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Sobre túneis, mofo e batatas.

(Tipos Urbanos: #1)

A vida é como se fosse um túnel. Longo, escuro e desconhecido. E cada um


tem seu próprio túnel, e o mundo é assim, cheio de túneis transversais que se
cruzam por um breve momento e depois insistem em se distanciar até o infinito.
Essa é a minha história, sua história. Somos paridos, crescemos e morremos
sós por mais que sejamos atravessados por dezenas de túneis ao longo do
nosso tortuoso caminho. Acontece que em minha idade o meu túnel não
parece mais ser tão longo. E posso dizer que aqui, ao final do túnel ele é bem
mais estreito e sufocante, e toda aquela história, de uma luz e um campo
gramado, de nuvens e chocolate, não parece ser tão certa. Posso jurar que
vejo algo no fim, e é apenas um estreitamento, acho que o túnel está se
fechando.

Ao meu redor apenas mofo e sujeira. Meu olfato parece ter se degradado junto
com meu senso de higiene. Talvez seja a minha visão, não sei ao certo, mas
consigo sentir a podridão, talvez seja só eu. Olho no espelho ao final de meu
expediente e no início de cada dia e não me vejo. Vejo algumas dobras
gordurosas, vejo olhos tampados por pele. Vejo também o meu couro cabeludo
encoberto parcialmente por ralos fios de cabelo tingidos de acaju. É triste olhar
para o que seria seu reflexo e não saber mais nem a que gênero pertence.

Somos sós, e sabemos disso. Essa é nossa essência, banal e crua.


Naturalizamos tanto a solidão que não as enxergamos, a não ser quando nos
vemos entalados em um túnel escuro. Antes desse momento a nossa vida
parece ser feita apenas de interseções. que sorriso bonito, quer ir para o meu
apartamento? fode, me fode, gosto tanto de você, adoro seu sorriso, eu te
amo, nunca me deixe, acho que as coisas perderam o brilho, o encanto, você
sabe, eu te adoro, me deixe só, que sorriso bonito, vamos pra um motel, me
fode...

Agora estou aqui, a fritar batatas. Os homens sempre foram feitos de carência,
cacetes duros e insegurança. Mas não comigo, não mais. Eu sou quem frita as
batatas. Nos meus cabelos ralos um pano, na minha boca pouco mais de uma
dúzia de dentes. E no resto, pele velha e relaxada. Não tenho mais gênero.
Sou apenas um humano. Eu cago e mijo, mais que nunca diga-se de
passagem, e frito batatas.

Nenhum túnel vai cruzar o meu novamente, agora ele é demasiado estreito.
Sou só, sempre fui. Mas antes tinha aquela falsa esperança, aquela mesma
que você tem. Aquela que talvez fosse a única que me acompanhou a vida
inteira, agora não mais. Sou só. Sempre fui.

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