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Belém, PA
Fevereiro 2002
Capa:
Faixa emplumada frontal produzida pelos Suruí/ Aikewára. Coleção de J. F. Beltrão.
Reprodução (redução em 40%) de desenho de Socorro Lacerda, estudante do curso de
História e bolsista da Universidade Federal do Pará. Arte final de Luiza Mastop-Lima.
CDD 980.41
Tempo antigo entre os Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e
identidade étnica
Luiza de Nazaré Mastop-Lima
Belém, PA
Fevereiro 2002
Tempo antigo entre os Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e
identidade étnica
Luiza de Nazaré Mastop-Lima
Banca:
Profª. M. Sc. Carmen Izabel Rodrigues (orientadora) ____________________________
Profª. Dr.ª Jane Felipe Beltrão (orientadora) ____________________________
Prof. Dr. Roque de Barros Laraia (examinador) ____________________________
Prof. Dr. Raymundo Heraldo Maués (examinador) ____________________________
Prof. Dr. Gutemberg Armando Diniz Guerra (examinador ____________________________
suplente)
Belém, PA
Fevereiro 2002
O tempo antigo entre os Suruí/Aikewára: um estudo sobre mito e identidade étnica
The meaning of Old Time among the Suruí/Aikewára: a study of myth and ethnic
identity
ABSTRACT: For the Suruí/Aikewára myths and the history of interethnic contact
constitute the old time. Myths and stories of the group’s culture and traditions represent
essential cultural marks for the ethnic identity of the group. The existence of such
cultural marks indicate the boundaries that identify them as a distinct ethnic group,
different from other indigenous groups and non-indigenous societies. Through oral
narratives of the myths and the history of interethnic contact, older and more
experienced individuals in the group teach the younger the meanings of animals,
especially birds, trees and other plants that inhabit the environment with which they
interact. It is also through this interaction that the younger individuals in the group learn
how to extract the natural materials into which artifacts and pigments are transformed
for the use in body painting as part of ritual preparation such as the Sapurahái and the
Karuará Festival. Myths, stories of contact, artifacts, body painting and rituals establish
the ethnic identity of the group and have been analysed through the tools provided by
the theoretical framework of Structural Anthropology and Discourse Analysis.
AGRADECIMENTOS ...........................................................................................i
ABREVIATURAS UTILIZADAS .......................................................................iv
ÍNDICE DE DESENHOS ......................................................................................v
ÍNDICE DE FOTOGRAFIAS ..............................................................................vi
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES ...............................................................................v
ÍNDICE DE MAPAS .............................................................................................v
ÍNDICE DE QUADRO E TABELA ....................................................................ix
Referências
• Obras de referência
• Bibliografia referida
Anexos
1. Ficha para levantamento de dados
2. Mitos e histórias de contato
Agradecimentos
À Marcilene Silva da Costa, amiga para todas as horas, que sempre me lembrou
da beleza da vida, trazendo a nossas conversas música e poesia, marca também
registrada em suas cartas.
À Rita de Cássia Domingues Lopes, pela parceria já há seis anos de trabalho, que
espero ser renovada. Fico feliz em termos vivenciado à mesma época o trabalho de
campo nas aldeias, nosso ritual de passagem no aprendizado da Antropologia.
ii
A Luis Junior Costa Saraiva, César Augusto Martins de Souza e Rita de Cássia
Domingues Lopes, pelo interesse e dedicação às reuniões do grupo de estudo, com a
preocupação de realizar um trabalho responsável.
ÍNDICE DE ILUSTRAÇÕES
ÍNDICE DE MAPAS
1
Conforme o Novo Dicionário Aurélio, “ficar de atalaia, atalaiar,” significa vigiar, observar, ficar de
sobreaviso. Uso a expressão para referir a experiência de campo, tendo no atalaiar ponto fundamental
para desenvolver a pesquisa entre os Suruí/Aikewára.
De atalaia entre os Suruí/Aikewára 2
Mastop-Lima, 2002
grupo, que procuro demonstrar ao decorrer dos capítulos que compõem o trabalho.
O acesso à área é feito pela rodovia BR-153, em carro particular, em ônibus que
faz a linha Marabá (PA)-Araguaína (TO), em vans que saem de Marabá ou de São
Domingos do Araguaia com destino a São Geraldo do Araguaia, ou ainda em
caminhonete que faz linha até São Geraldo do Araguaia. Gasta-se aproximadamente
uma hora e meia saindo de Marabá até a aldeia, se o deslocamento for feito em carro
1
Segundo o Novo Dicionário Aurélio, tibungar significa “cair na água, mergulhar, afundar-se.” Aprendi
a palavra quando uma das mulheres Suruí acalentava uma criança, dizendo-lhe que logo, logo iam ao
açude para tibungar muito. A reação da criança foi de imediata alegria. Tibungar no açude é uma das
brincadeiras preferidas das crianças, é mais do que mergulhar, é mergulhar com muito prazer, com muito
sabor. Feito o menino que começou a riscar o lugar da água com um pauzinho e um novo mundo se
revelou, tibungar representa minha experiência perante o revelar do mundo dos Suruí/Aikewára.
2
Aikewára é como os Suruí se auto-denominam. Aikewára quer dizer “nós, a gente.” Suruí do Pará é
outra denominação dada ao grupo, para distingui-los dos Suruí de Rondônia. Sobre o assunto, consultar
Ricardo (1985).
3
Ver Mapa 1. As demais etnias são: Kreje, Munduruku, Tembé, Urubu Kaapor, Guajá (n.º 6 no mapa -
Área Indígena Alto Rio Guamá); Tembé (n.º 565 - Área Indígena Turé-Mariquita); Turiwara (n.º 306 -
Área Indígena Tembé); Anambé (n.º 11 - Área Indígena Anambé); Amanayé (n.º 10 - Reserva Indígena
Amanayés); Asurini do Tocantins (n.º 320 - Área Indígena Trocará); Parakanã (n.º 236 - Área Indígena
Paracanã); Gavião Parkatejê (n.º 193 - Reserva Indígena Mãe Maria); Isolados do rio Tapirapé (n.º 423 -
Rio Tapirapé/Tuere) e Xikrín do Cateté (n.º 80 - Área Indígena Xikrín do Cateté).
Mapa 1. Sudeste do Pará
Fonte: RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas do Brasil, 1996-2000. São Paulo: ISA, 2000.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 6
Mastop-Lima, 2002
particular ou van; duas horas nos ônibus, e 50 minutos indo na caminhonete que sai de
São Domingos do Araguaia.
Conhecendo a aldeia
O portão de ferro que dá acesso à aldeia fica fechado por cadeado e próximo a
ele encontra-se uma guarita alta, usada pelos homens Suruí/Aikewára para a vigilância
da área. A alguns metros do portão, à esquerda, está uma casa em madeira, onde morava
o índio mais velho da aldeia, Mikwá, utilizada agora pelos vigilantes da aldeia que a
ocupam dia e noite. Mikwá foi morar próximo ao conjunto de aproximadamente 40
casas que compõem a aldeia. Da BR-153, a estradona, como chamam os
Suruí/Aikewára, segue-se 2 km por um caminho coberto por uma fina camada de asfalto,
até chegar à aldeia propriamente dita.
por uma das famílias Suruí/Aikewára. Alguns metros depois das casas, vê-se o Posto
Indígena (PI) da FUNAI. O PI está localizado em lugar estratégico, segundo ressaltou
Eimar Araújo, administrador regional da FUNAI em Marabá, pois foi construído no alto
de uma elevação do terreno que permite ter uma visão ampla da aldeia. Onde o PI se
localiza é também a entrada do açaizal, um dos espaços da área utilizado pelos
Suruí/Aikewára para lavar roupa e tomar banho, muito apreciado pela água limpa. O
açaizal é também o lugar aonde os Suruí/Aikewára vão buscar limão, maracujá ou ingá.
Era lá que Awasaí, o pajé da aldeia, morava com sua família à época em que fui pela
primeira vez até a Área Indígena Sororó.4
À descida da ladeira em que está o PI o caminho ainda segue reto, fazendo uma
curva mais adiante, quando podemos visualizar mais de perto, à direita, as casas que
compõem a aldeia. Foi essa a imagem que prendeu minha atenção até próximo ao final
do caminho de asfalto, onde se encontra a enfermaria da área.
usada para lavar louças e roupas. A única geladeira da aldeia fica no quarto próximo à
cozinha. A geladeira é a gás e usada para conservar vacinas e alguns alimentos levados
tanto pela enfermeira quanto pela professora, pelo chefe do posto ou por alguma outra
pessoa que permaneça algum tempo na área, como foi meu caso. Os Suruí/Aikewára
também dela fazem uso, guardando algum alimento ou mesmo refrigerantes, em dia de
festa na aldeia, ou quando é dia de pagamento das duas professoras e das merendeiras
Suruí/Aikewára, ou mesmo quando os aposentados vão até São Domingos do Araguaia
para receber suas aposentadorias e fazer suas compras. Um dos quartos do alojamento
contém duas camas de solteiro e um guarda-roupa. No outro quarto não há camas, mas
em ambos os quartos há escápulas para armar redes.
Na minha primeira estada entre os Suruí/Aikewára, depois que todos que foram
ver quem havia chegado falaram comigo em Suruí, uma das mulheres me disse, em
Português, que eu podia guardar minha bagagem num dos quartos do alojamento da
enfermaria. Depois que guardei minha bagagem, retornei ao avarandado da farmácia e
7
Além de kamará, os Suruí/Aikewára também utilizam as palavras uarasú, turí e akwáw para designar os
“brancos.” A palavra mais usual, no entanto, é kamará. A impressão que me deu é que as demais
palavras podem ser usadas quando os Suruí/Aikewára não desejam que os kamará que conhecem um
pouco da língua Suruí fiquem sabendo que são o assunto de alguma conversa entre eles. Durante o
período que estive na área, verifiquei apenas o uso da palavra turí, que dá nome a uma das danças
realizadas no ritual que chamam Sapurahái. Também usaram turí à ocasião da festa dos Karuára, mas o
uso me pareceu estimulado pela presença de dois Parakanã que passaram a residir na aldeia. Kamarakusó
é a palavra utilizada por eles para designar as “mulheres brancas.”
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 10
Mastop-Lima, 2002
fiquei por lá em pé, meio desconfiada e até envergonhada, pois os comentários e risos a
meu respeito não cessavam.
Um dos homens, que depois soube ser um kamará, falou para eu sentar no banco
junto de outras mulheres. Uma delas, que pela marca das linhas do rosto, pela pele um
tanto engelhada, carregando as marcas de um quotidiano de trabalho sob o sol,
aparentava ter aproximadamente 40 anos, cortava as unhas dos pés com um canivete.
Suas unhas tinham resquícios de esmalte. Ela se voltou em minha direção e perguntou
em Suruí o meu nome. Como respondi que não entendia o que ela falava, o homem que
me havia dito para sentar foi quem traduziu a frase e outras mais que vieram: se o
motorista da FUNASA que nos havia levado era meu marido e qual o propósito da
minha ida à aldeia. O fato de eu responder que ele não era meu marido e que eu não
tinha marido foi motivo de risos para os que lá estavam.
Quando eu disse que tinha ido à aldeia para conhecê-los, foi motivo de
reprovação por parte de Arihera, a mulher que me fazia as perguntas. Pelo que pude
perceber, desempenhar um papel na sociedade Suruí/Aikewára é muito importante, pois
a estada de um kamará na área tem de ser justificada por algum trabalho que ele
desempenhe junto a eles. E o trabalho tem de ser voltado para a comunidade, seja pela
escola, seja pela enfermaria, seja pela implantação ou acompanhamento de algum
projeto na área, seja por uma reunião religiosa. Enfim, a estada na aldeia deve justificar-
se por uma situação de troca mais imediata ou mais prolongada.
que mais fazem uso desses banheiros são as pessoas mais jovens, as crianças e alguns
dos casais. Ao lado das caixas d’água há uma pequena construção em alvenaria, onde
fica o gerador de energia elétrica da aldeia.
O motivo de morar só com a filha dá-se pelo fato de que o pai de sua filha é um
enfermeiro kamará, que trabalhou na aldeia na época em que a FUNAI ainda respondia
pela questão da saúde indígena. Por ser kamará e principalmente por ser um antigo
funcionário da FUNAI, não foi permitida sua permanência na aldeia.
Continuando a andança pela aldeia, ao lado das duas casas de palha pertencentes
às filhas de Arihera, mencionadas anteriormente, está a Casa da Cultura ou, como
chamam os Suruí/Aikewára, Casona ou Casa de Reuniões.9 Trata-se de uma construção
em alvenaria, coberta com telhas de barro, com um amplo salão, de paredes vazadas e
piso de lajota. O salão possui dois bancos corridos em alvenaria e revestidos com lajota,
ao longo das paredes laterais; ao final do salão há um quadro negro, duas máquinas de
costura e dois cômodos, um que serve como escritório e o outro é uma cozinha.
8
Na literatura antropológica sobre parentesco, esse padrão de residência é designado como “residência
patrilocal.” Sobre o assunto, consultar entre outros: Schusky (1973) e Augé (1978).
9
A Casa da Cultura foi construída e assim batizada pelo padre Luís, padre italiano que trabalha em
Marabá e visita freqüentemente a aldeia. Os termos Casa de Reuniões e casona são os mais utilizados
pelos Suruí/Aikewára. O ambiente da casona será retomado mais adiante, juntamente com outros
exemplos de relações sociais que se desdobram a partir dela.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 12
Mastop-Lima, 2002
O piso da casa é de chão batido, que é molhado antes de ser varrido com
vassoura feita de cipó, que os Suruí/Aikewára mesmos fazem (Foto 2). A casa tem dois
compartimentos, um deles é usado como quarto, separado do outro por paredes de palha.
O outro compartimento é ao mesmo tempo sala, quarto e cozinha. Na extremidade
oposta ao quarto fica um fogão de barro, também feito por eles. Próximo ao fogão
encontra-se um jirau, usado para lavar louças e alguns alimentos. Perto do jirau há uma
porta que dá acesso ao quintal, onde são criadas algumas galinhas e ao fundo do qual há
um pequeno cercado em madeira que serve de banheiro.
Os troncos de árvores que servem à armação da casa são utilizados para armar as
redes durante a noite e servir de suporte para elas durante o dia, quando os
Suruí/Aikewára as enrolam, esticando-as e deixando-as estendidas mesmo acima de suas
cabeças, para não atrapalhar o movimento no interior da casa durante o dia.
A maioria das casas, mesmo as que não possuem quintal, têm duas entradas, uma
na frente e outra nos fundos. Todas são divididas internamente por paredes em madeira,
palha ou mesmo lençóis, para marcar o espaço dos quartos. Os quartos são geralmente
reservados aos casais e crianças pequenas, mas a distribuição de pessoas no interior das
casas varia.
Numa das noites em que fui convidada para jantar mutum cozido na casa de
Maria e Arikasu pude observar um pouco da variação da distribuição das pessoas no
interior das casas.12 Na casa de Maria e Arikasu há dois quartos, uma sala, uma cozinha
10
Sobre o assunto, conferir Laraia & DaMatta (1967).
11
A questão da construção de casas de “branco” em aldeias indígenas é algo que faz parte da própria
reivindicação das sociedades indígenas que têm seus recursos naturais explorados por empresas como a
Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), por exemplo. Para citar dois exemplos, na aldeia dos Gavião e
dos Xikrín do Cateté a maioria das casas da aldeia são em alvenaria, construídas a partir de convênios com
a CVRD, mas o uso que fazem delas é diferente do que os brancos fazem. Na aldeia Gavião por exemplo,
segundo Beltrão (1998a), na parte de trás das casas os Gavião constróem cozinhas em madeira e palha
onde costumam ficar. Em conversa com Rita de Cássia Domingues-Lopes, que realizou trabalho de
campo entre os Xikrín do Cateté à mesma época em que estive entre os Suruí/Aikewára, tomei
conhecimento de que também na aldeia Cateté onde a maioria das casas é em alvenaria os Xikrín
construíram cozinhas também em madeira e palha onde realizam algumas de suas atividades tradicionais e
passam a maior parte do dia. Para saber mais sobre o assunto, consultar Beltrão (1998a) e Domingues-
Lopes (2002).
12
Gostaria de chamar a atenção para algo que os Suruí/Aikewára fazem questão de mostrar: o cuidado que
têm quanto ao preparo dos alimentos. Os alimentos são devidamente lavados e cozidos, principalmente as
caças e os peixes. Os Suruí/Aikewára fazem questão de que os kamará saibam que eles têm todo o
cuidado com os alimentos e fazem questão também de fiscalizar se os kamará que estão na área também
têm o mesmo cuidado que eles. Esse é um parâmetro de comparação importante para eles não só em
relação aos kamará, mas também em relação a outras etnias indígenas. Pude perceber isso a partir da
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Desenho 1. Casas da aldeia 1
Foto 3. Casas da aldeia 1
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
e um banheiro ao fundo do quintal. Nela moram eles e seus oito filhos, cinco do sexo
masculino e três do feminino. O filho mais velho do casal tem por volta de 20 anos e
dorme em um dos quartos juntamente com dois de seus irmãos, com idades entre 10 e 11
anos. Sy’a, o filho do casal de 15 anos, dorme com um irmão de seis anos em redes
armadas no espaço que fica entre os dois quartos, que serve também de sala. No outro
quarto dormem Maria e Arikasu, Hisé, filha de cinco anos, e Inamorów, filha de dois
anos. Não consegui saber ao certo onde dorme a filha de 14 anos do casal, A’i.
reação deles quando algum funcionário que trabalha na área os compara com outras etnias indígenas e os
elogia quanto ao cuidado que têm. Talvez esse cuidado seja reflexo da atuação dos agentes indígenas de
saúde na área. O que quero chamar atenção é para o fato de que os Suruí/Aikewára fazem questão de
cultivar, manter e mostrar esse traço de sua identidade.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 16
Mastop-Lima, 2002
A Aldeia Velha fica a cerca de uma hora e meia da atual aldeia, seguindo pelo
caminho que leva à atual roça da comunidade. As ruínas do antigo PI da FUNAI ainda
são vistas lá; não há vestígios da disposição das casas na Aldeia Velha que, pelo relato
dos Suruí/Aikewára, era bem diferente do que se vê na aldeia atual, visto que as casas
estavam dispostas de maneira retangular. Segundo o que eles me disseram, da Aldeia
Velha eles mudaram porque na época das chuvas as casas alagavam, mas outros fatores
devem se juntar a esse para explicar a mudança.
O acesso à Aldeia da Pedra dá-se por um caminho à frente da casona, onde fica
agora o mandiocal, e que leva também a algumas de suas roças. Para chegar à Aldeia do
Meio, toma-se um caminho próximo ao açude e anda-se cerca de duas horas e meia para
chegar até lá. Todos esses espaços são constantemente ocupados pelos Suruí/Aikewára,
pois estão em suas rotas de caça ou vão até eles para coletar algumas frutas, como é o
caso do cupuaçu e da bacaba na Aldeia do Meio, por exemplo. Próximo à Aldeia da
Pedra os Suruí/Aikewára coletam mangas.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 17
Mastop-Lima, 2002
Quando cheguei pela primeira vez à área, como relatei há pouco, notei que
Arihera tinha as unhas dos pés pintadas de esmalte, e percebi depois que muitas das
mulheres tinham suas unhas pintadas assim. O fato de as mulheres Suruí/Aikewára
usarem esmalte não chamou apenas a minha atenção. A professora branca que
trabalhava na aldeia à época em que estive lá pela primeira vez, preocupada com a
questão, resolveu perguntar a uma das mulheres em tom reprovador porque elas usavam
esmalte, já que esmalte era de uso de mulher branca e não delas. Ao que a mulher
Suruí/Aikewára respondeu: “Vocês não gostam de usar nossos colares, nossas pulseiras,
nossos brincos? Não gostam de se pintar como a gente? A gente gosta de esmalte e de
batom também.”
que elas não deixam de ser índias porque usam esmalte ou batom, nem tampouco nós
nos tornamos índias porque usamos os adornos por eles fabricados.
Fui até a casa de Awasaí com Tymykong pelo menos duas vezes sem conseguir
encontrá-lo, pois ele estava ocupado com os afazeres da roça. Consegui encontrá-lo à
terceira tentativa, dessa vez acompanhada por Maria, uma das mulheres da aldeia.
Mas o fato de ter sido Maria a me ajudar a enxergar o modo como deveria
conduzir minha comunicação com os Suruí/Aikewára não foi à toa, pois Maria é advinda
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 19
Mastop-Lima, 2002
da nossa sociedade, chegou à aldeia quando tinha 15 anos, casou com um dos Suruí e
mora lá há mais de 20 anos.
13
Rua é como os Suruí/Aikewára chamam para os espaços fora da aldeia que envolvem o contato com os
brancos. Dessa forma, rua são as cidades que eles freqüentam, os povoados próximos à aldeia, as
fazendas que fazem limite com a Área Indígena Sororó.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 20
Mastop-Lima, 2002
O problema em relação a parceiros não é atual, visto que o grupo sofreu uma
depopulação após o contato com a sociedade nacional, chegando a população
Suruí/Aikewára a ser composta por 40 indivíduos no início da década de 60 até meados
da mesma década. Laraia (1963) referiu “arranjos poliândricos”14 realizados pelos
Suruí/Aikewára para solucionar o problema da depopulação; os dados demográficos
referentes ao grupo tratados por Ricardo (1985) e Beltrão (1998b) mostram que o grupo
conseguiu vencer o fantasma da depopulação. Atualmente os Suruí/Aikewára são 237
indivíduos, mas ainda há disparidades em relação à quantidade de homens e mulheres
em idade de casar. A Tabela 1 a seguir mostra dados demográficos atuais dos
Suruí/Aikewára.
solteiros. O equilíbrio parece persistir, pois, idealmente, sete mulheres poderiam ser as
esposas dos sete homens solteiros, restando três ainda por casar.
Acontece que a situação não é tão simples quanto parece, porque entre os rapazes
solteiros estão aqueles que estabelecem contato mais recorrente com a rua, e acabam
levando os demais em suas buscas por mulheres, não resolvendo, portanto, o problema
dos parceiros. Ao se envolverem com “mulheres da rua,” começam a colocar em
questão a qualidade do relacionamento que estabelecem com as mulheres da aldeia,
sendo-lhes mais atraente o relacionamento “de fora.” Mas vale ressaltar que as pessoas
mais velhas da aldeia procuram enfatizar para os mais jovens que devem casar com as
mulheres da aldeia, pois devem aumentar a população Suruí, para que o grupo continue
a existir como grupo indígena.
Além das uniões com kamará, há na sociedade Suruí casamentos com índios de
outras etnias. Há dois casos de mulheres Suruí/Aikewára casadas com índios Parakanã,
morando na aldeia Parakanã, e casos de mulheres Suruí/Aikewára casadas com índios de
outras etnias, mas que moram na aldeia Sororó16 Arihera, por exemplo é casada com
Umasu, índio Tapirapé.17 Há também o casamento de um índio Guajajara com uma das
mulheres Suruí/Aikewára. O casamento do jovem Guajajara com a jovem Suruí foi
possibilitado pelo fato de uma família Guajajara morar entre os Suruí/Aikewára há
pouco mais que um ano.
A presença dos kamará é verificada, além dos casamentos, também nas festas
que os Suruí/Aikewára promovem na casona.
18
A apreciação do forró pelos Suruí explica-se também pela presença e influência de nordestinos no Sul
do Pará, que é a população com quem os Suruí/Aikewára têm maior contato.
19
Ritmo paraense muito tocado em festas e mesmo no quotidiano do povo paraense, nos bares, nas casas,
nas emissoras de rádio locais.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 23
Mastop-Lima, 2002
Em dia de festa, os homens dão vez às calças jeans, aos tênis, às camisas de
botão ou estilo gola polo. As mulheres variam o visual com saias, blusas de alças,
vestidos e também calças jeans. As sandálias de tiras e saltos substituem as de borracha
de todo dia. Os lábios são pintados com o mais vermelho batom e os acessórios para os
cabelos usados pelas kamarakusó ganham mais brilho por ocasião das festas. (Foto 5)
Os homens que têm mais contato com a rua costumam levar bebida alcoólica
para as festas, que bebem escondido enquanto Mairá e os mais velhos estão presentes na
casona. Não só os índios mas também os kamará convidados para as festas levam
Luiza Mastop-Lima
Foto 5. Festa de Kamará na casona da aldeia
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 24
Mastop-Lima, 2002
bebida alcoólica para a aldeia. Quando Mairá e os mais velhos se retiram, a bebida
começa a aparecer mais, tanto em relação às garrafas mesmo, quanto em relação ao
comportamento dos homens, que ficam muito eufóricos, e não mais querem parar de
dançar. O problema que advém da euforia é que eles querem dançar não importa com
quais mulheres, o que acaba despertando ciúmes. Os maridos ficam enciumados se suas
mulheres dançam com outro homem, principalmente se for um kamará; as mulheres, se
seus maridos escolhem para dançar alguma mulher de quem não gostam; o mesmo
acontece com namorados e namoradas.20
Eu ficava com muito receio de participar das festas de kamará porque já sabia
que as mulheres eram muito ciumentas. Mas não tive como me furtar de participar da
primeira a que fui convidada.
Logo que a música começou, todos ficaram sentados nos bancos da casona
olhando uns para os outros; alguns ficavam à entrada da casona conversando. As
primeiras pessoas a quem eles se dirigem para começar a dançar são os kamará que
trabalham na aldeia e os que foram convidados especialmente para a festa. Leva de
quinze a vinte minutos até que alguém se candidate a “abrir a festa.” Em geral, quem
inicia a dança são os próprios Suruí/Aikewára e depois eles nos tiram para dançar.
20
Os Suruí me relataram que no tempo antigo os casamentos eram acordados desde a infância dos
esposos, mas que atualmente não praticam mais o costume. Penso que isso se deu por influência do
contato, que trouxe a noção de namoro para os Suruí. Pelo período que permaneci em campo percebi que
os primeiros parceiros escolhidos nem sempre correspondem aos parceiros para os casamentos.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 25
Mastop-Lima, 2002
Apesar do receio, aceitei fazer parte das danças. Eles queriam saber se eu “era
boa de forró.” Como pareci passar no teste, além de dançar com alguns dos rapazes e
dos homens casados, tive também de dançar com algumas moças, mulheres e crianças.
Achei muito bom ter dançado com um dos meninos, porque ele me elegeu seu par na
festa, o que me deixava fora da mira dos ciúmes das mulheres.
As festas não costumam durar muitas horas, em vista do controle do uso de óleo
diesel que alimenta o gerador de energia elétrica e pelo barulho que proporcionam,
incomodando aos que dela não tomam parte, como os mais velhos e os Suruí que se
dizem evangélicos. Os convidados “de fora,” após a festa, ficam hospedados na casa de
quem os convidou.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 26
Mastop-Lima, 2002
Agricultura
Uma das marcas dos grupos Tupi, segundo Laraia (1986) é o fato de serem
excelentes agricultores. Entre os produtos cultivados por eles destacam-se: mandioca
(manióg), milho (awatí), fava (kumaná), feijão (kumanarona), banana (pahakurona),
cará (branco e roxo), inhame (koro’onuhú), macaxeira (ikatú) e arroz (awatíapupisáw)
(Fotos 6 e 7), introduzido na cultura Suruí a partir do contato. Laraia (1986) ainda
destaca o cultivo de fumo, algodão, urucu e jenipapo.
21
Sobre as vantagens da técnica de coivara para a agricultura indígena, consultar Ribeiro (2000).
Luiza Mastop-Lima
Foto 6. Mureirú colhendo arroz
Luiza Mastop-Lima
Foto 7. Arikasú e sua família colocando arroz para secar
Luiza Mastop-Lima
Foto 8. Homem Suruí abrindo o tronco para retirar alimento
Luiza Mastop-Lima
Além dos relatos do sucesso do ritual entre as mulheres Suruí, ouvi também
relatos de que Awasaí havia obtido sucesso com a antropóloga Fernanda, que
acompanhava a antropóloga Jane Beltrão em trabalho na área, no ano de 1998. Eles
consideram Awasaí como pai do filho de Fernanda. Quando estive em campo em
setembro de 2001 pude observar Awasaí realizar a pajelança que engravida mulheres
para a antropóloga Pascale Robert, que se encontrava na área para verificar projetos de
criação de frangos em áreas indígenas da região, a fim de acompanhar projeto
semelhante na área em que trabalha. Além desse ritual, também verifiquei o destaque ao
fumo durante a realização da Festa dos Karuára, descrita mais adiante. Afora os rituais,
o fumo é quotidianamente utilizado, principalmente pelos mais velhos.
O algodão era por eles cultivado para servir como matéria-prima para a
fabricação de fios utilizados para tecer suas redes de dormir e as tipóias nas quais as
mulheres carregam seus filhos. Quando estive em julho de 2000 na área ainda vi
algodão colhido na casa de Muretama e Awasaí. Muretama inclusive fez uma
demonstração de como é fabricado o fio de algodão a partir de um fuso com base de
pedra. Além da casa de Muretama, outro lugar em que encontrei fusos foi na casa de
Arihera, que me explicou que o fuso era usado para fabricar o Aikewára nimó, o fio feito
pelos Aikewára, e que agora eles já não plantam mais algodão e compram o fio “na mão
do kamará”.
Caça
Luiza Mastop-Lima
Pesca
Após pegarem suas iscas, os Suruí/Aikewára preparam seus anzóis para a pesca.
A pesca é realizada ao longo do curso do grotão, mata adentro. Os peixes são em geral
pequenos, não chegando a medir dez centímetros de comprimento. Quem pescou por
essa ocasião foram as mulheres e as crianças. Enquanto elas pescavam, os homens
caçavam. Horas depois, entre meio-dia e uma hora da tarde, com os peixinhos todos
enfiados em pequenos galhos com bifurcação, os Suruí/Aikewára se encontraram em
duas cabanas construídas por eles no mato. (Fotos 15 e 16) Alguns dos homens já
estavam lá preparando o que caçaram. As mulheres dirigiram-se para uma grota
próxima às cabanas para tratar dos peixes. Depois retornaram para colocar os peixes
para assar sobre um jirau construído acima de uma fogueira. Geralmente come-se o que
se pesca, cada um come o que pescou. A caça é dividida por todos e a refeição é
acompanhada de muita farinha. Para o preparo dos peixes e da caça os Suruí/Aikewára
Mapa 2. Sudeste do Pará
Fonte: RICARDO, Carlos Alberto. Povos Indígenas do Brasil, 1990/95. São Paulo: ISA, 1996
Luiza Mastop-Lima
Foto 13. Araci tirando iscas do coco babaçu
Luiza Mastop-Lima
não utilizam qualquer espécie de tempero, o que fazem é adicionar sal e caldo de limão
sobre os alimentos depois de assados.22
22
Além de pescarias na mata, mais raramente acontece de os Suruí/Aikewára pescarem nos açudes das
fazendas próximas à aldeia, como ocorrido durante a Semana Santa, influenciados que estavam pelos
regionais quanto à crença de que o consumo de carne vermelha é proibido à essa época. Por não
consumirem carne de caça à época da Semana Santa, e pelo fato de não disporem de fartos recursos
hídricos em suas terras, os Suruí/Aikewára organizam pescarias aos açudes das fazendas vizinhas.
Luiza Mastop-Lima
Foto 17. Pesca com timbó, o cerco aos peixes
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Coleta e comercialização
As frutas são alimentos muito apreciados pelos Suruí/Aikewára. Entre as que são
encontradas na floresta as preferidas são: cupuaçu, manga, banana, bacaba e açaí. À
época dessas frutas é comum os pais mobilizarem seus filhos para a coleta delas na
mata. Algumas das frutas que consomem são cultivadas nos quintais das casas, como
por exemplo caju e limão. Embora com menos freqüência, também consomem graviola,
abacaxi e bacuri. Além das frutas, os Suruí/Aikewára também coletam mel para vender
nas cidades próximas à aldeia e principalmente para os funcionários da FUNAI.
À primeira vez que estive na aldeia pude participar da coleta de mel com
Muretama, Awasaí, sua filhinha, dois dos filhos de Tymykong e Tarew, também filha de
Muretama, acompanhada de Tawé, seu marido.
No retorno à aldeia, após alguns dias no mato, eles não levam a produção de
castanha, pois para o transporte da castanha dependem de animais de carga como burros,
cavalos ou jumentos, que nem todos os Suruí/Aikewára possuem. O transporte da
castanha até a aldeia pode ser feito conduzindo os animais pelo mato, o que se
caracteriza como uma tarefa masculina, ou então “por fora” da reserva. Para esse tipo de
transporte, Mairá reúne alguns dos homens e vão no carro da aldeia ou num pequeno
Luiza Mastop-Lima
Foto 20. Acampamento na mata
Luiza Mastop-Lima
trator com carroceria, ao qual chamam de jerico, por estradas que passam pelas fazendas
e povoados que fazem limite com a Área Indígena Sororó.
O transporte com animais demora mais e atende a poucas famílias, uma ou duas
em geral. O transporte com o carro ou o trator atende a mais famílias. Outro fator que
dificulta o transporte da castanha pelo mato é que como essa é a época das chuvas, há
muita lama, água empoçada no mato e grotas com nível de água que se eleva nesse
período, que os animais não podem atravessar, tendo-se de esperar que o nível da água
baixe.
Os sacos de castanha que chegam à aldeia ficam guardados nas casas das
famílias que foram coletá-la, à espera do caminhão fretado pelo cacique Mairá que
transporta a castanha até São Domingos do Araguaia ou Marabá, onde a castanha é
comercializada. Pelo que pude ver quando acompanhei os Suruí/Aikewára em uma das
vezes em que foram vender castanha em Marabá, há compradores certos para a castanha,
pessoas com as quais eles já tratam há muitos anos, até porque há em Marabá
estabelecimentos comerciais que trabalham especificamente com compra e venda de
castanha. É claro que apesar disso, há flexibilidade de negociação com outros
compradores, dependendo do preço pago pelo hectolitro da castanha no mercado23.
Enquanto estava em campo vi uma vez um comprador de castanha ir buscá-la na aldeia.
podem levar, eles têm de fazer rápidas incursões ao mato e retornar à aldeia a fim de
vender a castanha, comprar alimentos e poder retornar ao mato para completar a coleta.
O processo acaba se tornando cansativo e dispendioso, pois gasta-se mais dinheiro com
frete de caminhão para levar a castanha para vender em Marabá.
24
A atuação da FUNAI e da CVRD na Área Indígena Sororó através de “projetos produtivos sustentáveis”
e a comercialização da castanha aproxima os Suruí da categoria “povos indígenas de comércio
recorrente”, a partir da classificação socioambiental da ocupação humana da Amazônia, elaborada por
Lima & Pozzobon. Sobre o assunto, consultar Lima & Pozzobon (2001).
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 35
Mastop-Lima, 2002
25
Conferir Laraia & Santilli (1997).
26
A informação me foi dada por Eliane Franco Martins, integrante do CIMI e professora na área à época
do trabalho de campo.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 36
Mastop-Lima, 2002
Irmã Alice teve de sair da Área Indígena Sororó por motivo de doença e não
retornou a pedido dos próprios índios que, preocupados com seu estado de saúde,
temiam que ela voltasse e tivesse recaídas, pois como eles mesmos relataram, não
tinham como cuidar dela. Outro fator que contribuiu para o pedido dos Suruí/Aikewára
foi o fato de que por ficar doente muitas vezes, irmã Alice não podia os acompanhar em
suas atividades de caça, pesca, ou mesmo à roça.
Mas essa informação só surgiu quando uma outra irmã, irmã Fátima, foi
designada para trabalhar na aldeia. Ao contrário de irmã Alice, natural das Filipinas,
irmã Fátima está acostumada a um ritmo de vida mais próximo do vivido pelos
Suruí/Aikewára. Irmã Fátima cresceu num ambiente de trabalho na roça, caça e pesca
numa das cidades do interior do Pará, o que favoreceu sua aproximação com os índios.
Os Suruí/Aikewára a elogiavam muito porque ela os acompanhava à roça e ia caçar e
pescar com eles, e logo fizeram a comparação dela com irmã Alice, dizendo que irmã
Fátima mostrou que era uma “mulher forte”.
Além de ter uma irmã morando na área, o CIMI também atua junto à escola
indígena, indicando professoras brancas para trabalhar lá e pela visita periódica à aldeia
de Padre Nelo e Irmã Rebeca. Irmã Rebeca visita a área desde 1975 e Padre Nelo desde
1978; durante suas visitas, promovem missas, batizados e casamentos entre os
Suruí/Aikewára, segundo o que eles próprios me relataram. Enquanto permanecem na
área, Padre Nelo e Irmã Rebeca ficam hospedados na casa de uma das famílias.
Tive oportunidade de estar presente em uma das missas realizadas por Padre
Nelo e Irmã Rebeca na aldeia. No dia anterior à missa, Padre Nelo e Irmã Rebeca
avisaram a todos que no dia seguinte haveria missa. No dia da missa, eles se levantaram
por volta das seis horas da manhã, e saíram buzinando pela aldeia, arrebanhando os
Suruí/Aikewára, que por volta das sete horas estavam reunidos na casona. Uma
máquina de costura serviu de altar, coberta com uma toalha branca, bordada com uma
cruz.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 37
Mastop-Lima, 2002
A impressão que me deu foi que o padre realizava um grande teatro, ao qual os
Suruí/Aikewára assistiram com muita atenção. À certa altura da missa, na hora do
Evangelho, o padre falou sobre um acontecimento em Jericó.27 Nesse momento, os
Suruí/Aikewára tomaram a palavra e começaram a contar como se dava a distribuição de
comida no tempo antigo.28
27
“35 Sucedeu, porém, que quando Jesus ia chegando a Jericó, estava sentado à beira da estrada um cego
pedindo esmola. 36 E ouvindo o tropel da gente que passava, perguntou que era aquilo. 37 E
responderam-lhe que era Jesus Nazareno que passava. 38 No mesmo tempo se pôs ele a bradar, dizendo:
Jesus, Filho de Davi, tem de mim piedade. 39 E os que iam adiante repreendiam-no para que se calasse.
Porém ele cada vez gritava mais Filho de Davi, tem de mim piedade. 40 Então Jesus, passando, mandou
que lho trouxessem. E quando ele chegou, fez-lhe esta pergunta, 41 dizendo: Que queres que te faça? E
ele respondeu: Senhor, que eu veja. 42 E Jesus lhe disse: Vê, a tua fé te salvou. 43 E logo imediatamente
viu, e o foi seguindo, engrandecendo a Deus. E todo o povo, assim que isto presenciou, deu louvor a
Deus.” (São Lucas, 18: 35). À primeira vista, a passagem bíblica não tem muito a ver com a reação
desencadeada pelos Suruí/Aikewára, mas ela está relacionada com o comentário que Padre Nelo fez a
respeito dela. Padre Nelo falou que as pessoas não foram solidárias ao cego quando Jesus passava,
pedindo que se calasse, e que os Suruí/Aikewára deviam ser solidários uns aos outros para resolver os
problemas que enfrentam, o da escassez de alimentos é um deles, por isso a referência feita pelos
Suruí/Aikewára ao tempo em que havia fartura na aldeia, em que todos tinham o que comer.
28
O tempo antigo a que os Suruí/Aikewára se remetem é retratado por narrativas míticas, histórias de
contato deles com outros grupos indígenas e com sociedades não-indígenas e histórias que relatam o
quotidiano de pessoas que compunham sua sociedade e não mais existem, vítimas que foram do contato e
que deixaram saberes tradicionais aos que sobreviveram e às gerações subseqüentes, que preservam,
recriam e criam as tradições do grupo.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 38
Mastop-Lima, 2002
Awarini também contou que se a criança estiver dando trabalho para dormir,
basta levá-la às seis horas da manhã junto ao pé de uma planta chamada arumã, abaná-la
com sua folha, que ela passará a dormir cedo. Ainda em relação a recursos da floresta
utilizados por eles, Awarini falou do uso de um cipó chamado iposurú, parecido com um
ingá, cuja casca serve como remédio para feridas e para dores.
Um outro tipo de reunião religiosa na aldeia foi um culto evangélico. Quando foi
realizado o culto na aldeia, o comportamento dos Suruí/Aikewára foi notadamente
diferente. Para a realização do culto foram à aldeia um pastor e quatro pessoas da
Assembléia de Deus. O culto teve mais gente que a missa, talvez pelo horário em que
foi realizado, à noite, quando os Suruí/Aikewára já haviam feito as tarefas do dia. Outro
fator que pode ter influenciado na maior presença ao culto foi o fato de que os
evangélicos, para arrebanhar gente para o culto, levaram pirulitos para distribuir entre as
crianças e também entre os adultos.
entrosamento que os Suruí/Aikewára têm com Padre Nelo e Irmã Rebeca, que já atuam
na área há mais de 25 anos, o que não se aplica ao pastor que lá esteve.
Pelo que vi, a participação dos Suruí/Aikewára nas missas e nos cultos dá-se pelo
menos sob três formas: há os que participam dos dois eventos indiferentemente,
principalmente as crianças; há os que se dizem católicos e não participam dos cultos
evangélicos; há os que se dizem evangélicos e não participam das reuniões católicas. Há
também quem fale que vai participar do evento de quem “levar mais coisas” para
distribuir na aldeia.
Ao meu ver há pelo menos duas leituras possíveis do objetivo das reuniões
religiosas quanto a reforçar a crença em Deus e arrebanhar prosélitos: penso que talvez
elas surtam mais efeito entre os Suruí/Aikewára que já tinham um contato maior com a
prática delas, como é o caso dos que têm mais contato com a rua, aos que contato mais
esporádico têm, elas parecem ser uma boa oportunidade de diversão, em que eles ficam
reunidos cantando; elas representam uma forma de descontração/recreação para o grupo.
religiões dos brancos na aldeia porque isso marcou a fala de Mairá, durante o episódio
de contato ocorrido na aldeia com um grupo religioso, que relato a seguir.
Mairá apresentou a comunidade como Suruí, contou um pouco dos caminhos que
o grupo percorreu até ter suas terras demarcadas e como ele se tornou cacique. Mairá
disse que os Suruí/Aikewára fugiam dos Kayapó, seus inimigos tradicionais, pela
floresta. Quando nascia alguma criança, eles a matavam para o choro da criança não
denunciar aos perseguidores o paradeiro dos Suruí/Aikewára. Segundo Mairá, seu pai
havia sido cacique, morreu quando ele ainda era pequeno e a comunidade o escolheu
para substituir o pai. O que Mairá também fez questão de deixar clara foi a crença dos
Suruí/Aikewára em Deus, o “Deus de vocês” como disse ele, assim como dizer que eles
também têm os deuses deles.
Luiza Mastop-Lima
Foto 22. Suruí e evangélicos na Casa de Reuniões
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 41
Mastop-Lima, 2002
Talvez também essa reação tenha sido desencadeada pelo fato de os estudantes,
por constituírem um grupo teatral, estarem com seus rostos maquiados, como os de
artistas circenses. Os Suruí/Aikewára se arrumaram para receber as visitas, tal qual
fazemos, pois não se costuma receber as pessoas em nossas casas apresentados de
qualquer maneira. Os contatos dos Suruí/Aikewára com os religiosos na área, pelo que
pude perceber, podem ser interpretados como situações de manifestação da identidade
étnica do grupo e afirmação das fronteiras que marcam a diferença entre as duas
culturas.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 42
Mastop-Lima, 2002
Enquanto eu estava na aldeia, ou mesmo andando com eles pela cidade, quando
eles me viam com a máquina fotográfica logo tratavam de pedir “Luiza, tira o nosso
foto.” Eu procurava atender a todos os pedidos. Em uma das ocasiões em que estive em
Marabá durante o período do trabalho de campo, revelei alguns dos filmes com as fotos
que fiz na aldeia e as entreguei aos Suruí/Aikewára. Eles ficaram muito alegres, pois
sempre me cobravam as fotos, diziam que era para eu as entregar mesmo. Como eles
viram que eu cumpri com o acordo, as encomendas aumentaram: os pais queriam fotos
de seus filhos, as crianças delas mesmas, os maridos de suas mulheres, as mulheres de
seus maridos, e os casais de si. Houve também quem quisesse fotos comigo e fotos
minhas, segundo eles para poder mostrar a quem andar pela aldeia.
Eles também gostam muito de se ver em vídeo. Gostam não apenas de se assistir
como também de assistir a documentários sobre os Jogos Indígenas, congressos sobre
povos indígenas. Mas os preferidos deles são mesmo os vídeos caseiros que os mostram
em Água Preta.29 Água Preta, juntamente com Cajueiro, foram também lugares de onde
os Suruí/Aikewára utilizavam os recursos naturais para fazer remédio antigamente,
segundo o que me relatou Itamaré.
29
Os vídeos caseiros foram feitos por um estudante de agronomia, Júlio César, que realiza pesquisa na
área em relação à classificação que os Suruí fazem dos solos. Júlio César Araújo é aluno da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e filho do administrador regional da FUNAI em Marabá.
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 43
Mastop-Lima, 2002
Outro vídeo mostra-os na Serra das Andorinhas, referida por eles como lugar
sagrado, que fazia parte do território tradicionalmente ocupado por eles, mas que fica
fora da demarcação de suas terras. Itamaré disse que há gente do grupo enterrada na
Serra das Andorinhas e que lá eles iam também para caçar.
A idéia que formei a partir da relação deles com a imagem foi a de que, longe de
parecer narcisismo, eles gostam de se ver porque lembram que um dia já tiveram a
própria existência ameaçada aos primeiros anos de contato; o fantasma da depopulação
ainda é uma lembrança muito forte. Além do que, verem-se retratados e filmados é uma
forma de saber que estão sendo percebidos, e representa também uma maneira de manter
registrados aspectos de sua cultura que podem ser transmitidos para os “de dentro” e
mostrados para os “de fora.”
Tibungando entre os Suruí/Aikewára 44
Mastop-Lima, 2002
Quando pude me aproximar mais deles, pude ver o que se revelava com o tibum.
Pude participar de suas reuniões internas, ajudar nas reuniões com os “de fora;” aprender
a superar as dificuldades em campo; rir com eles das piadas que faziam sobre mim,
especialmente em relação à falta de intimidade com a mata, que me rendeu tropeções e
quedas inesquecíveis; desfrutar da receptividade e paciência deles ao me conduzirem
pela mata a fim de me mostrar suas terras; fazer refeições em suas casas ou recebê-los
em minha casa na aldeia; participar de suas festas; gravar suas músicas e depois ouvi-las
junto com eles; participar de pescarias e compartilhar um pedaço bem assado de tasahú
ou de karuaruhú quando voltavam de suas caçadas. Para mim foram experiências que,
além de mostrar o modo como os Suruí/Aikewára concebem seu lugar no mundo, me
ensinaram a maravilha de se trabalhar com pessoas e principalmente com pessoas de
uma cultura diferente da nossa. Além da riqueza do trabalho de campo numa sociedade
indígena, o tibungar entre eles permitiu que eu emergisse com a certeza de que a
interação com eles me proporcionou também crescimento pessoal.
“Uma lenda, registrada
g por
p Mário Ypiranga
p g
Monteiro, conta como apareceu a rede de dormir,
que o homem não conhecia, dormindo no chão em
cima de folhas, como os guaribas. Tamaquaré,
cunhado de Jurupari, casou-se com a anta, e não
quis dormir no chão, com medo de que os outros
bichos a machucassem. Por isso, Jurupari mandou
o compadre tucano ajudá-lo a fazer uma rede.
Este amarrou cipó-ambé, fez um trançado e
Detalhe - rede de doormir Suruí/Aikewára
Mas antes mesmo de estar entre os Suruí/Aikewára, era preciso treinar o olhar
para o campo, como nos ensina Cardoso de Oliveira (1996). O treinamento se
iniciou com leituras específicas sobre o grupo e, no decorrer do trabalho, ampliou-se
com bibliografia referente aos Tupi, especialmente em relação à mitologia tupi,
tomando corpo com o trabalho de campo e o contínuo apoio na bibliografia, tanto a
específica ao grupo e aos Tupi, quanto a referente à identidade étnica, para então
construir o trabalho. Como se deu o tecer de tramas que revelam os Suruí/Aikewára
é o objeto deste capítulo.
1
Ribeiro (1987: 395) assim define o trabalho em trama: “[s]istema de tecelagem em que intervêm dois
elementos - urdidura e trama - que se entrecruzam de forma a constituir um tecido. Compreende as
técnicas de: entretecer (weaving), entretorcer (twining), contratorcer (coutertwining).”
2
Ribeiro assim informa sobre o tear: “[o] tear com a urdidura na horizontal - que é o mais difundido
entre grupos indígenas do Brasil - compõe-se de dois esteios de madeira fincados no chão (pode-se
utilizar os da própria casa), distantes um do outro o necessário para conferir à obra que se deseja tecer
o comprimento adequado. Ao redor dessas traves é feito o urdimento, sendo a trama passada
verticalmente, de baixo para cima, pela torção de dois fios que se sobrepõem um ao outro, englobando
em cada meia volta, um ou mais geralmente, dois fios do urdume... Nesse caso, dispensa-se qualquer
acessório. Apenas os dedos se ocupam da tramação.” (1987: 355)
Luiza Mastop-Lima
Foto 23. Arihera e as netas tecendo rede de dormir
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 47
Mastop-Lima, 2002
3
Segundo Ribeiro, “entretorcer” acontece quando “[u]m par de fios, torcido um sobre o outro,
engloba um ou mais elementos da urdidura que correm em sentido contrário. A torção da direita para
a esquerda assume a forma de ‘Z’; o contrário, a forma de ‘S’...” (1987: 392). Ainda segundo a
autora, “entretorcido espaçado” denomina-se à técnica em que “[a]s carreiras entretorcidas da trama
são armadas a uma distância regular uma da outra.” (1987: 392)
4
No mesmo trabalho Ribeiro informa: “[c]ontratorcer. Técnica de tecelagem produzida quando quatro
fios englobam entre si um ou mais elementos da urdidura... Contratorcido Combinado. Torção
executada em movimento unificado com o uso de quatro fios: os do centro passando por trás da
urdidura; os dos lados, por cima, um à direita e outro à esquerda. Depois de pronto o trabalho
apresenta a forma de trança...” (1987: 390)
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 48
Mastop-Lima, 2002
“Em primeiro lugar, fica claro que as fronteiras persistem apesar do fluxo de pessoas
que as atravessam. Em outras palavras, as distinções de categorias étnicas não
dependem de uma ausência de mobilidade, contato e informação. Mas acarretam
processos sociais de exclusão e incorporação pelos quais categorias discretas são
mantidas, apesar das transformações na participação e na pertença no decorrer de
histórias de vidas individuais. Em segundo lugar, descobre-se que relações sociais
estáveis, persistentes e muitas vezes de uma importância social vital, são mantidas
através dessas fronteiras e são freqüentemente baseadas precisamente nos estatutos
étnicos dicotomizados. Em outras palavras, as distinções étnicas não dependem de
uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrário,
freqüentemente as próprias fundações sobre as quais são levantados os sistemas
sociais englobantes. A interação em um sistema social como este não leva a seu
desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem
permanecer apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos.” (1998:
188. Itálico do autor. Grifos meus.)
Confesso que grande foi minha alegria ao ler as colocações de Barth, pois
assim desmitificavam-se idéias preconcebidas acerca dos Suruí/Aikewára e dos
Xikrín do Cateté e afastava-se qualquer tentativa de generalizações mais apressadas.
O contato permanente dos Suruí/Aikewára com a sociedade não-indígena e a
“inevitável” perda das tradições não é preocupação exclusiva dos funcionários da
FUNAI, mas também dos religiosos que trabalham na área. Era comum ouvir os
religiosos aconselharem os Suruí/Aikewára a não se ausentar da aldeia por longos
5
O sentido atribuído pelo funcionário da FUNAI refere-se principalmente aos rituais e aos elementos
da cultura material observados mais “comumente” entre os Xikrín, em comparação com os
Suruí/Aikewára.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 50
Mastop-Lima, 2002
Para Barth “os traços culturais que demarcam a fronteira podem mudar, e as
características culturais de seus membros podem igualmente se transformar ...”
(1998: 195),6 o que me leva a considerar que acontecimentos como por exemplo o
fato de as mulheres Suruí/Aikewára usarem esmalte nas unhas, batom e sapatos de
salto alto, como mostrei no capítulo anterior, antes de constituírem indícios da perda
de tradições pelo grupo, revelam transformações ocorridas nas fronteiras que os
distinguem dos membros da sociedade não-indígena. A postura da mulher Suruí ao
6
Entendo traços culturais como características que marcam etnicamente um grupo. Traços culturais
podem ser, segundo indica Geertz, “... essenciais à existência humana... ” e “... adventícios, periféricos
ou ornamentais.” (1978: 50). Ao longo do trabalho, uso “traços culturais” e “marcas étnicas” como
termos equivalentes.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 51
Mastop-Lima, 2002
colocar que o fato de usar esmalte não fazia dela uma kamarákusó7 revela que as
fronteiras não são necessariamente coincidentes com os comportamentos manifestos,
e nem o fato representa algo socialmente relevante quanto ao ser Suruí/Aikewára.
Quanto a isso coloca Barth:
7
Termo nativo para designar mulher branca.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 52
Mastop-Lima, 2002
8
Palavra do dialeto Suruí que designa homem branco.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 53
Mastop-Lima, 2002
primeira instância, e saber e praticar os costumes e tradições do grupo, pois esses são
valores constitutivos de sua identidade étnica.
9
Os Suruí/Aikewára não me explicaram de que jeito era, pois pensavam que eu sabia, mas só vim
saber de que jeito era quando me deparei com mulheres Xikrín na FUNAI. O cabelo das mulheres
Xikrín é “cortado” - o que para nós corresponde a raspado - da fronte ao centro da cabeça, formando
uma lista sem cabelo ao centro da cabeça, ficando partes compridas às laterais e à parte posterior da
cabeça.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 55
Mastop-Lima, 2002
em área indígena e era com os Xikrín do Cateté.10 Por várias vezes Mairá me
perguntava por minha amiga, se ela estava gostando de estar entre os Xikrín, por que
não foi para a aldeia Sororó como eu, que era para eu falar para ela ir trabalhar lá
com eles porque eles não faziam o que os Xikrín fazem com os kamará, que na
concepção dos Suruí/Aikewára não são bem tratados pelos Xikrín. Em oposição aos
Xikrín, os Suruí/Aikewára se consideram e querem ser considerados como
receptivos, brincalhões e hospitaleiros.
O autor ainda mostra que após os primeiros anos de contato os Parakanã que
habitavam o aldeamento de Apyterewa fizeram como que uma avaliação sobre a
distribuição e quantidade de trabalho, notando que “... em tempos passados, o plantio
e a produção de farinha eram da alçada das mulheres e que agora elas passavam a
maior parte do tempo deitadas em suas redes.” (2001: 128-129) Fausto continua,
mostrando que apesar da introdução de nova tecnologia que dava outra conotação ao
processamento da mandioca e ao preparo de farinha - “prensa, caititu a motor, fornos
com tachos de ferro untados a óleo” - algumas das mulheres mais velhas ainda
mantinham o modo tradicional de fazer farinha. Talvez o que chamou a atenção dos
Suruí/Aikewára que fizeram o comentário acima sobre os Parakanã esteja
relacionado justamente à divisão sexual do trabalho tradicionalmente verificada entre
os Parakanã.
animal que é morto pela flecha de um Karuára morre de forma diferente do que se
flechado fosse por qualquer Suruí vivo. Como contam os Suruí/Aikewára, até o som
emitido pelo animal ferido pela flecha de um Karuára é diferente, pois estão
acostumados com outros sons, e a caça morta por um Karuára não é consumida
pelos Suruí vivos.
Suyá. Isso fica claro, por exemplo, quando os Suruí realizam festas na aldeia, sejam
elas ao estilo kamará - em que se ornamentam com elementos da sociedade não-
indígena, como mostrado no capítulo anterior - sejam as tradicionalmente realizadas
por eles, em que alguns dos kamará se ornamentam como os Suruí/Aikewára.
13
Sobre as correntes teóricas a que se relacionam os estudos de identidade na Antropologia e seus
reflexos na Antropologia brasileira, consultar Cardoso de Oliveira (1972) e Novaes (1993).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 59
Mastop-Lima, 2002
“... não é algo dado, que se possa verificar, mas uma condição forjada a partir de
determinados elementos históricos e culturais, sua eficácia enquanto fator que
instrumentaliza a ação é momentânea e será tanto maior quanto mais estiver
associada a uma dimensão emocional da vida social.” (1993: 25)
“As imagens que uma sociedade forma de si e dos segmentos que toma como
parâmetros para fazer uma reflexão sobre si mesma não são imagens fixas ou
perenes. Transformando-se continuamente, em função mesmo das transformações
das relações históricas entre estes segmentos. São imagens impregnadas de valores,
muitos deles conflitivos. Imagens que implicam a simultaneidade de sistemas
culturais em confronto, onde não há um movimento unívoco que simplesmente
afirma ou negue a identidade do outro.” (1993: 45)
Novaes e o enfoque às fronteiras entre grupos étnicos proposto por Barth como
forma de dar conta das transformações e das muitas faces do processo de construção
da identidade étnica me parecem, respeitando a especificidade de cada autor, muito
próximos. Quero dizer com isso que não me deterei em um conceito em detrimento
de outro, mas que procurarei utilizá-los à medida que a análise “pedir” um ou outro.
Não quero com isso ser eclética, mas reconhecer que as relações entre seres humanos
são muito complexas para serem entendidas por um único ponto de vista.
parte delas referir-se a ele, mas pelo fato de o contato ser um marco importante de
contextualização apontado pelos próprios Suruí/Aikewára. As perguntas feitas em
relação aos mitos nortearão também a investigação sobre as histórias de contato.
Alguns dos mitos e histórias de contato serão apresentados por ora à luz da
teoria antropológica referente aos Tupi em geral, e aos Suruí/Aikewára em particular.
Não tratarei aqui da ampla produção antropológica referente à mitologia Tupi, mas
tratarei de mostrar o lugar do tema em relação aos grupos Tupi e me aterei mais a
exemplos de estudos realizados na Amazônia, principalmente aos que se referem aos
Parakanã e aos Asuriní do Tocantins, além é claro aos referentes aos Suruí/Aikewára.
A recorrência a exemplos entre os grupos Parakanã e Asuriní do Tocantins dá-se pelo
fato de continuar na pista de uma convivência comum entre eles e os
Suruí/Aikewára, já referida anteriormente. Não faço isso como meio de comprovar a
hipótese, mas de “dar confiança”15 ao que é relatado pelos Suruí/Aikewára e referido
por alguns autores, como veremos a seguir. Além disso, a “confiança” se dá no
sentido de estabelecer parâmetros de comparação, que devem fundamentar o trabalho
antropológico. Mas antes de seguir neste propósito, falarei um pouco sobre a relação
dos Tupi com o meio ambiente.
Laraia classifica os Tupi como povos da floresta, que interagem com o meio
ambiente que habitam produzindo tecnologia que os distingue dos demais grupos
indígenas, e utilizando os frutos e a fauna fornecidos pela floresta para sua
14
À época da realização da atividade, março de 2001, Eliane Franco Martins, missionária do CIMI.
15
Expressão usada pela Prof.ª Maria Angélica Motta-Maués, ao ministrar, juntamente com o Prof.
Samuel Maria de Amorim e Sá, a disciplina Seminários de Dissertação, do Mestrado em Antropologia
da Universidade Federal do Pará. Ela usava a expressão para nos chamar a atenção para as pistas de
nossos trabalhos.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 67
Mastop-Lima, 2002
subsistência e para expressar uma rica mitologia. Algumas características como por
exemplo o “... uso da rede de dormir, a utilização de arcos e flechas, como armas
preferenciais para a guerra, o cultivo intensivo de mandioca...” (1986: 43) são
algumas das características Tupi que, segundo Laraia, são destacadas na produção
antropológica sobre esses grupos. Plantas como o fumo, o algodão, o urucu e o
jenipapo, ainda segundo Laraia, têm grande importância no contexto cultural Tupi.
Laraia diz que observar o meio circundante, o meio ambiente que os Tupi
habitam, é uma forma de entender a visão que eles têm do universo. A relação com
esse meio ambiente, considerando aspectos naturais e sobrenaturais, representa a
proposta de uma maneira de pensar. (1986: 233) Para ele, é preciso que haja o
conhecimento do sistema de classificação indígena, a fim de que se entenda o mundo
indígena (1986: 234), sua forma de pensar o mundo, de se organizar nele e de se
relacionar com os seres que o compõem, pertençam eles ao domínio da natureza ou
não.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 68
Mastop-Lima, 2002
16
Cf. Viveiros de Castro (1986); Laraia (1986) e Rodrigues (1995).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 70
Mastop-Lima, 2002
que veio a ser desmentido pela história, como coloca Viveiros de Castro (1986). Isso
se daria, segundo ele, devido à crença quase unâmine entre os autores em uma
“fragilidade” Tupi-Guarani em relação ao contato, o que era, para Viveiros de
Castro, mais aparente do que real. É justamente a “... homogeneidade em relação ao
discurso cosmológico, aos temas míticos e à vida religiosa... ” entre os Tupi-Guarani
que torna a “fragilidade” aparente (1986: 90).
“... grande grupo de índios tupi com um ancestral único e cujos filhos deram origem
aos próprios Parakanã, aos Asuriní do Tocantins, aos Suruí, e possivelmente a
muitos outros grupos que ou desapareceram, ou, dali emigraram mas que, num
passado distante, teriam vivido juntos.” (1994: 88)
de uma curica.17 Os três grupos diferenciam-se, segundo ele, por alguns aspectos na
língua e também na mitologia. Ywynuhu, ao me relatar algumas narrativas míticas,
reforçou que elas também existem entre os Parakanã e os Asuriní, só que eles as
contam de forma “errada”, afirmando a identidade Suruí/Aikewára em contraste ao
que lhe é estranho nos demais grupos.18
“A ‘owera’ costuma sair do corpo, enquanto a pessoa dorme, possibilitando que este
possa ser invadido pelo ‘asonga’ (anhang. entre os Kaapor), espírito dos mortos, que
provoca sonhos. Os ‘asonga’ são espíritos que vagam pela terra até que são
chamados para o céu. Durante essa permanência andam pela floresta e podem ser
vistos, podendo tornar doente quem tiver a infelicidade de os encontrar. Mas os
‘asonga’ não perambulam eternamente pelo mundo: ao contrário, a sua permanência
é curta e um dia atingem o céu, através da ‘itakuara’ (grutas), onde habitam os
‘karuwara’ constituindo um outro tipo de espírito.” (1986: 238)
Quando estive entre os Suruí/Aikewára pude verificar que eles usam o termo
asomera para designar alma, que me pareceu vinculada ao espírito dos mortos. Não
os ouvi falar em asonga, no entanto, falaram-me dos Karuára como sendo o espírito
dos pajés que já morreram e que habitam a floresta, podendo, da mesma forma que a
descrição do asonga acima, ser vistos e também provocar doenças em quem os
desrespeitar.
17
Ave semelhante a um papagaio.
18
Andrade (1993), em sua dissertação de mestrado sobre os Asuriní do Xingu, cita apenas os
Parakanã como advindos do mesmo grupo que os Asuriní; o mesmo acontece em Fausto (2001), na
etnografia sobre os Parakanã.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 73
Mastop-Lima, 2002
Essa crença traz elementos que podem ajudar a refletir sobre a cosmologia
dos Tupi, em geral, e dos Suruí/Aikewára, em particular, pelo fato de Laraia mostrar
que a itakuara é o caminho que leva ao céu, chamado iwaga. O iwaga, segundo
Laraia, está localizado acima das nuvens, e lá vivem ancestrais dos Tupi. Ele obteve
uma descrição do iwaga entre os Suruí/Aikewára e os Asuriní, ressaltando que a
versão coincide com a descrição colhida por Nimuendajú entre os Tembé, que é aqui
reproduzida:
“'Perto da casa de Mahira está uma grande aldeia. Seus habitantes vivem
magnificamente. Para seu sustento diário necessitam apenas de algumas pequenas
frutas semelhantes a cuia; sua plantação não necessita de cuidados: ela se planta e se
colhe sozinha. Mahira e seus companheiros no campo de ikawéra tem o nome de
karowara. Quando envelhecem não morrem, mas tornam-se novamente jovens.
Cantam, dançam e celebram festas sem cessar.” (1986: 238)
19
O Ahioháia descrito por Laraia (1986) corresponde à Festa dos Karuára descrita por mim mais
adiante. Segundo Laraia, essa cerimônia refere-se à dança de Mahíra no céu. Ela lhe foi referida pelo
pajé da tribo, quando a lua estava rodeada por um “grande círculo luminoso,” dentro do qual os
homens dançavam e as mulheres dançavam fora dele (1986: 249-250).
20
Cf. Laraia & DaMatta (1967); Ricardo (1985) e Beltrão (1998a).
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 75
Mastop-Lima, 2002
“... o pai [...] tirando puba 21 [...]. Aí depois que eles vieram, tirou tudo que é puba
[...] aí diz que eles iam entrar na casa, aí diz que eles viram o facão pendurado, aí
voltaram, correndo ... Aí depois que eles trouxe muita puba ...
“Fazia farinha, tudo, só uma pessoa pra todo mundo comer. Botava numa folha, [...]
botava dentro, aí deixava, levava pra ele, pro capitão, pra dar pra todo mundo.
“Levava um, que quando ele queria fazer uma festa [...], ele levava farinha nas costa,
comia com banana ... É, levava banana, levava um coisa desse, farinha lá pra roça
pra eles comê ...”
21
Puba “1. A mandioca posta na água até amolecer e fermentar.” (AURÉLIO, 1995: 537)
22
Santos (1994) também registra o mito referente ao fumo entre os Parakanã.
23
Voltarei a tratar das pinturas no quarto capítulo, em que tratarei do significado que elas revelam.
Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára 76
Mastop-Lima, 2002
ambiente também pode ser verificada na organização social, como no caso dos cinco
grupos exogâmicos de descendência unilinear existente entre os Suruí/Aikewára,
segundo Laraia (1967; 1986): koaci-arúo (coati), saopakania (gavião), ywyra (pao),
pindawa (palmeira) karajá.24 Este último clã, de acordo com Laraia (1967),
originou-se pelo fato de haver entre os Suruí/Aikewára mulheres raptadas de um
grupo por eles denominado “Karajá” e o marido de uma delas tentou recuperá-la,
sendo aprisionado pelos Suruí/Aikewára, que lhe deram uma mulher Suruí em troca e
não deixaram mais abandonar a tribo, e seus descendentes passaram a fazer parte do
clã karajá.
clã de seu pai biológico, e sim do social. Essa foi, segundo o autor, a forma de os
Suruí/Aikewára tentarem “... conciliar as tradições fortemente patrilineares do
grupo...” (1963: 73) com a situação em que se encontravam.
Do grupo que conversava tomaram parte homens casados - entre eles Mairá, o
cacique - suas esposas, e algumas crianças e jovens. Awarini estava animado,
gesticulando e usando de onomatopéias para dar mais vida às narrativas. Os demais
ouviam com muita atenção e admiração sobre as muitas vezes que o grupo havia
mudado de aldeia; os costumes de caçar jabuti e comer peixe; as modificações no
tipo de moradia. Awarini chegou a desenhar um mapa no chão, que mostrava o
interflúvio Itacaiúnas/Sororó, para poder mostrar como o grupo foi mudando de local
dentro do território Suruí, que se estendia até Marabá.
O que me chamou atenção naquele momento, além das narrativas, foi o clima
em que foram narradas, com destaque para a importância que assumem os mais
velhos no grupo Suruí/Aikewára. Fiquei animada, pois pensei que fosse encontrar o
mesmo clima sempre que perguntasse por uma de suas histórias. Não demorou
muito para eu retificar minha expectativa, pois quando fui perguntar a outra pessoa
mais velha sobre as narrativas, como falei anteriormente, ela respondeu que o que eu
havia ouvido de Awarini era o que valia.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 81
Mastop-Lima, 2002
“... quando o indio, não estando perto da fogueira, cercado de ouvintes noturnos,
nem de posse de todas as circunstancias que tornam a narração conveniente e
agradavel, é friamente convidado a relatar uma estória mitologica mostra-se incapaz
do esforço mental necessario para lembrar-se dela e, porisso, pronta e
obstinadamente alega ignorancia.” (1952: 10)
A importância dos mais velhos para o relato dos mitos é também registrada
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 82
Mastop-Lima, 2002
1
Ao decorrer do trabalho uso “(re)” antes de alguns verbos para referir ações simultâneas. No caso
citado, refiro-me à análise das narrativas feitas pelos Suruí, construídas a partir de referenciais
tradicionalmente ensinados pelos mais velhos e experientes do grupo e reconstruídas a partir de
circunstâncias em que são atualizadas, como por exemplo a incorporação de elementos do contato.
2
Doravante AD.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 83
Mastop-Lima, 2002
Memória e identidade
A luta para ser índio, caracteriza-se por ser a luta para se mostrar gente, e
gente diferente que precisa ser respeitada em suas particularidades étnicas. A luta
dos Suruí/Aikewára pode ser verificada quando se organizam em uma associação
para reivindicar seus direitos, quando se associam com outras etnias indígenas, como
ocorre com o caso da APITO, ou mesmo quando se apresentam ao grupo de
universitários evangélicos também como crentes em Deus, enfatizando que têm seus
próprios deuses, conforme o que mostrei ao primeiro capítulo. Manter marcas
étnicas como a narração de mitos e histórias de contato que dão significado ao
espaço por eles ocupado é também uma forma de caracterizar a luta para ser
reconhecido como gente, além de manter as fronteiras que os distinguem de
membros da sociedade não-indígena e de membros dos demais grupos indígenas.
Entre os Suruí/Aikewára pude perceber que é bem diferente o lugar dos mais
velhos no grupo, se comparados aos mais velhos na sociedade não-indígena. Os
Suruí/Aikewára respeitam e valorizam os mais velhos e experientes do grupo, pois
são eles conhecedores dos aspectos que constituem a identidade étnica do grupo; é a
partir do conhecimento deles que os mais jovens são socializados em relação a ser
Aikewára.
O mito me foi relatado por Ywynuhu Suruí, não no contexto da escola, mas
em conversa comigo, com uso de gravador. Ywynuhu é neto de Awarini e faz
questão de mostrar que aprendeu o mito com o avô, que além de ser um dos índios
mais velhos da aldeia, é um dos mais apreciados especialistas em narrar histórias. O
modo como narrou o mito, preocupado em mostrar os detalhes da trama, indica a
3
Baseada em Lévi-Strauss (1991), indicarei a seqüência de mitos pela abreviatura M e os números
correspondentes. As histórias de contato serão indicadas pela abreviatura H e os números
correspondentes.
4
Todos os mitos e histórias de contato aqui apresentados, sejam transcritos de gravações sejam
registrados no contexto da escola, seguem o registro original dos narradores, a fim de nos familiarizar
com a maneira nativa de narrar.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 86
Mastop-Lima, 2002
Há, ainda segundo Pollak, uma “... ligação fenomenológica muito estreita
entre a memória e o sentimento de identidade.” (1992: 204), o sentimento de
identidade é um dos elementos que constitui a memória. Esse sentimento expressa
continuidade e coerência de um grupo ou de uma pessoa, no processo de
reconstrução do passado, a partir da memória. Assim como a memória, a identidade
também é socialmente construída e reconstruída, para ele “... memória e identidade
podem ser negociadas, e não são fenômenos que devam ser compreendidos como
essências de uma pessoa ou de um grupo.” (1992: 204), o que significa dizer que as
transformações manifestas na construção e reconstrução da memória e da identidade
de um indivíduo ou de um grupo devem ser consideradas historicamente.
5
Para contextualizar elementos referentes ao território Suruí e à interação deles com o meio ambiente
que ocupam, foi preciso identificar referenciais dos quais dependem a memória do grupo. Para tanto,
me vali de uma ficha para levantamento de dados, a fim de realizar um inventário das formas de
interação do grupo com o meio ambiente. De forma tradicionalmente realizada pelos antropólogos,
tomei como base o Guia Prático de Antropologia para a elaboração da ficha, que segue em anexo.
Ver Anexo 1: Ficha para levantamento de dados.
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 88
Mastop-Lima, 2002
Tenho dito ao decorrer do trabalho que a partir dos mitos e das histórias de
contato podemos observar a interação dos Suruí/Aikewára com o meio ambiente,
costumes e tradições do grupo que revelam manutenção de traços culturais,
caracterizando os Suruí/Aikewára como grupo étnico, com fronteiras demarcadas em
relação à sociedade e aos demais grupos étnicos. Procuro neste capítulo analisar
mitos e histórias de contato, tratando dos aspectos que revelam a identidade
Suruí/Aikewára, a partir de referências da Antropologia estrutural (mitos) da AD
(mitos e histórias de contato).
distantes. Além do mais, como os Suruí/Aikewára não estão acostumados com esse
tipo de trabalho em sua área, alguns dos mitos coletados possuem caráter
fragmentário, o que dificulta análise mais profunda.6 Em vista disso, proponho-me,
por hora, a investigar o que os mitos revelam do contexto etnográfico
Suruí/Aikewára e o que o contexto revela dos mitos ou, nas palavras de Malinowski,
como os mitos significam o mundo dos Suruí/Aikewára.
Segundo Lévi-Strauss, “... tudo pode acontecer num mito.” (1975: 239), pois
os acontecimentos que o compõem não obedecem a uma regra de lógica ou de
continuidade. Ele se reporta ao trabalho de Sausurre na lingüística para referir que o
mito é parte integrante da língua, o conhecemos pela palavra e provém do discurso.
O mito, continua Lévi-Strauss, está na linguagem e além dela.
“... uma das contribuições mais importantes da AD para a análise antropológica seria
a de estabelecer a espessura significativa, pela explicitação da instância de
compreensão como intermediária da interpretação.” (1990: 174-175)
vencendo a disputa por não aceitar uma filha com rabo, o que não acontece desde o
início da narrativa em relação à mãe; c) a divisão sexual do trabalho também é
destacada na narrativa; a mulher cozinha, permanece em domínio doméstico e o
homem é responsável pela caça, realizando expedições à floresta.8
O mito também revela uma estratégia de caça usada para captura de cutia: a
tocaia (tukása), indicando que é uma armadilha preparada com paus e palhas. Revela
também que os Suruí/Aikewára precisam conhecer os hábitos dos animais que
desejam caçar: o pé de inajá “bom de cutia” significa que eles conhecem os hábitos
alimentares da cutia e sabem onde procurá-la no meio ambiente que ocupam.9
Mostrei ao primeiro capítulo que os Suruí/Aikewára usam também outras estratégias
de caça, como por exemplo, a espera. Vemos também a atualização do mito, quando
o fato de o homem ter matado a cutia à bala, revela o uso de armas de fogo, como é o
caso da espingarda, usadas pelos Suruí/Aikewára para a caça.
A seqüência do mito que refere o episódio do cipó revela mais uma vez que o
conhecimento que possuem da natureza é usado em seu propósito, além do que a
estratégia de enganar a mulher com o sumo do cipó que se assemelha a sangue,
refere ainda o uso de artifícios outros que não a força para atingir algum intento.
Quanto à seqüência da mãe e da filha que ficaram presas na toca, pode revelar
que ter uma filha com rabo não é algo que pertença ao domínio da cultura, prendê-las
8
É interessante notar que as expedições à floresta não são feitas de modo aleatório. Os Suruí
conhecem a direção de cada lugar da floresta onde desejam ir, tomando referenciais como árvores por
exemplo. Lembro que antes de acompanhar Maria e Sy’a numa expedição à floresta à “caça de cupu,”
Sy’a informou que havia encontrado o fruto “lá onde fica aquele pé de piqui.” Laraia, a respeito do
conhecimento que os Tupi têm da floresta, diz que “[a] visão que um índio Tupi tem deste mesmo
cenário [a floresta] é totalmente diversa: cada um desses vegetais tem um significado qualitativo e
uma referência espacial. Ao invés de dizer como nós: ‘encontro-lhe na esquina junto ao edifício X,’
eles freqüentemente usam determinadas árvores como ponto de referência. Assim, ao contrário da
visão de um mundo vegetal amorfo, a floresta é vista como um conjunto ordenado, constituído de
formas vegetais bem definidas.” (1986: 69)
9
O conhecimento dos hábitos dos animais para criar estratégias de caça é algo presente em todas as
sociedades indígenas. Pozzobon, por exemplo, ao estudar os Maku, assim descreve: “[c]ada animal
tem sua pegada ... se só tem folha morta no chão ... [v]ocê tem que avaliar a distância entre as folhas:
as que foram viradas pelas patas dianteiras e as que foram viradas pelas patas traseiras. Pela distância
dá para saber o tamanho do bicho. [Mas] para saber mesmo, você tem que prestar atenção nos outros
sinais. Que folhagens o bicho mastigou? Quais frutas ele comeu? O cocô dele, como é? Se tiver
macucu roído, é paca. Muito caroço de bacabinha sem resto de polpa no chão é macaco de cheiro ou
macaco barrigudo.” (2001: 21). Sobre o assunto, consultar, entre outros Mellatti (1993); Ribeiro
(2000) e Pozzobon (2001).
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 96
Mastop-Lima, 2002
A mesma seqüência do fogo que sobe da gordura do Kayapó foi narrada por
Ywynuhu em uma de nossas conversas. Segundo Ywynuhu Suruí (10/03/2001), os
Suruí matavam os Kayapó, esquartejavam-nos e colocavam para assar no fogo. O
fogo que subiu da gordura dos Kayapó um dia vai descer e queimar todos os
sobreviventes. Assim contava, falava, Moroneikó, antigo cacique, que dá nome à
escola da aldeia. Se compararmos M2, H1 e o relato de Ywynuhu temos a oposição
água/fogo marcando o início do mundo como os Suruí/Aikewára o conhecem (água)
e o fim desse mundo, do mundo dos Suruí/Aikewára (fogo).
entre locutores. Para que o discurso tenha sentido, é preciso que exista sentido em
relação ao que se conta. (ORLANDI, 1990) Ao narrar o mito, além de sujeito, o
narrador é também locutor. Em relação às condições de produção do relato do mito,
podemos pensar o pesquisador como interlocutor, na interação com o qual é
produzido o discurso mítico. Há interlocutores no próprio mito, como é o caso do
marido e da mulher em M1.
M2. “Na época do dilúvio o mundo era menor e as estrelas e o céu eram mais perto
da terra. No dilúvio existiam muitos índios. Com o dilúvio, deles, só ficou um índio
que subiu numa árvore chamada Sarawyw. Ele esperou dia e noite para a água
descer. Tudo o que tinha no céu desabou. Ele descia para ver se a terra já estava
11
A metodologia de trabalhar mitos e histórias a partir do contexto da escola está baseada em outros
trabalhos antropológicos. Sobre o assunto, consultar, entre outros, Índios Ticuna (1985); Costa
(1988); Gruber (1992); Ribeiro (1992) e Organização dos Professores Indígenas do Acre (2000).
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 99
Mastop-Lima, 2002
seca, dando para andar. Quando ele conseguiu descer, ele viu um rastro e o seguiu,
gritando por alguém, mas só encontrou o mutum e a garça na água [provavelmente
um igarapé]. Quando ele voltou para o lugar onde descera, encontrou sua casa
construída. Foi atrás de uma pessoa novamente. Quando voltou, seu almoço estava
pronto. Ele procurava a pessoa que poderia ter-lhe construído a casa e preparado o
almoço, e quando voltou encontrou outras coisas feitas. Nas suas buscas só viu o
mutum e a garça, que nada lhe respondiam e apenas piavam para ele. Ele não
entendia os piados. Ele se escondeu e viu que eram os dois que faziam as coisas
para ele. O mutum e a garça se transformaram em mulher, tiveram relações com ele
e assim surgiram os Suruí.” (Ywynuhu Suruí, 10/03/2001)
um rastro que ele supõe ser de uma pessoa, por motivos revelados nas seqüências
seguintes, e até mesmo porque se encontrava sozinho. Em sua busca encontrou
apenas animais, seres pertencentes ao domínio da natureza. Ao regressar e encontrar
a casa construída sai novamente em busca de uma pessoa, porque só uma pessoa
poderia ter agido sobre o meio ambiente, transformando-o em traços culturais. Os
Suruí/Aikewára contam que antigamente suas casas não eram como o são hoje; havia
uma única casa onde todos moravam e não havia divisões internas em cômodos,
como o padrão da casa dos regionais que os Suruí/Aikewára acabaram imitando.
Comparando o padrão antigo e o tradicional de habitação, os Suruí relataram que na
época em que moravam numa só casa tinham possibilidade de aprender com mais
facilidade suas músicas e narrativas míticas, uma vez que à noite as pessoas mais
velhas e experientes do grupo costumavam cantar e narrar histórias para os demais, o
que representava uma maneira de socializar as gerações mais novas.
O mito também não indica que outras coisas estavam prontas quando o
homem voltou de sua segunda busca, mas pode-se pensar em elementos da cultura
material do grupo, com elementos da natureza manufaturados, o que indicava a
presença de outra pessoa no local. A transformação do mutum e da garça em mulher,
que se relacionou com o homem sobrevivente do dilúvio deu origem à sociedade, ao
grupo Suruí/Aikewára. É interessante observar também que um mundo foi destruído
para que um novo fosse construído, e digo construído, porque a aproximação entre
céu e terra ao início da narrativa sugere proximidade entre natureza e cultura, que
passam a ser distintas após o dilúvio. Penso isso baseada também em um fragmento
de mito coletado por Laraia (1986):
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 101
Mastop-Lima, 2002
Todos os aspectos dos mitos mostrados até aqui e os que citarei em outros
mitos, constituem o contexto etnográfico e podem ser entendidos, a partir da
perspectiva da AD, como os múltiplos sentidos do mito, além do que podem também
ser considerados como fazendo parte de uma comunidade discursiva que, além de se
remeter a um grupo específico, remete-se também a “... tudo o que esse grupo
implica no plano da organização material e dos seus modos de vida.” (ORLANDI,
1990: 185)
M5. “Era uma vez a festa lá no céu jacu e jacamin e outro bixarada naquele tempo o
céu era baixinho eles ouviram a festa lá no céu e queriam ir lá no céu. Jacu e
jacamim pegou a flexa e comesou a sesta [ a acertar] a flexa lá no céu. Asestou
[acertou] dois [duas] e jacu pensou no tatu e mandou o jacami[m] ir atras do tatu e o
tatu estava dormindo e a mulhe do tatu contou que já[ca]min estava atras dele e ele
sail para fora da casa e já[ca]min contou que tinha a festa lá no céu e contou que eles
jogaram a flexa e asestaram [acertaram] o tatu foi para lá e ele viu a flexa lá em cima
do céu e o tatu falou ci [se] eu sou craque eu vou asesta [acertar] atras do outro [da
outra flecha] e o tatu esticou a flexa e asestou [acertou] a ponta atras do o[u]tro [da
outra flecha que já estava no céu] e esticou de novo e asestou [acertou] de novo até
qui a flexa vem bem no chão e eles comesaram a bixarada a subir para cima do céu
e quando a bixarada ião xegando lá [n]o céu e a ponta da flexa arrancou e a bixarada
caíram tudo. Esta é a istoria nossa.” (Wiraiaru Suruí, 29/03/2001)
Aprendendo a significar a vida com os mais velhos 103
Mastop-Lima, 2002
M5 apresenta os mitemas:
De M6 destaco os mitemas:
especialistas em narrativas míticas e históricas. Pelo cuidado que ela tem com a
narrativa, parece reforçar a idéia de que filho ou neto de narrador pode ser um futuro
especialista, como falei anteriormente. Tymykong já foi professora na escola da
aldeia, ensinando na língua, e é uma das mais fervorosas defensoras do uso da língua
indígena, pois para ela o emprego da língua caracteriza um grupo como indígena e,
ao contrário, dos grupos indígenas que conhece e que falam apenas o Português não
são considerados por ela, nem pelos demais Suruí/Aikewára como índios. Registrar
o mito em Suruí representa uma forma de afirmação da identidade étnica do grupo.
Andrade (1992) coloca que para os Asuriní tudo o que eles sabem lhes foi
ensinado por Mahira. Foi Mahira quem lhes ensinou o cultivo da mandioca, além de
ter sido o criador dos Asuriní e o responsável por ordenar a terra. Entre os Asuriní,
assim como os Suruí/Aikewára, foi Mahira quem separou o céu da terra. Mas a
mitologia Asuriní refere que foi Mahira quem endureceu a terra com o auxílio da
anta. Tendo em vista a proximidade entre os dois grupos referida pelos
Suruí/Aikewára e pela bibliografia especializada, se compararmos o evento mítico
Asuriní ao relatado pelos Suruí/Aikewára, podemos inferir a possibilidade de o mito
Asuriní acrescentar informações ao mito Suruí.
“[p]arece ter havido uma primeira criação do universo e depois um dilúvio, quando a
terra acabou, ficou mole. Deste infortúnio, só sobreviveu um homem, abrigado no
alto de uma árvore de bacabeira. Foi então, que Mahira chamou a anta para que o
animal endurecesse a superfície da terra. Mahira também tirou sua própria costela,
transformando-a em uma mulher, o que permitiu que a população humana
aumentasse.” (1992: 117)
ter sido obtido junto a um urubu. Numa conversa que tive com Muretama, esposa de
Awassaí, o pajé Suruí, ela referiu que os Suruí/Aikewára conseguiram fogo também
a partir de roubo junto ao urubu. Infelizmente não consegui maiores informações a
respeito do mito que narra o fato, mas penso que talvez o mito da obtenção do fogo
entre eles esteja relacionado a M6, do qual o mito Parakanã parece acrescentar
informações. Mas essa é uma questão que por ora ficará em aberto, já que não
disponho de elementos suficientes para apresentá-la.
kewára
onde sei correr.
Reservei para este capítulo uma história de contato narrada por um dos alunos
da escola indígena Moroneikó Suruí a partir da qual descreverei dois rituais
realizados pelos Suruí/Aikewára e farei algumas considerações sobre o corpo entre
eles. Eis a história.
A história remete ao tempo antigo entre os Suruí, que traz, entre outros temas,
o da alteridade: quando os “outros” são os kamará e quando os “outros” são os
próprios Suruí/Aikewára, em outro tempo e outro espaço que, em contraste com os
atuais Suruí, indicam elementos da identidade étnica do grupo. (NOVAES, 1993) O
kamará representa um inimigo e uma ameaça para a sociedade Suruí/Aikewára, e
precisava ser morto a flechadas por Sahy. Os Suruí/Aikewára do passado aparecem
nas figuras de Sawapiron, Kusamaru, Sahy e Sawarapi, personagens da história,
detentores de saberes que caracterizam etnicamente o grupo, realizando modos
específicos de fabricar os objetos de sua cultura material, em relação à técnica e à
matéria-prima utilizadas, por exemplo, retirada do meio ambiente.
Para citar um exemplo da tradição que vem sendo mantida pelo grupo, o
fabrico de araráw (Desenho 3) e atutú1 (Desenho 4) está ainda presente na sociedade
Suruí/Aikewára, sendo usados em ocasiões especiais, nos rituais Sapurahái e na
Festa dos Karuára, descritos a seguir, ritos em que eles, devidamente pintados e
adornados, cantam e dançam ao som das músicas entoadas pelo pajé e pelos mais
velhos do grupo.
“Fazer fogo com pau” é um costume que já não é visto com tanta freqüência
entre eles, uma vez que se utilizam de fósforos e isqueiros. Mas alguns dos índios
mais velhos, como por exemplo Mihó, ainda mantêm em suas casas “paus para
fogo,” pois fazem demonstrações de como utilizá-los. Os Suruí/Aikewára
apresentam esse antigo costume para algum kamará que esteja na aldeia e também
para os demais Suruí, especialmente para os mais novos, como parte de sua educação
e socialização no grupo, para aprenderem como se vivia no tempo antigo. As
demonstrações também são raras para os “de fora” porque requerem tempo,
paciência e persistência, o que não pode ser feito em uma apresentação rápida.
1
Araráw é um enfeite radial de cabeça, semelhante a um cocar, feito de penas de arara, tucano ou
mutum, palha de coco babaçu e fio de algodão para o uso masculino; atutú é também um enfeite de
cabeça, feito de penas de arara ou tucano e fio de algodão, que se diferencia do araráw pelo uso, que é
feminino, e pelo formato, pois as penas ficam dispostas num tufo sobre a cabeça.
Socorro Lacerda
Desenho 3. Araráw
Socorro Lacerda
Desenho 4. Atutú
Luiza Mastop-Lima
Foto 24. Sawara´a fabricando araráw
Marcando fronteiras: rituais e corpo 111
Mastop-Lima, 2002
observada quanto aos nomes próprios: Sahy, é a palavra nativa para designar “lua,”
Awasaí é uma espécie de açaí. Além desses, outros são os exemplos de nomes
próprios que significam elementos do meio ambiente, apresentados no Quadro 1:
H3. “Quando o parente deles mor[r]ia de catapora ele inter[r]ava masado [machado]
e insada [enxada] o facão no burac[o] onde o parente dele esta morto de catar[r]o ou
de catapora. Aldeia deles de ve[r]dade era em Saravozío [?]. Ele[s] vivia[m]
correndo de doença vivia[m] cor[r]endo de bra[n]co ele tiamedo [tinha medo] de
bra[n]co porque eles tiamedo de mor[r]e[r] e bra[n]co queria matar os indios um dia
um indio frechou um homem os parente deles viero[am] querendo ataca[r] os indio.”
(Junio Suruí, 29/03/2001)
Ainda uma vez o “branco” aparece como uma ameaça aos índios. A história
Marcando fronteiras: rituais e corpo 112
Mastop-Lima, 2002
Os rituais
Quando estive entre os Suruí/Aikewára pude observar que eles realizam dois
tipos de rituais: um que recebe a denominação genérica de Sapurahái, apresentando
variações, e outro denominado Festa dos Karuára.
O primeiro Sapurahái que presenciei foi à época em que fiz minha primeira
viagem à aldeia Sororó, em julho de 2000. Era véspera de eu sair da área e já estava
frustrada por ainda não ter observado o ritual que eles me relatavam. Ao final da
tarde e início da noite Awasaí saiu pela aldeia, acompanhado de Muretama, sua
esposa, com um araráw à cabeça e arco e flechas em uma das mãos, chamando os
demais para a realização do ritual. Os primeiros a se arrumar para o ritual foram os
mais velhos, também com araráw, arcos e flechas. Depois foram chegando os
homens mais jovens, os meninos, as mulheres e as meninas. A impressão que tive
foi que eles não queriam deixar de expressar seus costumes a alguém “de fora” como
eu e que visitava a área pela primeira vez.
2
Em 1996, quando Roque Laraia voltou à Área Indígena Sororó, foi homenageado com danças. Ver
Laraia & Santilli (1997).
Luiza Mastop-Lima
Foto 25. Sapurahái 1
Luiza Mastop-Lima
Para a realização da festa é preciso que se construa uma casa ritual, chamada
Tokása,3 onde os Karuára permanecem durante a festa. Um dos homens, Masara,
mobilizou os demais para a construção da casa ritual. Masara foi ao mato cortar
pedaços de madeira finos para a armação da casa. A madeira utilizada na armação
da lateral da casa é mais fina que as demais para poder vergar e originar apoio para
as palhas que formam o teto da casa (Fotos 27, 28 e 29).
3
Denominação referida por Laraia (1986), que observou o ritual entre os Suruí e os Asuriní do
Tocantins (Akuáwa-Asurini). Segundo Laraia, a Tokása é “... a representação da Itakuara, sendo
durante a cerimônia ocupada pelos karoara.” (1986: 249) Andrade (1992) observou ritual semelhante
entre os Asuriní do Tocantins, em que também é construída a Tokása.
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Foto 27. Armando a Tokása 1 Foto 28. Armando a Tokása 2
Luiza Mastop-Lima
Os três também se destacam, além da função no ritual, pelo adorno que usam
na cabeça. Awasaí e Arikasá usam uma faixa emplumada na fronte,5 a de Awasaí
feita com penas vermelhas e a de Arikasá, mais espessa que a de Awasaí, feita com
4
Termo empregado por Regina Polo Müller, ao descrever os rituais realizados pelos Asuriní do
Xingu. Segundo ela, a vestimenta ritual é formada pela pintura corporal e os adereços utilizados para
o ritual, é “... quando o corpo, em ocasiões especiais, é suporte de manifestação simbólica, expressão
plástica do conteúdo ritual.” (1990: 125)
5
No Dicionário do Artesanato Indígena Berta Ribeiro assim define o artefato: “tira ou faixa
emplumada, que se usa na fronte, amarrada ao occipício.” (1988: 121)
Luiza Mastop-Lima
Foto 32. Homens Suruí à espera de iniciar o ritual
Luiza Mastop-Lima
Foto 33. Entrando na Tokása
Marcando fronteiras: rituais e corpo 118
Mastop-Lima, 2002
penas pretas (Foto 34 e Desenho 5).6 Sawara’a usa um araráw em que apenas
algumas penas caudais de arara dispostas na parte anterior do adorno, constituem sua
decoração.
Awasaí toma lugar no espaço da praça da aldeia que fica entre a casa de
Mairá e a Tokása. A partir dele, homens e meninos vão formando círculos. Arikasá
fica em frente a Awasaí, tendo de encará-lo durante o ritual, pois esse é seu papel. O
primeiro círculo formado a partir deles é o dos meninos mais novos, entre cinco e
sete anos aproximadamente. O segundo círculo é formado pelos homens mais velhos
e alguns meninos com idade superior a sete anos. Os homens mais jovens casados
ou solteiros e os meninos com cerca de 13 e 15 anos formam o terceiro e o quarto
círculos. O motivo de os homens mais jovens e os rapazes formarem os círculos
mais afastados de Awasaí e Arikasá é que esses círculos precisam se movimentar
mais rápido que os demais, respeitando o ritmo da música, a fim de não deixar que a
corrente se quebre, como forma de sustentar a tradição.
6
O atutú e a faixa emplumada frontal aqui reproduzidos foram oferecidos pelos Suruí à antropóloga
Jane Felipe Beltrão quando realizava o Laudo Antropológico - Área Indígena Sororó a propósito da
BR-153. Pelo que observei quando estive em campo, e pelo que me relatou Jane Beltrão, os artefatos
não são dados a qualquer pessoa em qualquer ocasião, pelo contrário, representam uma forma de
apresentação do grupo e indicam aceitação ou celebração de um acordo, pois ao oferecerem os
artefatos, os Suruí os colocaram à cabeça da antropóloga, ensinando-lhe seu uso. A faixa emplumada
frontal recebe destaque entre os demais adornos, pois é usada pelo pajé e por seu aprendiz, pessoas
essenciais para a organização social Suruí. A faixa foi entregue à antropóloga, segundo Beltrão, por
Muretama, esposa de Awasaí, pajé da aldeia, e já havia sido usada, portanto “ungida” pelo ritual, fato
que revela a sabedoria do grupo ao realizar “passos diplomáticos” na negociação com os kamará, e de
saírem de uma situação de conflito, de certa forma vitoriosos, como acontece com o jabuti da epígrafe,
que vence o concorrente usando de astúcia.
Luiza Mastop-Lima
Foto 34. Awasaí (direita) e Arikasá (esquerda) com seus adornos
Socorro Lacerda
Desenho 5. Faixa emplumada frontal
Marcando fronteiras: rituais e corpo 119
Mastop-Lima, 2002
apresentam pintadas de jenipapo e urucu e ornamentadas com seus atutú (Foto 35).
Algumas delas carregam os filhos ao colo ou mesmo em tipóias, as tradicionais
tupása e as improvisadas com pedaços de redes de kamará amarrados à guisa de
tipóias.
Entre o último círculo formado pelos homens e o círculo das mulheres fica
Awarini, que dança no mesmo sentido que as mulheres e fica fumando um cigarro
comprido, soltando a fumaça sobre elas. Para os Suruí/Aikewára, a fumaça
Luiza Mastop-Lima
Foto 35. Meninas ornadas com atutú
Luiza Mastop-Lima
representa uma proteção às doenças e aos espíritos maus. Mas talvez Awarini só
defume as mulheres porque elas não fumam durante o ritual.7
À medida que vão dançando, começa a levantar poeira no local e algum Suruí
que não esteja participando da dança fica encarregado de borrifar água no local, com
o cuidado de não borrifar muita água para que não se forme lama (Foto 38). Entre o
repertório das músicas duas em especial merecem destaque: uma que chama os
Karuára para a aldeia e outra que os avisa do final da dança, dizendo que podem ir
embora. Segundo os Suruí/Aikewára, quando o vento sopra ao início da dança é
sinal de que os Karuára chegaram, e quando sopra ao final é sinal que estão indo
embora.8
A dança dura cerca de uma hora e meia, após aproximadamente dez voltas
completas em torno de Awasaí e Arikasá; e quando se aproxima o final da dança, os
participantes aceleram o passo (Foto 39), para em seguida parar. Os que ficam
assistindo aos demais dançarem levam vez por outra água para eles, ou então os que
dançam saem momentaneamente do círculo para beber água, retornando em seguida.
Quando são as mulheres a sair do círculo, antes de retornarem às suas posições,
levam água para seus maridos ou filhos.9
7
A prática da defumação com finalidade de cura é também verificada em rituais de pajelança cabocla.
Além de realizada com cigarros de tauari, semelhantes aos utilizados pelos Suruí, a defumação na
pajelança cabocla também é feita com fogareiro. Sobre o assunto, consultar Maués (1995).
8
É interessante notar que a época em que se realiza o ritual é considerada “ventosa,” em que os ventos
varrem a aldeia, levantando poeira, quando os Suruí dizem que um “ventinho,” uma brisa, traz e leva
os Karuára, parecem indicar que os ventos estão sendo “controlados” pelo ritual, afirmando o
domínio da cultura sobre a natureza.
9
A solidariedade dos que assistem ao ritual para com aqueles que o praticam é uma forma de apoio e
incentivo à realização e manutenção da tradição. Essa característica pode ser observada também em
outros contextos como por exemplo nas maratonas, quando as pessoas que assistem ao desenrolar das
provas distribuem água aos participantes, ou mesmo no Círio de Nazaré, quando as pessoas que
acompanham a procissão à corda recebem água dos demais romeiros. Para informações mais
detalhadas sobre o Círio de Nazaré, consultar Alves (1980).
Jane Felipe Beltrão
Foto 38. Evitando poeira
Luiza Mastop-Lima
Foto 39. Acelerando o passo
Marcando fronteiras: rituais e corpo 121
Mastop-Lima, 2002
vez que se dança e se retorna à casa ritual, o tempo de permanência dentro dela é
maior. Todos os que ficam na Tokása sentados ao chão ou em troncos da armação da
casa, conversando. Awasaí, Arikasá e Sawara’a permanecem em pé, como “esteios”
rituais. Awasaí recomeça a cantar, dessa vez chamando pelo nome de todos os que
se encontram na casa, por isso o maior tempo de permanência dentro dela, em
comparação ao início da dança (Fotos 40, 41 e 42).10 Penso que o canto com os
nomes dos participantes que se encontram na casa seja a apresentação dos mesmos
aos Karuára, já que dividem o espaço com eles.
10
Alguns dos homens e meninos Suruí pediram que eu fizesse foto deles dentro da Tokása. Entendi o
pedido como algo relevante para a apresentação do grupo, pois o registro visual do ritual é uma forma
de mostrar quem são, o que fazem e como fazem. É um modo de reforçar o ensino da tradição aos
mais jovens do grupo e de marcar a diferença entre eles, os demais grupos indígenas e os kamará.
11
Os Suruí que se dizem evangélicos não dançam mais no ritual porque aprenderam na rua que é algo
que atenta contra os ensinamentos de Deus, é algo proibido. É interessante notar que, embora não
dancem com os demais, estão envolvidos na rede de apoio formada para a realização do ritual, seja
preparando refeições para todos na aldeia, seja molhando a terra e os pés dos participantes, a fim de
evitar poeira.
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Foto 40. Homens e meninos na Tokása 1
Foto 41. Homens e meninos na Tokása 2
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Foto 44. Enquanto Muretama espera, pode-se ver a marca da dança no chão
Luiza Mastop-Lima
Luiza Mastop-Lima
Foto 45. Adorno pendurado à entrada da Tokása Foto 46. Adornos pendurados às paredes da Tokása
Luiza Mastop-Lima
Foto 47. Saindo da Tokása
Marcando fronteiras: rituais e corpo 122
Mastop-Lima, 2002
O ritual recomeçava toda manhã por volta das seis horas, e os passos
descritos anteriormente eram repetidos a cada vez que se reuniam para dançar. Após
o término da dança pela manhã era servido café aos participantes, acompanhado de
pão ou bolachas. À hora do almoço, todos dirigiam-se à casa do sogro de Mairá
onde eram preparadas as refeições para todos, sem exceção, já que ninguém podia ir
à mata caçar ou pescar. À tarde, quando a dança termina também é servido lanche e
depois o jantar.
Ao final dos nove dias seguidos de festa, os homens saíram da casa ritual com
seus adornos em mãos, produzindo um som agudo que marca o final do ritual, em
tom de alívio e satisfação pelo dever cumprido. Foi muito bonito ver a garra dos
mais velhos que em nenhum momento abandonaram seus lugares no ritual. É bem
verdade e compreensível que as pessoas mais velhas já apresentavam sinais de
cansaço: Awasaí já não cantava tão alto, o mesmo acontecendo com Sawara’a, que já
não corria como ao início, ora corria ora andava e seu grito já não ecoava. Mas
também é verdade que eles demonstraram muita força participando até o final do
ritual, sendo mais um motivo para conquistarem a admiração e o respeito dos mais
jovens. Um dos índios mais velhos da aldeia, Marahí, de 86 anos, dançou até o final,
mesmo sendo segurado pelo braço por algum outro Suruí/Aikewára. Ele tanto queria
participar da festa, quanto os demais queriam que isso acontecesse. O esforço de
Marahí era motivo de comentários orgulhosos pelos demais participantes do ritual,
pois viam nele um exemplo a seguir quanto à manutenção da tradição.
Quem apareceu à tarde do último dia de festa foi a antropóloga Jane Beltrão,
acompanhada da antropóloga Pascale Robert e do funcionário da FUNAI Odinei,
pensando que o final da festa fosse à tarde.12 Fiquei impressionada ao ver que
mesmo com todo o cansaço Awasaí ainda reuniu alguns dos homens e fez uma
rápida demonstração do ritual para os convidados, como um sinal de respeito a eles e
de cortesia dos Suruí/Aikewára. Afinal de contas, a realização da festa os marca
etnicamente.
Laraia (1986) afirma, como dito anteriormente, que os asonga vagam pela
terra, pela floresta e devem passar pela itakuara (grutas) para atingir o iwaga (céu),
onde moram os karuára. Segundo o autor, a descrição do iwaga que obteve entre os
Suruí e os Akuáwa-Asurini informa que o céu é o lugar da fartura, onde as pessoas
não morrem, cantam e dançam sem parar. Lembro a descrição a fim de associar as
informações à realização do ritual dos Karuára que observei entre os
Suruí/Aikewára. O ritual realizado pelos Suruí talvez seja uma representação da
“andança” dos asonga em busca do céu. No ritual, homens e meninos passam pela
Tokása13 para adquirir o conhecimento necessário para a prática de seus costumes e
12
Ocorreu que Mairá informou que a festa terminaria num determinado horário, como fazem os
kamará, mas pelo que pude perceber, o ritual tem tempo próprio, determinado por circunstâncias
diversas que independem do “tempo do relógio.” Organizar uma apresentação, mesmo que
improvisada, revela astúcia, sabedoria e diplomacia para contornar o suposto mal-estar gerado pelo
“desencontro.”
13
Tokása ou tukása, como ouvi na aldeia, significa “tocaia.” Como hipótese, a Tokása representa
armadilha para os espíritos, capturados no domínio da aldeia, portanto da cultura, condição em que os
Suruí podem se comunicar com eles e não apenas temê-los, como acontece na floresta, visto que
Luiza Mastop-Lima
O corpo14
Laraia (1986) destaca o temor e a resistência dos Suruí em conduzi-lo a uma gruta, onde moram os
karuára.
14
Sob o título Suruí/Aikewára: marcas étnicas a partir do corpo, uma primeira versão desta parte do
capítulo foi apresentada na sessão Corpo: concepções e marcadores sociais, do GT Saúde, corpo e
imaginário, no X Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste do Brasil, realizado em Salvador
– Bahia, em agosto de 2001. Outra versão foi apresentada no Encontro Internacional de
Pesquisadores de Línguas Indígenas, realizado em Belém – Pará, em outubro de 2001. (No prelo)
Uma terceira versão foi apresentada, em co-autoria com Domingues-Lopes & Beltrão, sob o título Ser
Aikewára, ser Xikrín: exercitando a humanidade, estudo comparativo da concepção do corpo em
sociedades Jê e Tupi a partir das sociedades Suruí/Aikewára e Xikrín do Cateté, no VII Encontro de
Antropologia Norte e Nordeste – Antropologia Contemporânea: campos, teorias e métodos, realizado
em Recife – Pernambuco, em novembro de 2001.
Marcando fronteiras: rituais e corpo 126
Mastop-Lima, 2002
Fazer uso do corpo para expressar sua existência social é o que há de comum
entre as sociedades indígenas brasileiras, o que as diferencia é justamente o modo
como cada uma delas concebe o corpo. A diferença aparece, entre outras formas, em
relação aos ornamentos que utilizam, à pintura corporal, às restrições alimentares no
que diz respeito, por exemplo, a determinados estados da vida, como o nascimento, a
gravidez, o pós-parto, o período menstrual. Levando em conta esses aspectos,
lembro Viveiros de Castro em seu artigo sobre a fabricação do corpo na sociedade
Yawalapíti, quando mostra que o social cria o corpo, e que “... o corpo é corpo
humano a partir de uma fabricação cultural.” (1987: 35)
“... o que caracteriza a arte indígena é, em primeiro lugar, o pendor a adornar o corpo
e construir artisticamente a casa e todos os artefatos ... Em segundo lugar, a
circunstância de todos os membros de um grupo indígena serem capazes de fazer
todos os artefatos de que necessitam, distinguindo-se, no entanto, os verdadeiros
artistas por seu virtuosismo e fruição criativa. ... Sexto, a constatação de que na
ornamentação corporal nada é gratuito. Cada adorno tem uma história e uma razão
de ser, seja ele a pintura corporal, o adereço plumário ou de que natureza for. O
conjunto dessa ornamentação perfaz um código simbólico que singulariza a etnia e
classifica visualmente o indivíduo.” (1989: 120-1. Grifos meus.)
Com base nos aspectos teóricos mostrados, vejamos como eles podem ajudar
na análise dos contextos da pintura corporal entre os Suruí/Aikewára.
15
Referido no Dicionário do Artesanato Indígena como “ralador raiz de paxiúba”, uma “... prancha da
raiz aérea, rígida e áspera, da palmeira paxiúba (Iriartea exorrhiza Mart.), aparelhada para servir de
ralador.” (1988: 271)
Marcando fronteiras: rituais e corpo 128
Mastop-Lima, 2002
Como são muito procuradas, as mulheres mais habilidosas dão prioridade aos
membros de suas famílias, numa escala que vai dos maridos e filhos até as noras,
genros e netos. No caso das famílias de seus filhos e filhas, a prioridade é para os
netos, já que as noras, por serem mulheres casadas devem cuidar de seus maridos, o
que inclui o fato de os pintarem.
16
Garrafas de plástico com capacidade para dois litros de refrigerante.
17
Para exemplificar o que Mauss diz em relação ao modo de servir-se do corpo variar de sociedade
para sociedade, o que é ratificado pelos demais autores aqui citados, gostaria de citar o modo como os
Xikrín do Cateté, sociedade indígena Jê, obtêm os pigmentos naturais preto e vermelho também a
partir do jenipapo e do urucu. Em conversa com Rita de Cássia Domingues-Lopes, que realizou
trabalho de campo entre os Xikrín à mesma época que estive entre os Suruí/Aikewára, tomei
conhecimento que os Xikrín, diferentemente dos Suruí, não ralam o jenipapo, e sim o amassam com
água e carvão para obter o pigmento preto. O urucu é por eles misturado com óleo de coco babaçu.
Para uma descrição mais detalhada do processo de obtenção dos pigmentos naturais utilizados pelos
Xikrín para a pintura corporal, consultar Domingues-Lopes (2001) e Mastop-Lima, Domingues-Lopes
& Beltrão (2001).
Luiza Mastop-Lima
Dentre as pinturas citadas, as que não costumam ser “de corpo todo” são:
jibóia, peixe, folha da castanha nova, folha da castanha velha e jabuti. As referidas
pinturas, à exceção da de jabuti, costumam ser usadas em combinação, uma pessoa
pode ser pintada com mais de um motivo decorativo. Homens e mulheres podem ser
pintados com os motivos da jibóia e do peixe, mas só às mulheres é permitida a
pintura das folhas da castanha e da ave jaó. As pinturas de jabuti, onça pintada, onça
preta, e casca de cajá, por sua vez, só são permitidas aos homens. A pintura de jabuti
deve ser feita apenas no tronco dos homens, frente e costas (Fotos 54, 55, 56 e 57).
Awahywa
Folha Velha da Castanha
Luiza Mastop-Lima
Além das fotos, os vídeos gravados com eles em espaços que constituem
referenciais para a memória coletiva do grupo, como é o caso da Serra das
Andorinhas e de Água Preta, representam maneiras de se apresentar perante os
demais grupos e a sociedade não-indígena, uma vez que sempre que há oportunidade
os vídeos e as fotos são exibidos a quem visita a aldeia. Para o grupo, as fotos
representam também uma forma de mostrar às novas gerações as pessoas que
compuseram/compõem o grupo, muitas vezes personagens das histórias de contato
que ouvem ao longo de sua socialização, e apresentavam/apresentam marcas
corporais que indicavam/indicam-nos como Suruí. Por isso as “encomendas” que me
faziam.
Suspendendo a atalaia 135
Mastop-Lima, 2002
A presença de kamará na aldeia não se dá, pelo que foi visto em Tibungando
entre os Suruí/Aikewára, apenas por motivo de trabalho. Há casos de uniões de
mulheres Suruí com kamará e de homens Suruí com kamarakusó. Apesar de não
permitidas, essas uniões também representam meio de aumentar a população Suruí,
visto que, como discutido em Tecendo tramas que revelam os Suruí/Aikewára, ser
filho de Suruí, mesmo que seja “misturado,” é um dos fatores apontados como
necessários à pessoa para que seja considerada membro do grupo. Nascer na aldeia
Suruí, saber e praticar costumes e tradições do grupo e falar a língua são outros
aspectos apontados como constituintes da identidade étnica Suruí/Aikewára.
Foi importante perceber que a interação dos Suruí com costumes de kamará
não os descaracteriza como Suruí. Pude verificar o fato a partir das festas de kamará
promovidas por eles na aldeia, em que usavam roupas e acessórios de “branco.”
Segundo eles, o fato de usarem calças jeans, tênis, sapatos altos, esmalte ou batom
não faz deles kamará ou kamarakusó, assim como o fato de os kamará se pintarem
com jenipapo e usarem adornos do grupo não os torna Suruí.
Maria ocupa lugar de destaque no grupo por ser reconhecida, entre as mulheres,
como uma das pintoras especialistas. Ela é aceita por ter aprendido a praticar com
destreza uma das marcas do grupo, a pintura corporal, como apresentei em
Marcando fronteiras rituais e corpo.
Usei essa imagem para mostrar que as narrativas míticas e históricas também
sofreram transformações e que mantêm eventos e personagens que marcam
etnicamente as narrativas, identificando-as como características da visão de mundo
Suruí/Aikewára. Apesar de produzidas com fios de kamará, as redes de dormir não
deixam de ser dos Suruí, pois eles imprimem nelas sua marca, expressa pelo material
e pelas técnicas empregadas. Ainda que sofram transformações, mitos e histórias de
contato expressam a marca do grupo, registrada e mantida por eventos e
personagens míticos.
Referências
Obras de referência
Bibliografia Referida
3. Componentes do GD
Nome Idade Escolaridade Atividades desenvolvidas
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________
_______________________ _________ ______________ ________________________
4. Alimentação básica
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
∗ Adaptação realizada a partir dos trabalhos de Evans Pritchard (1978) e Adrião (2001).
2
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
6. Sistemas de cura (tratamentos utilizados)
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
8. Condições da casa:
Familiar ( ) outros ( ) ______________________
Alvenaria ( ) Madeira ( ) Barro ( ) outros ( ) _______________
9. Equipamentos do GD
________________________________________________________________________________
________________________________________________________________________________
Dez Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov
C H U V A S
E S T I A G E M
C A Ç A
Porco do mato, paca, cotia, macaco,
anta,
Veado, aves
C O L E T A
Tintas vegetais:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Resinas vegetais:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Sementes:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Fibras vegetais:
∗ As informações do quadro correspondem ao que foi identificado a partir da bibliografia especializada. Elas serão
complementadas após o retorno do campo. Sobre o assunto, consultar Laraia & DaMatta (1967); Ricardo (1985); Laraia
& Santilli (1997) e Beltrão (1998).
∗ Produto introduzido à dieta alimentar do grupo a partir do contato.
4
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_______________________________________________________________________________
Cipós:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Palhas:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Plantas medicinais:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Frutos:
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
_______________________________________________________________________________
Óleos:
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b) Algumas plantas (frutos/sementes) das matas consumidas pelos peixes dessa região
nome popular (em Português) termo nativo
d) Algumas plantas (frutos/sementes) das matas consumidas pelos animais caçados nessa região
nome popular (em Português) termo nativo