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B i b l io

Para pensar…
Gi
Dia de Natal
(…)
Hoje é dia de ser bom. Jesus
É dia de passar a mão pelo rosto das crianças, o doce Jesus,
de falar e de ouvir com mavioso tom, o mesmo que nasceu na manjedoura,
de abraçar toda a gente e de oferecer lembranças. veio pôr no sapatinho
É dia de pensar nos outros - coitadinhos - nos que padecem, do Pedrinho
de lhes darmos coragem para poderem continuar a aceitar a sua miséria, uma metralhadora.
de perdoar aos nossos inimigos, mesmo aos que não merecem, Que alegria
de meditar sobre a nossa existência, tão efémera e tão séria. reinou naquela casa em todo o santo dia!
Comove tanta fraternidade universal. O Pedrinho, estrategicamente escondido atrás das portas,
É só abrir o rádio e logo um coro de anjos, fuzilava tudo com devastadoras rajadas
como se de anjos fosse, e obrigava as criadas
numa toada doce, a caírem no chão como se fossem mortas:
de violas e banjos, tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá-tá.
entoa gravemente um hino ao Criador. Já está!
E mal se extinguem os clamores plangentes, E fazia-as erguer para de novo matá-las.
a voz do locutor E até mesmo a mamã e o sisudo papá
anuncia o melhor dos detergentes. Fingiam
(…) que caíam
Torna-se difícil caminhar nas preciosas ruas. crivados de balas.
Toda a gente se acotovela, se multiplica em gestos, esfuziante.
Todos participam nas alegrias dos outros como se fossem suas Dia de Confraternização Universal,
e fazem adeuses enluvados aos bons amigos que passam mais distante. Dia de Amor, de Paz, de Felicidade,
de Sonhos e Venturas.
Nas lojas, na luxúria das montras e dos escaparates, É dia de Natal.
com subtis requintes de bom gosto e de engenhosa dinâmica, Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade.
cintilam, sob o intenso fluxo de milhares de quilovates, Glória a Deus nas Alturas.
as belas coisas inúteis de plástico, de metal, de vidro e de cerâmica.
António Gedeão (texto com supressões)
Os olhos acorrem, num alvoroço liquefeito,
ao chamamento voluptuoso dos brilhos e das cores. A PALAVRA MAIS BELA
É como se tudo aquilo nos dissesse directamente respeito,
Fui ver ao dicionário dos sinónimos
como se o Céu olhasse para nós e nos cobrisse de bênçãos e favores.
A palavra mais bela e sem igual,
A Oratória de Bach embruxa a atmosfera do arruamento. Perfeita como a nave dos Jerónimos...
Adivinha-se uma roupagem diáfana a desembrulhar-se no ar. E o dicionário disse-me: NATAL.
E a gente, mesmo sem querer, entra no estabelecimento Perguntei aos poetas que releio:
e compra - louvado seja o Senhor! - o que nunca tinha pensado comprar. Gabriela, Régio, Goethe, Poe, Quental,
Mas a maior felicidade é a da gente pequena. Lorca, Olegário... E a resposta veio:
Naquela véspera santa Christmas... Natividad... Noel... NATAL.
a sua comoção é tanta, tanta, tanta, Interroguei o firmamento todo!
que nem dorme serena. Cobra, formiga, pássaro, chacal!
O aço em chispa, o pipe-line, o lodo!
Cada menino
E a voz das coisas respondeu: NATAL!
abre um olhinho
na noite incerta Pedi ao vento e trouxe-me, dispersos,
para ver se a aurora - Riscos de luz, fragmentos de papel-
já está desperta. Cânticos, sinos, lágrimas e versos:
De manhãzinha, Um N, um A, um T, um A, um L...
salta da cama,
Perguntei a mim próprio e fiquei mudo:
corre à cozinha Qual a mais bela das palavras, qual?
mesmo em pijama. Para quê perguntar se tudo, tudo,
Ah!!!!!!!!!! Diz NATAL, diz NATAL e diz NATAL?!

Adolfo Simões Müller

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