

entretecidos por fios de algodão, originando a trama, que em conjunto com a


urdidura formam o tecido da rede. As técnicas empregadas para a confecção da
trama podem ser a de entretorcimento espaçado3 dos fios ou a de contratorcimento
combinado,4 a que mais verifiquei. Os fios de algodão da trama precisam ser bem
amarrados. Para isso, é preciso ter destreza e firmeza nas mãos para que os fios não
fiquem frouxos ou tortuosos, deixando a rede troncha, afetando-lhe a beleza e o
conforto.

Se o capítulo uma rede fosse, poderíamos pensar os mitos, as histórias de


contato e a interação com o meio ambiente como elementos que compõem um dos
troncos necessários à feitura da rede; o outro tronco corresponderia então à
identidade étnica. O tear assim composto, se movimentaria conforme a situação,
como os Suruí/Aikewára costumam fazer segundo o que lhes convém. Para tramar
adequadamente nossas idéias, poderíamos pensar nos aspectos da identidade étnica
dos Suruí/Aikewára revelados a partir dos mitos, das histórias de contato e da relação
com o meio ambiente como os fios de algodão necessários para dar forma à rede.

A tessitura da rede entre os Suruí/Aikewára é feita a muitas mãos, a olhares


atentos e a conversas agradáveis. Sempre chega alguém para verificar se a distância
entre os fios da trama está adequada, se precisa mais firmeza ao entremear os fios, se
a rede está sendo bem feita, pois é preciso que as muitas mãos estejam em sintonia
quanto ao entretecimento dos fios. Poderíamos pensar a bibliografia utilizada e o
trabalho de campo como a firmeza e a destreza necessárias à trama das idéias.

Depois de tecida a rede, os Suruí/Aikewára a retiram do tear, ficando uma


parte de fios de algodão sem estarem entretecidos. É justamente a parte que dará
origem aos punhos. Os fios de algodão são entrançados, retomando os fios que

3
Segundo Ribeiro, “entretorcer” acontece quando “[u]m par de fios, torcido um sobre o outro,
engloba um ou mais elementos da urdidura que correm em sentido contrário. A torção da direita para
a esquerda assume a forma de ‘Z’; o contrário, a forma de ‘S’...” (1987: 392). Ainda segundo a
autora, “entretorcido espaçado” denomina-se à técnica em que “[a]s carreiras entretorcidas da trama
são armadas a uma distância regular uma da outra.” (1987: 392)
4
No mesmo trabalho Ribeiro informa: “[c]ontratorcer. Técnica de tecelagem produzida quando quatro
fios englobam entre si um ou mais elementos da urdidura... Contratorcido Combinado. Torção
executada em movimento unificado com o uso de quatro fios: os do centro passando por trás da
urdidura; os dos lados, por cima, um à direita e outro à esquerda. Depois de pronto o trabalho
apresenta a forma de trança...” (1987: 390)
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 48
Mastop-Lima, 2002

deram origem à urdidura da rede, formando seu acabamento ou finalização. Feitas as


tranças, um novo suporte é feito, dessa vez com varas curtas e finas, para empunhar a
rede. Preparados os punhos, é só armar a rede e experimentá-la, de preferência num
local adequado para que, em caso de queda, o choque não seja muito prejudicial a
ponto de não ter condições de submetê-la a reparos e temer um novo teste. Retomar
os pontos discutidos ao longo do capítulo, à guisa de conclusão, inconclusivas como
nos diz Maués (2000), pode ser considerada a feitura dos punhos da rede. Saber que
o trabalho como um todo representa uma possível leitura do campo e da bibliografia,
que está sujeito a modificações, seja pela discussão acadêmica, seja por demanda dos
próprios Suruí/Aikewára, pode corresponder ao teste realizado com a rede. Se o
resultado for bom, é aproveitar o balouçar da rede e repousar um pouco após tanto
trabalho. Mas por hora, mãos à obra.

Fincando um dos troncos: identidade étnica

Gostaria de retomar aqui uma situação ilustrada no capítulo anterior em que,


por ocasião de minha primeira viagem à aldeia Sororó, fui alertada por alguns
funcionários da FUNAI de que os Suruí/Aikewára eram os mais “fraquinhos” da
região, do ponto de vista cultural e econômico.

O contraponto para essa opinião sobre os Suruí/Aikewára eram justamente os


Xikrín do Cateté, considerados pelos mesmos funcionários como os mais “fortes” da
região. Alguns pontos me foram arrolados para fundamentar o argumento: a) os
Suruí/Aikewára, devido o contato permanente com a sociedade não-indígena, já
haviam perdido muitos de seus costumes e tradições; b) ao contrário dos
Suruí/Aikewára, isso já era mais difícil de acontecer com os Xikrín, pois o acesso à
área que habitam é mais difícil e também de lá não se sai com tanta facilidade, o que
garantiria a manutenção das tradições Xikrín. Cheguei mesmo a ouvir um
comentário feito por um dos funcionários de que se ele estudasse Antropologia faria
um trabalho com os Xikrín, pois entre eles poderíamos ver que a cultura estava “viva
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 49
Mastop-Lima, 2002

mesmo”5. Os Suruí/Aikewára estariam, dessa forma, “condenados” ao


desaparecimento pelo constante contato com a redondeza e os Xikrín estariam
“salvos” pelo relativo isolamento da sociedade não-indígena.

Lembro a situação para introduzir aqui o trabalho de Fredrik Barth


(1969/1998) sobre grupos étnicos e suas fronteiras. Segundo Barth, o fato de se
pensar que um grupo esteja isolado geográfica e socialmente não representa condição
necessária para a sustentação da diversidade cultural; assim como o fato de um grupo
estar em contato permanente com outros não significa um fator de insustentabilidade
da diversidade cultural. A diversidade cultural é mantida porque existem fronteiras
entre grupos que constituem sistemas sociais englobantes. Quanto à questão da
manutenção da diversidade cultural e da existência de fronteiras entre grupos étnicos
em contato, coloca Barth:

“Em primeiro lugar, fica claro que as fronteiras persistem apesar do fluxo de pessoas
que as atravessam. Em outras palavras, as distinções de categorias étnicas não
dependem de uma ausência de mobilidade, contato e informação. Mas acarretam
processos sociais de exclusão e incorporação pelos quais categorias discretas são
mantidas, apesar das transformações na participação e na pertença no decorrer de
histórias de vidas individuais. Em segundo lugar, descobre-se que relações sociais
estáveis, persistentes e muitas vezes de uma importância social vital, são mantidas
através dessas fronteiras e são freqüentemente baseadas precisamente nos estatutos
étnicos dicotomizados. Em outras palavras, as distinções étnicas não dependem de
uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrário,
freqüentemente as próprias fundações sobre as quais são levantados os sistemas
sociais englobantes. A interação em um sistema social como este não leva a seu
desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem
permanecer apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos.” (1998:
188. Itálico do autor. Grifos meus.)

Confesso que grande foi minha alegria ao ler as colocações de Barth, pois
assim desmitificavam-se idéias preconcebidas acerca dos Suruí/Aikewára e dos
Xikrín do Cateté e afastava-se qualquer tentativa de generalizações mais apressadas.
O contato permanente dos Suruí/Aikewára com a sociedade não-indígena e a
“inevitável” perda das tradições não é preocupação exclusiva dos funcionários da
FUNAI, mas também dos religiosos que trabalham na área. Era comum ouvir os
religiosos aconselharem os Suruí/Aikewára a não se ausentar da aldeia por longos
5
O sentido atribuído pelo funcionário da FUNAI refere-se principalmente aos rituais e aos elementos
da cultura material observados mais “comumente” entre os Xikrín, em comparação com os
Suruí/Aikewára.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 50
Mastop-Lima, 2002

períodos nem com tanta recorrência. Se os próprios religiosos precisavam se


ausentar da aldeia por algum motivo, isso era fator de angústia para eles. O que me
pareceu é que se estava agindo em favor de um esforço contínuo de preservar o que
ainda existia de tradicional entre os Suruí/Aikewára, procurava-se a todo custo
aproximá-los do que um dia foram.

A postura e a ação dos religiosos entre os Suruí/Aikewára quanto ao contato


era algo que me incomodava muito, pois não podia conceber como realizaria um
estudo sobre os Suruí/Aikewára sem levar em conta a situação de contato com a
sociedade não-indígena, pois se assim fosse, deixaria de perceber justo os processos
de exclusão e incorporação pelos quais as fronteiras são mantidas e transformadas,
segundo o que nos diz Barth.

Ainda segundo Barth (1998: 189), os grupos étnicos são “categorias de


atribuição e identificação” realizadas por seus próprios integrantes e têm como
característica “organizar a interação entre as pessoas.” É pela interação que se pode
observar aspectos de manutenção das fronteiras entre os grupos étnicos e é pela
manutenção das fronteiras que os grupos em interação se caracterizam como étnicos.
Os grupos étnicos existem porque existem fronteiras. As fronteiras não são estáticas,
mas dinâmicas, o que significa que transformações também acontecem nos grupos
étnicos, o que não implica necessariamente em seu desaparecimento, como parece
ser o temor dos religiosos que trabalham com os Suruí/Aikewára.

Para Barth “os traços culturais que demarcam a fronteira podem mudar, e as
características culturais de seus membros podem igualmente se transformar ...”
(1998: 195),6 o que me leva a considerar que acontecimentos como por exemplo o
fato de as mulheres Suruí/Aikewára usarem esmalte nas unhas, batom e sapatos de
salto alto, como mostrei no capítulo anterior, antes de constituírem indícios da perda
de tradições pelo grupo, revelam transformações ocorridas nas fronteiras que os
distinguem dos membros da sociedade não-indígena. A postura da mulher Suruí ao

6
Entendo traços culturais como características que marcam etnicamente um grupo. Traços culturais
podem ser, segundo indica Geertz, “... essenciais à existência humana... ” e “... adventícios, periféricos
ou ornamentais.” (1978: 50). Ao longo do trabalho, uso “traços culturais” e “marcas étnicas” como
termos equivalentes.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 51
Mastop-Lima, 2002

colocar que o fato de usar esmalte não fazia dela uma kamarákusó7 revela que as
fronteiras não são necessariamente coincidentes com os comportamentos manifestos,
e nem o fato representa algo socialmente relevante quanto ao ser Suruí/Aikewára.
Quanto a isso coloca Barth:

“... apenas os fatores socialmente relevantes tornam-se próprios para diagnosticar a


pertença [a um grupo étnico], e não as diferenças ‘objetivas’ manifestas que são
geradas por outros fatores. Pouco importa quão dessemelhantes possam ser os
membros em seus comportamentos manifestos - se eles dizem que são A, em
oposição a outra categoria B da mesma ordem, eles estão querendo ser tratados e
querem ver seus próprios comportamentos serem interpretados e julgados como de
As e não de Bs; melhor dizendo, eles declaram sua sujeição à cultura compartilhada
pelos As.” (1998: 195)

Considerando as idéias de Barth, situações de contato entre diferentes


culturas, antes de representar uma ameaça à existência dos grupos, implica na
manutenção das fronteiras que os caracterizam como grupos étnicos. Para Barth,
“grupos étnicos persistem como unidades significativas apenas se implicarem
marcadas diferenças no comportamento, isto é, diferenças culturais persistentes...”
(1998: 196). Em situações de relações interétnicas há, segundo ele, um conjunto de
regras que dirigem o contato, que prescrevem e proscrevem o que é socialmente
relevante para a interação entre os grupos. Por meio de prescrições são dirigidas as
situações de contato que possibilitam articulação em determinados aspectos da
organização social dos grupos em contato; por meio de proscrições vedam-se as
articulações referentes a outros aspectos sociais, o que possibilitaria o isolamento de
partes das culturas e as protegeria de confrontos ou modificações (BARTH, 1998:
197).

Em relação aos Suruí/Aikewára poderíamos pensar como situações de


prescrição do contato com a sociedade não-indígena, por exemplo, a comercialização
de produtos tradicionalmente coletados, como é o caso da castanha e do mel. Um
outro exemplo seria a própria escola indígena, em que os Suruí/Aikewára têm de
aprender códigos de uma sociedade diferente da sua, mas que são necessários para
poderem gerir as demandas decorrentes do contato e garantir também a existência do
grupo, uma vez que ocorreram transformações na vida do grupo quanto à

7
Termo nativo para designar mulher branca.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 52
Mastop-Lima, 2002

alimentação, saúde e vestuário, por exemplo. Das cidades próximas à aldeia os


Suruí/Aikewára dependem de produtos industrializados que aprenderam a consumir e
a necessitar, de óleo diesel para o motor e para o carro da aldeia, de gasolina para as
motosserras e negociar demandas como por exemplo a construção de poços
artesianos na aldeia junto aos órgãos que atuam na área, como é o caso da FUNAI,
da FUNASA, da APITO, além da CVRD.

Além disso, o fato de possuírem uma associação, a Associação Indígena do


Povo Aikewára (AIPA), requer treinamento dos Suruí/Aikewára para o bom
funcionamento da associação: como preencher a ata das reuniões, o papel do
tesoureiro, da secretária, aprender a preencher cheques, aprender datilografia,
computação, contabilidade, entre outras coisas. A compra de remédios para a aldeia,
por exemplo, efetua-se mediante verba da CVRD depositada na conta da AIPA.

Como exemplo de proscrição em relação à situação de contato, poderíamos


considerar a proibição de casamentos com kamará,8 apesar das uniões já ocorridas,
pois por mais que tenham ocorrido não deixaram de ser encaradas como situação de
confronto e não de articulação. Em outras palavras, o casamento com kamará não é
algo socialmente desejável na cultura Suruí. Os Suruí/Aikewára distinguem os filhos
nascidos de uniões com kamará, os “misturados,” e os filhos de “índio mesmo,” mas
essa distinção parece ser diluída quando o assunto se refere aos costumes e tradições
do grupo, aspectos da identidade étnica do grupo.

Para os Suruí/Aikewára é importante que os jovens e as crianças saibam falar


a língua, caçar, pescar, plantar, fabricar artesanatos que lhes são característicos, pois
assim mostram que são Aikewára, em oposição aos kamará e a outras etnias
indígenas. E aí não interessa se o jovem ou a criança é “misturado” ou não, mas
interessa que foi socializado(a) na aldeia, que cresceu como um Suruí/Aikewára. A
identidade étnica, segundo Barth (1998), como um princípio que implica em
restrições referentes aos papéis que os membros de um grupo podem desempenhar é
fator comum a todos os grupos étnicos. A identidade étnica é considerada um
estatuto que “... domina a maioria dos outros estatutos e define as constelações de

8
Palavra do dialeto Suruí que designa homem branco.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 53
Mastop-Lima, 2002

estatutos ou personalidades sociais que um indivíduo com aquela identidade pode


assumir.” (1998: 198)

Entre os Suruí/Aikewára, pelo que pude perceber, a questão da identidade


étnica é quotidianamente vivida, principalmente em relação à língua, no sentido de
que preservar e praticar a língua é um fator de caracterização deles enquanto
Aikewára e enquanto índios, o que significa que são índios diferentes das demais
etnias indígenas e diferentes dos kamará. Houve uma situação em que, conversando
com os Suruí/Aikewára a respeito de outras etnias indígenas, eles me apontaram os
Atikum como não índios, principalmente porque já não falam mais sua língua e não
possuem terras demarcadas.

A preocupação com a língua e os costumes não se refere apenas aos


Suruí/Aikewára que habitam a aldeia, a preocupação estende-se aos filhos dos Suruí
que residem fora da aldeia. Na aldeia Sororó há casos de índios que moram em
cidades próximas e transitam pela aldeia. Uma das mulheres com que conversei
mora em São Domingos do Araguaia - localizado a cerca de 50km da aldeia - e é
casada com um kamará que trabalhou na área como tropeiro, à época em que eram
contratados os “de fora” para trabalhar também na coleta da castanha. Seus filhos
são, portanto, “misturados,” mas ela fez questão de dizer e mostrar que lhes ensina a
língua e os costumes Suruí/Aikewára.

Percebendo essa preocupação, perguntei a um jovem Suruí quem era


considerado Suruí/Aikewára, ou melhor, o que caracterizava um Suruí: nascer na
aldeia? Crescer na aldeia? Ser filho de um Suruí/Aikewára? A resposta inicial que
ele me deu foi que era preciso ser filho de Suruí/Aikewára, homem ou mulher, e
nascer na aldeia, não importava se “misturado” ou não. A questão do nascimento na
aldeia chamou-me a atenção e perguntei-lhe então como ficava o caso de uma
criança que nasceu na aldeia e é filha de um casal Guajajara que mora na área. Ele
me disse que pela lei de branco, a criança deveria ser Suruí, deu-me como exemplo o
fato de uma pessoa que nasce no Pará ser considerada paraense, mas que pela lei dos
velhos Suruí/Aikewára, isso não era possível, já que a criança não era filha de Suruí.
As conversas revelaram que para ser Suruí/Aikewára é preciso ser filho de Suruí, em
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 54
Mastop-Lima, 2002

primeira instância, e saber e praticar os costumes e tradições do grupo, pois esses são
valores constitutivos de sua identidade étnica.

Mellatti (1984), ao refletir sobre a questão da identidade entre os Krahô toma


como ponto de partida o contraste entre os Krahô e outros índios e entre os Krahô e
os civilizados. Aponta que um dos aspectos para a identidade Krahô é o fato de
nascer numa aldeia Krahô, o que vimos que não acontece dessa forma entre os
Suruí/Aikewára. No contraste entre os Krahô e os Xerente, Mellatti mostra que os
Krahô se vêem como mansos em oposição aos brigões Xerente. Entre os
Suruí/Aikewára pude registrar pelo menos duas situações de contraste entre eles e
outros índios: os Xikrín do Cateté e os Parakanã.

Os Xikrín são vistos pelos Suruí/Aikewára como os índios que cortam o


cabelo das mulheres “daquele jeito,”9 que furam as orelhas e os lábios inferiores das
crianças quando elas ainda são de colo, pequenas; são implicantes, não têm cuidado
com o preparo de alimentos e não costumam se importar com os brancos que vão
trabalhar em sua área. Ao contrário dos Xikrín, os Suruí/Aikewára não fazem
“aquilo” no cabelo das mulheres, não são capazes de furar os lábios inferiores e as
orelhas de crianças pequenas, mas furam-lhes os lábios inferiores quando atingem a
idade de aproximadamente três anos em diante, têm muito cuidado em preparar
alimentos e até fiscalizam o modo como os kamará que atuam na aldeia Sororó
preparam seus alimentos, como mostrei no capítulo anterior. O que lhes é próximo
não representa motivo para estranhamento, o que lhes é distante causa-lhes maior
estranhamento.

Em relação ao tratamento dado aos kamará, Mairá, o cacique dos


Suruí/Aikewára, falou-me: “[n]ós não somo assim, nós quer saber se kamará tá bem
aqui na nossa terra.” As palavras de Mairá me chamaram a atenção porque comentei
com ele que havia uma amiga minha que, assim como eu, estava realizando trabalho

9
Os Suruí/Aikewára não me explicaram de que jeito era, pois pensavam que eu sabia, mas só vim
saber de que jeito era quando me deparei com mulheres Xikrín na FUNAI. O cabelo das mulheres
Xikrín é “cortado” - o que para nós corresponde a raspado - da fronte ao centro da cabeça, formando
uma lista sem cabelo ao centro da cabeça, ficando partes compridas às laterais e à parte posterior da
cabeça.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 55
Mastop-Lima, 2002

em área indígena e era com os Xikrín do Cateté.10 Por várias vezes Mairá me
perguntava por minha amiga, se ela estava gostando de estar entre os Xikrín, por que
não foi para a aldeia Sororó como eu, que era para eu falar para ela ir trabalhar lá
com eles porque eles não faziam o que os Xikrín fazem com os kamará, que na
concepção dos Suruí/Aikewára não são bem tratados pelos Xikrín. Em oposição aos
Xikrín, os Suruí/Aikewára se consideram e querem ser considerados como
receptivos, brincalhões e hospitaleiros.

Quanto aos Parakanã, as principais diferenças apontadas pelos


Suruí/Aikewára foram em relação às atividades desenvolvidas por homens e
mulheres e em relação à língua. Na aldeia Parakanã, segundo os Suruí/Aikewára são
as mulheres que trabalham enquanto os homens descansam, situação diferente se dá
na aldeia Sororó, em que homens e mulheres, de acordo com os papéis sociais,
trabalham. Quanto à língua, há um fator importante de comparação, pois, como
mostrei anteriormente, os Suruí/Aikewára relatam advir de um grupo maior
constituído além deles, pelos Parakanã e os Asuriní do Tocantins. É comum os
Suruí/Aikewára dizerem que “Parakanã fala errado” palavras que existem de forma
semelhante quanto ao significado e fonética no dialeto Suruí.

Carlos Fausto, em sua etnografia sobre os Parakanã (2001), refere a divisão


sexual tradicional das atividades produtivas e as mudanças ocorridas com o contato.
Mostra o grupo Parakanã composto por dois blocos, os ocidentais e os orientais.
Para mostrar a relação tradicional dos Parakanã orientais com a roça cita o diário de
campo de um funcionário da FUNAI que participou da “pacificação” desses índios
no ano de 1971. Àquela época, a roça era o lugar onde as mulheres trabalhavam
diariamente, cabendo a elas o “grosso do trabalho cotidiano” e o processamento da
mandioca; aos homens cabia o trabalho de brocar, derrubar e coivarar (2001: 108).

Fausto mostra também que com a “pacificação” foi reintroduzida a


horticultura entre os Parakanã, que já havia sido abandonada pelos Parakanã
10
Trata-se de Rita de Cássia Domingues-Lopes, que realizou trabalho de campo entre os Xikrín do
Cateté à mesma época que eu entre os Suruí/Aikewára. Os trabalhos estão inseridos numa das linhas
de pesquisa do Programa de Mestrado em Antropologia da UFPA, Antropologia das Populações
Amazônicas, coordenada pelo Prof. Dr. Samuel Maria de Amorim e Sá, e orientados pelas Profª. Dr.ª
Jane Felipe Beltrão e Profª. M.Sc. Carmen Izabel Rodrigues.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 56
Mastop-Lima, 2002

Ocidentais no início da década de 60. A reintrodução da horticultura levou a uma


redefinição da participação de homens e mulheres nas atividades produtivas, cabendo
aos homens a partir de então a maior parte das tarefas agrícolas e participação mais
ativa no processamento da mandioca.

O autor ainda mostra que após os primeiros anos de contato os Parakanã que
habitavam o aldeamento de Apyterewa fizeram como que uma avaliação sobre a
distribuição e quantidade de trabalho, notando que “... em tempos passados, o plantio
e a produção de farinha eram da alçada das mulheres e que agora elas passavam a
maior parte do tempo deitadas em suas redes.” (2001: 128-129) Fausto continua,
mostrando que apesar da introdução de nova tecnologia que dava outra conotação ao
processamento da mandioca e ao preparo de farinha - “prensa, caititu a motor, fornos
com tachos de ferro untados a óleo” - algumas das mulheres mais velhas ainda
mantinham o modo tradicional de fazer farinha. Talvez o que chamou a atenção dos
Suruí/Aikewára que fizeram o comentário acima sobre os Parakanã esteja
relacionado justamente à divisão sexual do trabalho tradicionalmente verificada entre
os Parakanã.

Quanto à questão lingüística, Montserrat (1992), num estudo sobre as “línguas


indígenas no Brasil contemporâneo,” classifica o dialeto Suruí como fazendo parte
da língua Akwáva, da família Tupi-Guarani, do tronco Tupi, da qual também fazem
parte os dialetos Asuriní do Tocantins e Parakanã. A classificação também é
indicada por Rodrigues (1994). No entanto, uma revisão da classificação lingüística
realizada recentemente por Rodrigues & Cabral referente aos povos Tupi mostra que
as línguas faladas pelos Parakanã e Asuriní se aproximam mais entre si do que ao
dialeto falado pelos Suruí/Aikewára.11

Voltando ao exemplo dos Krahô, Mellatti (1984) mostra que no contraste


com os civilizados elementos da cultura material, cor da pele, qualidade do sangue e
destino das almas são apontados pelos Krahô como fatores de diferença. Em relação
ao destino das almas entre os Krahô, Mellatti mostra que as almas dos Krahô vagam
pela terra, enquanto a dos civilizados vão para o céu. À época da festa dos
12
Karuára na aldeia Sororó um dos índios me disse que quando um Suruí/Aikewára
morre vai morar na floresta, com os Karuára, que também realizam atividades
produtivas como os Suruí/Aikewára vivos. Mas quando caçam, por exemplo, o
11
Comunicação pessoal da Dr.ª Ana Suely Arruda Câmara Cabral, lingüista, professora da
Universidade Federal do Pará, que tem nas línguas indígenas sua especialidade.
12
Os Karuára são os espíritos dos pajés Suruí/Aikewára que já morreram.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 57
Mastop-Lima, 2002

animal que é morto pela flecha de um Karuára morre de forma diferente do que se
flechado fosse por qualquer Suruí vivo. Como contam os Suruí/Aikewára, até o som
emitido pelo animal ferido pela flecha de um Karuára é diferente, pois estão
acostumados com outros sons, e a caça morta por um Karuára não é consumida
pelos Suruí vivos.

Um outro fator apontado por Mellatti referente à identidade Krahô é o fato da


importância do tempo na consolidação da identidade. Mellatti refere um “conto de
guerra” entre os Pukobyê e os Krahô, em que por ocasião do combate, dois homens
Pukobyê que viviam há dez anos entre os Krahô, tomam o partido dos Krahô.

Antes de passar à verificação de como a questão do tempo em relação à


identidade se dá entre os Suruí/Aikewára, citarei outro estudo de reflexão sobre
identidade étnica a partir do contraste, realizado por Seeger (1984) em relação aos
Suyá. Mostrando que a identidade Suyá é um processo e não um estado, Seeger
observa entre eles a possibilidade de metamorfose, em que um Suyá pode “virar
branco” ou que pessoas de outras sociedades possam tonar-se Suyá. O que
caracteriza, segundo Seeger, a transformação de um Suyá em “branco” é o abandono
de urucu e o uso de roupas. Se indivíduos de outras sociedades usarem os
ornamentos Suyá isso pode transformá-los. Pode-se, de acordo com Seeger, “...
mudar de identidade pela definição da situação, ou pela própria autotransformação.”
(1984: 199)

Vejamos agora como as questões acima se dão entre os Suruí. Refletindo


sobre a questão do tempo consolidar a identidade Suruí/Aikewára, pude perceber que
o mesmo não acontece de forma explícita entre eles. Apesar dos anos de moradia e
convivência que algum kamará e/ou alguma kamarakusó tenham na aldeia, eles não
deixam de ser considerados como sendo “de fora.” Mas, numa situação de
reivindicação junto à sociedade não-indígena, por exemplo, é cobrado dos kamará
que vivem na aldeia, os que são casados com homens e mulheres Suruí, uma postura
a favor dos interesses dos Suruí/Aikewára, eles têm de responder como se Suruí
fossem. Da mesma forma, o uso de ornamentos Suruí ou da pintura corporal do
grupo não possibilita que os “de fora” transformem-se em Suruí/Aikewára, assim
como o contrário não implica deixar de ser Suruí/Aikewára, como acontece entre os
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 58
Mastop-Lima, 2002

Suyá. Isso fica claro, por exemplo, quando os Suruí realizam festas na aldeia, sejam
elas ao estilo kamará - em que se ornamentam com elementos da sociedade não-
indígena, como mostrado no capítulo anterior - sejam as tradicionalmente realizadas
por eles, em que alguns dos kamará se ornamentam como os Suruí/Aikewára.

Um exemplo lúdico da situação dá-se em relação aos times masculinos e


femininos de futebol da aldeia Sororó. Mais do que literalmente vestir a camisa do
Aikewára Futebol Clube, os kamará e as kamarakusó precisam assumir-se como
Suruí, inclusive em relação à torcida. Entre os Suruí um kamará não pode ser um
Suruí/Aikewára, mas em várias situações lhe é cobrado agir como um
Suruí/Aikewára.

Além dos Xikrín do Cateté e dos Parakanã, outro grupo indígena


constantemente referido pelos Suruí/Aikewára é o dos Gavião/Parkatejê. Os
Suruí/Aikewára vêem nos Gavião o exemplo de índios que conseguiram dominar
códigos da sociedade não-indígena, gerindo suas demandas e os recursos que a
CVRD é obrigada a lhes repassar, com certa autonomia, principalmente em relação à
FUNAI. Os Gavião são regularmente “consultados” pelos Suruí/Aikewára quanto,
por exemplo, ao funcionamento da AIPA, visto que a associação indígena dos
Gavião é tida como um exemplo a ser seguido. A “consultoria” também se dá em
relação a projetos de granja nas aldeias, financiados pela CVRD. Visto pelos
Suruí/Aikewára como um projeto que “deu certo,” a experiência com criação de
frangos entre os Gavião procura ser seguida pelos Suruí/Aikewára.

Na Antropologia brasileira a questão da identidade contrastiva em situações


de contato interétnico é formulada por Roberto Cardoso de Oliveira (1972). Ao
estudar a relação entre índios Tikuna e brancos no alto rio Solimões, Cardoso de
Oliveira mostra o caráter de fricção como próprio do contato interétnico. As relações
de fricção interétnica entre a sociedade tribal e a sociedade não-indígena, segundo
Cardoso de Oliveira, consistiriam em “... relações de oposição, histórica e
estruturalmente demonstráveis.” (1972: 30) Seriam relações contraditórias em que a
existência de uma sociedade tendia a negar a existência da outra.13

13
Sobre as correntes teóricas a que se relacionam os estudos de identidade na Antropologia e seus
reflexos na Antropologia brasileira, consultar Cardoso de Oliveira (1972) e Novaes (1993).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 59
Mastop-Lima, 2002

Sylvia Caiuby Novaes, em Jogo de Espelhos (1993), faz um balanço crítico


em relação ao que se produziu nas literaturas antropológica, lingüística e psicológica
quanto à questão da identidade, a fim de propor o conceito de auto-imagem para a
análise das relações interétnicas. Pelo que se vê, esse é o caminho percorrido pelos
estudiosos que propõem novos conceitos que auxiliem na análise das realidades
estudadas, como também o faz Cardoso de Oliveira.

Sylvia Novaes (1993) faz distinção entre os conceitos de identidade, auto-


imagem e a noção de pessoa. Baseada em Lévi-Strauss (1976), ela vê a identidade
como um foco virtual, que

“... não é algo dado, que se possa verificar, mas uma condição forjada a partir de
determinados elementos históricos e culturais, sua eficácia enquanto fator que
instrumentaliza a ação é momentânea e será tanto maior quanto mais estiver
associada a uma dimensão emocional da vida social.” (1993: 25)

O conceito de identidade, para ela, opera num nível estrutural macrossocial,


que envolve considerações nos âmbitos sociopolítico, histórico e semiótico. Por esse
nível e âmbitos, Novaes considera que a identidade é evocada toda vez que “... um
grupo reivindica, para si, o espaço político da diferença.” (1993: 27) Segundo ela, o
grupo que faz a reivindicação o faz em nome de uma identidade genérica, como por
exemplo a de índios, que acaba dialogando com um interlocutor da mesma forma
amplo e genérico, como é o caso da sociedade ou do governo.

Frente ao caráter amplo e genérico do conceito de identidade é que propõe o


conceito de auto-imagem como um “... conceito relacional ... [que] se constitui,
historicamente, a partir de relações concretas muito específicas que uma sociedade
ou um grupo social estabelece com os outros.” (1993: 27)

Distingue o conceito de auto-imagem do conceito de noção de pessoa por


considerar este, a partir do que foi definido por Mauss (1938, 1968), como uma
categoria de representação que, utilizada por antropólogos que se dedicaram ao
estudo da noção de pessoa entre sociedades indígenas brasileiras, findou restringindo
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 60
Mastop-Lima, 2002

as observações dos antropólogos ao “... contexto cultural interno à sociedade


analisada” (1993: 28)

Os estudos de mudança social e aculturação, segundo Novaes, preocuparam-


se em mostrar como o contato interétnico levaria a uma inevitável destruição dos
modos tradicionais de vida (1993: 42). Essa perspectiva também era verificada,
segundo ela, nos estudos de fricção interétnica. Novaes destaca em relação a esse
ponto o trabalho de Cardoso de Oliveira (1976) que, segundo ela baseado nos
escritos de Barth (1969), assim caracteriza a identidade étnica:

“A identidade contrastiva parece se constituir na essência da identidade étnica...


Implica a afirmação do nós diante dos outros... É uma identidade que surge por
oposição. Ela não se afirma isoladamente. No caso da identidade étnica ela se afirma
“negando” a outra identidade, “etnocentricamente” por ela visualizada.” (1976: 5-6)

Segundo Novaes, a caracterização da identidade étnica proposta por Cardoso


de Oliveira finda simplificando em demasia o conceito de identidade, não
possibilitando demonstrar as diferentes categorias em que são englobados grupos e
segmentos de grupos em contato interétnico, que não necessariamente negam a
existência do outro como “gente”. Em vista disso é que Novaes propõe o conceito
de auto-imagem para refletir sobre a questão do contato interétnico, porque para ela

“As imagens que uma sociedade forma de si e dos segmentos que toma como
parâmetros para fazer uma reflexão sobre si mesma não são imagens fixas ou
perenes. Transformando-se continuamente, em função mesmo das transformações
das relações históricas entre estes segmentos. São imagens impregnadas de valores,
muitos deles conflitivos. Imagens que implicam a simultaneidade de sistemas
culturais em confronto, onde não há um movimento unívoco que simplesmente
afirma ou negue a identidade do outro.” (1993: 45)

A intenção de Novaes ao propor o conceito de auto-imagem é colocar o


trabalho que desenvolveu entre os Bororo frente a uma perspectiva que, ao mesmo
tempo que focalize os fenômenos culturais resultantes do contato interétnico, analise
também a representação de si e do outro que envolve o contato entre grupos
diferentes, e como essa representação é incorporada em “... termos de uma atuação
política concreta.” (1993: 31)
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 61
Mastop-Lima, 2002

Para Novaes, não é produtivo deixar de analisar as dimensões culturais


envolvidas na situação de contato, pois é justamente no âmbito da cultura e nas
relações entre poder e cultura que as sociedades indígenas se mobilizam perante a
sociedade não-indígena, conseguindo resistir ao que constituiria seu inevitável
desaparecimento. É, segundo ela, “... exatamente a partir de considerações que
envolvem a esfera cultural que podemos entender que as diferenças entre a sociedade
indígena e a sociedade não-indígena não são suprimidas mas continuamente
reformuladas.” (1993: 46)

Ainda segundo Novaes, pelo conceito de auto-imagem pode-se perceber as


diversas imagens envolvidas no processo de construção da auto-imagem de um grupo
em situação de contato, inclusive quando o outro é o próprio grupo, em outro tempo
e em outro espaço.

Faço aqui essas considerações sobre os trabalhos de Barth (1969, 1998),


Cardoso de Oliveira (1972) e Novaes (1993) não para propor um novo conceito para
a análise das relações interétnicas, mas para, a partir de suas considerações,
posicionar-me em relação à perspectiva de identidade étnica que entendo caber ao
trabalho entre os Suruí/Aikewára. Do meu ponto de vista, acredito ser profícuo
desenvolver o trabalho levando em conta os traços culturais internos à sociedade
Suruí/Aikewára e as várias facetas da construção da identidade étnica
Suruí/Aikewára que aparecem no contraste com outros grupos indígenas ou com os
brancos. Acredito também que é de fundamental importância para o trabalho a
colocação de Novaes em relação ao conceito de auto-imagem quando considera
também o outro como o próprio grupo, em outro tempo e outro espaço, pois a partir
dos mitos e das histórias de contato narradas pelos Suruí/Aikewára, quando o outro
são eles próprios será algo recorrente.

Em relação ao que coloca Novaes (1993) quanto às análises que, baseadas no


trabalho de Barth, privilegiaram o contato e a identidade contrastiva como essência
da identidade étnica, talvez seja possível outra leitura relativa ao trabalho de Barth.
Penso isso porque o conceito de auto-imagem, a meu ver, não está de todo ausente
nas considerações de Barth, uma vez que o conceito de auto-imagem proposto por
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 62
Mastop-Lima, 2002

Novaes e o enfoque às fronteiras entre grupos étnicos proposto por Barth como
forma de dar conta das transformações e das muitas faces do processo de construção
da identidade étnica me parecem, respeitando a especificidade de cada autor, muito
próximos. Quero dizer com isso que não me deterei em um conceito em detrimento
de outro, mas que procurarei utilizá-los à medida que a análise “pedir” um ou outro.
Não quero com isso ser eclética, mas reconhecer que as relações entre seres humanos
são muito complexas para serem entendidas por um único ponto de vista.

Gostaria de colocar também que insistirei na questão das fronteiras entre os


grupos étnicos por ter a possibilidade de trabalhar os traços culturais internos ao
grupo Suruí e as relações de contraste entre eles, outros índios, os brancos e eles
próprios. Talvez ao findar de tecer a rede, os traços culturais dos Suruí/Aikewára
relativos a seus mitos, histórias de contato e interação com o meio ambiente recebam
maior destaque que as próprias situações contrastivas quando o outro não são eles.
Mas isso também tem uma razão de ser, pois o trabalho representa a tentativa de
conhecer mais a respeito dos Suruí/Aikewára, estudados, até então, sob o prisma das
relações de contato e dos resultados do contato em termos de aculturação, mudanças
cultural, política e econômica do grupo (LARAIA & DaMATTA, 1967 e RICARDO,
1985).

Fincando o outro tronco: mitos, histórias de contato e interação com o meio


ambiente

Os mitos expressam, em contextos sócio-culturais específicos, formas de


pensar o mundo, de classificar os seres naturais e sobrenaturais que nele habitam, de
pensar sobre o lugar que ocupa no mundo cada grupo humano, a maneira de se
relacionar com o meio ambiente e com os “outros.” Eles se articulam, segundo
Silva, “... à vida social, aos rituais, à história, à filosofia própria do grupo, com
características de pensamento localmente elaboradas que resultam em maneiras
peculiares de conceber a pessoa humana, o tempo, o espaço, o cosmos.” (1992: 75)

Os aspectos de que tratam os mitos representam uma característica dos seres


humanos de se pensar como seres no mundo. Esses aspectos não dizem respeito
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 63
Mastop-Lima, 2002

apenas a grupos indígenas, mas a todas as sociedades humanas de uma maneira


geral; representam o que há de universal em relação às culturas e, ao mesmo tempo,
apresentam muitas variações, particularizando e marcando etnicamente cada
sociedade humana, visto que cada uma tem sua maneira própria e original de
conceber o mundo.

Os mitos são ao mesmo tempo universais e particulares. Universais por


revelarem uma característica básica da própria humanidade de refletir sobre sua
existência no mundo, a forma de interpretá-la, de expressá-la e de agir orientada por
uma forma de pensar sobre o mundo, que orienta uma forma de estar no mundo.
Particulares por essas formas de pensar e de agir serem diversas. Silva diz que os
mitos são “... incomensuravelmente variados, já que criação original de cada grupo
com identidade cultural própria, referidos às suas condições de existência e à
cosmovisão aí elaborada.” (1992:75)

Ainda segundo Silva (1995), os mitos são construídos com imagens


familiares e signos constitutivos do quotidiano de cada grupo que os relata; eles
possuem níveis de significação que são vivenciados pelos indivíduos ao longo de sua
socialização no grupo do qual fazem parte, por isso a importância de se perceber e
entender a relação entre os mitos e os contextos em que são narrados. O estudo das
particularidades dos contextos culturais em que se narram os mitos pode revelar as
marcas étnicas de cada sociedade, marcas que constituem a identidade de cada grupo.
Com base nisso, em relação ao contexto dos Suruí/Aikewára pretende-se
compreender: o que as narrativas míticas revelam? A que aspectos da sociedade
Suruí/Aikewára fazem referência? Quem são os narradores? Para quem narram?
Como se expressa a relação tempo/espaço a partir das narrativas míticas? Como os
elementos constitutivos dessas narrativas revelam marcas da identidade étnica
Suruí/Aikewára?

Falei anteriormente que entre os Suruí/Aikewára a narrativa mítica é


acompanhada por narrativas que trazem como tema o contato do grupo com a
sociedade não-indígena, assim como seus costumes, tradições e saberes realizados
antes mesmo do contato e que ainda estão presentes no quotidiano do grupo. A essas
histórias dei a denominação geral de histórias de contato, não pelo fato de a maior
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 64
Mastop-Lima, 2002

parte delas referir-se a ele, mas pelo fato de o contato ser um marco importante de
contextualização apontado pelos próprios Suruí/Aikewára. As perguntas feitas em
relação aos mitos nortearão também a investigação sobre as histórias de contato.

Entre os Suruí/Aikewára os mitos e as histórias de contato constituem o


tempo antigo, expressão usada pelo grupo para classificar as narrativas, marcando
seu início e por vezes sendo ratificada ao final de cada narrativa. Os Suruí/Aikewára
distinguem as narrativas míticas das histórias de contato principalmente pelo fato de
as primeiras tratarem de eventos que “não acontecem mais,” melhor dizendo, de
eventos que não podem ser “concretamente” observados no quotidiano da aldeia.
Para nós, segundo o que coloca Mellatti, ambas as narrativas embora refiram-se a
tempos pretéritos, “... não deixam de refletir o presente, seja no que toca aos
costumes, seja no que toca a elementos tão palpáveis como os artefatos.” (1993: 133)

A existência de outras narrativas que não exclusivamente as míticas também é


observada em diversos grupos indígenas. Mellatti (1984) aponta a existência do que
ele chama de “contos de guerra” entre os Krahô, caracterizados como narrativas que
têm um caráter mais histórico que mítico. Silva (1984) refere-se a “eventos
históricos mitificados” entre os Xavante, a partir da análise dos quais ela destaca os
eixos espacial e temporal que fundamentam a construção da identidade Xavante. Os
“eventos históricos mitificados” seriam, portanto, “... manifestações do modo
peculiar pelo qual os Xavante apreendem sua história e a transmitem em linguagem
mítica...” (1984: 206) Fausto observa entre os Parakanã “conversa antiga” que
equivale aos mitos e eventos “... cuja origem de enunciação se conhece...” (2001:
509) Citando Ireland (1988), Fausto coloca que a distinção para os Waurá entre
narrativas “míticas” e “históricas” refere-se “... àquela entre fatos tão antigos que não
se pode identificar quem os presenciou e fatos cujas testemunhas é possível
precisar.” (2001: 509) Penso que essa distinção talvez possa nos ajudar a entender os
mitos e as histórias de contato entre os Suruí/Aikewára.

No grupo Suruí/Aikewára narrar os mitos e as histórias de contato é tarefa das


pessoas mais velhas e experientes. Homens e mulheres que transmitem mitos e
histórias aos demais adultos, jovens e crianças, dando continuidade à tradição que
afirma, cria e recria a identidade Suruí/Aikewára. Segundo o que me relataram, o
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 65
Mastop-Lima, 2002

espaço privilegiado para se narrar mitos e histórias é a mata, a floresta, de


preferência à época do verão, quando as chuvas são menos intensas e recorrentes,
ficando a mata seca em oposição ao lamaçal da época das chuvas. À exceção da
época de coleta da castanha, este me pareceu ser, pelo que me falaram, o outro
período de maior permanência dos Suruí/Aikewára no mato.

Chamou-me a atenção o fato de os Suruí/Aikewára gostarem de contar


histórias na mata, pois as comparei com o contexto em que se davam as histórias que
muitos de nossos avós narravam no sossego da casa, geralmente reunindo vários
netos, que deveriam escutar a tudo com muita atenção, sem fazer barulho ou
bagunça. Ao conversar com alguns dos jovens Suruí/Aikewára eles me disseram que
quando os velhos falam, todos devem fazer silêncio e costumam ouvir as narrativas
de cabeça baixa, indicando respeito ao que está sendo narrado e a quem narra, pois
faz parte da socialização deles, faz parte do ser Aikewára, saber das narrativas e
aprender a contá-las. Afinal, eles também precisam aprender a ser narradores.

Minha intenção ao fazer o trabalho de campo era coletar mitos e histórias


diretamente com as pessoas mais velhas e experientes da aldeia, o que não aconteceu
da forma como pretendia, pois nem todos os narradores/especialistas me quiseram
contar as histórias. Se algum deles me contava alguma história e eu ia em busca de
mais uma versão Suruí, eles me respondiam que o relatado “era assim mesmo.” O
caminho para chegar às diferentes versões de mitos e histórias deu-se pelos ouvintes.

Os ouvintes também podem ser excelentes informantes a partir do momento


em que reproduzem as histórias e narrativas míticas que são contadas pelos mais
velhos, porque aprendizes atentos e educandos no processo de socialização do grupo
antes mesmo de chegar à escola. A reprodução do que lhes é contado pelos mais
velhos representa uma das formas de vivenciar os níveis de significação, de que se
falou anteriormente, que esses mitos e histórias ocupam na sociedade
Suruí/Aikewára.

Com base nisso, os mitos e histórias de contato que apresentarei aqui,


coletados em campo, foram produzidos no contexto da escola indígena Moroneikó
Suruí junto aos adultos, jovens e crianças que a freqüentam e coletados a partir de
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 66
Mastop-Lima, 2002

conversas informais com alguns dos narradores e ouvintes. Com a colaboração da


professora14 que trabalha na área, foi pedido aos alunos que redigissem as histórias de
contato e narrativas míticas que lhes são contadas pelos mais experientes. O registro
escrito das histórias e dos mitos - em Português e na língua Suruí, em alguns casos -
fez da escola um espaço a mais de manifestação, manutenção, afirmação,
reafirmação e renovação da identidade étnica do grupo. Para os Suruí/Aikewára é
importante mostrar quem são e há entre eles a preocupação de se mostrar índios
perante a sociedade não-indígena, mostrando que possuem uma língua que lhes é
própria e que os acompanha no quotidiano da vida em comunidade e fora dela,
quando vão à cidade resolver alguns problemas, que mantêm seus costumes e suas
tradições.

Alguns dos mitos e histórias de contato serão apresentados por ora à luz da
teoria antropológica referente aos Tupi em geral, e aos Suruí/Aikewára em particular.
Não tratarei aqui da ampla produção antropológica referente à mitologia Tupi, mas
tratarei de mostrar o lugar do tema em relação aos grupos Tupi e me aterei mais a
exemplos de estudos realizados na Amazônia, principalmente aos que se referem aos
Parakanã e aos Asuriní do Tocantins, além é claro aos referentes aos Suruí/Aikewára.
A recorrência a exemplos entre os grupos Parakanã e Asuriní do Tocantins dá-se pelo
fato de continuar na pista de uma convivência comum entre eles e os
Suruí/Aikewára, já referida anteriormente. Não faço isso como meio de comprovar a
hipótese, mas de “dar confiança”15 ao que é relatado pelos Suruí/Aikewára e referido
por alguns autores, como veremos a seguir. Além disso, a “confiança” se dá no
sentido de estabelecer parâmetros de comparação, que devem fundamentar o trabalho
antropológico. Mas antes de seguir neste propósito, falarei um pouco sobre a relação
dos Tupi com o meio ambiente.

Laraia classifica os Tupi como povos da floresta, que interagem com o meio
ambiente que habitam produzindo tecnologia que os distingue dos demais grupos
indígenas, e utilizando os frutos e a fauna fornecidos pela floresta para sua
14
À época da realização da atividade, março de 2001, Eliane Franco Martins, missionária do CIMI.
15
Expressão usada pela Prof.ª Maria Angélica Motta-Maués, ao ministrar, juntamente com o Prof.
Samuel Maria de Amorim e Sá, a disciplina Seminários de Dissertação, do Mestrado em Antropologia
da Universidade Federal do Pará. Ela usava a expressão para nos chamar a atenção para as pistas de
nossos trabalhos.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 67
Mastop-Lima, 2002

subsistência e para expressar uma rica mitologia. Algumas características como por
exemplo o “... uso da rede de dormir, a utilização de arcos e flechas, como armas
preferenciais para a guerra, o cultivo intensivo de mandioca...” (1986: 43) são
algumas das características Tupi que, segundo Laraia, são destacadas na produção
antropológica sobre esses grupos. Plantas como o fumo, o algodão, o urucu e o
jenipapo, ainda segundo Laraia, têm grande importância no contexto cultural Tupi.

Eduardo Viveiros de Castro em seu trabalho Araweté: os deuses canibais


coloca que o exame da bibliografia referente aos povos de língua Tupi-Guarani
chama a atenção para três fenômenos: “... a associação entre uma diferenciação
mínima ao nível lingüístico, uma dispersão máxima em termos geográficos, e uma
não menos elevada heterogeneidade no que tange à morfologia social.” (1986: 116)
A relação entre os primeiro e segundo fenômenos dever-se-ia, segundo ele, a fatores
histórico-culturais ligados às migrações Tupi-Guarani e aos deslocamentos e
remanejamentos populacionais provocados pela invasão européia; entre os segundo e
terceiro fenômenos relaciona as diversas formas de organização social Tupi-Guarani
a “adaptações diferenciadas a meio ambientes específicos” e a variadas influências
culturais.

Fausto coloca que a floresta/mata para os Parakanã representa “... um lugar de


provimento seletivo da vida, cujos constrangimentos constituem um campo
determinado de escolhas: escolhas entre o que comer e o que não comer, como viver
e como não viver.” (2001: 170)

Laraia diz que observar o meio circundante, o meio ambiente que os Tupi
habitam, é uma forma de entender a visão que eles têm do universo. A relação com
esse meio ambiente, considerando aspectos naturais e sobrenaturais, representa a
proposta de uma maneira de pensar. (1986: 233) Para ele, é preciso que haja o
conhecimento do sistema de classificação indígena, a fim de que se entenda o mundo
indígena (1986: 234), sua forma de pensar o mundo, de se organizar nele e de se
relacionar com os seres que o compõem, pertençam eles ao domínio da natureza ou
não.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 68
Mastop-Lima, 2002

A relação com o meio ambiente pode ser observada em vários aspectos da


vida social de um grupo indígena: nas atividades produtivas tradicionais, na
organização social e política, na vida ritual, na cultura material, no tipo de moradia,
nos nomes pessoais, nas narrativas míticas. A seguir veremos como isso ocorre entre
os Suruí/Aikewára. Dos aspectos mencionados não tratarei neste capítulo da
interação com o meio ambiente quanto à vida ritual e à cultura material dos
Suruí/Aikewára, o farei no próximo capítulo, ao descrever a festa dos Karuára.
Fincados os dois troncos que nos sustêm para o fabrico da rede, passarei agora ao
entrelaçamento dos fios.

Entretecendo os fios de algodão: o revelar da identidade étnica Suruí/Aikewára

Na produção antropológica há, segundo Rodrigues (1995), desde o início do


século, uma ênfase nos “estudos de religião e mitologia” entre os Tupi e nos “estudos
de organização social e sistemas rituais” entre os Jê. Esses estudos fazem parte do
que ela chama de “especificidade Jê/Tupi” na Etnologia Brasileira, sendo esses
grupos considerados como grupos “privilegiados” para a pesquisa etnográfica e para
a teoria antropológica (1995: 17). Essa “especificidade,” segundo Rodrigues,
contribuiu para que fosse formulada uma problemática específica referente às
sociedades indígenas brasileiras e sul-americanas, o que confirmou “... o avanço
quantitativo e qualitativo da disciplina [Antropologia]...” e marcou a “... passagem de
uma antropologia importadora de modelos para uma [A]ntropologia produtora e até
exportadora de modelos explicativos...” (1995: 8), sendo produzidas questões
teóricas que marcaram tanto a Antropologia no Brasil como a Antropologia
Brasileira.

Os Tupi figuram nas narrativas e crônicas coloniais de missionários e


viajantes - como por exemplo Thevet (1557/1944), Léry (1578/1962), Staden
(1557/1942), D’Êvreux (1864), Anchieta (1882), Cardim (1625/1978) entre outros -
que representaram o que primeiro se produziu em relação às sociedades indígenas
brasileiras (RODRIGUES, 1995).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 69
Mastop-Lima, 2002

Em relação à produção dos cronistas e viajantes Viveiros de Castro (1986)


refere os trabalhos de Alfred Métraux e de Florestan Fernandes por sistematizarem
os dados dos cronistas. Segundo ele, Alfred Métraux foi o primeiro antropólogo a
sistematizar os dados dos cronistas quinhentistas e seiscentistas quanto aos grupos
Tupinambá e Guarani, relacionando-os com materiais etnográficos contemporâneos
(1986: 83). Métraux realizou estudos sobre vários aspectos da sociedade Tupinambá
(1928) e sobre as migrações históricas dos grupos Tupi-Guarani (1927).16 Florestan
Fernandes figura, segundo Viveiros de Castro (1986), como o primeiro a trabalhar de
forma “exaustiva e sistemática” os dados dos cronistas.

Destaque também é dado ao trabalho de Curt Nimuendajú (1914), como


sendo o que primeiro produziu material etnográfico sobre um grupo Tupi - religião,
escatologia e cosmologia dos Apapocuva-Guarani - a partir da realização de trabalho
de campo (VIVEIROS DE CASTRO, 1986; LARAIA, 1986 e RODRIGUES, 1995).

Quanto à produção antropológica sobre os grupos Tupi-Guarani da


Amazônia, Viveiros de Castro (1986) aponta as décadas de 30 e 40 como o início de
pesquisas de campo na Amazônia, com destaque para os trabalhos de Herbert
Baldus, entre os Tapirapé, Charles Wagley entre os Tapirapé e Tenetehara, e Wagley
e Eduardo Galvão, entre os Tenetehara.

Segundo Viveiros de Casto, o trabalho de Baldus representava uma “ponte”


entre a tradição etnológica alemã e o estilo monográfico funcionalista anglo-saxão; a
ênfase de seu trabalho era na cultura material e na origem e difusão de traços
culturais (1986: 89). Wagley e Galvão, ainda segundo Viveiros de Castro,
preocupam-se com a problemática dos estudos de “mudança cultural” ou
“aculturação.” (1986: 89)

Na monografia de Wagley e Galvão sobre os Tenetehara (1949/1961) há,


segundo Viveiros de Castro, uma considerável coletânea de mitos. A previsão desses
estudos, como já referido anteriormente, era o desaparecimento dos Tenetehara, o

16
Cf. Viveiros de Castro (1986); Laraia (1986) e Rodrigues (1995).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 70
Mastop-Lima, 2002

que veio a ser desmentido pela história, como coloca Viveiros de Castro (1986). Isso
se daria, segundo ele, devido à crença quase unâmine entre os autores em uma
“fragilidade” Tupi-Guarani em relação ao contato, o que era, para Viveiros de
Castro, mais aparente do que real. É justamente a “... homogeneidade em relação ao
discurso cosmológico, aos temas míticos e à vida religiosa... ” entre os Tupi-Guarani
que torna a “fragilidade” aparente (1986: 90).

As décadas de 60 e 70 são marcadas, de acordo com Viveiros de Castro, pela


publicação das Mythologiques, de Lévi-Strauss, em que a mitologia Tupi ocupa
importante lugar. Na Antropologia brasileira, ainda segundo o autor, os estudos de
contato interétnico assumiram destaque, assim como uma “etnologia Jê” em
detrimento de uma “etnologia Tupi.” Isso se deu, para Viveiros de Castro, por conta
do “... declínio da influência das escolas alemã e americana (difusionismo e
culturalismo), e [d]a ascensão dos estilos estrutural-funcionalista (inglês) e
estruturalista (francês)...” (1986: 95) na produção antropológica. Do início da década
de 70, entre outros trabalhos, Viveiros de Castro destaca o trabalho de Roque Laraia
(1972) entre os Suruí, Akuáwa-Asuriní e Kaapor, como sendo a “primeira tentativa
de comparação global da organização social dos grupos Tupi contemporâneos, com
destaque para o parentesco.” (1986: 96)

Ao analisar a produção antropológica brasileira referente aos grupos Jê e


Tupi, Rodrigues (1995) a divide em três períodos: a) da formação da disciplina até os
anos 30; b) dos anos 30 aos anos 60; c) dos 60 aos 90. Nesses períodos, a produção
relativa aos Tupi varia em relação a temas que vão da "civilização material" dos
Tupinambá, até os sistemas cosmológicos dos Tupis atuais. Destaca-se aqui, a partir
de Rodrigues, alguns dos trabalhos produzidos nesses diferentes períodos que
possam ajudar a pensar o contexto específico dos Suruí/Aikewára, grupo Tupi que se
pretende conhecer.

Em relação ao primeiro período, destaca-se os trabalhos de Métraux (1927;


1928/1950) e Nimuendajú (1914/1987) dos quais já se falou anteriormente. Do
segundo período destaca-se os trabalhos de Florestan Fernandes (1949/1989) e Egon
Schaden (1959). Florestan Fernandes, segundo Rodrigues, reconstrói o sistema de
organização social dos Tupinambá a partir dos dados relativos à guerra e ao
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 71
Mastop-Lima, 2002

canibalismo Tupinambá, por meio do exame das crônicas e narrativas coloniais.


Ainda segundo ela, o trabalho de Florestan Fernandes procurou demonstrar que a
vida social dos Tupinambá estava subordinada ao seu sistema religioso (1995: 66).
Egon Schaden, ao estudar a “mitologia heróica” dos Apapokuva-Guarani, enfatiza a
uniformidade da religião dos Tupi-Guarani “históricos,” mostrando - também
baseado nas crônicas e narrativas coloniais - que apesar de existirem diferenças entre
as várias tribos Tupi-Guarani, a influência da religião em vários aspectos da vida
social é o que há de comum entre essas diferentes culturas (RODRIGUES, 1995: 65).

Do terceiro período destaca-se o trabalho de Viveiros de Castro (1986) sobre


cosmologia Araweté, em que o autor, a partir da etnografia realizada entre os
Araweté, procura construir um modelo sócio-cosmológico geral em relação aos Tupi
(RODRIGUES, 1995: 79). Quanto ao trabalho de Roque Laraia (1986), que também
faz parte do terceiro período, Rodrigues coloca que está baseado no sistema de
parentesco e outros aspectos da vida social dos Tupi, e formula um “modelo ideal”
tupi, mostrando que os grupos Tupi atuais têm a mesma “herança cultural” que os
antigos Tupi (1995: 66 e LARAIA, 1986: 37).

Em relação ao estudo junto aos Suruí/Aikewára Laraia trabalha com a


hipótese de que eles provêm de uma cisão, decorrente de lutas internas, do grupo
Asuriní do Tocantins, baseado em semelhanças existentes entre os artefatos
produzidos pelos dois grupos e nos relatos feitos pelos Suruí/Aikewára, referindo-se
a um grupo que era idêntico a eles e que foi para um lugar desconhecido na mata, por
motivos de lutas internas (1986: 18). Em outro trabalho, Laraia (1967) diz que a
memória tribal dos Suruí/Aikewára e dos Asuriní se refere a uma cisão que teria
dividido o grupo de que faziam parte. Santos mostra que na tradição oral dos índios
Parakanã, eles se referem a um

“... grande grupo de índios tupi com um ancestral único e cujos filhos deram origem
aos próprios Parakanã, aos Asuriní do Tocantins, aos Suruí, e possivelmente a
muitos outros grupos que ou desapareceram, ou, dali emigraram mas que, num
passado distante, teriam vivido juntos.” (1994: 88)

Ywynuhu Suruí relatou que antigamente os Parakanã, os Asuriní e os Suruí


faziam parte de um só grupo, que se separou porque brigaram internamente por causa
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 72
Mastop-Lima, 2002

de uma curica.17 Os três grupos diferenciam-se, segundo ele, por alguns aspectos na
língua e também na mitologia. Ywynuhu, ao me relatar algumas narrativas míticas,
reforçou que elas também existem entre os Parakanã e os Asuriní, só que eles as
contam de forma “errada”, afirmando a identidade Suruí/Aikewára em contraste ao
que lhe é estranho nos demais grupos.18

Ainda “dando confiança” ao que contam os Suruí/Aikewára, gostaria de falar


sobre a crença que os Tupi têm em Maíra. Laraia (1986) diz estar relacionada à
crença na sobrevivência da alma, que é denominada owera. Segundo ele,

“A ‘owera’ costuma sair do corpo, enquanto a pessoa dorme, possibilitando que este
possa ser invadido pelo ‘asonga’ (anhang. entre os Kaapor), espírito dos mortos, que
provoca sonhos. Os ‘asonga’ são espíritos que vagam pela terra até que são
chamados para o céu. Durante essa permanência andam pela floresta e podem ser
vistos, podendo tornar doente quem tiver a infelicidade de os encontrar. Mas os
‘asonga’ não perambulam eternamente pelo mundo: ao contrário, a sua permanência
é curta e um dia atingem o céu, através da ‘itakuara’ (grutas), onde habitam os
‘karuwara’ constituindo um outro tipo de espírito.” (1986: 238)

Quando estive entre os Suruí/Aikewára pude verificar que eles usam o termo
asomera para designar alma, que me pareceu vinculada ao espírito dos mortos. Não
os ouvi falar em asonga, no entanto, falaram-me dos Karuára como sendo o espírito
dos pajés que já morreram e que habitam a floresta, podendo, da mesma forma que a
descrição do asonga acima, ser vistos e também provocar doenças em quem os
desrespeitar.

Andrade (1993) cita que entre os Asuriní do Tocantins asonga é um termo


nativo usado para designar espectro-terrestre e para denominar o morto renascido.
Segundo ela, “[a]o morrer, o ser humano divide-se em espírito-celeste (que dirige a
aldeia dos mortos e com o qual não se tem mais contato) e em espectro-terrestre que
vive na mata e ronda a aldeia.” (1993: 120) Ainda conforme a autora, é com os
asonga, por meio de sonhos, que os pajés aprendem as músicas entoadas nos rituais.

17
Ave semelhante a um papagaio.
18
Andrade (1993), em sua dissertação de mestrado sobre os Asuriní do Xingu, cita apenas os
Parakanã como advindos do mesmo grupo que os Asuriní; o mesmo acontece em Fausto (2001), na
etnografia sobre os Parakanã.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 73
Mastop-Lima, 2002

Essa crença traz elementos que podem ajudar a refletir sobre a cosmologia
dos Tupi, em geral, e dos Suruí/Aikewára, em particular, pelo fato de Laraia mostrar
que a itakuara é o caminho que leva ao céu, chamado iwaga. O iwaga, segundo
Laraia, está localizado acima das nuvens, e lá vivem ancestrais dos Tupi. Ele obteve
uma descrição do iwaga entre os Suruí/Aikewára e os Asuriní, ressaltando que a
versão coincide com a descrição colhida por Nimuendajú entre os Tembé, que é aqui
reproduzida:

“'Perto da casa de Mahira está uma grande aldeia. Seus habitantes vivem
magnificamente. Para seu sustento diário necessitam apenas de algumas pequenas
frutas semelhantes a cuia; sua plantação não necessita de cuidados: ela se planta e se
colhe sozinha. Mahira e seus companheiros no campo de ikawéra tem o nome de
karowara. Quando envelhecem não morrem, mas tornam-se novamente jovens.
Cantam, dançam e celebram festas sem cessar.” (1986: 238)

Ao se analisar a descrição, pode-se pensar em pelo menos dois planos que


compõem a concepção de mundo desses grupos Tupi: um “concreto” que eles
ocupam no seu território, e um que é o da casa de Mahíra, associado à fartura e a
festividades. Santos (1994), ao analisar aspectos da cosmologia dos Parakanã, fala
que esses índios concebem o universo dividido em dois macro planos: a terra que
habitam e o céu, habitado por Topoa – dono do céu e do trovão – e pelos espíritos
dos mortos, a que chamam owera. O céu é denominado iwaté e é composto por
patamares chamados iwanga (SANTOS, 1994). Segundo o autor, “... no iwanga se
reproduz o mesmo tipo de habitat existente na terra ...” (1994: 295), ou talvez o
inverso, e nele as atividades produtivas

“... se caracterizam pela não necessidade de se fazer os roçados – a mandioca nasce


naturalmente, assim como as batatas, as bananas, etc.; em suma, não é preciso
plantar – as roças estão sempre prontas e não se acabam. A caça é vista como uma
brincadeira, e a mata está repleta de animais e frutos.” (SANTOS, 1994: 295)

Observa-se que há semelhanças entre as descrições do iwaga colhida entre os


Suruí/Aikewára o iwanga colhida entre os Parakanã, o que oferece elementos à
reflexão sobre a cosmologia desses índios, além de reforçar as teses de Laraia e
Santos quanto aos dois grupos terem-se originado de um mesmo grupo Tupi, no
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 74
Mastop-Lima, 2002

passado, e reforçar o que relatam os Suruí/Aikewára. Pode-se notar também a


presença de outros personagens míticos, como é o caso dos karowara. Sobre eles
Laraia apresenta a hipótese de que, entre os Suruí/Aikewára e os Asuriní, são
considerados como “... um espírito especial, diferente dos ‘asonga’ ou seja, dos
heróis míticos e que quando descontrolados podem causar doenças e mortes.” (1986:
239) Os karowara, continua Laraia, moram na itakuara e de lá saem apenas por
ocasião de cerimônias xamanísticas, ou então para uma cerimônia chamada
ahioháia19, um ritual de cura dos Suruí/Aikewára.

Após falar de crenças, mitos e histórias, tratarei agora de alguns aspectos do


meio ambiente relacionados à identidade étnica dos grupos indígenas, em particular
dos Suruí/Aikewára. Para tanto, como já referido anteriormente, para conhecer o
sistema de classificação indígena duas categorias são importantes: tempo e espaço.

Segundo Rodrigues (1995) ambas são categorias básicas que orientam a


experiência humana para a organização do universo social e cosmológico. Outros
trabalhos foram produzidos sobre os Suruí/Aikewára que, embora não tratem
especificamente sobre a mitologia desse grupo, fornecem elementos outros que
podem ajudar a pensar os mitos dos Suruí/Aikewára.20 Em outras palavras, a partir
de trabalhos que tratam do histórico do contato desse grupo com a sociedade não-
indígena e das mudanças ocorridas no grupo ocasionadas pela situação de contato,
pode-se situá-los no tempo e no espaço, procurando ver como apesar das mudanças,
a presença de características que os identificam com os Tupi, revelam “resistência” e
manutenção de tradições como signos da identidade étnica do grupo.

Laraia mostra que os Tupi são excelentes agricultores, cultivando muitas


espécies de “... mandioca, batata-doce, cará, milho, amendoim, banana, pimenta,
fumo, algodão, urucu, genipapos [sic] e cabaças.” (1986: 50) Desses, a mandioca
constitui a base alimentar dos Tupi. Entre os Suruí/Aikewára a mandioca, ainda
segundo Laraia, é usada para fazer farinha e para fazer uma bebida fermentada,

19
O Ahioháia descrito por Laraia (1986) corresponde à Festa dos Karuára descrita por mim mais
adiante. Segundo Laraia, essa cerimônia refere-se à dança de Mahíra no céu. Ela lhe foi referida pelo
pajé da tribo, quando a lua estava rodeada por um “grande círculo luminoso,” dentro do qual os
homens dançavam e as mulheres dançavam fora dele (1986: 249-250).
20
Cf. Laraia & DaMatta (1967); Ricardo (1985) e Beltrão (1998a).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 75
Mastop-Lima, 2002

consumida por ocasião da comemoração de alguma gravidez (1986: 51). Em um


primeiro contato que a autora teve com a aldeia dos Suruí/Aikewára, em julho de
2000, Muretama, uma das mulheres Suruí e esposa do pajé Awasaí, falou sobre o uso
da mandioca nos tempos antigos:

“... o pai [...] tirando puba 21 [...]. Aí depois que eles vieram, tirou tudo que é puba
[...] aí diz que eles iam entrar na casa, aí diz que eles viram o facão pendurado, aí
voltaram, correndo ... Aí depois que eles trouxe muita puba ...

“Fazia farinha, tudo, só uma pessoa pra todo mundo comer. Botava numa folha, [...]
botava dentro, aí deixava, levava pra ele, pro capitão, pra dar pra todo mundo.

“Levava um, que quando ele queria fazer uma festa [...], ele levava farinha nas costa,
comia com banana ... É, levava banana, levava um coisa desse, farinha lá pra roça
pra eles comê ...”

A mandioca não apenas faz parte do quotidiano de grupos Tupi, como se


observa nas falas acima, mas também, como é o caso dos Parakanã, por exemplo,
está expressa em narrativas míticas (SANTOS, 1994).

O fumo, outro produto característico da agricultura Tupi, representa, de


acordo com Laraia, um importante elemento para a vida mágico-religiosa, e o urucu
e o jenipapo são as matérias-primas básicas para a pintura corporal.22 Na primeira
viagem que fiz a campo pude observar que eles usam para a pintura corporal, um
pigmento natural feito de jenipapo e carvão. Os Suruí/Aikewára apresentam grande
destreza para o desenho e entre os motivos decorativos que observei estavam as
pinturas: do jabuti; da onça preta; da onça pintada; da jibóia; da ave Jaó; da casca do
cajá; da folha da castanha. Essas pinturas, além de expressarem a relação dos
Suruí/Aikewára com o meio ambiente em que vivem, têm um significado a ser
revelado e que marca etnicamente os Suruí/Aikewára.23

Um outro aspecto em que se pode perceber a relação dos Suruí/Aikewára com


o meio ambiente é quanto à denominação que dão às constelações que têm, em sua
maioria, nome de animais: “Tasahoa (porco do mato), Sawara (onça), Tapiira (anta),
Wauea (calango), Kotia (cotia) etc.” (LARAIA, 1986: 244) A relação com o meio

21
Puba “1. A mandioca posta na água até amolecer e fermentar.” (AURÉLIO, 1995: 537)
22
Santos (1994) também registra o mito referente ao fumo entre os Parakanã.
23
Voltarei a tratar das pinturas no quarto capítulo, em que tratarei do significado que elas revelam.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 76
Mastop-Lima, 2002

ambiente também pode ser verificada na organização social, como no caso dos cinco
grupos exogâmicos de descendência unilinear existente entre os Suruí/Aikewára,
segundo Laraia (1967; 1986): koaci-arúo (coati), saopakania (gavião), ywyra (pao),
pindawa (palmeira) karajá.24 Este último clã, de acordo com Laraia (1967),
originou-se pelo fato de haver entre os Suruí/Aikewára mulheres raptadas de um
grupo por eles denominado “Karajá” e o marido de uma delas tentou recuperá-la,
sendo aprisionado pelos Suruí/Aikewára, que lhe deram uma mulher Suruí em troca e
não deixaram mais abandonar a tribo, e seus descendentes passaram a fazer parte do
clã karajá.

O clã koaci-arúo, segundo Laraia (1967 e 1986), é o responsável pela chefia


do grupo, que é hereditária e seus membros se dizem descendentes de Mahíra,
considerado avô dos Suruí. Mahíra é, segundo Laraia (1986) o “herói civilizador”
dos Tupi. Segundo ele, essa é uma das denominações dadas a Mairemonam, referido
por Thevet como herói mítico dos Tupinambá, que os ensinou a “... plantar, utilizar
o fogo, fabricar instrumentos, além de fornecer-lhes as normas de seu
comportamento social sendo considerado como o grande antepassado dos Tupi.”
(1986: 235)

Ricardo (1985), citando Ferraz, diz que a organização dos Suruí/Aikewára em


clãs já não se apresentava mais de forma tão nítida como Laraia a descreveu.
Registra também, a partir do trabalho de Queiroz, um caso de matrimônio entre
membros do clã saopakania, o que estava relacionado com a falta de mulheres no
grupo (1985: 108). Este fato está relacionado à depopulação sofrida pelo grupo
como conseqüência do contato com a sociedade não-indígena, chegando a população
Suruí/Aikewára a ser composta por 40 indivíduos no início da década de 60 até
meados dessa mesma década.25 Laraia, em outro trabalho (1963), trata de “arranjos
poliândricos” realizados pelos Suruí/Aikewára para superar a depopulação causada
pelo contato. Apesar dos “arranjos”, a descendência patrilinear era reconhecida e
legitimada, no sentido de que os descendentes desses “arranjos” pertenciam não ao
24
Santos identifica os clãs Wirapyna", Pa'ametiwena e Tapi 'pya, dos Parakanã, com alguns clãs dos
Suruí/Aikewara: o clã Pa'ametiwena seria denominado entre os Suruí/Aikewara como Inata'ywa
(coqueiro babaçu; ou pindawa); o clã Tapi 'pya corresponderia ao clã Saopakania; e o clã Wirapyna"
teria a mesma denominação para os dois grupos (1994: 95).
25
Sobre o assunto, consultar: Laraia & DaMatta (1967); Ricardo (1985) e Beltrão (1998a).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 77
Mastop-Lima, 2002

clã de seu pai biológico, e sim do social. Essa foi, segundo o autor, a forma de os
Suruí/Aikewára tentarem “... conciliar as tradições fortemente patrilineares do
grupo...” (1963: 73) com a situação em que se encontravam.

Atualmente, a chefia do grupo é exercida por Mairá, descendente de um


antigo chefe. Como o pai de Mairá havia sido líder do grupo e a liderança deveria
passar a seus descendentes, talvez o fato faça referência à chefia hereditária
verificada outrora como pertencente ao clã koaci-arúo, de que fala Laraia (1967 e
1986). Mas não verifiquei nenhuma referência a clãs enquanto estive em campo,
Mairá apenas me explicou como se deu o processo para que se tornasse cacique.

Preparando os punhos: o retomar das idéias

Recapitulemos, então, o que foi discutido até aqui. De uma situação de


campo em que era questionada a identidade dos Suruí/Aikewára enquanto índios,
pelo fato de serem considerados como “fracos” etnicamente, passamos à discussão
sobre identidade étnica na Antropologia brasileira, destacando o trabalho de três
autores: Barth (1969/1998); Cardoso de Oliveira (1972) e Novaes (1993).

Dos trabalhos dos três autores, mostrei os aspectos relacionados à


constituição dos Suruí/Aikewára enquanto grupo étnico, em que as situações de
contato apontadas como causadoras da “fraqueza” do grupo, constituem-se em
ocasiões de manifestação da identidade étnica Suruí/Aikewára. Antes de
constituírem uma restrição à questão da identidade étnica, são indicadoras da
existência de fronteiras entre os grupos em contato. Em outras palavras, com a
interação são demarcadas e mantidas fronteiras entre os grupos.

É com a interação também que são vivenciadas situações de contraste entre


identidades, que também constituem a identidade étnica de um grupo. Foi o que
mostrei com os exemplos dos Krahô, dos Xikrín, dos Parakanã, entre outros, em
comparação ao lugar do contraste para a construção da identidade étnica
Suruí/Aikewára.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 78
Mastop-Lima, 2002

Mostrei também que o conceito de auto-imagem formulado por Novaes


(1993) ajudaria a entender uma situação de contraste em que os outros seriam os
próprios Suruí/Aikewára em outro tempo, um tempo antigo, e em outro espaço.
Esses aspectos tornam-se importantes pelo fato de os mitos e as histórias de contato,
assim como a interação dos Suruí com o meio ambiente, serem o objeto da pesquisa.

Os mitos expressam concepções de mundo, de relação com os seres naturais e


sobrenaturais que o habitam, dos seres entre si, dos seres com a natureza. As
concepções se dão de forma diferenciada para cada grupo étnico, permitindo mostrar
a diversidade das culturas, como também proximidade e distância entre elas.

Assim como narrativas míticas, diferentes grupos étnicos apresentam


narrativas que se distinguem das míticas por referirem eventos vivenciados pelos
grupos em diferentes situações históricas, que trazem como tema o contato com a
sociedade não-indígena, com outros grupos étnicos, assim como relatos de guerra,
relatos sobre a experiência histórica, ou mesmo sobre o quotidiano de tradições e
costumes vividos por um grupo antes mesmo do contato interétnico, como é o caso
dos Suruí/Aikewára.

Para estudar como se dá a relação entre mitos, histórias de contato e interação


com o meio ambiente junto aos Suruí/Aikewára foi preciso recorrer à lição de
comparação da Antropologia e estabelecer paralelos com esses aspectos entre outros
grupos étnicos, a fim de que se pudesse compreender a universalidade e a
particularidade desses aspectos.

Em nossa tarefa de tecer de tramas, mitos, histórias de contato e interação


com o meio ambiente representam elementos a partir dos quais é possível verificar
aspectos que revelem a identidade étnica dos Suruí/Aikewára. Muitos outros
aspectos devem constituir a malha da rede da identidade étnica do grupo, os que são
aqui apresentados como ponto de partida representam um estímulo ao aprendizado de
outras formas de tecer.
“Havia dois irmãos, Xtarontin, o mais velho, e
Wakowereb, o mais novo. Não havia mais gente
na terra.
Os dois irmãos andavam sozinhos pelo mundo. Um
d
dia, resolveram
l cavar um bburaco na terra. O mais
velho mandou o mais novo pegar a espada para
cavar, mas a espada tinha a ponta mole, só
conseguiam cavar muito devagar.
Cavaram, cavaram, cavaram tanto, que o buraco ficou
grande. Viram que havia um oco dentro da terra, e
que ali morava gente. Saiu uma criança pelo buraco
que fizeram. Conseguiram cavar mais e mais, o
buraco aumentou, saiu muita gente do subterrâneo,
homens, mulheres, crianças. Era tanta gente que já
nem cabia naquele lugar.
Caiu um galho de uma árvore que chamam de
imbaúba. Quando caiu, imaginaram, será que a
gente vai morrer? Não ia haver morte,, mass quando
g q
caiu este galho começou a morte.
Quando se soube que ia haver morte, as pessoas foram
embora. Os dois irmãos andavam um pouco,
deixavam algumas pessoas. Formava-se um grupo de
índios. Mais adiante, ficava outro tanto de gente.
Assim se formaram os Macurap, os Jabuti, os Tupari, os
Ajuru e outros
outros. Conforme ficavam num lugarlugar, viravam
um grupo indígena, já não se misturavam mais.
olha velha da castanha - pinturaa corporal Suruí/Aikewára
Os dois descobridores acharam um pé de amendoim.
Antigamente o amendoim era uma árvore; contam
que a árvore de amendoim segurava o céu. Um dia,
alguém conseguiu derrubar a árvore, e o amendoim
passou a crescer no chão, esparramou. Antes dava
no alto
lt dda áárvore, p
passou a b
brotar
t na tterra numa
planta baixinha.
Quando a árvore do amendoim foi cortada, o céu
caiu, matando muita gente. Havia outro céu em cima
do que caiu, outras camadas de céu. O pé de
amendoim ficava bem no buraco onde o pessoal
morava até os dois os descobrirem.
Fo

É esta a história do descobrimento, de como


descobriram as pessoas.”
(MINDLIN & NARRADORES INDÍGENAS, 1999: 84-5)
4. Aprendendo a significar a vida com os mais velhos

Os Suruí/Aikewára, geralmente reúnem-se em frente às suas casas para


conversar sobre assuntos do quotidiano deles ou para narrar histórias antigas. Foi
durante uma dessas reuniões, ao final da manhã, quando estive pela primeira vez em
campo, que escutei algumas histórias narradas por Awarini, um dos índios mais
velhos e experientes da aldeia, e o mais brincalhão entre eles.

Do grupo que conversava tomaram parte homens casados - entre eles Mairá, o
cacique - suas esposas, e algumas crianças e jovens. Awarini estava animado,
gesticulando e usando de onomatopéias para dar mais vida às narrativas. Os demais
ouviam com muita atenção e admiração sobre as muitas vezes que o grupo havia
mudado de aldeia; os costumes de caçar jabuti e comer peixe; as modificações no
tipo de moradia. Awarini chegou a desenhar um mapa no chão, que mostrava o
interflúvio Itacaiúnas/Sororó, para poder mostrar como o grupo foi mudando de local
dentro do território Suruí, que se estendia até Marabá.

Segundo Awarini, eles costumam andar muito, em busca de alimento pela


floresta, que antigamente alcançava Marabá. Awarini também contou que há muito
tempo houve um dilúvio, durante o qual os primeiros índios morreram, pois foram
comidos pelos peixes. Mas duas das pessoas, um homem e uma mulher,
conseguiram escapar, subindo em uma árvore bem alta. O tatu havia flechado a copa
da árvore e, pela corda presa à flecha, os animais puderam subir.

O que me chamou atenção naquele momento, além das narrativas, foi o clima
em que foram narradas, com destaque para a importância que assumem os mais
velhos no grupo Suruí/Aikewára. Fiquei animada, pois pensei que fosse encontrar o
mesmo clima sempre que perguntasse por uma de suas histórias. Não demorou
muito para eu retificar minha expectativa, pois quando fui perguntar a outra pessoa
mais velha sobre as narrativas, como falei anteriormente, ela respondeu que o que eu
havia ouvido de Awarini era o que valia.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 81
Mastop-Lima, 2002

O geólogo Charles Frederik Hartt (1875/1952), em expedição ao Amazonas


nos anos de 1870 e 1871, interessado nos mitos amazônicos da tartaruga, já
registrava a importância do contexto para a coleta dos mitos. Conta ele que numa
viagem que fez em um barco a remo, o piloto, que era seu amigo, narrava uma
história em tupi aos canoeiros indígenas, que ele reconheceu como a história do
Kurupira. Os canoeiros acompanhavam a história com muita atenção e, no dia
seguinte, ele pediu ao narrador que lhe ditasse a história, registrando, dessa forma,
seu primeiro mito tupi. Quando, no entanto, pediu ao piloto que lhe narrasse outro
mito, não obteve êxito, percebendo que

“... quando o indio, não estando perto da fogueira, cercado de ouvintes noturnos,
nem de posse de todas as circunstancias que tornam a narração conveniente e
agradavel, é friamente convidado a relatar uma estória mitologica mostra-se incapaz
do esforço mental necessario para lembrar-se dela e, porisso, pronta e
obstinadamente alega ignorancia.” (1952: 10)

Talvez me tenha faltado essa percepção ao início do trabalho de campo, mas


os Suruí/Aikewára logo trataram de me mostrar que as situações não eram bem como
eu imaginava. Seguindo ainda as orientações de Hartt (1952), o meio para coletar
mitos e histórias seria criar ocasiões em que a narração pudesse acontecer de forma
espontânea.

A maneira ideal de coletar mitos e histórias entre os Suruí/Aikewára seria,


como já falei, permanecer alguns dias com eles na mata. Fui a campo na época no
verão, como eles dizem, especialmente no mês de setembro, que é a época em que
costumam passar dias no mato pescando, caçando e contando histórias. Mas ao
período por eles indicado a aldeia estava com a atenção completamente voltada para
o ritual dos Karuára, em que devem concentrar suas atividades na aldeia e não mais
na mata/floresta. Tive, então, de procurar um meio de provocar a memória dos mais
velhos e experientes do grupo, a fim de que as narrativas pudessem ser registradas, o
que foi feito no contexto da escola, como expliquei no capítulo anterior.

A importância dos mais velhos para o relato dos mitos é também registrada
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 82
Mastop-Lima, 2002

por Malinowski (1984) ao tratar da mitologia do Kula. Malinowski mostra como os


mais velhos apontam e explicam o significado lendário que assume a paisagem
trobriandesa nos relatos míticos, que são examinados e admirados pelos mais jovens.
São os mais velhos narradores por excelência, porque conhecedores mais experientes
dos elementos que compõem o território e do significado que lhes presta os mitos.

Malinowski descreve de forma recorrente a paisagem com a qual interagem


os nativos trobriandeses com o objetivo de “... mostrar como o nativo realmente vê o
cenário de suas ações, [a fim de] descrever suas impressões e sensações relativas a
esses lugares...” (1984: 224) Pretende ainda, com isso, reconstruir a influência que
mitos exercem sobre esses lugares, emprestando-lhes colorido, dando-lhes
significado e transformando-os em algo vivo e familiar. (1984: 224)

Como falei anteriormente, o objetivo do trabalho é verificar de que forma


mitos, histórias de contato e interação com o meio ambiente se relacionam e revelam
a identidade étnica Suruí/Aikewára. Destaco a interação com o meio ambiente para,
à orientação de Malinowski, observar e descrever como os mitos significam animais,
plantas, lugares conhecidos pelos Suruí/Aikewára. Em busca de (re)construir1 como
os mitos e as histórias de contato dão significado a elementos da natureza presentes
no meio ambiente Suruí/Aikewára, revelando aspectos da identidade étnica do grupo,
basear-me-ei em estudos de memória, Antropologia estrutural e Análise do
Discurso.2

1
Ao decorrer do trabalho uso “(re)” antes de alguns verbos para referir ações simultâneas. No caso
citado, refiro-me à análise das narrativas feitas pelos Suruí, construídas a partir de referenciais
tradicionalmente ensinados pelos mais velhos e experientes do grupo e reconstruídas a partir de
circunstâncias em que são atualizadas, como por exemplo a incorporação de elementos do contato.
2
Doravante AD.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 83
Mastop-Lima, 2002

Memória e identidade

Estudos sobre memória foram escolhidos, em primeiro lugar, por constituírem


meio de mostrar a importância de pessoas mais velhas e experientes para a
constituição da memória coletiva; em segundo lugar, pelo fato de a memória estar
relacionada com o sentimento de identidade, como veremos adiante.

A importância da memória de pessoas mais velhas e experientes como


reveladoras de narrativas que significam tempo e espaço não é apenas verificada
entre os grupos indígenas. Embora em nossa sociedade a importância da memória de
pessoas mais velhas não seja algo valorizado, Bosi realiza um estudo - justamente
para mostrar a importância do tema - sobre as memórias de velhos em relação à
cidade de São Paulo, baseada em Halbwachs, sociólogo francês que se dedicou ao
estudo da memória, para o qual a “... lembrança é a sobrevivência do passado.”
(1994: 53)

A memória, segundo o que mostra a autora em relação a Halbwachs, é um


fenômeno social e deve ser assim tratado pelo pesquisador. Ela é construída
socialmente mesmo em seu aspecto individual, pois a memória individual depende
de referenciais como por exemplo família, classe social, escola, religião, entre outras
coisas. Da mesma forma como se considera o ato de conceber o mundo como uma
característica inerente a toda a humanidade, também assim pode-se considerar o ato
de lembrar. Lembrar, continua a autora, ainda baseada em Halbwachs, "... não é
reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e idéias de hoje, as
experiências do passado." (1994: 55)

Marilena Chauí, ao apresentar o estudo de Bosi, mostra que a autora expõe


como a sociedade capitalista oprime, despoja e bane a velhice, usando de

“... mecanismos institucionais visíveis (a burocracia da aposentadoria e dos asilos),


por mecanismos psicológicos sutis e quase invisíveis (a tutelagem, a recusa do
diálogo e da reciprocidade que forçam o velho a comportamentos repetitivos e
monótonos, a tolerância de má-fé que na realidade é banimento e discriminação),
por mecanismos técnicos (as próteses e a precariedade existencial daqueles que não
podem adquiri-las), por mecanismos científicos (as ‘pesquisas’ que demonstram a
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 84
Mastop-Lima, 2002

incapacidade e a incompetência sociais do velho).” (1994: 18)

Ser velho na sociedade capitalista é, segundo o que mostra Marilena Chauí


considerando o trabalho de Bosi, “... lutar para continuar sendo homem” (1994: 18).
O fato de os velhos na sociedade não-indígena lutarem para continuar sendo homens,
lembra a luta dos índios perante a sociedade nacional para ter sua identidade
reconhecida. Os índios, assim como os velhos na sociedade não-indígena, são
também oprimidos, despojados e banidos. Com a situação de contato, às sociedades
indígenas coube servidão, solidão, fome e barbárie.

A luta para ser índio, caracteriza-se por ser a luta para se mostrar gente, e
gente diferente que precisa ser respeitada em suas particularidades étnicas. A luta
dos Suruí/Aikewára pode ser verificada quando se organizam em uma associação
para reivindicar seus direitos, quando se associam com outras etnias indígenas, como
ocorre com o caso da APITO, ou mesmo quando se apresentam ao grupo de
universitários evangélicos também como crentes em Deus, enfatizando que têm seus
próprios deuses, conforme o que mostrei ao primeiro capítulo. Manter marcas
étnicas como a narração de mitos e histórias de contato que dão significado ao
espaço por eles ocupado é também uma forma de caracterizar a luta para ser
reconhecido como gente, além de manter as fronteiras que os distinguem de
membros da sociedade não-indígena e de membros dos demais grupos indígenas.

Entre os Suruí/Aikewára pude perceber que é bem diferente o lugar dos mais
velhos no grupo, se comparados aos mais velhos na sociedade não-indígena. Os
Suruí/Aikewára respeitam e valorizam os mais velhos e experientes do grupo, pois
são eles conhecedores dos aspectos que constituem a identidade étnica do grupo; é a
partir do conhecimento deles que os mais jovens são socializados em relação a ser
Aikewára.

Destaco a importância dos mais velhos para o grupo étnico Suruí/Aikewára


porque sempre que um dos costumeiros ouvintes representava o papel de narrador
para mim, fazia referência aos mais velhos, como no relato mítico a seguir:
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 85
Mastop-Lima, 2002

M1.3“Tinha ... segundo os velhos, tinha um casal. Um homem e uma mulher. E aí o


cara não tinha filho. Aí depois que passou, passou o tempo, aí arranjaram um filho,
uma filha. Aí o marido dessa índia nunca pegava na criança porque a mãe dela não
deixava.
Aí ele ia pro mato e pensava: ‘Minha mulher não deixa eu pegar a minha filha ...’
(...)
Quando ele voltou, a mulher tava fazendo almoço pra ele. Ele chegou, ele quis pegar
a menina, a mulher [disse]: ‘Não, num carece, não. Deixe comigo’. Aí ele pegou e
ficou pensando: ‘Eu vou descobri[r] o que é que essa menina tem.’
Aí foi, foi, passou, passou um tempo, a menina foi crescendo mais um pouco,
crescendo, tinha quase uns três a seis meses, aí ele foi lá de novo querendo pegar a
menina: [a mulher] ‘Não, num carece, não.’
A mulher num dava banho na criança quando ele tava presente, só quando ele saía.
Aí passou mais tempo, aí ele falou ‘pô ...’ aí ele enganou a mulher dele: ‘Mulher,
sabe que eu vou caçar hoje.’ [a mulher] ‘Tá, pode ir.’ E foi caçar.
Lá, ele montou uma tucainha [tocaia] assim, que nós chama de tukasa, na, no
igarapezinho. Aí ficou lá, olhando. A mulher veio, deu banho na criança. Aí ele
descobriu. Aí olhou assim: ‘Pô, minha filha tem rabo.’ (...) Aí foi lá: ‘Ah, por isso
que ela num deixa eu ...’, ficou pensando. ‘Eu vou pro mato.’ Tá. Ele chegou na
mata, né. Chegou lá, quis pegar a filha dele, a mulher: ‘Não ...’ Aí ele inventou: ‘Eu
vou pra mata caçar, eu vi um pau de inajá que tá bom de cutia já.’ Aí ele foi pra lá.
Quando ele chegou lá no mato lá, ele fez uma tukasa, que nós chama de tukasa, um
pauzinho de palha bem redonda, pra matar cutia. Ele foi pra lá. E lá ele ficou
pensando: ‘É agora, o que é que eu faço?’ Ficou olhando, olhando. Aí viu um cipó.
Ele cortou o cipó, porque tem um tipo de cipó na mata que parece sangue, cortou e
[sangue] saiu derramando. Ele viu uma toca lá, foi andando. Aí saiu derramando,
derramando o sangue do cipó até lá dentro da toca. Aí ele voltou, pra casa dele. Aí
quando ele chegou na casa dele, ele falou pra mulher dele: ‘Pô ...’ ele disse que,
como é que diz? Ah! Baleou, baleou. ‘Eu baleei uma cotia.’
A mulher: ‘Ah, tá ...’ ‘Não vai lá, tá? Olhar a cutia que ela entrou dentro da toca.’
Ele foi lá. Quando chegou lá, ele quis pegar a menina pra mulher entrar, e a mulher
não deu. ‘Não, num carece, não. Ela vai entrar comigo.’ Aí, entraram pra dentro. E o
marido dela, quando entrou (?) pegou e tampou o buraco. Deixou todos dois lá pra
dentro. E ele, veio embora. Acho que morreram. É, foi mais ou menos assim.”4

O mito me foi relatado por Ywynuhu Suruí, não no contexto da escola, mas
em conversa comigo, com uso de gravador. Ywynuhu é neto de Awarini e faz
questão de mostrar que aprendeu o mito com o avô, que além de ser um dos índios
mais velhos da aldeia, é um dos mais apreciados especialistas em narrar histórias. O
modo como narrou o mito, preocupado em mostrar os detalhes da trama, indica a

3
Baseada em Lévi-Strauss (1991), indicarei a seqüência de mitos pela abreviatura M e os números
correspondentes. As histórias de contato serão indicadas pela abreviatura H e os números
correspondentes.
4
Todos os mitos e histórias de contato aqui apresentados, sejam transcritos de gravações sejam
registrados no contexto da escola, seguem o registro original dos narradores, a fim de nos familiarizar
com a maneira nativa de narrar.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 86
Mastop-Lima, 2002

possibilidade de filho ou neto de narrador tornar-se um futuro especialista. Voltarei


ao mito adiante, para analisar o que revela da identidade étnica Suruí/Aikewára.

Voltando à questão da memória outros pontos há a destacar no que se refere à


identidade. Em relação ao que diz Halbwachs quanto ao significado de lembrar, a
reconstrução das experiências do passado com idéias e imagens atuais é um fator
característico dos mitos. Um exemplo disso é o que Malinowski coloca em relação
aos personagens míticos trobriandeses que “... moram no mesmo tipo de casas [que
os nativos], comem o mesmo tipo de alimentos, usam o mesmo tipo de armas e
implementos que estão em uso atualmente.” (1984:227) Essa é uma forma de
atualizar as narrativas míticas.

Em outro trabalho (MASTOP-LIMA, 2000) em que analiso a relação entre


máscaras da Coleção Ticuna, da Reserva Técnica Curt Nimuendaju, do Museu
Paraense Emílio Goeldi, pude mostrar que outra forma de atualizar os mitos é
incorporando elementos às narrativas míticas advindos da situação de contato. No
trabalho mostro, baseada em João Pacheco de Oliveira Filho (1988), que o clã
Galinha - que não é um animal tradicionalmente criado pelos Ticuna - foi
incorporado à organização social do grupo, tendo lugar no mito de origem Ticuna,
por constituir um dos elementos da civilização trazidos pelo herói cultural Ipi.

Isso também é verificado entre os Suruí/Aikewára quanto aos mitos. Em


relação às histórias de contato, no entanto, além da atualização, nas histórias também
são destacados elementos da cultura Suruí/Aikewára que não são mais verificados
atualmente, principalmente elementos da cultura material. Por outro lado, pelas
histórias de contato, a atualização de elementos da cultura material pode ser
observada pela descrição de novas tecnologias e/ou uso de matérias-primas.

Mitos e histórias são narrados tomando referenciais da memória individual,


de quem está narrando, e da memória coletiva, sobre o que está narrando. Se a
memória do indivíduo na sociedade capitalista, segundo Bosi (1994), depende de
referenciais como família e religião por exemplo, para os Suruí/Aikewára os
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 87
Mastop-Lima, 2002

referenciais são outros: tempo (antigo) e espaço (floresta) referentes ao território


indígena, à interação dos índios com esse território, aos personagens naturais e
sobrenaturais que habitam seu território; pessoas da convivência deles que
recriaram/recriam historicamente esses relatos; o grupo doméstico; as atividades
quotidianas; a escola, a influência religiosa dos não-índios.5

Pollak mostra que os acontecimentos vividos pessoalmente ou “vividos por


tabela” são os elementos que constituem a memória. Memória que é, retomando
Halbwachs, um fenômeno social e coletivo, “... construído coletivamente e
submetido a flutuações, transformações, mudanças constantes.” (1992: 201) Aos
acontecimentos vividos pessoalmente corresponderia a memória individual, não
esquecendo de sua dimensão social; aos acontecimentos “vividos por tabela”
corresponderia a memória herdada, transmitida a um grupo através de sucessivas
gerações, identificando seus membros. Na sociedade Suruí/Aikewára pode-se
considerar a memória herdada pelo grupo em pelo menos dois níveis diferentes: o
relativo às pessoas mais velhas e experientes, tidas como narradores por excelência
dos mitos e das histórias de contato, e o nível relativo aos demais Suruí/Aikewára,
que em situações específicas assumem o papel de narradores, sem esquecer de fazer
referência a quem os ensinou as histórias que reproduzem.

Há, ainda segundo Pollak, uma “... ligação fenomenológica muito estreita
entre a memória e o sentimento de identidade.” (1992: 204), o sentimento de
identidade é um dos elementos que constitui a memória. Esse sentimento expressa
continuidade e coerência de um grupo ou de uma pessoa, no processo de
reconstrução do passado, a partir da memória. Assim como a memória, a identidade
também é socialmente construída e reconstruída, para ele “... memória e identidade
podem ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como
essências de uma pessoa ou de um grupo.” (1992: 204), o que significa dizer que as
transformações manifestas na construção e reconstrução da memória e da identidade
de um indivíduo ou de um grupo devem ser consideradas historicamente.
5
Para contextualizar elementos referentes ao território Suruí e à interação deles com o meio ambiente
que ocupam, foi preciso identificar referenciais dos quais dependem a memória do grupo. Para tanto,
me vali de uma ficha para levantamento de dados, a fim de realizar um inventário das formas de
interação do grupo com o meio ambiente. De forma tradicionalmente realizada pelos antropólogos,
tomei como base o Guia Prático de Antropologia para a elaboração da ficha, que segue em anexo.
Ver Anexo 1: Ficha para levantamento de dados.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 88
Mastop-Lima, 2002

Em relação às histórias de contato, é a memória individual dos mais velhos


que se destaca, pois são eles testemunhas ainda vivas de um passado que os marcou
de forma dolorosa, e que ainda os marca no presente, pela lembrança dos que
morreram e do papel que desempenhavam em relação aos costumes e às tradições do
grupo. As histórias de contato representam, em relação aos que naquele tempo ainda
não existiam, memória herdada. Mas é válido destacar, como observou Beltrão
(1998b), que os Suruí/Aikewára que não vivenciaram de fato o tempo antigo, ao
reproduzirem as histórias que lhes foram contadas o fazem com tanta convicção que
parecem tê-las testemunhado, tamanha é a emoção e riqueza de detalhes de seus
relatos. A reprodução dos mitos e das histórias de contato é de relevante importância
para a afirmação/reafirmação do ser Aikewára.

Mitos e histórias de contato: exercício de análise

Tenho dito ao decorrer do trabalho que a partir dos mitos e das histórias de
contato podemos observar a interação dos Suruí/Aikewára com o meio ambiente,
costumes e tradições do grupo que revelam manutenção de traços culturais,
caracterizando os Suruí/Aikewára como grupo étnico, com fronteiras demarcadas em
relação à sociedade e aos demais grupos étnicos. Procuro neste capítulo analisar
mitos e histórias de contato, tratando dos aspectos que revelam a identidade
Suruí/Aikewára, a partir de referências da Antropologia estrutural (mitos) da AD
(mitos e histórias de contato).

O mito a partir da perspectiva estruturalista

Antes de iniciar um exercício de análise do mito, cabe situá-lo quanto à


perspectiva da Antropologia estrutural. O mito será aqui analisado a partir do
estruturalismo de Lévi-Strauss, cuja obra é extensa e referente principalmente aos
domínios do mito e do parentesco. Neste capítulo, longe de dar conta de toda
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 89
Mastop-Lima, 2002

produção científica de Lévi-Strauss, tratarei de aspectos gerais de sua teoria


estruturalista em relação ao domínio do mito.

Mesmo em relação ao estudo de Lévi-Strauss sobre o mito, o trabalho


apresenta muitos limites, uma vez que a proposta não é a de trabalhar, ao menos por
ora, com produções como as Mitológicas, uma série de quatro livros que Lévi-
Strauss dedica ao estudo dos mitos. Embora não trabalhe diretamente com as
Mitológicas, valer-me-ei da metodologia empregada por Lévi-Strauss para a análise
do mito, expressa nas Mitológicas e em outros trabalhos de análise estrutural do mito
como é o caso, por exemplo, de A gesta de Asdiwal (1976). Em O cru e o cozido
(Mitológicas I, 1991) Lévi-Strauss expõe sua metodologia de análise estrutural de
mitos: parte de um mito, proveniente de uma sociedade e o analisa inicialmente em
relação ao contexto etnográfico e a outros mitos da mesma sociedade; em seguida
parte para mitos de sociedades vizinhas, situando-os em seus respectivos contextos
etnográficos; a partir disso chega a mitos de sociedades mais afastadas, a fim de
compará-los e isolar noções abstratas que podem ser encadeadas em proposições.
Em outras palavras, partir da análise do mito de um contexto particular e chegar ao
universal, mostrando características gerais presentes em todas as sociedades.

Basear-me-ei na metodologia de Lévi-Strauss quanto ao aspecto de recorrer


ao contexto etnográfico para analisar os mitos Suruí, recorrendo também aos mitos e
contextos etnográficos dos grupos Parakanã e Asuriní do Tocantins, pela
proximidade que apresentam em relação ao grupo Suruí/Aikewára, apontada na
bibliografia especializada e nos relatos do grupo. Não é objetivo do trabalho, no
entanto, chegar a contextos mais afastados aos do Suruí/Aikewára, a fim de mostrar
características gerais dos mitos Suruí e os das demais sociedades ou grupos.

Explico o porquê: considero que pelo fato de os Suruí/Aikewára ainda não


terem sido estudados do ponto de vista da ênfase na manutenção de traços culturais, a
partir da manutenção de fronteiras que os caracterizem como um grupo étnico,
acredito ser esse um primeiro passo em relação a trabalhos que exijam maior tempo
de pesquisa e de convivência com o grupo, para que se possa alçar vôos mais
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 90
Mastop-Lima, 2002

distantes. Além do mais, como os Suruí/Aikewára não estão acostumados com esse
tipo de trabalho em sua área, alguns dos mitos coletados possuem caráter
fragmentário, o que dificulta análise mais profunda.6 Em vista disso, proponho-me,
por hora, a investigar o que os mitos revelam do contexto etnográfico
Suruí/Aikewára e o que o contexto revela dos mitos ou, nas palavras de Malinowski,
como os mitos significam o mundo dos Suruí/Aikewára.

O interesse de Lévi-Strauss em relação ao mito é, segundo Bottomore &


Nisbet (1980), pelo fato de representar o mito um meio pelo qual se pode chegar às
estruturas básicas e universais do pensamento e comportamento humanos.

Segundo Lévi-Strauss, “... tudo pode acontecer num mito.” (1975: 239), pois
os acontecimentos que o compõem não obedecem a uma regra de lógica ou de
continuidade. Ele se reporta ao trabalho de Sausurre na lingüística para referir que o
mito é parte integrante da língua, o conhecemos pela palavra e provém do discurso.
O mito, continua Lévi-Strauss, está na linguagem e além dela.

Ainda citando o trabalho de Sausurre, Lévi-Strauss coloca que a língua


pertence a um tempo reversível e a palavra a um tempo irreversível. O mito, assim
como a língua e a palavra é também considerado por Lévi-Strauss como um nível de
linguagem, também definido por um sistema temporal, caracterizado pela
combinação de tempos reversível e irreversível a que pertencem a língua e a palavra.
O tempo mítico é, então, um tempo sincro-diacrônico. O mito, segundo ele, refere-se
sempre a acontecimentos passados que formam uma estrutura permanente,
relacionada ao mesmo tempo ao passado, ao presente e ao futuro.7

O fato de a estrutura dos mitos ser simultaneamente, de acordo com Lévi-


Strauss, histórica e não-histórica é o que explica o mito pertencer também ao
domínio da palavra e da língua. Tomando o mito como um fato lingüístico diferente
de todos os outros, Lévi-Strauss opõe mito e poesia quanto à questão da tradução: a
6
Laraia (1986: 253) chama a atenção para o caráter fragmentário de narrativas míticas entre os
Asuriní do Tocantins, observado a partir da morte de narradores especialistas ocasionada pelo contato.
Segundo ele, a maioria dos sobreviventes Asuriní era de jovens que não tiveram tempo de completar o
aprendizado das narrativas míticas, restando registrá-las de modo fragmentar.
7
Essa característica do mito já se encontra presente no trabalho de Malinowski (1984) sobre a
mitologia do Kula, em que destaca o caráter de atualização dos mitos.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 91
Mastop-Lima, 2002

poesia, se for traduzida, apresenta problemas quanto ao entendimento de seu sentido;


o mito pode ser traduzido sem prejuízo de seu valor enquanto mito. O mito, segundo
ele, “... é percebido como mito por qualquer leitor, no mundo inteiro.” (1975: 242) A
substância do mito está, conforme o autor, na história que relata. A linguagem
utilizada no mito tem propriedades específicas, por possuir elementos que estão além
da linguagem, sendo de natureza mais complexa que quaisquer outras propriedades
encontradas em quaisquer outras expressões lingüísticas.

O mito, para Lévi-Strauss, é formado de unidades constitutivas denominadas


mitemas. As unidades constitutivas do mito não devem ser consideradas
isoladamente, mas em relação umas com as outras. São relações ou feixes de
relações formados pelas unidades constitutivas que, para o autor, assumem uma
função significante. Para Lévi-Strauss, cada mito deve ser definido pelo conjunto de
suas versões, não existindo uma versão “primitiva”, no sentido de primeva, ou
autêntica. Em outras palavras, em relação ao mito não existe a versão, mas sim
versões cujo conjunto compõem o mito.

Em outro trabalho, Lévi-Strauss (1976) coloca que dois são os aspectos da


construção dos mitos: as seqüências e os esquemas. As seqüências representam o
conteúdo aparente dos mitos, representam a sucessão cronológica dos
acontecimentos. As seqüências organizam-se, em níveis de profundidade diferentes,
através de esquemas superpostos e simultâneos. Elas seriam, segundo o autor, o
relato aparente dos mitos e os esquemas representariam seu conteúdo latente.

Sperber (1968) diz que Lévi-Strauss observou que na origem de todas as


versões de um mito está o mesmo dispositivo mental e que os mitos são
“transformações de outros mitos,” no sentido de que são fenômenos universais, já
que presentes em todas as sociedades, mas são também particulares uma vez que
cada sociedade tem seus mitos. Lévi-Strauss coloca que talvez, pela análise da
estrutura dos mitos tenha-se chegado a “... um modo universal de organizar os dados
da experiência sensível.” (1975: 260) Em outras palavras, se um mito se caracteriza
como mito de origem, o tema da origem é verificado em mitos de diferentes
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 92
Mastop-Lima, 2002

sociedades; sociedades diversas explicam sua origem conforme se concebem, como


por exemplo os Ajuru, à epígrafe, os Ticuna, que foram pescados pelo herói cultural
Yoí (MASTOP-LIMA, 2000), os Suruí/Aikewára, que surgiram da transformação do
mutum e da garça em mulheres, que se relacionaram com o sobrevivente do dilúvio,
como veremos a seguir. As transformações dos mitos, segundo Sperber, são “...
inerentes ao próprio pensamento mítico.” (1968: 63)

Kuper, ao tratar do mito na perspectiva lévistraussiana, diz que em relação ao


mito, “[a] noção básica é que o homem pensa através da formulação de uma série de
oposições fundamentais, cada uma delas com uma referência concreta, relacionando
depois essas oposições.” (1978: 209) As oposições que aparecem nos mitos,
juntamente com atos de classificação e de associação, são considerados por Kuper
como modos de troca, fazendo referência à teoria da reciprocidade desenvolvida por
Lévi-Strauss em relação a seus estudos de parentesco.

Expostos os aspectos gerais da estrutura dos mitos, destaco seu caráter de


linguagem com o elo entre a Antropologia e a AD para que demos início ao exercício
de análise.

Antropologia e Análise de Discurso

A linguagem utilizada no mito a que se refere Lévi-Strauss é diferente de


qualquer outro tipo de expressão lingüística porque é composta de mecanismos
lingüísticos e extralingüísticos (BRANDÃO, 1998), em que o contexto deve ser
levado em conta para se entender os sentidos do mito. Os aspectos característicos do
mito para os quais Lévi-Strauss chama a atenção podem também - para a análise do
mito - ser tratados a partir de referenciais da AD.

Para Orlandi (1990), a análise de um mito do ponto de vista da AD apresenta


alguma diferença em relação à análise antropológica de um mito. Ela diz que a
análise antropológica preocupa-se com a interpretação do mito, enquanto a AD tem
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 93
Mastop-Lima, 2002

por finalidade a compreensão do mito. A proposta de Orlandi não é a de colocar


essas formas de análise do mito de maneira separada, mas antes, ao preocupar-se
com a compreensão do mito, colocar em evidência aspectos relativos às condições
em que o discurso mítico é produzido. Estudar esses aspectos representa uma
contribuição para a interpretação do mito. Orlandi diz que

“... uma das contribuições mais importantes da AD para a análise antropológica seria
a de estabelecer a espessura significativa, pela explicitação da instância de
compreensão como intermediária da interpretação.” (1990: 174-175)

Ao analisar um mito Asuriní, Orlandi assim coloca a contribuição da AD para


a Antropologia:

“a) como a AD explicita os mecanismos de produção dos sentidos, ela traz


indicações fecundas para a sua interpretação, e os resultados da análise discursiva
fazem, assim, parte do material etnológico;
b) tornando visível o processo de produção de sentidos pela remissão a fatores
histórico-sócio-culturais do funcionamento do texto mítico, a AD faz aparecer
elementos contextuais muito significativos para o conhecimento da cultura
indígena.” (1990: 176)

Orlandi (1996), assim como Lévi-Strauss, também refere o trabalho de


Sausurre. Segundo ela, Sausurre ao estabelecer a dicotomia língua/fala, estabelece
também uma separação entre histórico e social. A língua é tratada como “... um
produto social do qual exclui o processo de produção, a historicidade e o sujeito.”
(1996: 98-99) e a fala, torna-se individual, excluindo o contexto social em que é
produzida. Lévi-Strauss, ao colocar o mito como pertencente ao domínio da língua e
da palavra, recupera - do ponto de vista da AD - o processo histórico-social
(ORLANDI, 1996).

Tomando os aspectos apontados por Lévi-Strauss e Orlandi, o mito será aqui


considerado como linguagem e como ideologia, mostrando aspectos que marcam
etnicamente um grupo indígena e que fazem parte do imaginário desse grupo.
Enquanto linguagem, pode-se verificar a pluralidade de sentidos contida no mito;
enquanto ideologia, pode-se mostrar como o mito se refere a uma concepção de
mundo própria de um grupo indígena. Como imaginário, pode-se pensar o mito
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 94
Mastop-Lima, 2002

como um processo de utilização, formação e expressão de símbolos, no qual valores


afetivos estão presentes, caracterizando também uma visão específica de mundo, um
modo próprio e particular de interpretar a realidade, que é socialmente legitimado e
compartilhado (TRINDADE & LAPLANTINE, 1997). Assim como o mito, as
histórias de contato também podem ser entendidas como uma linguagem que
expressa múltiplos sentidos, que tem caráter ideológico e que faz parte do imaginário
do grupo. Vejamos como esses elementos podem ser verificados em relação aos
mitos e histórias de contato narrados pelos Suruí/Aikewára.

Em M1 um dos primeiros destaques, já citado, é a referência aos mais velhos.


Já mostrei que entre os Suruí/Aikewára as pessoas mais velhas e experientes são
muito admiradas e respeitadas por serem conhecedoras dos costumes e tradições do
grupo.

Para continuar a análise, retomo M1 a partir dos mitemas que o constituem:

1. Havia um casal que tinha uma filha.


2. A mulher não deixava o marido pegar a filha.
3. O homem vai para o mato refletir sobre o assunto.
4. Quando o homem voltou, a mulher lhe preparava o almoço.
5. O homem tentou pegar a filha novamente, mas a mulher não deixou.
6. O tempo passa e o homem insiste em desvendar o segredo da filha.
7. Usando de astúcia, o homem engana a mulher, dizendo que vai caçar.
8. O homem monta tocaia e descobre que a filha tem rabo.
9. O homem engana a mulher dizendo que baleou uma cotia.
10. O marido prende a mulher e a filha na tocaia.

A partir do contexto etnográfico e dos feixes de relações formados pelos


mitemas, posso desenvolver a análise do mito. A oposição homem/mulher e mais
especificamente a oposição marido/mulher refere alguns acontecimentos na história
relatada: a) além de marido e mulher, desempenham também o papel de pai e mãe; a
mãe resiste a todo custo tentando esconder a anormalidade da filha, a fim de não ser
afastada dela; o pai, por sua vez, insiste em desvendar o segredo da filha; b) ambos
usam de astúcia e não de força para alcançar seus objetivos, mas o pai acaba
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 95
Mastop-Lima, 2002

vencendo a disputa por não aceitar uma filha com rabo, o que não acontece desde o
início da narrativa em relação à mãe; c) a divisão sexual do trabalho também é
destacada na narrativa; a mulher cozinha, permanece em domínio doméstico e o
homem é responsável pela caça, realizando expedições à floresta.8

O mito também revela uma estratégia de caça usada para captura de cutia: a
tocaia (tukása), indicando que é uma armadilha preparada com paus e palhas. Revela
também que os Suruí/Aikewára precisam conhecer os hábitos dos animais que
desejam caçar: o pé de inajá “bom de cutia” significa que eles conhecem os hábitos
alimentares da cutia e sabem onde procurá-la no meio ambiente que ocupam.9
Mostrei ao primeiro capítulo que os Suruí/Aikewára usam também outras estratégias
de caça, como por exemplo, a espera. Vemos também a atualização do mito, quando
o fato de o homem ter matado a cutia à bala, revela o uso de armas de fogo, como é o
caso da espingarda, usadas pelos Suruí/Aikewára para a caça.

A seqüência do mito que refere o episódio do cipó revela mais uma vez que o
conhecimento que possuem da natureza é usado em seu propósito, além do que a
estratégia de enganar a mulher com o sumo do cipó que se assemelha a sangue,
refere ainda o uso de artifícios outros que não a força para atingir algum intento.

Quanto à seqüência da mãe e da filha que ficaram presas na toca, pode revelar
que ter uma filha com rabo não é algo que pertença ao domínio da cultura, prendê-las

8
É interessante notar que as expedições à floresta não são feitas de modo aleatório. Os Suruí
conhecem a direção de cada lugar da floresta onde desejam ir, tomando referenciais como árvores por
exemplo. Lembro que antes de acompanhar Maria e Sy’a numa expedição à floresta à “caça de cupu,”
Sy’a informou que havia encontrado o fruto “lá onde fica aquele pé de piqui.” Laraia, a respeito do
conhecimento que os Tupi têm da floresta, diz que “[a] visão que um índio Tupi tem deste mesmo
cenário [a floresta] é totalmente diversa: cada um desses vegetais tem um significado qualitativo e
uma referência espacial. Ao invés de dizer como nós: ‘encontro-lhe na esquina junto ao edifício X,’
eles freqüentemente usam determinadas árvores como ponto de referência. Assim, ao contrário da
visão de um mundo vegetal amorfo, a floresta é vista como um conjunto ordenado, constituído de
formas vegetais bem definidas.” (1986: 69)
9
O conhecimento dos hábitos dos animais para criar estratégias de caça é algo presente em todas as
sociedades indígenas. Pozzobon, por exemplo, ao estudar os Maku, assim descreve: “[c]ada animal
tem sua pegada ... se só tem folha morta no chão ... [v]ocê tem que avaliar a distância entre as folhas:
as que foram viradas pelas patas dianteiras e as que foram viradas pelas patas traseiras. Pela distância
dá para saber o tamanho do bicho. [Mas] para saber mesmo, você tem que prestar atenção nos outros
sinais. Que folhagens o bicho mastigou? Quais frutas ele comeu? O cocô dele, como é? Se tiver
macucu roído, é paca. Muito caroço de bacabinha sem resto de polpa no chão é macaco de cheiro ou
macaco barrigudo.” (2001: 21). Sobre o assunto, consultar, entre outros Mellatti (1993); Ribeiro
(2000) e Pozzobon (2001).
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 96
Mastop-Lima, 2002

na toca é devolvê-las ao domínio da natureza., como se faz com animais capturados


vivos, transformados em xerimbabos.

A oposição astúcia/força lembrou-me o relato feito por Mairá ao grupo de


universitários evangélicos que visitou a aldeia, de que tratei no primeiro capítulo.
Mairá falava sobre a saga dos Suruí/Aikewára ao fugirem dos Kayapó, seus inimigos
tradicionais, pela floresta. Como eles não podiam usar de força contra os belicosos
Kayapó, tinham de enterrar as crianças recém-nascidas para que o choro delas não
denunciassem o paradeiro dos Suruí/Aikewára no interior da floresta. A relação dos
Suruí/Aikewára com os Kayapó é também referida em uma das histórias de contato
produzidas na escola indígena que, como veremos, tem também caráter mítico:

H1. “Era uma vez o indio chamado Sahi


era muito b[r]abo e corajoso o irmão do Sahi estava com a sua mulher.10
Ele levou a sua mulher para bem longe
Ela dis[s]e pega o menino. Ele pegou o menino e depois der[r]ubou o menino e saiu
cor[r]e[n]do. Sua mulher gri[ta]va Amonete, Amonete você foi embora
Ele andou muito e segou [chegou] perto e escutou
o gahabó [Kayapó] estava rancando castanha e o outro estava rancando coco
o Sahi flasou [flechou] muito o galhabó [Kayapó]
o Sahi estava as[s]ando ca[r]ne de galhabó
o galhabó era muito go[r]do a gordura pingou no fogo
o fogo pegou bem no céu e Sahi olhou
e Deus dis[s]e não e [é] para comer a ca[r]ne de seu parente
no dia que o mundo se acabar vai ser com fogo
e Sahi não comeu ma[i]s ca[r]ne
e ele jogou a ca[r]ne e foi embora e ma[i]s na f[r]ente ele encontrou uma onça bem
grande
a onça era ma[i]s aulto que o Sahi
flesou [flechou] a onça dez vez[es] e a onça mor[r]eu.” (Não assinado, 29/03/2001)

Em H1 é indicado o uso de força bélica dos Suruí/Aikewára contra os


Kayapó, mas que logo torna-se uma impossibilidade, visto que Deus os proíbe de
matar seus inimigos e alimentar-se da carne deles. A seqüência que refere Deus
revela também as influências do contato entre os Suruí/Aikewára. Temos também
em H1 a presença de eventos históricos e de eventos míticos: Sahi foi um índio que
existiu concretamente; o contato dos Suruí/Aikewára com os Kayapó é também
concreto, mas a referência do fogo que sobe ao céu a partir da gordura do Kayapó, e
10
Nos mitos e histórias de contato aqui apresentados, corrigi apenas as palavras que podem dificultar
a compreensão das narrativas em Português, muitas delas claras para mim porque a convivência entre
os Suruí me possibilitou observar o modo como eles adaptam palavras em Português a fonemas que
lhes são familiares.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 97
Mastop-Lima, 2002

que originará a destruição do mundo, revela o aspecto mítico da história. Talvez a


história se aproxime do que Silva (1984) chama de “eventos históricos mitificados,”
como vimos no capítulo anterior.

A mesma seqüência do fogo que sobe da gordura do Kayapó foi narrada por
Ywynuhu em uma de nossas conversas. Segundo Ywynuhu Suruí (10/03/2001), os
Suruí matavam os Kayapó, esquartejavam-nos e colocavam para assar no fogo. O
fogo que subiu da gordura dos Kayapó um dia vai descer e queimar todos os
sobreviventes. Assim contava, falava, Moroneikó, antigo cacique, que dá nome à
escola da aldeia. Se compararmos M2, H1 e o relato de Ywynuhu temos a oposição
água/fogo marcando o início do mundo como os Suruí/Aikewára o conhecem (água)
e o fim desse mundo, do mundo dos Suruí/Aikewára (fogo).

Pelos aspectos etnográficos relacionados ao mito - ou significados pelo mito -


e pela história de contato, há algumas considerações a fazer do ponto de vista da AD
no que concerne às condições de sua produção. Falei anteriormente que o mito foi
narrado por Ywynuhu Suruí, ele desempenha, segundo os referenciais da AD, o
papel de sujeito do discurso mítico, assim como os demais narradores. O sujeito, na
perspectiva da AD não é um sujeito-em-si, mas um sujeito constituído social,
histórica e culturalmente. Ywynuhu não é o fundador do discurso mítico Suruí, pois
na sua fala outras falas, especialmente a fala de quem o ensinou, estão presentes; no
seu discurso, outros discursos se dizem. (ORLANDI, 1990 e BRANDÃO, 1998)

A AD opera com a noção de dispersão/des-centração do sujeito, em que o


sujeito não é a origem do discurso, tampouco a única fonte de sentido do discurso.
Pensar o sujeito como origem ou como fonte absoluta de sentido caracteriza o que
Pêcheux chama de ilusão discursiva do sujeito (BRANDÃO, 1998). A partir da
análise que Orlandi (1990) faz de um mito Asuriní, pode-se verificar que o sujeito
presente no discurso mítico aqui referido, o sujeito-do-discurso, é o sujeito
Suruí/Aikewára, o Suruí/Aikewára enquanto uma etnia indígena diferente de outras
etnias indígenas e diferente dos “outros” não-índios.

Pêcheux (apud ORLANDI, 1990), define o discurso como efeito de sentidos


Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 98
Mastop-Lima, 2002

entre locutores. Para que o discurso tenha sentido, é preciso que exista sentido em
relação ao que se conta. (ORLANDI, 1990) Ao narrar o mito, além de sujeito, o
narrador é também locutor. Em relação às condições de produção do relato do mito,
podemos pensar o pesquisador como interlocutor, na interação com o qual é
produzido o discurso mítico. Há interlocutores no próprio mito, como é o caso do
marido e da mulher em M1.

Ywynuhu não narrou o mito no contexto da escola, como os demais mitos e


histórias a serem apresentados.11 Mas no exercício realizado com os alunos da escola
indígena Moroneikó Suruí, dentre os quais está Ywynuhu, ele registrou a narrativa
mítica por escrito e o resultado foi um texto com menos detalhes que o anterior e,
portanto, mais resumido. O que revela o caráter específico mesmo de diferentes
modos de narrar. Ele parece bem mais à vontade com a narrativa oral, afinal de
contas não podemos deixar de atentar para o fato de que as sociedades indígenas são
tradicionalmente ágrafas, foi/é pela narrativa oral que os Suruí/Aikewára
aprenderam/aprendem a significar seu mundo com os mais velhos. Além do que,
podemos levantar hipóteses de que escrever é ato solitário, no sentido de individual,
não há platéia, não exige performance, pode ser enfadonho pela pouca familiaridade
com a escrita. A narrativa oral pode ser considerada documento atestado de
experiência e a escrita não. É o inverso do que vivenciamos na sociedade não-
indígena.

Refiro esse aspecto das condições de produção do discurso mítico para me


reportar a outra narrativa feita por Ywynuhu, gravada em conversa comigo, a
professora da escola e outro aluno, fora do contexto da escola. A narrativa mítica
também foi referida de forma resumida por uma das alunas da escola. É o mito do
dilúvio e do surgimento dos Suruí/Aikewára.

M2. “Na época do dilúvio o mundo era menor e as estrelas e o céu eram mais perto
da terra. No dilúvio existiam muitos índios. Com o dilúvio, deles, só ficou um índio
que subiu numa árvore chamada Sarawyw. Ele esperou dia e noite para a água
descer. Tudo o que tinha no céu desabou. Ele descia para ver se a terra já estava

11
A metodologia de trabalhar mitos e histórias a partir do contexto da escola está baseada em outros
trabalhos antropológicos. Sobre o assunto, consultar, entre outros, Índios Ticuna (1985); Costa
(1988); Gruber (1992); Ribeiro (1992) e Organização dos Professores Indígenas do Acre (2000).
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 99
Mastop-Lima, 2002

seca, dando para andar. Quando ele conseguiu descer, ele viu um rastro e o seguiu,
gritando por alguém, mas só encontrou o mutum e a garça na água [provavelmente
um igarapé]. Quando ele voltou para o lugar onde descera, encontrou sua casa
construída. Foi atrás de uma pessoa novamente. Quando voltou, seu almoço estava
pronto. Ele procurava a pessoa que poderia ter-lhe construído a casa e preparado o
almoço, e quando voltou encontrou outras coisas feitas. Nas suas buscas só viu o
mutum e a garça, que nada lhe respondiam e apenas piavam para ele. Ele não
entendia os piados. Ele se escondeu e viu que eram os dois que faziam as coisas
para ele. O mutum e a garça se transformaram em mulher, tiveram relações com ele
e assim surgiram os Suruí.” (Ywynuhu Suruí, 10/03/2001)

No mito temos os mitemas:

1. Na época do dilúvio o céu e a terra eram mais próximos.


2. Nessa época existiam muitos índios.
3. Com o dilúvio, só restou um sobrevivente.
4. O sobrevivente esperou a terra secar, dia e noite, ao alto de uma árvore.
5. Quando a terra secou, o homem desceu da árvore e seguiu um rastro à procura de
uma pessoa.
6. O homem só encontrou o mutum e a garça.
7. Quando o homem voltou, encontrou casa construída.
8. O homem realizou novas buscas, mas só encontrou o mutum e a garça.
9. Quando voltou, encontrou almoço pronto e outras coisas feitas.
10. O homem se escondeu e viu que eram o mutum e a garça que lhe preparavam as
coisas.
11. O mutum e a garça se transformaram em mulher, com quem o homem manteve
relações sexuais.
12. Surgiram os Suruí.

Pelo mito vemos que o mundo que os Suruí/Aikewára conheciam no tempo


antigo era marcado pela proximidade entre céu e terra e pela existência de muitos
índios. Com o dilúvio o mundo conhecido sofre uma transformação, desabando tudo
o que tinha no céu, desabando o mundo que conheciam. Dessa transformação,
notamos o surgimento de oposições: muitos índios/um índio; copa da árvore
(céu)/chão (terra); dia/noite; terra (dura)/água (mole), sobre as quais falarei mais
adiante.

Após a terra endurecer o índio sobrevivente desce da árvore e sai na pista de


Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 100
Mastop-Lima, 2002

um rastro que ele supõe ser de uma pessoa, por motivos revelados nas seqüências
seguintes, e até mesmo porque se encontrava sozinho. Em sua busca encontrou
apenas animais, seres pertencentes ao domínio da natureza. Ao regressar e encontrar
a casa construída sai novamente em busca de uma pessoa, porque só uma pessoa
poderia ter agido sobre o meio ambiente, transformando-o em traços culturais. Os
Suruí/Aikewára contam que antigamente suas casas não eram como o são hoje; havia
uma única casa onde todos moravam e não havia divisões internas em cômodos,
como o padrão da casa dos regionais que os Suruí/Aikewára acabaram imitando.
Comparando o padrão antigo e o tradicional de habitação, os Suruí relataram que na
época em que moravam numa só casa tinham possibilidade de aprender com mais
facilidade suas músicas e narrativas míticas, uma vez que à noite as pessoas mais
velhas e experientes do grupo costumavam cantar e narrar histórias para os demais, o
que representava uma maneira de socializar as gerações mais novas.

A construção da casa pode ser vista como a instauração da cultura. Os


eventos seguintes parecem confirmar a proposição. Encontrar o almoço pronto,
embora o mito não refira de forma explícita, implica o uso de técnicas, instrumentos
como por exemplo panelas, algum instrumento cortante e, sobretudo, o emprego de
fogo. Enfim, implica no processamento dos alimentos de alguma forma, elementos
pertencentes ao domínio da cultura.

O mito também não indica que outras coisas estavam prontas quando o
homem voltou de sua segunda busca, mas pode-se pensar em elementos da cultura
material do grupo, com elementos da natureza manufaturados, o que indicava a
presença de outra pessoa no local. A transformação do mutum e da garça em mulher,
que se relacionou com o homem sobrevivente do dilúvio deu origem à sociedade, ao
grupo Suruí/Aikewára. É interessante observar também que um mundo foi destruído
para que um novo fosse construído, e digo construído, porque a aproximação entre
céu e terra ao início da narrativa sugere proximidade entre natureza e cultura, que
passam a ser distintas após o dilúvio. Penso isso baseada também em um fragmento
de mito coletado por Laraia (1986):
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 101
Mastop-Lima, 2002

M3. “A preguiça fez a água,


Não havia água.
Mahira levantou o céu,
Não havia terra,
Mahira carregou a terra e a fez dura.
O filho de Mahira caiu na terra,
Ia flechar o caitetú.
O caitetú veio rápido e fez
Cair o filho de Mahira.
Mahira zangou-se,
Fez caitetú virar jaboti.
A anta fez dura a terra.” (LARAIA, 1986: 236)

Em M3 a proximidade/separação entre céu e terra também é referida, dessa


vez aparecendo seu autor, Mahira, termo empregado pelos Suruí/Aikewára para se
referir a Maíra, demiurgo dos Tupi (FAUSTO, 2001). Mais uma vez aparece a
oposição terra/água, mas com algumas informações que não são indicadas em M2: a
preguiça é a criadora da água, e a anta a responsável pela dureza da terra.

M3 também refere outra maneira de caçar: usando arco e flecha. O costume


de caçar com arco e flecha ainda é observado atualmente entre os Suruí/Aikewára, no
entanto, é mais observado entre os caçadores mais antigos; os caçadores mais jovens
utilizam mais espingardas para abater suas caças. Pude observar o uso de arco e
flecha entre os mais jovens para matar peixes por ocasião da pesca com timbó.

Todos os aspectos dos mitos mostrados até aqui e os que citarei em outros
mitos, constituem o contexto etnográfico e podem ser entendidos, a partir da
perspectiva da AD, como os múltiplos sentidos do mito, além do que podem também
ser considerados como fazendo parte de uma comunidade discursiva que, além de se
remeter a um grupo específico, remete-se também a “... tudo o que esse grupo
implica no plano da organização material e dos seus modos de vida.” (ORLANDI,
1990: 185)

Os mitos apresentados, se comparados, apontam algumas


repetições/regularidades: separação céu/terra; referência a elementos culturais em
oposição aos naturais; interação dos índios com o meio ambiente; animais como
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 102
Mastop-Lima, 2002

personagens míticos como autores de feitos importantes - o mutum e a garça


construindo casa, preparando almoço; a preguiça fazendo a água; a anta endurecendo
a terra - a transformação de um mundo em outro, de elementos naturais em
elementos culturais, de animais em seres humanos, de animais em outros animais.
As regularidades que aparecem nos mitos são, na perspectiva da AD, constitutivas da
formação discursiva, entendida como um conjunto de enunciados marcados por essas
regularidades (BRANDÃO, 1998). Para Lévi-Strauss (1975), essas
repetições/regularidades têm por função tornar manifesta a estrutura do mito.

As regularidades da separação entre céu e terra e da anta aparecendo como


autora de um evento marcante, estão presentes em outro fragmento de mito coletado
por Laraia entre os Suruí/Aikewára:

M4. “Tatorohoa lançou uma flecha para o céu.


Todos os bichos agarraram na mesma,
buscando atingir as regiões celestes.
Buscavam o céu que Mahira separara da terra.
A anta agarrou a flecha por último
e esta perdeu a força e caiu.
Todos os bichos viraram caça.” (LARAIA, 1986: 236-7)

Entre os mitos coletados no contexto da escola há um que refere a ação do


tatu de jogar uma flecha no céu pela qual os demais bichos subiram, a finalização de
M5 remete também à queda dos bichos, no entanto só entendemos que o resultado da
queda foi a instituição da caça como atividade produtiva tradicional, quando
comparamos M4 e M5:

M5. “Era uma vez a festa lá no céu jacu e jacamin e outro bixarada naquele tempo o
céu era baixinho eles ouviram a festa lá no céu e queriam ir lá no céu. Jacu e
jacamim pegou a flexa e comesou a sesta [ a acertar] a flexa lá no céu. Asestou
[acertou] dois [duas] e jacu pensou no tatu e mandou o jacami[m] ir atras do tatu e o
tatu estava dormindo e a mulhe do tatu contou que já[ca]min estava atras dele e ele
sail para fora da casa e já[ca]min contou que tinha a festa lá no céu e contou que eles
jogaram a flexa e asestaram [acertaram] o tatu foi para lá e ele viu a flexa lá em cima
do céu e o tatu falou ci [se] eu sou craque eu vou asesta [acertar] atras do outro [da
outra flecha] e o tatu esticou a flexa e asestou [acertou] a ponta atras do o[u]tro [da
outra flecha que já estava no céu] e esticou de novo e asestou [acertou] de novo até
qui a flexa vem bem no chão e eles comesaram a bixarada a subir para cima do céu
e quando a bixarada ião xegando lá [n]o céu e a ponta da flexa arrancou e a bixarada
caíram tudo. Esta é a istoria nossa.” (Wiraiaru Suruí, 29/03/2001)
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 103
Mastop-Lima, 2002

M5 apresenta os mitemas:

1. Havia festa no céu, que era baixinho (próximo da terra).


2. Jacu, jacamim e outros bichos foram até lá.
3. Jacu e jacamim jogaram flecha no céu.
4. Jacu mandou jacamim procurar o tatu e avisá-lo da festa no céu.
5. Tatu jogou flecha no céu.
6. A bicharada subiu pela flecha que o tatu acertou.
7. Enquanto a bicharada subia, a ponta da flecha arrancou.
8. Toda a bicharada caiu.

Ao que parece, pela regularidade de mitemas, M5 é uma versão de M4. E ao


se considerar que foram coletados em situações históricas diferentes, por diferentes
coletores, com diferentes informantes, pode-se perceber que sua narração ao longo
dos anos evidencia/indica marcas culturais que permanecem. É a identidade étnica
do grupo Suruí/Aikewára sendo renovada e preservada. M5 também lembra as
primeiras histórias que Awarini narrou, referidas ao início do capítulo.

Em outro mito, os bichos já aparecem como caça, a tocaia é novamente


referida como estratégia de caça, assim como a oposição homem/mulher representa
uma recorrência:

M6. “História do Aikewara A mulher grávida disse para o marido


Tai sag,ne éne y,iwotava ma,esse A, eu quero ver você flechando os bichos
eramum rei kwehe uruwu verarranune ai o marido dela respondeu você não
upurui, ruramum rei kwehe iroi-tesse pode ir comigo porque é proibido a
verekara rupi. Usuca rei kwehe ma,e mulher grávida ir nesse lugar. Aí
ma,e uipe pane mapavamu rei kwehe mulher teimo[u] e foi mas ele. Então
isucai tapi,ira iupe. Tapi,ira ré irusyvi os urubus roubaram a mulher gravida
iruta iupe. Ucairug rei kwehe tapi,ira para o céu. Ai mulher virou o urubu.
ré. Uruwu remira rrakweraré uveve Ai o marido dela teve que fazer tucaia
pane ipy,are ipyhyg. Verekatara rei e ele matou anta para fazer ca[r]niça
kwehe upi-so-pi som pane tupuhir para que a mulher dele retorna-se a
tuvir ká usau pane. volta[r] na terra junto com urubu.
Quando ela desceu do céu o marido já
estava esperando ela dentro da tucaia.
Quando ela desceu junto com urubu o
marido saiu da tucaia e pegou na perna
dela. Ela biliscou o marido para se
solta.” (Tymykong Suruí, 29/03/2001.
Registro original.)
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 104
Mastop-Lima, 2002

De M6 destaco os mitemas:

1. A mulher grávida queria ver o marido flechando os bichos.


2. O marido a proibiu de o acompanhar.
3. A mulher teimou com o marido.
4. Os urubus roubaram a mulher grávida para o céu.
5. O marido fez tocaia e matou anta para atrair os urubus.
6. A mulher desceu do céu.
7. O marido a esperava dentro da tocaia.
8. Quando a mulher desceu junto com o urubu, o marido pegou a perna dela.
9. A mulher beliscou o marido para que ele a soltasse.

Em M6, vê-se que há restrições em relação ao corpo da mulher quando ela


está grávida, há espaços que lhe são vedados quando se encontra nesse estado. Nele
também está prescrita a punição para a mulher grávida que violar a regra socialmente
estabelecida. Para os Suruí/Aikewára, em se tratando de gravidez, outras são as
crenças referentes à caça, como por exemplo o fato de os homens não matarem anta
que tem filhotes pequenos, sob pena de terem conseqüências indesejáveis para seus
próprios filhos.

Às mulheres no período pós-parto é vedado o consumo de animais como a


anta, por ser considerada reimosa. A anta é também tabu durante a menstruação,
assim como animais como por exemplo paca, cutia e caititu. Outra restrição à
mulher menstruada é montar em animais como burro, jumento e cavalo, pois o
animal adoece e a mulher também. Esses são alguns dos aspectos culturais da
sociedade Suruí/Aikewára que a marcam etnicamente, fazendo parte do imaginário
do grupo, que é vivido quotidianamente por seus membros.

M6 apresenta um aspecto a mais em relação aos demais mitos apresentados:


seu registro na língua nativa feito pela própria nativa. Já falei anteriormente que de
acordo com quem narra podem aparecer variações nos mitos. Tymykong, a
narradora do mito, é filha de Awassaí, o pajé da aldeia e também um dos
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 105
Mastop-Lima, 2002

especialistas em narrativas míticas e históricas. Pelo cuidado que ela tem com a
narrativa, parece reforçar a idéia de que filho ou neto de narrador pode ser um futuro
especialista, como falei anteriormente. Tymykong já foi professora na escola da
aldeia, ensinando na língua, e é uma das mais fervorosas defensoras do uso da língua
indígena, pois para ela o emprego da língua caracteriza um grupo como indígena e,
ao contrário, dos grupos indígenas que conhece e que falam apenas o Português não
são considerados por ela, nem pelos demais Suruí/Aikewára como índios. Registrar
o mito em Suruí representa uma forma de afirmação da identidade étnica do grupo.

Em M6 a oposição homem/mulher aparece ainda uma vez, caracterizando


regularidades em comparação aos demais mitos. Falei anteriormente que, assim
como essa, outras são as oposições regularmente presentes nos mitos Suruí como por
exemplo céu/terra; dia/noite; água/fogo. Essas oposições são também encontradas
nas mitologias Asuriní e Parakanã. Reporto-me aos trabalhos de Andrade (1992) e
Fausto (2001) para algumas considerações sobre a mitologia desses grupos que
podem ajudar a refletir sobre a mitologia Suruí/Aikewára.

Andrade (1992) coloca que para os Asuriní tudo o que eles sabem lhes foi
ensinado por Mahira. Foi Mahira quem lhes ensinou o cultivo da mandioca, além de
ter sido o criador dos Asuriní e o responsável por ordenar a terra. Entre os Asuriní,
assim como os Suruí/Aikewára, foi Mahira quem separou o céu da terra. Mas a
mitologia Asuriní refere que foi Mahira quem endureceu a terra com o auxílio da
anta. Tendo em vista a proximidade entre os dois grupos referida pelos
Suruí/Aikewára e pela bibliografia especializada, se compararmos o evento mítico
Asuriní ao relatado pelos Suruí/Aikewára, podemos inferir a possibilidade de o mito
Asuriní acrescentar informações ao mito Suruí.

Um outro ponto referido na mitologia Asuriní é que ao separar o céu e a terra


Mahira resgata a noite, que era “possuída pela coruja” (ANDRADE, 1992: 116). Em
M2 não está explícito que a separação entre céu e terra representa o resgate da noite.
No entanto, a seqüência que sucede a separação do céu e da terra indica que o
homem passou dia e noite esperando que a terra secasse. Mais uma vez o mito
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 106
Mastop-Lima, 2002

Asuriní pode ajudar a tornar manifesta a estrutura latente do mito Suruí.

“Dando mais confiança” à proximidade entre os grupos, as informações de


Andrade sobre o dilúvio são, em muitos pontos, análogas ao mito do dilúvio entre os
Suruí/Aikewára. Segundo ela,

“[p]arece ter havido uma primeira criação do universo e depois um dilúvio, quando a
terra acabou, ficou mole. Deste infortúnio, só sobreviveu um homem, abrigado no
alto de uma árvore de bacabeira. Foi então, que Mahira chamou a anta para que o
animal endurecesse a superfície da terra. Mahira também tirou sua própria costela,
transformando-a em uma mulher, o que permitiu que a população humana
aumentasse.” (1992: 117)

A versão dos Parakanã orientais do dilúvio é, segundo Fausto (2001), um dos


temas que formam uma narrativa composta de outros quatro temas: obtenção do
fogo, origem da mandioca, conquista do trabalho feminino e da farinha, e
diversificação dos grupos indígenas.

M7. “O dia em que furaram a terra


(Ywy’amomokwaera)
Foi durante o ritual do opetymo. As mulheres saíram para pegar lenha. Quando
voltaram, os homens dormiam e elas bateram nas laterais da casa para acordá-los.
- Não querem que sonhemos, eles disseram.
Elas batiam e batiam.
- Vamos furar a terra para elas, disseram.
Um deles, aquele que ficaria sobre o pé de bacaba, saiu para buscar resina [para colar
a plumagem de urubu-rei ou harpia usada no ritual]. Ele soprou muito forte e furou a
terra. A água começou a brotar.
o grande rio alcançou a casa e a inundou. Eles arrancaram a casa do chão e voaram.
Então, tocaram a terra para ver se estava dura. Sem sucesso. Voaram de novo e de
novo desceram. Estava inundado.
- Vamos entrar no céu, disseram.
Tocaram no céu mas não entraram. Então, desceram e a terra já estava endurecida.
E aí ficaram.
Enquanto isso, aquele que fora buscar resina subira no pé de bacaba. Dois subiram.
Vieram pássaros que defecaram sobre a cabeça deles para que tivessem a cabeça
raspada. O que estava mais embaixo desceu para beber. Levou água para o outro
em sua boca. A água esquentava.
- Eu vou beber, a água em sua boca está quente.
Ele desceu, escorregou e caiu. Foi comido pelos peixes-jaguar.
Sozinho no pé de bacaba, o outro viu muita caça passar. Disse:
- Quem vai endurecer a terra para mim?
Mas a capivara foi embora. Chegou o veado:
- Quem vai endurecer a terra para mim?
- Eu vou, respondeu o veado.
O veado sapateou em torno dele. Ele viu quando o veado foi embora. Tinha secado
um pouco. Ele viu a anta-macho lá adiante. Ela não se aproximava. Depois,
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 107
Mastop-Lima, 2002

atravessou a água e veio até ele.


- Quem vai endurecer a terra para mim?
A anta corre, bateu as patas. A água se foi. Então, o juruva disse:
- Eu vou primeiro até a terra.
A piranha cortou o seu rabo, por isso o juruva tem o rabo assim.
Então, a anta disse:
- Vamos, desça até aqui.
- Corra primeiro para eu ver, respondeu o homem.
A anta saiu correndo e voltou:
- Vamos, desça até aqui.
- Corra uma vez mais para eu ver.
Ela correu, voltou e disse:
- Vamos, desça.
Ele desceu até a raiz e com a ponta dos pés tocou a terra.
- Está mole talvez. Corra mais uma vez para eu ver.
Ela correu e voltou.
- Vamos, desça.
Ele desceu e se foi.

Primeiro ele moqueava peixe sem fogo.


- Você tem fogo?, perguntou Máira.
- Eu moqueio peixe ao sol e como.
- Coloque cupim sobre mim, para fazer o urubu descer para você, para que possa
acender o seu futuro fogo, disse-lhe Máira.
Ele colocou cupim sobre Máira, que ficou à imagem de uma presa podre. Escutaram
os urubus:
- Pegue o fogo do urubu-rei, disse-lhe Máira em vão.
Veio um urubupeba. Ele tomou o pau de fogo que levava sob as asas, soprou e fez
brilhar o fogo. Assim, ficou com fogo.” (FAUSTO, 2001: 141-2)

Transcrevo o mito Parakanã para mostrar pontos de proximidade com o mito


Suruí do dilúvio e também para referir o tema da obtenção do fogo. Segundo Fausto
(2001), a água que inunda a terra gera dois movimentos verticais simultâneos: a casa
que se eleva por meio dos poderes dos xamãs-sonhadores e a subida num pé de
bacaba de Wyrapina, antepassado dos índios, e seu companheiro. Tanto no mito
Suruí quanto no Asuriní o movimento vertical gerado pelo dilúvio está presente.
Talvez isso refira o fato de que embora tenha ocorrido a separação entre céu e terra,
dois espaços habitados indistintamente pelos índios antes do dilúvio, a comunicação
entre eles não deixou de existir, mesmo constituindo espaços distintos após o dilúvio.
Um acontecimento que reforça o argumento é a realização de rituais entre os
Suruí/Aikewára que se dirigem ao céu pedindo aos deuses bênçãos sobre as roças e
saúde para os habitantes da aldeia, como mostrarei no próximo capítulo.

Destaco também o tema da obtenção do fogo no mito Parakanã pelo fato de


Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 108
Mastop-Lima, 2002

ter sido obtido junto a um urubu. Numa conversa que tive com Muretama, esposa de
Awassaí, o pajé Suruí, ela referiu que os Suruí/Aikewára conseguiram fogo também
a partir de roubo junto ao urubu. Infelizmente não consegui maiores informações a
respeito do mito que narra o fato, mas penso que talvez o mito da obtenção do fogo
entre eles esteja relacionado a M6, do qual o mito Parakanã parece acrescentar
informações. Mas essa é uma questão que por ora ficará em aberto, já que não
disponho de elementos suficientes para apresentá-la.

O que quero mostrar com a análise de mitos e histórias entre os


Suruí/Aikewára é, em primeiro lugar, que representam traços culturais que
permanecem no grupo, marcando as fronteiras que os distinguem de outros grupos.
As fronteiras, como diz Barth (1998), sofrem transformações, mas não deixam de ser
fronteiras. Portanto, as fronteiras existem porque existem pessoas mais velhas e
experientes especializadas em narrar mitos e histórias para gerações de pessoas mais
jovens que, por sua vez, quando solicitadas, também desempenham o papel de
narradoras, com o que a identidade étnica do grupo é mantida, criada e recriada em
suas marcas. Em segundo lugar, que os mitos e histórias de contato significam o
universo Suruí/Aikewára, com destaque para a interação deles com o meio ambiente
que habitam, que ao mesmo tempo que generaliza enquanto grupos indígenas, os
particulariza como o grupo étnico Suruí/Aikewára. Em terceiro lugar, que a
proximidade existente entre os grupos Suruí/Aikewára, Asuriní do Tocantins e
Parakanã permite a comparação entre suas mitologias, constituindo um elemento a
mais para a análise de mitos e histórias de contato entre os Suruí/Aikewára,
possibilitando verificar como contexto etnográfico é significado por eles, revelando
elementos da identidade étnica do grupo.
“Um
“U jjabuti
b ti apostou
p t com um veado
d a ver
quem corria mais. Marcado o dia, o
jabuti empregou o seguinte meio para
vencer:
Reuniu muitos jabutis e os foi colocar pelo
mato, beirando o campo designado para o
lugar da corrida. Chegado o veado,
somente viu o jabuti, com quem tinha feito a
aposta: - Então, está pronto Jabuti - Pronto,
disse ele, mas você há de correr pelo
caminho e eu por dentro do mato, que é por

kewára
onde sei correr.

ha - pintura corporal Suruí/Aik


O veado aceitou, e colocados, um na beira
do mato e outro no campo, partiram ao
sinal dado. O veado correu a toda força e o
jabuti deixou-se ficar.
O veado no meio da carreira gritou pelo
jjabuti p p
para saber onde estava. A resposta
Folha nova da castanh

foi-lhe dada um pouco adiante por um dos


jabutis colocados de vedeta no mato. O
veado redobrou os esforços e de vez em
quando gritava pelo seu competidor e tinha
a resposta sempre adiante. Afinal o veado
caiu morto de cansaço e o jabuti ficou
vencedor.”
(PIMENTEL apud HARTT, 1952: 15)
5. Marcando fronteiras: rituais e corpo

Reservei para este capítulo uma história de contato narrada por um dos alunos
da escola indígena Moroneikó Suruí a partir da qual descreverei dois rituais
realizados pelos Suruí/Aikewára e farei algumas considerações sobre o corpo entre
eles. Eis a história.

H2. “A história da mi[nh]a a[l]deia começo[u] assi[m]


O Antigamente era Sawapiron ele ti[nh]a muita flecha.
O Antigamente a Kussamaru fazia as panela de barro.
O Antigamente ele[s] fazia[m] o fogo com pau.
O Antigamente o Sari [Sahy] matava as araras porque ele[s] precisa[va]m da penas
para ele fazer araraw e faze atutu para as mulher.
O Anti[ga]mente Awasai matava a onça porque ele precisava do couro para ele fazer
a reza dos mortos.
O Anti[ga]mente ele pegava arum[ã] para faze peneira.
O Anti[ga]mente o Sawarapi pegava a folha de buriti para ele fazer esteira para ele
cobrir a casa [e para] ele fazer enfeite e ele fazer roupa de danças para dançar
SAPURAHY [Sapurahái].
O A[n]ti[ga]mente desapareceu água e o final da vida.
O capitão era Sawarapi ele ma[n]dava os povo para dasa [dançar] Sapurahy.
O Sawarapi era capitão da a[l]deia Sororó
O Sari a[n]dava de armado de flecha porque ti[nh]a muito inimigo ele flechava
camara
Fim da coversa.” (Arukapé Suruí, 29/03/01.)

A história remete ao tempo antigo entre os Suruí, que traz, entre outros temas,
o da alteridade: quando os “outros” são os kamará e quando os “outros” são os
próprios Suruí/Aikewára, em outro tempo e outro espaço que, em contraste com os
atuais Suruí, indicam elementos da identidade étnica do grupo. (NOVAES, 1993) O
kamará representa um inimigo e uma ameaça para a sociedade Suruí/Aikewára, e
precisava ser morto a flechadas por Sahy. Os Suruí/Aikewára do passado aparecem
nas figuras de Sawapiron, Kusamaru, Sahy e Sawarapi, personagens da história,
detentores de saberes que caracterizam etnicamente o grupo, realizando modos
específicos de fabricar os objetos de sua cultura material, em relação à técnica e à
matéria-prima utilizadas, por exemplo, retirada do meio ambiente.

A história de contato revela elementos da cultura material dos


Marcando fronteiras: rituais e corpo 110
Mastop-Lima, 2002

Suruí/Aikewára feitos pelos antepassados, transmitidos tradicionalmente às gerações


subseqüentes, que adornam ainda hoje os corpos dos Suruí/Aikewára.

Para citar um exemplo da tradição que vem sendo mantida pelo grupo, o
fabrico de araráw (Desenho 3) e atutú1 (Desenho 4) está ainda presente na sociedade
Suruí/Aikewára, sendo usados em ocasiões especiais, nos rituais Sapurahái e na
Festa dos Karuára, descritos a seguir, ritos em que eles, devidamente pintados e
adornados, cantam e dançam ao som das músicas entoadas pelo pajé e pelos mais
velhos do grupo.

Antigamente era Sahy quem fabricava os adornos de cabeça masculinos e


femininos. Atualmente, entre os Suruí/Aikewára, o especialista na produção dos
adornos é Sawara’a (Ver foto 24). O arumã usado para fazer peneira apresenta
também outro uso atualmente entre os Suruí/Aikewára: tem sua folha usada, como
referi anteriormente, para abanar crianças ou qualquer pessoa que tenha problema de
insônia. Para eles, o problema de insônia acaba se alguém que não tenha insônia
levar a um pé de arumã, às seis horas da manhã, a pessoa ou a criança que sofre do
mal e a abanar com a folha.

“Fazer fogo com pau” é um costume que já não é visto com tanta freqüência
entre eles, uma vez que se utilizam de fósforos e isqueiros. Mas alguns dos índios
mais velhos, como por exemplo Mihó, ainda mantêm em suas casas “paus para
fogo,” pois fazem demonstrações de como utilizá-los. Os Suruí/Aikewára
apresentam esse antigo costume para algum kamará que esteja na aldeia e também
para os demais Suruí, especialmente para os mais novos, como parte de sua educação
e socialização no grupo, para aprenderem como se vivia no tempo antigo. As
demonstrações também são raras para os “de fora” porque requerem tempo,
paciência e persistência, o que não pode ser feito em uma apresentação rápida.

Além dos aspectos relacionados à cultura material que revelam a interação


dos Suruí/Aikewára com o meio ambiente, essa interação também pode ser

1
Araráw é um enfeite radial de cabeça, semelhante a um cocar, feito de penas de arara, tucano ou
mutum, palha de coco babaçu e fio de algodão para o uso masculino; atutú é também um enfeite de
cabeça, feito de penas de arara ou tucano e fio de algodão, que se diferencia do araráw pelo uso, que é
feminino, e pelo formato, pois as penas ficam dispostas num tufo sobre a cabeça.
Socorro Lacerda

Desenho 3. Araráw
Socorro Lacerda
Desenho 4. Atutú
Luiza Mastop-Lima
Foto 24. Sawara´a fabricando araráw
Marcando fronteiras: rituais e corpo 111
Mastop-Lima, 2002

observada quanto aos nomes próprios: Sahy, é a palavra nativa para designar “lua,”
Awasaí é uma espécie de açaí. Além desses, outros são os exemplos de nomes
próprios que significam elementos do meio ambiente, apresentados no Quadro 1:

Quadro 1. Nomes próprios Suruí e seus significados


Nome próprio Significado
Amonisuating Algodão
Ikatu Macaxeira
Inamorów Ave, espécie de jaó
Inamuí Ave, espécie de jaó
Ipuré Lago, lagoa
Muiwá Fruta
Muretama Cera de abelha
Pinuwá Espécie de açaí
Sawara’a Onça grande
Sy’a Árvore usada na
fabricação do cabo do
machado
Ywynuhu Mandioca

Outro aspecto referido na história é a fabricação de panela (tasa’e) de barro,


que já não é mais fabricada entre eles porque o barro “bom para panela” ficou fora
dos limites da área, quando foram demarcadas suas terras. A história também mostra
a realização de um ritual xamanístico para os mortos realizado por Awasaí. Awasaí
ainda é o pajé da aldeia, mas não ouvi qualquer referência em relação a um ritual
para os mortos. No entanto, em outra breve história, um aluno narra:

H3. “Quando o parente deles mor[r]ia de catapora ele inter[r]ava masado [machado]
e insada [enxada] o facão no burac[o] onde o parente dele esta morto de catar[r]o ou
de catapora. Aldeia deles de ve[r]dade era em Saravozío [?]. Ele[s] vivia[m]
correndo de doença vivia[m] cor[r]endo de bra[n]co ele tiamedo [tinha medo] de
bra[n]co porque eles tiamedo de mor[r]e[r] e bra[n]co queria matar os indios um dia
um indio frechou um homem os parente deles viero[am] querendo ataca[r] os indio.”
(Junio Suruí, 29/03/2001)

O fato de serem enterradas com os índios ferramentas de trabalho pode referir


algum antigo ritual por ocasião da morte, que sofreu atualização com o contato, mas
que agora não é mais observado entre os Suruí/Aikewára.

Ainda uma vez o “branco” aparece como uma ameaça aos índios. A história
Marcando fronteiras: rituais e corpo 112
Mastop-Lima, 2002

também lembra a relação conflituosa dos Suruí/Aikewára com os regionais aos


primeiros anos de contato, registrada por Laraia & DaMatta (1967). Laraia, que
realizou pesquisa entre os Suruí no início da década de 60, registra que por volta dos
anos 20, segundo informações de regionais, “... os Suruí apareciam nas vizinhanças
de uma fazenda, denominada Altos Montes, nas proximidades de Santa Isabel. Em
certa ocasião mataram alguns animais domésticos desta fazenda, sendo por isso
atacados pelos brancos...” (1967: 29).

Voltando aos elementos da cultura material do grupo indicados na história,


não observei entre os Suruí/Aikewára o uso de roupas tradicionais para a dança, no
entanto observei a preocupação de padronizar a cor e o estilo dos calções usados por
homens e mulheres nos ritos, especialmente na Festa dos Karuára, como descrevo a
seguir.

Os rituais

Quando estive entre os Suruí/Aikewára pude observar que eles realizam dois
tipos de rituais: um que recebe a denominação genérica de Sapurahái, apresentando
variações, e outro denominado Festa dos Karuára.

O Sapurahái é um rito em que Awasaí, o pajé, canta músicas para atrair


coisas boas para a aldeia. De acordo com as músicas cantadas, representa também
uma forma de comunicação com os espíritos. Tanto no Sapurahái quanto na Festa
dos Karuára o pajé exerce a liderança, pois é ele o especialista nos saberes
relacionados às músicas e à comunicação com os espíritos, é ele também o
responsável pela ordem no ritual, ele é quem mobiliza os Suruí/Aikewára para a
dança.

Um Sapurahái pode ser organizado por vários motivos: a pedido de algum


dos Suruí/Aikewára que esteja alegre e queira compartilhar com os demais sua
alegria; quando faz um luar bonito; quando os caçadores chegam da mata com muita
Marcando fronteiras: rituais e corpo 113
Mastop-Lima, 2002

caça, segundo o que me informou Muretama, esposa de Awassaí; quando alguém


visita a aldeia;2 quando os Suruí/Aikewára querem comemorar algum evento
marcante para eles como por exemplo a chegada de peixes para o açude e a retirada
deles do açude para controle do projeto de piscicultura, entre outros. Dependendo do
motivo, o ritual apresenta variações. Se o motivo for para comemorar a alegria de
alguém, ou mesmo a chegada de caça na aldeia, o ritual não requer tantos
preparativos como por exemplo a pintura corporal, pois me pareceu algo mais
íntimo, se assim posso dizer. Mas se os motivos forem quaisquer dos demais citados,
a pintura corporal e os ornamentos são indispensáveis.

O primeiro Sapurahái que presenciei foi à época em que fiz minha primeira
viagem à aldeia Sororó, em julho de 2000. Era véspera de eu sair da área e já estava
frustrada por ainda não ter observado o ritual que eles me relatavam. Ao final da
tarde e início da noite Awasaí saiu pela aldeia, acompanhado de Muretama, sua
esposa, com um araráw à cabeça e arco e flechas em uma das mãos, chamando os
demais para a realização do ritual. Os primeiros a se arrumar para o ritual foram os
mais velhos, também com araráw, arcos e flechas. Depois foram chegando os
homens mais jovens, os meninos, as mulheres e as meninas. A impressão que tive
foi que eles não queriam deixar de expressar seus costumes a alguém “de fora” como
eu e que visitava a área pela primeira vez.

Para a realização do ritual Awasaí, pintado com o motivo da casca do cajá,


fica no centro de dois círculos: um formado por homens e meninos; e outro, ao redor
do primeiro, formado por mulheres e meninas (Ver fotos 25 e 26). Awasaí começa a
entoar as músicas e logo em seguida é acompanhado pelos homens mais velhos.
Nem todos os jovens sabem cantar as músicas, alguns acompanham. As mulheres,
em geral, não cantam, mas conhecem as músicas.

À medida que as pessoas vão movimentando os círculos, eles tomam forma


de espirais, tendo à frente sempre os homens e as mulheres mais experientes do
grupo. O ritmo das músicas é também marcado pela batida dos pés masculinos no
chão. As mulheres costumam andar umas atrás das outras, não havendo,

2
Em 1996, quando Roque Laraia voltou à Área Indígena Sororó, foi homenageado com danças. Ver
Laraia & Santilli (1997).
Luiza Mastop-Lima
Foto 25. Sapurahái 1

Luiza Mastop-Lima

Foto 26. Sapurahái 2


Marcando fronteiras: rituais e corpo 114
Mastop-Lima, 2002

aparentemente, um passo específico que marque sua participação no ritual. Algumas


mulheres e meninas usam atutú. As músicas são curtas e repetitivas e algumas
apresentam lindas melodias, que chegam a emocionar a platéia. Dependendo da
música cantada, há um momento do ritual em que são jogadas flechas contra as
paredes das casas, em geral as casas próximas de onde se está dançando.

O Sapurahái é realizado na praça da aldeia, em frente à casa do cacique. Pelo


que os Suruí/Aikewára me contaram, para cada tipo de caça há uma dança. Há dança
só para homens e dança só para as mulheres; segundo eles, a dança do urubu é
realizada apenas pelas mulheres. Há um tipo de Sapurahái destinado aos casais em
que o movimento feito com as músicas não é circular, mas para frente e para trás. Os
casais se postam um ao lado do outro e quando a música inicia, todos de mãos dadas,
movimentam-se para frente e para trás até determinado ponto, quando têm de dar
meia volta e recomeçar o movimento. Os homens batem os pés e as mulheres os
acompanham com passos curtos, ao ritmo das músicas.

Diferente do Sapurahái, a Festa dos Karuára acontece em uma época


específica do ano, entre os meses de agosto e setembro, meses próximos ao fim da
estação seca e ao início do período de chuvas. Os Karuára são os espíritos dos pajés
que já morreram e que voltam à aldeia à época da festa para renovar os ensinamentos
da cultura Suruí. A festa está relacionada ao calendário agrícola do grupo, sendo
realizada por ocasião da queimada das roças. A atuação dos Karuára está
relacionada a todos os aspectos da cultura Suruí, e o destaque maior dado pelo grupo
é em relação à agricultura.

Os Karuára vivem na floresta e “são como gente,” possuem modo de vida


semelhante ao dos Suruí/Aikewára, como por exemplo caçando e se alimentando da
caça ou dos espíritos dos animais, como crêem os Suruí/Aikewára. Um dos homens
relatou à professora da aldeia que os Karuára possuem um lado bom e outro ruim: o
bom é que protegem os caçadores na mata, e o ruim é que se alguém fizer algo que
não os agrada, eles matam.

À época da realização da festa, a concentração dos Suruí/Aikewára se dá no


Marcando fronteiras: rituais e corpo 115
Mastop-Lima, 2002

espaço da aldeia. É proibida a permanência na mata/floresta no período da festa, por


isso eles têm de prover a aldeia de alimentos antes da festa, para que possam realizar
o ritual sem ter que se preocupar em caçar ou pescar. Com o contato, os alimentos
da mata ficaram mais escassos, conforme informa Beltrão (1998b), se antes os
Suruí/Aikewára recorriam à floresta para prover a aldeia de alimentos durante a
realização da festa, hoje eles recorrem à compra de alimentos nas cidades próximas à
aldeia. A caça a essa época, no entanto, ainda é realizada, organizada especialmente
pelos mais velhos, mas em proporções menores que antigamente.

A crença dos Suruí/Aikewára nos Karuára é muito forte e vivida


quotidianamente. À época da festa os preparativos estavam sendo providenciados
quando um acontecimento na aldeia exigiu que os Suruí/Aikewára se apressassem
em realizar o ritual. Ocorreu que uma representante do CIMI se encontrava na aldeia
dias antes da festa e se hospedou na casa onde moram a irmã que trabalha na aldeia e
a professora. No local onde foi construída a casa em que elas moram havia uma casa
habitada no passado por um pajé, que agora é Karuára. Segundo os Suruí/Aikewára,
não é permitido morar onde algum pajé já morou, pois isso não os agrada. O fato é
que às vésperas da festa, a representante do CIMI acordou impressionada com o que
lhe havia sucedido: ela sentiu que um homem de estatura baixa e pele escura a tinha
abraçado quando ela estava em sua rede. Ao ouvir o relato, os Suruí/Aikewára logo
acorreram: é Karuára. E contaram, então, que quem morava naquele local era o
antigo pajé Kuimuá. Morar no local é vedado a qualquer pessoa, seja Suruí ou não.

Os Suruí/Aikewára interpretaram o fato como um sinal de que os Karuára já


queriam a realização da festa, pois já se encontravam pela aldeia. Intensificaram-se,
então, os preparativos.

Meses antes da realização da festa Sawara’a prepara os artefatos que


ornamentam os corpos dos participantes do ritual, homens, mulheres e crianças.
Awarini e Mihó, entre outros mais velhos, prepararam os compridos cigarros
fumados durante a festa. Quando visitei algumas famílias dias antes da festa, vi os
araráw e atutú pendurados ao longo dos esteios das casas, à espera de uso. Assim
Marcando fronteiras: rituais e corpo 116
Mastop-Lima, 2002

como os araráw e atutú estavam também os maracás.

Para a realização da festa é preciso que se construa uma casa ritual, chamada
Tokása,3 onde os Karuára permanecem durante a festa. Um dos homens, Masara,
mobilizou os demais para a construção da casa ritual. Masara foi ao mato cortar
pedaços de madeira finos para a armação da casa. A madeira utilizada na armação
da lateral da casa é mais fina que as demais para poder vergar e originar apoio para
as palhas que formam o teto da casa (Fotos 27, 28 e 29).

Após construir a armação os homens a envolvem com palha de babaçu ainda


verde, de forma a deixar apenas uma entrada para a Tokása (Fotos 30 e 31) que é
construída na praça da aldeia, em frente à casa do cacique, local onde costumam
realizar os Sapurahái.

Enquanto a casa ritual é construída na aldeia, os Suruí/Aikewára foram


coletar jenipapo e urucu para o preparo das tintas e as mulheres deram início à sessão
de pintura corporal. Os Suruí/Aikewára primeiro foram pintados com jenipapo, base
para os motivos que compõem a pintura corporal, e a tinta vermelha de urucu era
aplicada, como complemento à pintura de jenipapo, a cada vez que o ritual iniciava.
Alguns dos homens se encarregam da queimada da roça da comunidade. Os Suruí
comemoram quando vêem a fumaça da queimada subindo, pois sabem que os
Karuára estão vendo que os acontecimentos que envolvem a festa estão sendo
praticados, conforme seus ensinamentos.

O ideal para os Suruí/Aikewára é que a festa comece assim que esteja


construída a Tokása, que deve ser preparada em um só dia. Mas isso não aconteceu
dessa vez, segundo eles porque poucos homens ajudaram Masara na construção da
casa. A construção da casa durou cerca de um dia e meio, medindo cerca de três
metros de largura, quatro de comprimento e três de altura e, assim que foi finalizada,
os Suruí/Aikewára, já devidamente pintados, deram início ao ritual. Mais adiante
tratarei do lugar da pintura corporal na concepção de corpo entre os Suruí/Aikewára.

3
Denominação referida por Laraia (1986), que observou o ritual entre os Suruí e os Asuriní do
Tocantins (Akuáwa-Asurini). Segundo Laraia, a Tokása é “... a representação da Itakuara, sendo
durante a cerimônia ocupada pelos karoara.” (1986: 249) Andrade (1992) observou ritual semelhante
entre os Asuriní do Tocantins, em que também é construída a Tokása.
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Foto 27. Armando a Tokása 1 Foto 28. Armando a Tokása 2

Luiza Mastop-Lima

Foto 29. Armação da Tokása 3


Luiza Mastop-Lima

Foto 30. Cobrindo a Tokása


Luiza Mastop-Lima

Foto 31. Vista lateral da Tokása


Marcando fronteiras: rituais e corpo 117
Mastop-Lima, 2002

Os homens foram chegando aos poucos, estavam pintados de jenipapo e


urucu, traziam seus araráw à cabeça e, nas mãos, os arcos e flechas usados para o
Sapurahái deram lugar aos maracás. Todos usam calções vermelhos, como forma de
caracterizar a vestimenta ritual.4 A duração da festa é baseada na pintura corporal
feita com jenipapo, a festa dura enquanto a pintura permanece “vestindo” os corpos.

Antes de iniciar o ritual, os homens se reúnem à frente da casa de Mairá, o


cacique, à espera dos demais, aproveitando para acenderem seus compridos cigarros
(Foto 32). As mulheres vão chegando também aos poucos, acompanhando seus
maridos; as crianças acompanham seus pais.

Ao sinal do pajé Awasaí, os homens e alguns dos meninos entram na casa


ritual (Foto 33). Apenas os homens e os meninos podem entrar na casa ritual, ela é
um espaço vedado às mulheres. A entrada respeita uma ordem em que primeiro
entra Awasaí, em seguida Arikasá, o aprendiz de pajé, os demais homens, os
meninos e, por último Sawara’a. Awasaí, Arikasá e Sawara’a desempenham papéis
específicos no ritual: Awasaí é o cantor, Arikasá é o Kururu (sapo), símbolo dos
Karuára e Sawara’a a pessoa que, segundo me disseram os Suruí/Aikewára, é
responsável por segurar a corrente formada pelos círculos da dança. Não consegui,
no entanto, registrar um termo específico que designe o papel de Sawara’a no ritual.
Talvez pelo fato de ser um dos experientes conhecedores dos ensinamentos
transmitidos pelos Karuára, portanto detentor da tradição, ele seja considerado elo
entre os círculos.

Os três também se destacam, além da função no ritual, pelo adorno que usam
na cabeça. Awasaí e Arikasá usam uma faixa emplumada na fronte,5 a de Awasaí
feita com penas vermelhas e a de Arikasá, mais espessa que a de Awasaí, feita com

4
Termo empregado por Regina Polo Müller, ao descrever os rituais realizados pelos Asuriní do
Xingu. Segundo ela, a vestimenta ritual é formada pela pintura corporal e os adereços utilizados para
o ritual, é “... quando o corpo, em ocasiões especiais, é suporte de manifestação simbólica, expressão
plástica do conteúdo ritual.” (1990: 125)
5
No Dicionário do Artesanato Indígena Berta Ribeiro assim define o artefato: “tira ou faixa
emplumada, que se usa na fronte, amarrada ao occipício.” (1988: 121)
Luiza Mastop-Lima
Foto 32. Homens Suruí à espera de iniciar o ritual
Luiza Mastop-Lima
Foto 33. Entrando na Tokása
Marcando fronteiras: rituais e corpo 118
Mastop-Lima, 2002

penas pretas (Foto 34 e Desenho 5).6 Sawara’a usa um araráw em que apenas
algumas penas caudais de arara dispostas na parte anterior do adorno, constituem sua
decoração.

Após entrarem na Tokása, os homens permanecem lá alguns minutos, como


que se concentrando e os que ainda não acenderam seus cigarros aproveitam para
fazê-lo no interior da casa, pois uma pequena fogueira é mantida lá para esse fim.
Passados os minutos de concentração, homens e meninos saem da casa, respeitando a
mesma ordem de entrada.

Awasaí toma lugar no espaço da praça da aldeia que fica entre a casa de
Mairá e a Tokása. A partir dele, homens e meninos vão formando círculos. Arikasá
fica em frente a Awasaí, tendo de encará-lo durante o ritual, pois esse é seu papel. O
primeiro círculo formado a partir deles é o dos meninos mais novos, entre cinco e
sete anos aproximadamente. O segundo círculo é formado pelos homens mais velhos
e alguns meninos com idade superior a sete anos. Os homens mais jovens casados
ou solteiros e os meninos com cerca de 13 e 15 anos formam o terceiro e o quarto
círculos. O motivo de os homens mais jovens e os rapazes formarem os círculos
mais afastados de Awasaí e Arikasá é que esses círculos precisam se movimentar
mais rápido que os demais, respeitando o ritmo da música, a fim de não deixar que a
corrente se quebre, como forma de sustentar a tradição.

Enquanto os círculos se formam, Sawara’a fica à entrada da casa ritual,


movimentando o maracá, esperando que também as mulheres e as meninas tomem
lugar à praça. As mulheres e meninas concentram-se em frente à casa de Mairá e
formam o círculo mais externo, em volta dos demais círculos. Elas também se

6
O atutú e a faixa emplumada frontal aqui reproduzidos foram oferecidos pelos Suruí à antropóloga
Jane Felipe Beltrão quando realizava o Laudo Antropológico - Área Indígena Sororó a propósito da
BR-153. Pelo que observei quando estive em campo, e pelo que me relatou Jane Beltrão, os artefatos
não são dados a qualquer pessoa em qualquer ocasião, pelo contrário, representam uma forma de
apresentação do grupo e indicam aceitação ou celebração de um acordo, pois ao oferecerem os
artefatos, os Suruí os colocaram à cabeça da antropóloga, ensinando-lhe seu uso. A faixa emplumada
frontal recebe destaque entre os demais adornos, pois é usada pelo pajé e por seu aprendiz, pessoas
essenciais para a organização social Suruí. A faixa foi entregue à antropóloga, segundo Beltrão, por
Muretama, esposa de Awasaí, pajé da aldeia, e já havia sido usada, portanto “ungida” pelo ritual, fato
que revela a sabedoria do grupo ao realizar “passos diplomáticos” na negociação com os kamará, e de
saírem de uma situação de conflito, de certa forma vitoriosos, como acontece com o jabuti da epígrafe,
que vence o concorrente usando de astúcia.
Luiza Mastop-Lima
Foto 34. Awasaí (direita) e Arikasá (esquerda) com seus adornos
Socorro Lacerda
Desenho 5. Faixa emplumada frontal
Marcando fronteiras: rituais e corpo 119
Mastop-Lima, 2002

apresentam pintadas de jenipapo e urucu e ornamentadas com seus atutú (Foto 35).
Algumas delas carregam os filhos ao colo ou mesmo em tipóias, as tradicionais
tupása e as improvisadas com pedaços de redes de kamará amarrados à guisa de
tipóias.

Inicialmente todos permanecem voltados a Awasaí e Arikasá. Quando


Awasaí começa a cantar, os círculos dos homens e meninos começam a se
movimentar: primeiro um ao lado do outro em cada círculo, para ir sentindo o ritmo
da música; depois os círculos vão se afastando uns passos de Awasaí, abrindo-se
como se fossem flores que desabrocham, para em seguida uns atrás dos outros
colocarem-se a dançar. Os círculos se movimentam em sentido horário e anti-
horário. Se o primeiro círculo iniciar a dançar em sentido horário, o segundo deve
fazê-lo em sentido anti-horário e assim por diante. Mulheres e meninas dançam em
sentido anti-horário e se colocam em movimento depois que os homens iniciam a
dança, uns atrás dos outros (Ver Ilustração 2 e Fotos 36 e 37). De acordo com o
ritmo da música, marcado também pelo impacto dos pés no chão e pelos maracás, a
formação inicial se repete apenas para os homens. Sem parar de dançar, eles se
voltam novamente para Awasaí e Arikasá e repetem o movimento da roda se fechar e
abrir, retomando em seguida a posição anterior.

Awasaí e Arikasá também dançam na posição em que se encontram, mas de


um lado para o outro, em passos curtos. Quando eles e os demais começam a dançar,
Sawara’a se põe a correr em volta deles, balançando o maracá que leva à mão e
entoando um grito empostado, se assim posso dizer, que me disseram ser para avisar
aos Karuára que a festa estava sendo realizada. Sawara’a tanto corre em sentido
horário como em sentido anti-horário, parando, por vezes, à entrada da casa ritual ou
em frente à casa do cacique, realizando os passos necessários à manutenção da
tradição.

Entre o último círculo formado pelos homens e o círculo das mulheres fica
Awarini, que dança no mesmo sentido que as mulheres e fica fumando um cigarro
comprido, soltando a fumaça sobre elas. Para os Suruí/Aikewára, a fumaça
Luiza Mastop-Lima
Foto 35. Meninas ornadas com atutú
Luiza Mastop-Lima

Ilustração 2. Esquema da dança


Jane Felipe Beltrão
Foto 36. Festa dos Karuára 1

Jane Felipe Beltrão

Foto 37. Festa dos Karuára 2


Marcando fronteiras: rituais e corpo 120
Mastop-Lima, 2002

representa uma proteção às doenças e aos espíritos maus. Mas talvez Awarini só
defume as mulheres porque elas não fumam durante o ritual.7

À medida que vão dançando, começa a levantar poeira no local e algum Suruí
que não esteja participando da dança fica encarregado de borrifar água no local, com
o cuidado de não borrifar muita água para que não se forme lama (Foto 38). Entre o
repertório das músicas duas em especial merecem destaque: uma que chama os
Karuára para a aldeia e outra que os avisa do final da dança, dizendo que podem ir
embora. Segundo os Suruí/Aikewára, quando o vento sopra ao início da dança é
sinal de que os Karuára chegaram, e quando sopra ao final é sinal que estão indo
embora.8

A dança dura cerca de uma hora e meia, após aproximadamente dez voltas
completas em torno de Awasaí e Arikasá; e quando se aproxima o final da dança, os
participantes aceleram o passo (Foto 39), para em seguida parar. Os que ficam
assistindo aos demais dançarem levam vez por outra água para eles, ou então os que
dançam saem momentaneamente do círculo para beber água, retornando em seguida.
Quando são as mulheres a sair do círculo, antes de retornarem às suas posições,
levam água para seus maridos ou filhos.9

As mulheres param primeiro de dançar, ao sinal de Muretama, que


acompanha atentamente as músicas entoadas por Awasaí, sabendo o tempo de se
movimentar e o tempo de parar. É ela quem comanda o círculo das mulheres e
meninas porque, em sendo esposa do pajé, é conhecedora dos procedimentos rituais.
Os homens param depois, voltados para Awasaí e Arikasá. A partir daí, Awasaí
ordena mais uma vez a entrada de homens e meninos na casa ritual. Ao final de cada

7
A prática da defumação com finalidade de cura é também verificada em rituais de pajelança cabocla.
Além de realizada com cigarros de tauari, semelhantes aos utilizados pelos Suruí, a defumação na
pajelança cabocla também é feita com fogareiro. Sobre o assunto, consultar Maués (1995).
8
É interessante notar que a época em que se realiza o ritual é considerada “ventosa,” em que os ventos
varrem a aldeia, levantando poeira, quando os Suruí dizem que um “ventinho,” uma brisa, traz e leva
os Karuára, parecem indicar que os ventos estão sendo “controlados” pelo ritual, afirmando o
domínio da cultura sobre a natureza.
9
A solidariedade dos que assistem ao ritual para com aqueles que o praticam é uma forma de apoio e
incentivo à realização e manutenção da tradição. Essa característica pode ser observada também em
outros contextos como por exemplo nas maratonas, quando as pessoas que assistem ao desenrolar das
provas distribuem água aos participantes, ou mesmo no Círio de Nazaré, quando as pessoas que
acompanham a procissão à corda recebem água dos demais romeiros. Para informações mais
detalhadas sobre o Círio de Nazaré, consultar Alves (1980).
Jane Felipe Beltrão
Foto 38. Evitando poeira
Luiza Mastop-Lima
Foto 39. Acelerando o passo
Marcando fronteiras: rituais e corpo 121
Mastop-Lima, 2002

vez que se dança e se retorna à casa ritual, o tempo de permanência dentro dela é
maior. Todos os que ficam na Tokása sentados ao chão ou em troncos da armação da
casa, conversando. Awasaí, Arikasá e Sawara’a permanecem em pé, como “esteios”
rituais. Awasaí recomeça a cantar, dessa vez chamando pelo nome de todos os que
se encontram na casa, por isso o maior tempo de permanência dentro dela, em
comparação ao início da dança (Fotos 40, 41 e 42).10 Penso que o canto com os
nomes dos participantes que se encontram na casa seja a apresentação dos mesmos
aos Karuára, já que dividem o espaço com eles.

Enquanto homens e meninos permanecem no interior da casa ritual, mulheres


e meninas ficam no interior da casa de Mairá, apenas Muretama permanece do lado
de fora, esperando a saída deles. Quando estão dentro das casas, pode-se verificar o
círculo marcado no chão pelos pés dos participantes e, ao centro dele, os restos dos
cigarros fumados durante o ritual (Fotos 43 e 44).

Antes de sair da Tokása, homens e meninos deixam seus ornamentos


pendurados às paredes da casa, para retomá-los no dia seguinte, com a seqüência do
ritual (Fotos 45 e 46). A saída respeita a mesma ordem da entrada todas as vezes.
Após a saída dos homens e dos meninos, Muretama avisa mulheres e meninas que
também saem do interior da casa do cacique e deixam lá seus atutú, para pegá- los no
dia seguinte, uma vez que a festa começou à tarde.

As pessoas que não participam do ritual ficam acompanhando seu desenrolar


até o final, quando os homens saem da casa (Foto 47). Entre os Suruí/Aikewára que
não participam estão os evangélicos e aqueles que apresentam algum problema de
saúde, ou mesmo os que não quiseram mesmo participar.11 Após a saída da Tokása
todos se dirigem à casa do sogro do cacique para um lanche. Os participantes têm
prioridade para serem servidos, depois são os demais.

10
Alguns dos homens e meninos Suruí pediram que eu fizesse foto deles dentro da Tokása. Entendi o
pedido como algo relevante para a apresentação do grupo, pois o registro visual do ritual é uma forma
de mostrar quem são, o que fazem e como fazem. É um modo de reforçar o ensino da tradição aos
mais jovens do grupo e de marcar a diferença entre eles, os demais grupos indígenas e os kamará.
11
Os Suruí que se dizem evangélicos não dançam mais no ritual porque aprenderam na rua que é algo
que atenta contra os ensinamentos de Deus, é algo proibido. É interessante notar que, embora não
dancem com os demais, estão envolvidos na rede de apoio formada para a realização do ritual, seja
preparando refeições para todos na aldeia, seja molhando a terra e os pés dos participantes, a fim de
evitar poeira.
Luiza Mastop-Lima

Luiza Mastop-Lima
Foto 40. Homens e meninos na Tokása 1
Foto 41. Homens e meninos na Tokása 2

Luiza Mastop-Lima

Foto 42. Homens e meninos na Tokása 3


Luiza Mastop-Lima
Foto 43. Muretama e demais mulheres/meninas aguardando a saída dos homenes/meninos da
Tokása

Luiza Mastop-Lima

Foto 44. Enquanto Muretama espera, pode-se ver a marca da dança no chão
Luiza Mastop-Lima

Luiza Mastop-Lima
Foto 45. Adorno pendurado à entrada da Tokása Foto 46. Adornos pendurados às paredes da Tokása
Luiza Mastop-Lima
Foto 47. Saindo da Tokása
Marcando fronteiras: rituais e corpo 122
Mastop-Lima, 2002

À noite os Suruí/Aikewára se reúnem na praça da aldeia para comentar sobre


a festa, pois não basta apenas realizar o ritual, comentá-lo faz parte do aprendizado
do ser Aikewára. Talvez essa seja a forma de reencontrar o tempo antigo, em que
todos moravam à mesma casa e podiam aprender sobre mitos e músicas durante as
conversas à noite.

Na primeira noite de conversa na praça da aldeia, Mairá mandou chamar a


mim e à professora da aldeia e pediu que ajudássemos a comprar calções para as
mulheres também, que não os usavam para dançar e por passarem muito tempo
dançando achavam melhor usar calções a vestidos, que podiam subir ao vento que
sopra durante o ritual. A partir do segundo dia de festa as mulheres, mas não todas,
passaram a ter um elemento a mais à vestimenta ritual: calções azuis.

O ritual recomeçava toda manhã por volta das seis horas, e os passos
descritos anteriormente eram repetidos a cada vez que se reuniam para dançar. Após
o término da dança pela manhã era servido café aos participantes, acompanhado de
pão ou bolachas. À hora do almoço, todos dirigiam-se à casa do sogro de Mairá
onde eram preparadas as refeições para todos, sem exceção, já que ninguém podia ir
à mata caçar ou pescar. À tarde, quando a dança termina também é servido lanche e
depois o jantar.

É essa a organização que segue durante os dias de realização da festa. Mairá


também convida as pessoas “de fora” que estão desenvolvendo algum trabalho junto
a eles ou que já o fizeram. Convida também os Gavião para tomar parte da festa.
Durante a realização da festa houve na aldeia um significativo trânsito das pessoas
que trabalham com eles: o administrador regional da FUNAI, Eimar Araújo, alguns
funcionários da APITO, os responsáveis pelo projeto de piscicultura, a antropóloga
Jane Beltrão, padre Nelo e irmã Rebeca. Os Suruí/Aikewára ficaram muito contentes
em recebê-los e mostrar um pouco da sua tradição. Todos eram aguardados, após
nove dias de festa, para o final do ritual, mas uma falha na comunicação provocou
um desencontro e os convidados não puderam testemunhar a beleza do desfecho da
festa.
Marcando fronteiras: rituais e corpo 123
Mastop-Lima, 2002

Ao final dos nove dias seguidos de festa, os homens saíram da casa ritual com
seus adornos em mãos, produzindo um som agudo que marca o final do ritual, em
tom de alívio e satisfação pelo dever cumprido. Foi muito bonito ver a garra dos
mais velhos que em nenhum momento abandonaram seus lugares no ritual. É bem
verdade e compreensível que as pessoas mais velhas já apresentavam sinais de
cansaço: Awasaí já não cantava tão alto, o mesmo acontecendo com Sawara’a, que já
não corria como ao início, ora corria ora andava e seu grito já não ecoava. Mas
também é verdade que eles demonstraram muita força participando até o final do
ritual, sendo mais um motivo para conquistarem a admiração e o respeito dos mais
jovens. Um dos índios mais velhos da aldeia, Marahí, de 86 anos, dançou até o final,
mesmo sendo segurado pelo braço por algum outro Suruí/Aikewára. Ele tanto queria
participar da festa, quanto os demais queriam que isso acontecesse. O esforço de
Marahí era motivo de comentários orgulhosos pelos demais participantes do ritual,
pois viam nele um exemplo a seguir quanto à manutenção da tradição.

Quando a festa terminou, pela manhã, os responsáveis pela construção da


casa foram desmanchá-la, pois assim manda o costume, ninguém mais pode ajudar.
A palha, já seca, não pode ser queimada, muito menos os pedaços de madeira que
formaram a armação (Fotos 48, 49 e 50). Na praça da aldeia não pode ficar nenhum
vestígio da festa, por isso, além de desmanchar a casa ritual, os resíduos dos cigarros
fumados que ficaram ao centro do círculo marcado no chão são recolhidos e a terra é
revolvida, não apresentando mais as marcas deixadas pelo ritual. Os resquícios da
festa devem ser jogados no mato, atrás da casa de Mairá, para que possam se
deteriorar com o tempo. Quando perguntei o porquê de não incinerarem os resíduos,
eles simplesmente responderam “faz mal,” sem maiores explicações. Além da
sensação de dever cumprido, ou de ensinamentos renovados, o saldo da festa também
foi uma intensa procura à enfermaria, em busca de remédios para tosse e relaxantes
musculares, pois muito dos participantes ficaram com os pés inchados, outros mesmo
não puderam ficar até o final, como foi o caso de Awarini, que teve de se retirar à
véspera do final porque o incomodava muito a dor na perna em que recebeu uma
picada de cobra. Ele foi tomar parte junto à platéia, assistindo à finalização da festa
(Foto 51).
Luiza Mastop-Lima
Foto 48. Desfazendo a Tokása 1

Luiza Mastop-Lima Luiza Mastop-Lima

Foto 49. Desfazendo a Tokása 2 Foto 50. Desfazendo a Tokása 3


Marcando fronteiras: rituais e corpo 124
Mastop-Lima, 2002

Quem apareceu à tarde do último dia de festa foi a antropóloga Jane Beltrão,
acompanhada da antropóloga Pascale Robert e do funcionário da FUNAI Odinei,
pensando que o final da festa fosse à tarde.12 Fiquei impressionada ao ver que
mesmo com todo o cansaço Awasaí ainda reuniu alguns dos homens e fez uma
rápida demonstração do ritual para os convidados, como um sinal de respeito a eles e
de cortesia dos Suruí/Aikewára. Afinal de contas, a realização da festa os marca
etnicamente.

É importante colocar que a realização do ritual levantou questão, já referida


por Laraia (1986), sobre a definição dos karuára. A fim de retomar a questão,
lembro citação feita em Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára, em que
Laraia (1986) apresenta características de diferentes espíritos associados à crença em
Mahíra, o herói civilizador dos Tupi. Entre os espíritos citados por Laraia estão os
asonga e os karuára. O que me chamou a atenção foi o fato de que as características
dos asonga apontadas por Laraia coincidem com as características dos karuára
relatadas a mim pelos Suruí. Penso que a coincidência, antes de parecer
contraditória, indica relação entre as duas categorias de espírito.

Laraia (1986) afirma, como dito anteriormente, que os asonga vagam pela
terra, pela floresta e devem passar pela itakuara (grutas) para atingir o iwaga (céu),
onde moram os karuára. Segundo o autor, a descrição do iwaga que obteve entre os
Suruí e os Akuáwa-Asurini informa que o céu é o lugar da fartura, onde as pessoas
não morrem, cantam e dançam sem parar. Lembro a descrição a fim de associar as
informações à realização do ritual dos Karuára que observei entre os
Suruí/Aikewára. O ritual realizado pelos Suruí talvez seja uma representação da
“andança” dos asonga em busca do céu. No ritual, homens e meninos passam pela
Tokása13 para adquirir o conhecimento necessário para a prática de seus costumes e

12
Ocorreu que Mairá informou que a festa terminaria num determinado horário, como fazem os
kamará, mas pelo que pude perceber, o ritual tem tempo próprio, determinado por circunstâncias
diversas que independem do “tempo do relógio.” Organizar uma apresentação, mesmo que
improvisada, revela astúcia, sabedoria e diplomacia para contornar o suposto mal-estar gerado pelo
“desencontro.”
13
Tokása ou tukása, como ouvi na aldeia, significa “tocaia.” Como hipótese, a Tokása representa
armadilha para os espíritos, capturados no domínio da aldeia, portanto da cultura, condição em que os
Suruí podem se comunicar com eles e não apenas temê-los, como acontece na floresta, visto que
Luiza Mastop-Lima

Foto 51. Awarini apreciando o final da Festa dos Karuára


Marcando fronteiras: rituais e corpo 125
Mastop-Lima, 2002

tradições, renovando a identidade étnica do grupo. Ao atingir o céu os asonga


chegam ao lugar da fartura, da alegria, da juventude, da saúde, da inexistência da
morte, atingem a terra sem males. No caso dos participantes do ritual, “atingir” o
céu é alcançar a condição humana, aprendida com os karuára, que “são como gente”
e ensinam os Suruí a ser Aikewára, a ser “a gente.” Como no iwaga não existe morte
e as pessoas rejuvenescem, as características do lugar são renovadas
indefinidamente. Ao realizarem o ritual, os Suruí renovam marcas que os
caracterizam etnicamente como Aikewára, assim como renovam sua identidade Tupi
na busca da terra sem males, é a realização do ritual que mantém a crença e, é a
crença que mantém viva a tradição do ritual, com isso, a identidade étnica é
reafirmada na medida em que os eventos se repetem.

O corpo14

Assim como outras sociedades indígenas, os Suruí/Aikewára fazem do corpo


instrumento e suporte para desenhos. Os desenhos impressos no corpo representam
símbolos e expressam significados que remetem a aspectos da identidade étnica do
grupo. O corpo é, segundo o que nos fala Mauss, “... o primeiro e o mais natural
instrumento do homem.” (1974: 217)

Em se tratando de sociedades indígenas brasileiras e, de modo geral, sul-


americanas, Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro em seu artigo A construção da
pessoa nas sociedades indígenas brasileiras trabalham com a tese de que a
corporalidade é tida como “idioma simbólico focal” para a elaboração da noção de
pessoa. Para eles,

Laraia (1986) destaca o temor e a resistência dos Suruí em conduzi-lo a uma gruta, onde moram os
karuára.
14
Sob o título Suruí/Aikewára: marcas étnicas a partir do corpo, uma primeira versão desta parte do
capítulo foi apresentada na sessão Corpo: concepções e marcadores sociais, do GT Saúde, corpo e
imaginário, no X Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste do Brasil, realizado em Salvador
– Bahia, em agosto de 2001. Outra versão foi apresentada no Encontro Internacional de
Pesquisadores de Línguas Indígenas, realizado em Belém – Pará, em outubro de 2001. (No prelo)
Uma terceira versão foi apresentada, em co-autoria com Domingues-Lopes & Beltrão, sob o título Ser
Aikewára, ser Xikrín: exercitando a humanidade, estudo comparativo da concepção do corpo em
sociedades Jê e Tupi a partir das sociedades Suruí/Aikewára e Xikrín do Cateté, no VII Encontro de
Antropologia Norte e Nordeste – Antropologia Contemporânea: campos, teorias e métodos, realizado
em Recife – Pernambuco, em novembro de 2001.
Marcando fronteiras: rituais e corpo 126
Mastop-Lima, 2002

“... o corpo, afirmado ou negado, pintado e perfurado, resguardado ou devorado,


tende sempre a ocupar uma posição central na visão que as sociedades indígenas têm
da natureza do ser humano.” (1987: 13)

Fazer uso do corpo para expressar sua existência social é o que há de comum
entre as sociedades indígenas brasileiras, o que as diferencia é justamente o modo
como cada uma delas concebe o corpo. A diferença aparece, entre outras formas, em
relação aos ornamentos que utilizam, à pintura corporal, às restrições alimentares no
que diz respeito, por exemplo, a determinados estados da vida, como o nascimento, a
gravidez, o pós-parto, o período menstrual. Levando em conta esses aspectos,
lembro Viveiros de Castro em seu artigo sobre a fabricação do corpo na sociedade
Yawalapíti, quando mostra que o social cria o corpo, e que “... o corpo é corpo
humano a partir de uma fabricação cultural.” (1987: 35)

Seeger, DaMatta & Viveiros de Castro, no trabalho já citado, também se


referem à fabricação social e cultural do corpo, mostrando que assim como a
fabricação, a “decoração, transformação e destruição dos corpos” estão presentes em
aspectos mitológicos, cerimoniais e de organização social entre os indígenas
brasileiros. (1987: 20)

Pintar o corpo é uma forma de servir-se dele. A maneira tradicional de cada


sociedade servir-se de seu corpo é entendida por Marcel Mauss como técnica
corporal. Segundo Mauss, técnica é “... um ato tradicional eficaz ... É preciso que
seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição.”
(1974: 217) Baseada na definição de Mauss sobre técnica corporal, tomarei a pintura
corporal como técnica que representa uma das formas de os Suruí/Aikewára
servirem-se de seus corpos.

Berta Ribeiro trata a fabricação de artefatos e pintura corporal indígenas


como uma expressão de arte, que envolve técnicas específicas quanto ao tratamento
das matérias-primas utilizadas e ao significado a que remetem. O tratamento de
matérias-primas retiradas do meio ambiente que ocupam as sociedades indígenas e o
significado do que é produzido com elas singulariza a arte indígena, varia de
Marcando fronteiras: rituais e corpo 127
Mastop-Lima, 2002

sociedade para sociedade, marcando-as etnicamente. Segundo ela,

“... o que caracteriza a arte indígena é, em primeiro lugar, o pendor a adornar o corpo
e construir artisticamente a casa e todos os artefatos ... Em segundo lugar, a
circunstância de todos os membros de um grupo indígena serem capazes de fazer
todos os artefatos de que necessitam, distinguindo-se, no entanto, os verdadeiros
artistas por seu virtuosismo e fruição criativa. ... Sexto, a constatação de que na
ornamentação corporal nada é gratuito. Cada adorno tem uma história e uma razão
de ser, seja ele a pintura corporal, o adereço plumário ou de que natureza for. O
conjunto dessa ornamentação perfaz um código simbólico que singulariza a etnia e
classifica visualmente o indivíduo.” (1989: 120-1. Grifos meus.)

Com base nos aspectos teóricos mostrados, vejamos como eles podem ajudar
na análise dos contextos da pintura corporal entre os Suruí/Aikewára.

Sobre a pintura corporal

É, então, como técnica corporal e arte que singulariza etnicamente um grupo


indígena que trato a pintura corporal dos Suruí/Aikewára, partindo, como nos ensina
Mauss, “... do concreto para o abstrato... ” (1974: 211), para desvendar alguns de
seus significados.

Quando estive entre os Suruí/Aikewára pela primeira vez, pude observar os


preparativos que envolvem a pintura corporal do grupo e conhecer alguns de seus
significados. Na segunda viagem a campo pude, além de observar, participar dos
preparativos e ver como a pintura corporal, juntamente com os adornos que utilizam,
são elementos a compor o corpo dos Suruí/Aikewára na realização de seus rituais.

Para a pintura corporal os Suruí/Aikewára utilizam pigmentos naturais nas


cores preta e vermelha, obtidos a partir do jenipapo e do urucu, respectivamente.
Para obter a cor preta, os Suruí/Aikewára ralam o jenipapo ainda verde num pedaço
de madeira cheio de espinhos chamado por eles de paxiba,15 (Foto 52) espremem o
jenipapo ralado numa vasilha de plástico para extrair o sumo e acrescentam carvão
pilado ao sumo, misturando-os (Foto 53).

15
Referido no Dicionário do Artesanato Indígena como “ralador raiz de paxiúba”, uma “... prancha da
raiz aérea, rígida e áspera, da palmeira paxiúba (Iriartea exorrhiza Mart.), aparelhada para servir de
ralador.” (1988: 271)
Marcando fronteiras: rituais e corpo 128
Mastop-Lima, 2002

A tarefa de ralar o jenipapo e preparar o pigmento pode ser realizada tanto


pelas mulheres quanto pelos homens. Algumas das crianças também ralam o
jenipapo como parte de sua aprendizagem nas atividades tradicionais do grupo. A
pintura corporal, no entanto, é tarefa feminina. As mulheres, dependendo da pintura,
utilizam-se para desenhar de pequenos talos de palha de coco babaçu - que tiram da
própria palha das paredes das casas - ou de tampas de garrafas plásticas estilo pet.16
As meninas também acompanham o trabalho da mãe nos desenhos e aprendem a
fazê-los. Há entre elas, como nos chamou a atenção Berta Ribeiro na citação
anterior, as que se destacam pela destreza, precisão e firmeza das mãos ao desenhar.
Apesar de todas as mulheres pintarem, as mais habilidosas são, logicamente, as mais
procuradas por ocasião das festas.

Como são muito procuradas, as mulheres mais habilidosas dão prioridade aos
membros de suas famílias, numa escala que vai dos maridos e filhos até as noras,
genros e netos. No caso das famílias de seus filhos e filhas, a prioridade é para os
netos, já que as noras, por serem mulheres casadas devem cuidar de seus maridos, o
que inclui o fato de os pintarem.

Para a obtenção do pigmento vermelho, os Suruí/Aikewára abrem o urucu e o


amassam com os dedos. Com os dedos mesmo passam sobre seus rostos.
Geralmente, eles costumam pintar a região dos olhos com o urucu, tanto os homens
quanto as mulheres. Mas apenas nas mulheres é usada a pintura facial composta de
linhas retas horizontais paralelas nas maçãs dos rostos e linhas verticais no nariz e
queixo.17 Na festa dos Karuára, como falei anteriormente, o urucu deve ser usado
juntamente com a pintura de jenipapo a cada vez que o ritual recomeça; é aplicado
nas regiões não pintadas com jenipapo: tornozelos, pescoço, colo e cabelos.

16
Garrafas de plástico com capacidade para dois litros de refrigerante.
17
Para exemplificar o que Mauss diz em relação ao modo de servir-se do corpo variar de sociedade
para sociedade, o que é ratificado pelos demais autores aqui citados, gostaria de citar o modo como os
Xikrín do Cateté, sociedade indígena Jê, obtêm os pigmentos naturais preto e vermelho também a
partir do jenipapo e do urucu. Em conversa com Rita de Cássia Domingues-Lopes, que realizou
trabalho de campo entre os Xikrín à mesma época que estive entre os Suruí/Aikewára, tomei
conhecimento que os Xikrín, diferentemente dos Suruí, não ralam o jenipapo, e sim o amassam com
água e carvão para obter o pigmento preto. O urucu é por eles misturado com óleo de coco babaçu.
Para uma descrição mais detalhada do processo de obtenção dos pigmentos naturais utilizados pelos
Xikrín para a pintura corporal, consultar Domingues-Lopes (2001) e Mastop-Lima, Domingues-Lopes
& Beltrão (2001).
Luiza Mastop-Lima

Foto 52. Maria ralando jenipapo para o preparo da tinta


Luiza Mastop-Lima

Foto 53. Irene pilando carvão para o preparo da tinta


Marcando fronteiras: rituais e corpo 129
Mastop-Lima, 2002

A pintura mais usual entre os Suruí/Aikewára é a realizada com jenipapo,


talvez pelo fato de que a cor preta sobressaia mais sobre a pele e leve mais tempo
para desaparecer os desenhos feitos com ela, cerca de 10 ou 15 dias. É a esse tipo de
pintura que vou me referir.

Observei entre os Suruí/Aikewára as seguintes pinturas, entre outras,


realizadas com jenipapo: jabuti, onça pintada, onça preta, jibóia, peixe, casca da fruta
chamada cajá, folha da castanha nova, folha da castanha velha e uma ave chamada
jaó. A Ilustração 3 mostra os motivos das pinturas com o nome na língua Suruí das
que consegui registrar.

Dentre as pinturas citadas, as que não costumam ser “de corpo todo” são:
jibóia, peixe, folha da castanha nova, folha da castanha velha e jabuti. As referidas
pinturas, à exceção da de jabuti, costumam ser usadas em combinação, uma pessoa
pode ser pintada com mais de um motivo decorativo. Homens e mulheres podem ser
pintados com os motivos da jibóia e do peixe, mas só às mulheres é permitida a
pintura das folhas da castanha e da ave jaó. As pinturas de jabuti, onça pintada, onça
preta, e casca de cajá, por sua vez, só são permitidas aos homens. A pintura de jabuti
deve ser feita apenas no tronco dos homens, frente e costas (Fotos 54, 55, 56 e 57).

Para entender como as pinturas são reveladoras de contextos históricos,


políticos, econômicos, sociais e culturais vivenciados pelos Suruí/Aikewára, gostaria
de destacar o significado das pinturas de jabuti e folha de castanha para a sociedade
em questão.

Além de constituir uma pintura, a figura do jabuti também aparece em mitos


narrados pelos Suruí/Aikewára. Roque Laraia (1986), quando em trabalho de campo
junto a eles registrou fragmentos de mito em que aparece o jabuti como personagem,
como mostrei anteriormente. Um dos rapazes Suruí/Aikewára falou-me que
aprendeu com os mais velhos e experientes da aldeia que o jabuti tem o casco
remendado porque caiu do céu.
Ipirá Sautí A´aeté
Peixe Jabuti Jibóia

Sawára ipinim Howaghú Inamuí


Onça Pintada Folha Nova da Castanha Jaó

Awahywa
Folha Velha da Castanha

Ilustração 3. Motivos da Pintura Corporal Suruí/Aikewára.


Luiza Mastop-Lima
Foto 54. Pintura corporal de homens

Luiza Mastop-Lima

Foto 55. Pintura corporal dos mais velhos e do cacique (direita)


Luiza Mastop-Lima
Foto 56. Pintura corporal de meninos
Luiza Mastop-Lima
Foto 57. Pintura corporal de mulheres/meninas
Marcando fronteiras: rituais e corpo 130
Mastop-Lima, 2002

O jabuti, segundo mostra Couto de Magalhães (1940), é um dos animais mais


freqüentemente referidos em mitos Tupi. Além de fazer parte da mitologia
Suruí/Aikewára, o jabuti é um alimento muito apreciado por eles. Devido a um
incêndio ocorrido na Área Indígena Sororó em 1996 e à ampliação e asfaltamento da
BR-153, que corta a área em 11km de sua extensão, muitos foram os danos causados
às atividades tradicionais do grupo, entre eles a escassez de caça. A partir de um
acordo estabelecido entre as lideranças dos Suruí/Aikewára e dos Gavião/Parkatêjê,
caçadores Suruí puderam deslocar-se para a Reserva Indígena Mãe Maria, capturar
jabutis e soltá-los em suas matas para se reproduzir. (BELTRÃO, 1998b)

A exploração de castanha-do-pará, por sua vez, representou o principal


elemento pelo qual as terras dos Suruí/Aikewára foram invadidas na década de 40 do
século passado. A invasão das terras e exploração da castanha acarretou
conseqüências drásticas aos Suruí/Aikewára, que testemunharam mortes de
integrantes do grupo, emboscadas e incêndios de suas aldeias (LARAIA &
DaMATTA, 1967).

Atualmente, a venda da castanha que coletam, como já referi, é a principal


fonte econômica para eles. Com o dinheiro arrecadado com a venda, os
Suruí/Aikewára compram, nas cidades próximas à aldeia, produtos industrializados
que conheceram a partir do contato, principalmente alimentos como café, bolacha de
água e sal, açúcar, refrigerante e pão, os quais passaram a apreciar e cultivar seu
consumo.

É importante que se ressalte que a pintura corporal dos Suruí/Aikewára é


também reveladora da interação deles com meio ambiente que os circunda, pois é
dele que extraem as matérias-primas necessárias para o preparo dos pigmentos, além
do que, se as pinturas representam elementos naturais é porque eles são encontrados
no meio ambiente com o qual interagem. O motivo da onça pintada ou da onça
preta, por exemplo, representa a força e o temor de um animal existente na floresta
da área. Não é à toa que vi apenas os índios mais velhos e o cacique da aldeia
pintados dessa forma. A pintura representa também o respeito que os
Marcando fronteiras: rituais e corpo 131
Mastop-Lima, 2002

Suruí/Aikewára têm pelo animal, porque conscientes e conhecedores do perigo a que


estão sujeitos na sua presença. O fato de os mais velhos e o cacique usarem da
pintura é uma metáfora ao respeito que os Suruí/Aikewára têm por eles.

A tradição de narrar os mitos e as histórias de contato e de realizar a pintura


corporal expressa nos rituais se faz presente entre os membros do grupo,
possibilitando a manutenção, renovação, (re)construção e reforço da identidade
étnica dos Suruí/Aikewára, uma vez que elas revelam significados que, embora
tenham sofrido alterações impostas pelo contato, ainda podem ser vivenciados pelo
grupo e devem ser preservados como parte da identidade étnica do grupo.
Onça pintada - pintura corporal Suruí/Aikewára
6. Suspendendo a atalaia

Estudar um grupo indígena e realizar trabalho de campo constitui experiência


rica e gratificante. Para mim, representou/representa oportunidade de exercitar o
olhar antropológico, aprender a dialogar com a teoria e principalmente com os
sujeitos da pesquisa, crescer profissional e pessoalmente, conhecer o significado de
ser gente. Pesquisar junto aos Suruí possibilitou aprender com eles o significado de
ser gente para eles, gente expressa e legitimada pelo ser Aikewára.

O caminho por mim escolhido para revelar aspectos da identidade étnica


Suruí/Aikewára é representado por mitos e histórias de contato narrados pelo grupo.
Faço a ressalva, no entanto, de que mesmo constituindo um caminho para revelar a
identidade étnica do grupo, o trabalho representa uma maneira de olhar e interpretar
a realidade pesquisada. Outros podem ser os olhares, outras podem ser as
interpretações. Consciente dos limites do trabalho, vejo os múltiplos olhares que
podem ser direcionados ao campo como indicadores do grupo Suruí/Aikewára como
plural. Foi na perspectiva de contribuir para expor a pluralidade do grupo que
enfatizei o tema mitos e histórias de contato como reveladores da identidade étnica
Suruí/Aikewára.

Para tanto, o trabalho de campo junto ao grupo foi de fundamental


importância por mostrar o contexto em que foram narrados mitos e histórias de
contato e por revelar situações de manifestação de identidade étnica, por meio do
contato dentro e fora da aldeia e de situações internas ao grupo.

A partir das situações de contato observadas em campo, verifiquei que a


língua Suruí é uma importante marca de diferenciação entre eles e os kamará. Marca
acionada quando uma pessoa “de fora” vai à aldeia pela primeira vez, quando os
Suruí se movimentam pelo em torno da aldeia, ou quando fazem testes com os
kamará que trabalham na aldeia, para saber se eles estão aprendendo a conhecê-los e
identificá-los.
Suspendendo a atalaia 133
Mastop-Lima, 2002

A avaliação que os Suruí fazem do trabalho dos “brancos” que permanecem


na aldeia - funcionários da FUNAI, da FUNASA, da APITO ou mesmo pessoas
contratadas pela CVRD para desenvolver e executar projetos produtivos na área –
constitui maneira de marcar alteridade, a partir da comparação contrastiva que
realizam entre seus costumes e os costumes dos kamará. Trabalhar na aldeia
representa condição de permanência na área para os “de fora,” marcando a
concepção dos Suruí para o contato com os “brancos,” oposta à estabelecida pelos
kamará ao início do contato com eles, em que os Suruí foram explorados e
maltratados, tendo sua existência ameaçada por doenças contra as quais não
possuíam defesa. Quando foram os “brancos” a estabelecer contato, o fizeram de
forma invasora e destrutiva; quando são os Suruí a concebê-lo, exigem que o contato
seja estabelecido de maneira a respeitar seu modo de vida. A situação de conflito
com os kamará que marcou o início do contato é expressa pelas histórias narradas,
como analisado ao quarto capítulo, em que Sahy, um dos Suruí mortos no conflito,
tinha de flechar muitos kamará, considerados seus inimigos.

O contato com a sociedade não-indígena apresentou aos Suruí o risco de


dizimação. Os Suruí testemunharam a morte de membros mais velhos e experientes
do grupo, pessoas imprescindíveis à organização social, como por exemplo caciques
e pajés, detentores de conhecimentos e sabedoria necessários à construção do ser
Aikewára. Uma das conseqüências do contato foi a redução da população Suruí a
cerca de 40 indivíduos na década de 60. A partir daí, com o intuito de vencer o
fantasma da depopulação, os Suruí organizaram-se para aumentar a população,
realizando, inclusive, “arranjos poliândricos” (LARAIA, 1963), costume não
tradicional, mas alternativa viável para o objetivo a que se empenhavam.

Aumentar a população é também uma forma de aproximação do tempo


antigo, expresso pelo mito que narra o tempo em que existiam muitos índios, antes
do dilúvio, como mostrei em Aprendendo a significar a vida com os mais velhos.
Talvez a destruição trazida pelo contato possa ser comparada à destruição originada
pelo dilúvio, e a recuperação que se propõem alcançar corresponda ao empenho do
índio que sobreviveu ao dilúvio e encontrou uma companheira com quem pôde
novamente habitar a terra de/com Suruí.
Suspendendo a atalaia 134
Mastop-Lima, 2002

O fato do contato ocasionar a morte de pessoas mais velhas e experientes de


grupos indígenas foi também apontado por Laraia em relação aos Asuriní do
Tocantins, que perderam muitos de seus narradores especialistas de mitos, sendo os
sobreviventes, “... na sua maioria, jovens que não tiveram tempo de aprender grande
parte de seus mitos.” (1986: 253) Muitos dos mitos Asuriní foram, segundo Laraia,
perdidos com a morte dos velhos narradores, restando-nos o registro, mesmo que
fragmentário, do que narram os sobreviventes. Penso que o mesmo se deu entre os
Suruí/Aikewára, pois os narradores especialistas de hoje são sobreviventes da
dizimação ocasionada pelo contato. Mas penso também que o fato de haver
narradores especialistas entre os Suruí ainda hoje significa que a tradição de narrar
mitos e histórias representa marca étnica do grupo, que vem sendo preservada,
(re)criada.

Dados demográficos atuais, obtidos a partir do censo realizado por mim na


aldeia, mostram que a população Suruí está composta de 235 indivíduos, motivo de
orgulho para eles. Orgulho traduzido na relação deles com a própria imagem, como
pude observar quando Mairá, o cacique, fez questão de me mostrar as fotos
penduradas em molduras às paredes da casona, em que os Suruí aparecem ao lado de
outros grupos indígenas participando dos Jogos Indígenas, realizados em Marabá no
ano de 2000. Fotos que Mairá disse ser da apresentação do grupo como Aikewára,
com pintura corporal e ornamentos que os identificavam/identificam.

Além das fotos, os vídeos gravados com eles em espaços que constituem
referenciais para a memória coletiva do grupo, como é o caso da Serra das
Andorinhas e de Água Preta, representam maneiras de se apresentar perante os
demais grupos e a sociedade não-indígena, uma vez que sempre que há oportunidade
os vídeos e as fotos são exibidos a quem visita a aldeia. Para o grupo, as fotos
representam também uma forma de mostrar às novas gerações as pessoas que
compuseram/compõem o grupo, muitas vezes personagens das histórias de contato
que ouvem ao longo de sua socialização, e apresentavam/apresentam marcas
corporais que indicavam/indicam-nos como Suruí. Por isso as “encomendas” que me
faziam.
Suspendendo a atalaia 135
Mastop-Lima, 2002

A presença de kamará na aldeia não se dá, pelo que foi visto em Tibungando
entre os Suruí/Aikewára, apenas por motivo de trabalho. Há casos de uniões de
mulheres Suruí com kamará e de homens Suruí com kamarakusó. Apesar de não
permitidas, essas uniões também representam meio de aumentar a população Suruí,
visto que, como discutido em Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára, ser
filho de Suruí, mesmo que seja “misturado,” é um dos fatores apontados como
necessários à pessoa para que seja considerada membro do grupo. Nascer na aldeia
Suruí, saber e praticar costumes e tradições do grupo e falar a língua são outros
aspectos apontados como constituintes da identidade étnica Suruí/Aikewára.

Foi importante perceber que a interação dos Suruí com costumes de kamará
não os descaracteriza como Suruí. Pude verificar o fato a partir das festas de kamará
promovidas por eles na aldeia, em que usavam roupas e acessórios de “branco.”
Segundo eles, o fato de usarem calças jeans, tênis, sapatos altos, esmalte ou batom
não faz deles kamará ou kamarakusó, assim como o fato de os kamará se pintarem
com jenipapo e usarem adornos do grupo não os torna Suruí.

Festas de kamará, o acompanhamento diário que fazem da Rádio Clube e a


televisão, como mostrei ao primeiro capítulo, representam meios de a rua chegar até
a aldeia. Pelo que pude perceber, representam também formas de exercer
comparação contrastiva entre ações de Suruí e kamará, assim como o fazem com os
kamará que trabalham na aldeia. Fazer compras nas cidades próximas à aldeia,
receber pagamentos de professoras, merendeiras e aposentados, vender castanha-do-
pará, fazer cursos e procurar auxílio à saúde são exemplos de situações em que os
Suruí vão até a rua. Nessas ocasiões, acionam a identidade indígena e, mais ainda, a
identidade étnica do grupo.

Situação particular de contato ocorre quando alguns dos homens,


principalmente os mais novos, saem da aldeia à procura de “mulheres da rua.” A
situação preocupa os mais velhos e experientes do grupo, que reprovam a atitude dos
mais novos, argumentando que eles devem casar com as mulheres da aldeia, pois
essa é a forma de gerarem Suruí “mesmo,” e não “misturados.” Pelo que observei,
dos casos de uniões com kamará existentes na aldeia, um se destaca, o de Maria.
Suspendendo a atalaia 136
Mastop-Lima, 2002

Maria ocupa lugar de destaque no grupo por ser reconhecida, entre as mulheres,
como uma das pintoras especialistas. Ela é aceita por ter aprendido a praticar com
destreza uma das marcas do grupo, a pintura corporal, como apresentei em
Marcando fronteiras rituais e corpo.

Outra situação de destaque em relação ao contato diz respeito à divisão dos


Suruí entre católicos e evangélicos. Mais importante do que identificar a existência
de Suruí que se dizem católicos e evangélicos, foi perceber como eles concebem e
vivem as orientações religiosas. Pelo que observei em campo, as orientações
religiosas costumam ser mais eficazes entre os Suruí que contato mais recorrente
estabelecem com a rua, quando podem participar de reuniões católicas ou
evangélicas com “brancos” que também as vivenciam. Quando as reuniões são
promovidas na aldeia, a maioria do grupo costuma participar de ambas. Os
comportamentos diferem, no entanto, de acordo com a reunião promovida.

Para as reuniões de católicos, os mais velhos e experientes do grupo


costumam participar ativamente do que é exposto por Padre Nelo e Irmã Rebeca,
responsáveis por missas, batismos e bênçãos aos casais da/na aldeia. Os sermões de
Padre Nelo, pelo que observei, despertaram a memória individual dos mais velhos a
respeito de costumes e tradições realizados coletivamente. Representavam
oportunidade para ensinar para os “de fora” e, principalmente, para os mais novos
sobre o modo de vida do grupo. O mesmo não acontecia nas reuniões promovidas
pelos evangélicos, em que a participação das crianças era mais destacada.

O tempo de contato de católicos e evangélicos com os Suruí e a forma de


organizar as reuniões foram apontados como fatores relevantes para marcar a
diferente participação dos Suruí. Oportunidade de acionar a identidade étnica do
grupo, constituiu característica das reuniões, como ocorreu claramente quando a
aldeia foi visitada por um grupo de universitários evangélicos, em que os Suruí se
empenharam em mostrar pintura corporal e ornamentos que os identificam
etnicamente.

O fato de os Suruí estabelecerem contato recorrente com a sociedade não-


indígena, realizarem festas de kamará na aldeia, usarem roupas e acessórios de
Suspendendo a atalaia 137
Mastop-Lima, 2002

“branco” e dividirem-se entre católicos e evangélicos era motivo de preocupação


para alguns religiosos católicos que trabalham na área e para alguns funcionários da
FUNAI, pois consideravam que esses aspectos eram indício de “fraqueza” dos Suruí
que vinham, segundo eles, perdendo seus costumes e tradições.

Como visto no capítulo segundo, a interação com a sociedade não-indígena,


conforme Barth (1998), não representa ameaça à existência de um grupo étnico, e
sim possibilidade de observar processos de exclusão e incorporação pelos quais as
fronteiras entre o grupo e a sociedade não-indígena podem ser mantidas e marcadas.
É a manutenção de fronteiras que permite a identificação dos grupos em interação
como étnicos. A identidade étnica de um grupo pode ser acionada porque existem
fronteiras que o diferenciam dos demais grupos em interação.

A dinâmica dos processos de manutenção de fronteiras, indicada por Barth


(1998), é de significativa relevância para entender que as transformações ocorridas
no grupo Suruí/Aikewára não são sinônimo de “fragilidade,” mas que representam
processos de exclusão e incorporação que tiveram de aprender a partir do contato,
como forma de se organizar de acordo com suas demandas, a fim de poder supri-las e
continuar mantendo as fronteiras que os diferenciam da sociedade não-indígena e dos
demais grupos étnicos. Por isso organizam-se politicamente em uma associação, a
AIPA, negociam demandas de alimentação e saúde, por exemplo, junto à FUNAI e à
CVRD e comercializam castanha-do-pará, um dos principais produtos de coleta, com
o objetivo de adquirir bens e serviços necessários ao seu modo de vida atual.

Foi a partir de situações de interação entre os Suruí, a sociedade não-indígena


e grupos étnicos como os Xikrín do Cateté e os Gavião/Parkatejê, por exemplo, que
pude observar aspectos da identidade étnica Suruí/Aikewára. Quando os Suruí se
comparam aos Xikrín apontam costumes praticados pelos Xikrín que se distanciam e
são reprovados pelos Suruí, como por exemplo o corte de cabelo das mulheres, a
maneira de os Xikrín prepararem os alimentos, ou a forma como tratam ou maltratam
os kamará, para referir a concepção dos Suruí. Na comparação que fazem com os
Gavião, vêem neles exemplo a seguir quanto à organização da AIPA e ao êxito
alcançado pelos projetos produtivos desenvolvidos na Reserva Indígena Mãe Maria,
habitada pelos Gavião.
Suspendendo a atalaia 138
Mastop-Lima, 2002

O contato com outros grupos indígenas é também referido nas histórias


narradas pelo grupo, em que os Kayapó aparecem como inimigos tradicionais dos
Suruí. Histórias que referem também costumes, tradições e personagens
especialistas, como observado no capítulo quarto, que trata dos costumes de fabricar
panela de barro, fazer “fogo com pau,” costumes não mais verificados entre eles;
produzir araráw e atutú, como fazia Sahy e hoje faz Sawara’a. A partir das histórias
de contato e dos mitos narrados, os Suruí comparam-se com eles próprios, em outro
tempo e em outro espaço, como propõem Novaes (1993) a partir do conceito de auto-
imagem.

Mitos e histórias de contato revelaram informações sobre costumes e


tradições Suruí e o contexto ajudou a desvendar significados de mitos e histórias.
Partindo de mitos e histórias chegamos, por exemplo, à realização dos rituais
Sapurahái e Karuára, descritos no quarto capítulo. As técnicas de caça expressas
nos mitos, especialmente em relação à tukása (tocaia), permitem associar a Tokása,
casa ritual construída pelos Suruí para a realização da Festa dos Karuára, como
armadilha para os espíritos. Como mostrei, Laraia (1986) aponta os Karuára como
espíritos que habitam grutas na floresta, que representam espaço interdito aos Suruí.
Capturar os Karuára na Tokása construída na aldeia é uma forma de construir espaço
onde os Suruí possam se comunicar com os Karuára.

Além de permitirem a associação, as estratégias de caça empregadas pelos


Suruí indicam o conhecimento que eles têm do meio ambiente em que vivem,
sabedores dos hábitos alimentares dos animais, dos rastros deixados por todo tipo de
caça. A interação com o meio ambiente também é destacada nos mitos e histórias de
contato quanto à forma de os Suruí utilizarem materiais encontrados na floresta para
fabricar artefatos que compõem a cultura material do grupo, como por exemplo
arcos, flechas, maracás, cigarros, araráw, atutú, usados nos rituais; além de retirar da
floresta jenipapo e urucu, produtos básicos para a pintura corporal. A relação com o
meio ambiente ganha força também quando os Suruí afirmam que a floresta é o
espaço privilegiado para a narração de mitos e histórias, o que reforça a identidade
Tupi do grupo como “povo da floresta,” marca étnica Tupi referida por Laraia
(1986).
Suspendendo a atalaia 139
Mastop-Lima, 2002

Histórias de contato e mitos, tomados como linguagem, foram considerados


esteios para a análise da identidade étnica do grupo. De acordo com quem narra,
temos uma versão, cujo conteúdo varia também conforme o contexto. Se o narrador
se apresenta para uma platéia, a narrativa oral ganha proporções e artifícios, como
por exemplo a imitação de sons produzidos por animais, que não são reproduzidos no
registro escrito das narrativas, o que se explica pela forma tradicional de registro de
mitos e histórias ocorrer oralmente.

Quando os Suruí fincam os esteios do tear a partir do qual produzem a


urdidura e a trama que dão forma às redes de dormir, dependendo de quem tece, se é
especialista ou não, a rede apresenta uma forma, mas as técnicas e o material
empregados para sua confecção representam o que as marca como sendo as redes
fabricadas pelos Suruí. No tempo antigo, o processo de feitura da rede compreendia
várias etapas: plantar algodão, colhê-lo, fiá-lo. Algumas dessas etapas sofreram
transformação como por exemplo a obtenção do fio de algodão, que atualmente dá-se
por meio de compra junto aos kamará. Apesar de ser comum hoje em dia comprar
algodão a fiá-lo, algumas das mulheres Suruí ainda mantém o costume, e ressaltam a
diferença entre redes de dormir urdidas com Aikewára nimó, o fio de algodão
produzido por eles, e as redes fabricadas com fio de kamará.

Usei essa imagem para mostrar que as narrativas míticas e históricas também
sofreram transformações e que mantêm eventos e personagens que marcam
etnicamente as narrativas, identificando-as como características da visão de mundo
Suruí/Aikewára. Apesar de produzidas com fios de kamará, as redes de dormir não
deixam de ser dos Suruí, pois eles imprimem nelas sua marca, expressa pelo material
e pelas técnicas empregadas. Ainda que sofram transformações, mitos e histórias de
contato expressam a marca do grupo, registrada e mantida por eventos e
personagens míticos.

O mesmo procurei mostrar em relação à identidade étnica do grupo, pois


assim como tecer as redes implica em várias etapas, diversas são as formas de
manifestação da identidade étnica Suruí/Aikewára. Assim como os esteios do tear
mudam de lugar, a manifestação da identidade do grupo também é dinâmica.
Suspendendo a atalaia 140
Mastop-Lima, 2002

Conforme o balouçar da rede varia com quem a usa, as formas de se apresentar


variam de acordo com os atores envolvidos no processo de interação. Poder olhar o
grupo “de dentro,” possibilitou verificar mitos e histórias de contato como marcas
étnicas, desmistificando a suposta “fragilidade” imputada ao grupo.
Referências
Mastop-Lima, 2002

Referências

Obras de referência

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Universidade Federal do Pará
Centro de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de Antropologia
Mestrado em Antropologia
Projeto de Pesquisa: O tempo antigo entre Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e a identidade
étnica
Aluna: Luiza de Nazaré Mastop-Lima

FICHA PARA LEVANTAMENTO DE DADOS∗

I. Grupo Doméstico (GD) n.º _________


1. Número de pessoas residentes no GD _____________

2. Dados do líder (?) do GD


Sexo _____ Idade/categoria de idade _______________ Local de origem ___________________
Tempo de residência na aldeia ___________ Residências anteriores _________________________
Atividades desenvolvidas na aldeia (coletivas e para o GD) _________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
Aposentado ( )
Escolaridade ________________ Religião (auto-declaração) _____________
Cônjuge ________________________________________ Idade/categoria de idade ____________
Atividades desenvolvidas na aldeia (coletivas e para o GD) _________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
1º casamento ( ) N.º de filhos ____________ 2º casamento ( ) N.º de filhos ______________

3. Componentes do GD
Nome Idade Escolaridade Atividades desenvolvidas
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________

4. Alimentação básica
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________

5. Tipos de doenças que atingiram o GD

∗ Adaptação realizada a partir dos trabalhos de Evans Pritchard (1978) e Adrião (2001).
2
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
6. Sistemas de cura (tratamentos utilizados)
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________

7. Atividades lúdicas, esportivas, comemorativas, entre outras, realizadas, na aldeia ou no em torno


da aldeia, com os familiares e amigos (incluindo festas religiosas e/ou atividades de trabalho
coletivo; datadas):
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________

8. Condições da casa:
Familiar ( ) outros ( ) ______________________
Alvenaria ( ) Madeira ( ) Barro ( ) outros ( ) _______________

9. Equipamentos do GD
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________

10. Equipamentos de trabalho de propriedade do GD


________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
3
II. Indicativo de algumas atividades sazonais realizadas pelo grupo∗

Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov

C H U V A S

E S T I A G E M

C A Ç A
Porco do mato, paca, cotia, macaco,
anta,
Veado, aves
C O L E T A

Castanha, Cupuaçu, cacau-do-mato, abíu, ingá, babaçu, mamão,


Pequi

Início das atividades agrícolas: mandioca, Início dos


milho, feijão, banana, cará (branco e preparativos para a
roxo), inhame, macaxeira, arroz∗ coleta da castanha
A Ç A Í

III - Recursos da floresta utilizados pelo grupo:


Madeiras:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Tintas vegetais:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Resinas vegetais:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Sementes:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Fibras vegetais:

∗ As informações do quadro correspondem ao que foi identificado a partir da bibliografia especializada. Elas serão
complementadas após o retorno do campo. Sobre o assunto, consultar Laraia & DaMatta (1967); Ricardo (1985); Laraia
& Santilli (1997) e Beltrão (1998).
∗ Produto introduzido à dieta alimentar do grupo a partir do contato.
4
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Cipós:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Palhas:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Plantas medicinais:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Frutos:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

Óleos:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

III. Recursos hídricos utilizados e atividades desenvolvidas pelo grupo


_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________

IV. Conhecendo a vegetação da região


a) Alguns representantes das matas

b) Alguns representantes das matas de igapó

c) Alguns representantes das matas de terra firme


5

V. Conhecendo os animais da região


a) Alguns representantes da ictiofauna amazônica com ocorrência no Sudeste do Pará
nome popular (em Português) termo nativo

b) Algumas plantas (frutos/sementes) das matas consumidas pelos peixes dessa região
nome popular (em Português) termo nativo

c) Alguns representantes da fauna amazônica caçados pelo grupo


nome popular (em Português) termo nativo

d) Algumas plantas (frutos/sementes) das matas consumidas pelos animais caçados nessa região
nome popular (em Português) termo nativo

e) Modalidades de captura (pesca, caça) conhecidas e/ou praticadas

f) Animais criados pelo grupo


nome popular (em Português) termo nativo

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