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ARQUITECTURA CASA SACERDOTAL DIOCESANA DE PLASENCIA, CÁCERES


ARQ.TOS MIGUEL DE GUZMÁN, ANDRÉS JAQUE E ENRIQUE KRAHE

44 ARQUITECTURA E VIDA FEVEREIRO 2006


Espaço [Re]Activado
A Casa Sacerdotal Diocesana de Plasencia vista através do duplo conceito
original do projecto, o convite à participação como elemento básico
e operativo do edifício e a trasladação de ambientes - domésticos,
paisagísticos, territoriais - ao edifício, uma nova casa para os seus
ocupantes. Estas ideias e acções transcendem a fragmentação proposta,
gerando um espaço reactivado Texto crítico de Daniel Jiménez Ferrera arquitecto

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ARQUITECTURA CASA SACERDOTAL DIOCESANA DE PLASENCIA, CÁCERES
ARQ.TOS MIGUEL DE GUZMÁN, ANDRÉS JAQUE E ENRIQUE KRAHE

PARTICIPAÇÕES
"Recordo um filme, uma personalidade a imitar: Buster Keaton em One Week. É raro nestes filmes, mas têm
um princípio feliz. Buster Keaton está apaixonado pela rapariga (Sybil Seely) e o amor é correspondido. Rejeitou
outro pretendente, o vilão, que era seguramente um melhor partido do que ele. O filme começa com o casa-
mento. Depois da cerimónia e da sua trasladação até ao suposto novo lar, descobrem que a casa, um presente
de casamento, não existe apesar de a terem. Trata-se de uma casa pré-fabricada mas desmontada. Vêm em
várias caixas acompanhadas de instruções de montagem. É uma lista simples. Apenas têm que seguir o
número das caixas por ordem. (…) No entanto, o vilão do filme (…), de forma vingativa, troca os números orig-
inais das caixas, ocultando a ordem real de montagem das peças.
Buster Keaton, desconhecendo o truque, começa a construir a casa. Segue correctamente as instruções que
acompanham as peças; a peça 1, depois a 2, acrescenta a 3, ao lado a 4, etc. Algo estranho se passa. As peças
não encaixam correctamente ou não parecem adequadas a cada caso. Continua a montagem sem espanto e
sem nunca questionar as instruções. Pacientemente, com a inocência que caracteriza a personagem, contin-
ua com a construção da casa (…) seguindo fielmente as instruções. Ao fim de uma semana está terminada. A
porta está no segundo andar e abre directamente para o quarto de banho, as janelas estão desenquadradas, o
telhado está girado, a chaminé sobre a banheira, a varanda é uma escada. Um aspecto irracional que em nen-
huma altura da montagem levantou dúvidas e, ainda que pareça extravagante e estranha, Buster Keaton parece
feliz com ela, mobilando-a e tentando habitá-la. Afinal, é a sua casa. Faz uma festa de inauguração."
Federico Soriano, sin_gesto em “sin_tesis “ Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 2004.

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1. Praça do Dean
2. Portaria
3. Jardins
4. Cisterna
5. Pátio Central
6. Apartamentos Duplos
7. Acesso Garagem sob Pátio Sul
8. Capela
9. Sacristia
10. Cozinha
11. Oficio
12. Instalações
13. Pátio Norte
14. Sala de Refeições
15. Lar Sacerdotal
16 Residências
17. Oratório
18. Vestibulo de Acesso
19. Sala de Visitas
20. Administração

1. Praça do Dean
2. Portaria
3. Jardins
4. Cisterna
5. Sobreiros
6. Terraço Transitável
7. Pátio Sul
8. Capela
9. Terraço Existente
10. Pátio Norte
11. Apartamentos Séc.XV
12. Sala de Estar
13. Apartamentos SécXIX
14. Iluminação
15. Biblioteca

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"Algo parecido acontece na poesia japonesa na forma poética do haiku (1). O haiku parte de pequenos objec-
tos, escolhe um detalhe ou dois, e logo abre a visão do leitor a um horizonte ou ao infinito."
John Berger, “Cómo aparecen las cosas o Carta abierta a Marisa”, Fundación Amigos del Museo del Prado.

"Não é, portanto, um collage, mas um hardware, uma estrutura física que, para funcionar, deve acoplar um
esquema de significado, ainda que este possa ser um qualquer."
Federico Soriano, sin_detalle em “sin_tesis “ Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 2004.

O projecto da Casa Sacerdotal Diocesana de Plasencia é um dispositivo activador.


Não é uma arquitectura de metáforas nem fenómenos, mas de acções e de ideias. As plantas, as representações,
incluindo as imagens para publicação cuidadosamente escolhidas são diagramas, suponho que as primeiras, para o
construtor, similares às instruções de montagem de Keaton, diagramas como directivas e chaves de leitura. Próximos
ás partituras de Cage, Bussot o Stockhausen, onde os sons foram substituídos por instrumentos que os geram ou
ao U.P.I.C., o artefacto desenhado por Iannis Xenakis para a transposição imediata de um desenho em sons.
Esta é uma forma de operar desesperadamente próxima ao mundo actual: reciclagem, mapeado, morphing, sam-
pling, tuning…. A geração de objectos e significados novos a partir de materiais descontextualizados partilham tam-
bém a aceitação do risco, da obra aberta, do desaparecimento do projecto face aos instrumentos, face ao fazer (2).
Mas estas activações apenas pretendem provocar a participação dos usuários do edifício: as caixas para anún-
cios internos, o atecnológico foro público do pátio-ardósia, o presbitério-pradaria cuidado por uso e por turnos,
as hortas atribuídas e até o bicibanco apenas o são quando são utilizados.
Activação como estimulação terapêutica, consciente do destino geriátrico do edifício, como alternativa ou com-
plementaridade aos jogos de cartas, ao dominó ou á televisão?
Activação como proposta radical, um novo manual do savoir faire na arquitectura contemporânea?
Ambos.

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TRANSLAÇÕES NOTAS
(1) O Haiku (haikai ou hokku) é uma forma breve
"A casa não é um lugar. Os desarreigados preservam a sua identidade, apresentam um abrigo feito de costumes, da poesia tradicional japonesa que contém 17 sílabas
de vida. Mais que uma casa, uma prática ou práticas de como se vive numa casa, é o tempo que faz uma casa." repartidas em três versos de cinco, sete e cinco.
O âmbito deste tipo de poesia apenas está limitado
John Berger, “Y nuestros rostros, amor, fugaces como fotos” em “Citas”, Joseph Quetglas, Sevilla, Nov. 1995. pela sua brevidade e pela sua temática, quase sempre
de índole simples que dita a forma. E então o conteúdo
"Casa como estojo, com a impressão de quem a habita." e a forma do haiku parecem concordar entre si.
Relativamente aos temas tratados pelos haiku, podem
Walter Benjamín, “París, capital del s. XIX” em “Iluminaciones II” Ed. Taurus, Madrid, 1972.
ser classificados como poesia romântica ou como
poesia da natureza e o tom normalmente utilizado
A reactivação, não reabilitação, proposta pelos arquitectos apropria-se do velho edifício do séc. XV e XIX uti- é o da melancolia. A queda da flor de cerejeira
e a dispersão das folhas do Outono são temas
lizando-o como paisagem, recuperando-o para o habitante, fazendo com que forme parte do resto dos objec-
favoritos porque sugerem a passagem do tempo
tos transladados do lugar (as tulipas, o banco montanha, os aviários, o bicho fogueira, as miras, inclusivamente e a brevidade da existência humana.
a paisagem incorporada a partir da cobertura) e que constroem a nova casa. Gustavo Skatecki. “Hayku. Lo bueno y breve, dos
veces bueno”.
Uma casa é o oposto da natureza hostil, onde não se reconhece nenhum pudor. (2) Intertextualizado de Federico Soriano em
A casa nasce do amontoamento, rebanho, constelação dos objectos que possuímos, dos que residem na nossa “sin_detalle”, op. cit.
cabeça (recordações) e dos atrevidamente sólidos. Vigiados pelas portas dos armários (3). A casa não é ape- (3) No "In Praise of Cupboard Doors", Peter Smithson
narra um mundo constituído por miríades de objectos
nas o lugar onde o habitante desdobra a sua própria vida. chamando a nossa atenção. As portas dos armários
Guzmán, Jaque e Krahe criaram um lugar onde viver, uma casa. existem para podermos conviver com eles, sem que
a sua gritaria incessante nos possa atordoar.

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NOTAS DE AUTOR memória: bancos, livros, toldos, nuvens, lâmpadas, chaminés;
A Igreja Católica definiu historicamente o território sobrepondo contactos sensíveis, reboco de cal, calçadas, sombras, aromas) FICHA TÉCNICA
duas estruturas de ocupação. com dispositivos de baixa tecnologia. OBRA Casa Sacerdotal Diocesana de Plasencia
1. Estrutura Ideológica, em árvore com vértice no Vaticano A casa sacerdotal contém e densifica as chaves sensoriais de LOCAL Plaza del Deán, Plasencia [Cáceres]
2. Núcleos autónomos de acção directa, em torno de dioceses um território extenso. 1º prémio concurso de ideias [2000]
interconectadas em rede. Projecto [2001]
Este padrão de implantação arbitrou as relações sociais e a [2] CONVITES À PARTICIPAÇÃO: elementos que estimulam a Fim de obra [2004]
inserção no território dos indivíduos vinculados á Igreja. resposta por parte dos habitantes e fomentam associações e uti- CLIENTE Bispado de Plasencia
A população clerical na Europa experimentou um rápido proces- lizações partilhadas. ARQUITECTURA Miguel de Guzmán, Andrés Jaque
so de envelhecimento que dificulta a manutenção de um modelo A casa sacerdotal apresenta-se como uma infra-estrutura de e Enrique Krahe
de atenção geriátrica individualizada. A concentração de uso que requer a modificação. A capela é um espaço transfor- COLABORADORES María-Solange Faría,
serviços de assistência nas casas sacerdotais exige aos sacer- mável, aberto a configurações criativas dos seus usuários. A Raquel Limeres, Henar Molinero e Ana de Miguel
dotes que reconstruam a sua relação com o território [1] e que sacristia não é uma habitação fechada e opaca, dilui-se numa ESTRUTURAS Alfonso Pérez-Gaite e Belén Orta
redefinam a sua inserção num meio comunitário. [2] O projecto série de vitrines-armário acessíveis a partir do lugar de cele- ESPECIALIDADES Vectoria Consulting
é o dispositivo que articula esta transformação. A passagem de bração. Parte do jardim está parcelado para fomentar o cultivo ARQUITECTO TÉCNICO PROJECTO José Ramón
um meio rural e extenso a uma envolvente compacta e urbana, recreativo através de atribuições individuais. Também há ele- Pérez-Arroyo
e também a passagem de uma existência marcada por uma rep- mentos sobre os quais é possível a decisão pessoal: luzes de DIRECÇÃO DE OBRA Miguel de Guzmán, Andrés Jaque
resentatividade individual como referente social, a uma vida jardim com interruptor, à frente de gaiolas para o cuidado das e Enrique Krahe, arquitectos
comunitária com uma repartição de papéis menos hierarquiza- mascotes, lâmpadas-fogueira reposicionáveis. Marco Antonio Durán, arquitecto técnico
dos é conseguida através de um conjunto de: As superfícies exteriores, as fachadas, são espaços activos de EMPRESA CONSTRUTORA UTE Casa Sacerdotal
comunicação por utilização imediata: caixas de luz disponíveis [Alonso Jiménez S.L., Fernández Cruz S.L., Electricidad
[1] TRANSLAÇÕES: para anúncios internos, pátio pintado com pintura de ardósia Marsal S.L.]
Síntese e concentração de elementos vinculadores entre a pais- como suporte de mensagens escritas com giz, luzes coloridas de ORÇAMENTO TOTAL 3.065.000 euros
agem natural e os usuários (recortes de ecossistemas, paisagem interruptor individual a partir dos quartos criando um código SUPERFÍCIE CONSTRUÍDA
de sobreiros e açudes, vale de cerejeiras, hortas; objectos- cambiante sobre a silhueta da cidade. 4055m2 (edifício) + 1207m2 (implantação e paisagismo)
FOTOGRAFIA Miguel de Guzmán

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