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Mestre Grilo cantava e a Giganta dormia

“Era uma abóbora-menina, muito redondinha, que saíra de uma flor tão grande e tão
linda que de longe parecia pela forma um cálice de oiro, o cálice por onde os senhores
bispos costumam dizer missa, e pelo brilho estrela caída do céu. Atraídas pela cor viva e
o perfume, que era brando mas suave, zumbiam-lhe as abelhas em volta e um grilinho
viera com a caixa de música às costas acolher-se à sua sombra e ali fizera a lura. Perto,
dentro de seus buraquinhos, viviam dois ralos, e uma cigarra passava a maior parte do
tempo empoleirada numa das folhas da aboboreira a cantar.
Ora, com os dias, a flor murchara e no seu pedúnculo começou a crescer a abóbora
redondinha. Era na entrada do Verão e à força de comer do solo, e beber do regadio, um
pouco também entorpecida pelo calor, levava a vida a dormir. Crescia e dormia, dormia e
crescia. Passavam por cima dela as nuvens ligeiras como caravelas e não as via;
cantavam as rolas e o cuco, deixá-los cantar; batiam os manguais nas eiras, chiavam os
carros da lavoura e a tudo permanecia indiferente. Cresceu, cresceu, e já espigadota,
certa noite mais quente, estranho ruído acordou-a. Que fanfarra era aquela? Pôs-se à
escuta. As rãs do charco clamavam:
- Dai-nos sol! Dai-nos sol!
Curioso, não pediam rei, pediam sol:
- Dai-nos sol! Dai-nos sol!
Os ralos e a cigarra acompanhavam:
- Solzinho! Solzinho! Solzinho!
O grilo arpejava:
- E que rico, rico! Que rico, rico! Rico!
E os sapos lá do fundo do campo em coro trauteavam:
- Sol, sol, sol! Sol, sol, sol, canta rouxinol! Sol, sol, sol!!!
Que tinham aqueles doidos para fazerem tal banzé em vez de aproveitar o tempo
para dormir?! O grilo, que lhe ficava mais perto, foi quem mais a intrigou. Muito negrinho,
todo entregue à inspiração, lá ia tocando os pratos, que é como quem diz movendo as
asas de ébano, com risquinhas de oiro, dum lado para o outro. Que dianho de bicharoco
tão patusco e ridículo que não deixava dormir à gente o soninho descansado! E não se
contendo mais, gritou-lhe:
Eh lá, seu casaca! Você não pode calar a caixa? Com tal brequefesta como hei-de eu
dormir?!
- Ora a palerma! - Não querem lá ver,… tem-se na conta de menina e é tão mona.
Ah! Sua calaceira, cante, cante connosco a chamar o Sol que se não demore muito
detrás dos montes e nos traga alegria e claridade.
- Estou mesmo para isso! Olhe, sabe que mais, escolha outro ofício e deixe dormir
quem tem sono.
- Outro ofício! ... Essa não é má! Saiba, sua estúpida, que eu nasci para cantar.
Tenho-o como um dever. Quando não cantar, rezem-me por alma.
E chocando as asas tornou à cantiguinha:
- Sol rico! Rico, rico! Rico…
E, em coro, sapos, ralos, rãs, cigarras, respondiam pela várzea fora:
- Sol, sol, sol! Sol…
E embalada pela serenata da noite a aboborinha voltou a adormecer.
O senhor José Barnabé Pé de Jacaré, dono da fazenda, veio pela manhã dar a volta
costumada, com a senhora Feliciana Lauriana atrás, de cesta no braço para os feijões
verdes. Diante da abóbora parou admirado e disse:
- Que maravilha! Isto era pevide abençoada. Feliciana Lauriana, esta abóbora não se
come, fica para a semente. Quando estiver madura, telhado com ela.
- Qual semente! Para a panela. Não há nenhuma outra em termos e eu morro por
caldo de abóbora com feijão-manteiga, adubado a presunto.
- Aí vens tu! - Faze lá como quiseres, mas sempre te digo que assim redonda e
corpulenta, ainda de poucas semanas, é milagre.
E depois de aparar à aboboreira as flores que iam a desabrochar para que a abóbora
recebesse toda a seiva, seguiram seu caminho até ao fundo da granja em que passava
um córrego por cima de seixos a murmurar.
O grilo, que se escondera na covinha, ouviu a conversa e saindo para o terreiro
rompeu a cantarolar em tom de troça:
E ó abóbora, e ó aboborinha, estás aqui, estás na panelinha!
Mas a abóbora, que não fazia outra coisa senão dormir e crescer, crescer e dormir,
não ouviu o zombador. Não ouvia nada de nada. Tanto cresceu, tanto cresceu, que
ameaçou com o seu corpanzil soterrar o grilo no buraco. Assustado, chamou por ela uma
tarde:
- Aboborinha? Pst, ó aboborinha!!!
- !...
- Abóbora-menina... Ó Iindinha!...
- Que quer lá?...
- Com a breca, muito pegada estava no sono! Olhe lá, para que é que cresce tanto?
Uma abóbora da sua casta quer-se redonda e maneirinha. Assim a pular perde a graça
toda ...
- Seu atrevido, seu tocador de pratos, que lhe importa a minha vida! Se o seu regalo
é cantar, cante, mas ao menos não se meta com quem está quieto e sossegado. Já sabe
que dormir, dormir a sono solto, e fazer-me grande, taluda, é a minha obrigação. Vai ver
como pareço bem no telhado do senhor José Barnabé Pé de Jacaré.
- No telhado? ... Deixa-me rir!
Desdenhosa, a abóbora ferrou-se a dormir, a dormir um daqueles sonos que dir-se-ia
só acabam no fim do mundo. O grilo ainda rompeu a cantilena:
Ai abóbora, ai aboborinha, estás aqui, estás na panelinha!
Mas viu que perdia o tempo e o latim e meditou na maneira de se ver livre da
aventesma. A abóbora dormia e crescia. Dormia como animal depois de farto e crescia;
dormia como penedo no meio da serra e crescia; dormia como casa ao desamparo e
crescia. Nuvens, aves, mondadeiras que passavam a cantar, dias enovelados nos dias,
de nada dava fé. O pior é que a desalmada à força de se estender para aquela banda já
lhe tapava quase a porta da toquinha; já para entrar tinha que pôr-se de esguelha,
espalmando bem contra as costas o aparelho da música. E o grilo, dizendo mal da sua
sorte, foi-se consultar os parentes.
- Compadres, aquela abóbora é o meu pesadelo. Se avança mais um nadinha para o
meu lado ou fico sem casa ou morro lá dentro emparedado. Não sei o que há-de ser de
mim. De vizinho danoso morreu Barroso.
Os insectos quedaram recolhidos um momento a cismar no problema. E a cigarra,
que é esperta e espevitada, disse:
- Tem razão, mestre grilo. Mas aqui que ninguém nos ouve confesse lá: além do dano
que a abóbora lhe faz, você tem por ela uma especial antipatia ... hem, cá de dentro?
O grilo soltou duas risadinhas como que a acentuar a finura da comadre cigarra e
respondeu:
- É verdade. Embirro solenemente com a pegamassa. Como podem calcular vim
fazer aqui a casa induzido pela beleza da flor. Tanto reluzia que disse comigo: ali,
naquelas touceiras de erva tenra e serradela, com tão esplêndido pálio de seda contra o
sol, ficas que nem um mandarim da China. Sou poeta, é o meu fraco. Afinal, foi uma
desilusão cruel; da flor doirada e aberta como o cálice dos senhores bispos saiu esse
monstro!
- Não admira - disse uma abelha que se metera na conversa - Mestre grilo e a
abóbora-menina são diferentes como noite e dia. Enquanto ele é vivo, espiritual,
pequenino, se desfaz em cantorias, ela queda matéria bruta: comer, comer, dormir, e
mais não lhe peçam.
- Assim vai o mundo - tornou a cigarra - E a guerra nasce daqui, destes contrastes
sem remédio. Mas vamos ao que importa: mestre grilo queria ver-se livrede tal
vizinhança?
- Pois queria.
Tornaram todos a malucar e um ralo deu este alvitre:
- E se se chamasse a tropa toda, ralos, grilos, cigarras, cabras-louras, e se caísse em
peso sobre a matulona?
- Mas havíamos de ter patas de cavalo - permitiu-se dizer a cigarra debruçada da sua
folhinha.
- Não temos, não, - redarguiu o ralo, que era guerreiro- mas temos mandíbulas.
- Ora, ora, nem a dente de coelho! - exclamou a cigarra - Aquilo tem casca mais
grossa que sobreiro!
E depois de proferir tal sentença empoleirou-se mais no alto, contente com a própria
sabedoria.
- Olhem lá!. .. - disse o sapo que assistira interessado mas silencioso à discussão -
Porque é que não vão ter com a toupeira? Os amigos ralos têm boas unhas e podem dar
com a abóbora em pantanas serrotando-Ihe as raízes. Mas não é obra para pressas.
Enquanto a toupeira essa cava um poço, chega às raízes e zás!, com duas turquesadas
fica o caso arrumado.
Celebraram todos a grande esperteza do sapo olharapo e como a toupeira era muito
das suas relações ele próprio se encarregou de lhe falar. Dito e feito; a escava-terra
prometeu fazer o trabalho e cumpriu a primor.
Naquela manhã, como em todas as manhãs que Deus deitava ao mundo o senhor
José Barnabé Pé de Jacaré deu o giro pela fazenda, mais a senhora Feliciana Lauriana,
sua cara-metade. E reparando na abóbora disse:
- O que ela tem crescido! Parece o zimbório da Estrela! Mas, ó Felicianinha, ela está
aganada! As folhas dão ares de murchas... Precisa, precisa de rega.
- Precisa mas é de panela. Está madura.
- Não está. O criado que lhe deite água. Para a panela é mal empregada.
O Joaquim foi buscar água ao córrego enquanto o senhor José Barnabé Pé Jacaré
fazia uma cova juntinho da aboboreira. Vendo-a cheia pronunciou:
- Vão ver amanhã como está arrebitada.
Mal os homens voltaram costas, o grilo e mais insectos saíram de suas celas
romperam em grande algazarra.
O abóbora, ó aboborinha, não escapas à panelinha!
E ó abóbora, abóborão, não escapas ao panelão!
Mas, alheia a tudo, a abóbora dormia, dormia como as bolas de pedra nos portais das
quintas e uma fidalga de província à meia-noite. Dormindo assim, decerto não era fácil
ouvir as chacotas dos bichos. E, como todos tinham queda para a alegria e a reinação,
demoraram em suas demonstrações até que uma nuvem negra veio cobrir o sol.
- Temos mudança de tempo - advertiu a cigarra, que era mais sabida que o Borda
d'Água.
- Temos, temos - concordou o ralo - A chuva não pode tardar. Sopra muito da barra...
Tomaram os ventos, consultaram o céu, e certos de que estava iminente a borrasca,
cada um se foi escapulindo para a sua toca.
- Pois até loguinho, - acabaram por dizer os ralos, que eram os menos timoratos de
todos - e S. Bento abade se amerceie de nós que não haja novidade.
Como seus primos ralos, os grilos enterraram-se pelos buraquinhos dentro; os sapos
meteram-se debaixo das pedras; a cigarra refugiou-se debaixo duma grande folha; e as
rãs, que não têm medo de se afogar, ficaram no charco de cabeça fora de água a ver
para onde corriam as nuvens, uma ou outra coaxando de largo em largo:
- Estou borracha! borracha!
Das bandas do mar, pouco a pouco, vieram vogando nuvens negras que se
encastelaram. Um relâmpago riscou o espaço seguido de trovão seco, a modo de
esganado, qualquer coisa como muitas mil latas a estreloiçar. Depois outros relâmpagos
e outros trovões do mesmo timbre se sucederam com pequeno intervalo. E rompeu a
chover, de princípio, gotas gordas e solitárias, logo, em corda, tão bastas, que assim
seria o dilúvio. E mais uns relâmpagos, mais uns trovões de retumbante vozeirão, e
abriram-se as cataratas do céu.
De olhos aflitos, o senhor José Barnabé Pé de Jacaré espiava os estragos que a
trovoada fazia na sua rica fazenda. A água de enxurro varria a terra que fora sachada de
fresco, deixando a luzir as batatinhas mal presas à planta e tombados no chão, como
soldados depois da batalha, os pés de milho. Quando se viu a abóbora-menina rolar pelo
chão abaixo, como se levasse o Diabo no pêlo, deu um salto. E, pós-catrapós, desceu a
escada, pinchou o batatal, gritando, mas ninguém lhe valia:
- Agarra! agarra!
A abóbora-menina lá ia, ora rolando, ora boiando, ora saltando como péla, ende-
moninhada de todo. Ia cair à ribeira e o pobre do senhor José Barnabé Pé de Jacaré,
sentindo o perigo, dava pulos de gamo atrás dela. E quase a tinha pegada quando se lhe
embaraçaram os socos e tropeçou. Como uma bóia, como um golfinho, a danada
botava-se à torrente e singrava.
A abóbora que, trôpega de sono, não dera fé de a toupeira ter segado as raízes da
planta, nem da trovoada, nem das temíveis bolandas que sofrera, baloiçada pela água
tornara a adormecer. E dormia como um cepo, como um bombo depois da festa, quando
acordou estremunhada a um embate terrível. Com seiscentos macacos, fora bater no
rodízio dum moinho e abrira grande brecha na sua barriga cor-de-rosa. Por cima dela, na
casa das mós, ouviu-se um brado de angústia:
- Anjo bento, mulher, é a azenha a vir abaixo!
Decorrido um instante de silêncio, outra voz, da moleira a julgar pelo metal, proferiu:
- Foi coisa que se atrancou nas penas do rodízio. Chega lá ver. ..
- Chega lá tu!
Após uma breve pausa, volveu a moleira:
- Homem, parece que estás com medo! Pois vou lá eu...
De rompante desceu a escada que levava ao pego para um migalho depois se pôr a
gritar:
- O Valentim valentão, anda cá depressa!
- Hã, ã! Que há lá? ..
- Há que a cheia trouxe-nos uma abóbora maior que a barriga da nossa vaca.
- Toca a safá-la daqui. Já temos para o almoço dos malhadores.
Agarraram-na pela rama, mas a rama quebrou-se e os dois foram de traseiro ao
chão. Riu a mulher que era amiga de folgar e praguejou o homem que armava em
sisudo. A abóbora nadava em pleno pego. Lembraram-se de ir buscar um sacho de
longo cabo e, puxa que puxa, sempre conseguiram içá-la para fora. Uma vez na cozinha,
a moleira deitou um braçado de lenha ao lume e pegou do facalhão. Fervia e cachoava a
água nos potes, na sua toada dizendo zombeteira:
O abóbora, ó aboborínha, sempre caíste na panelinha!
A senhora Feliciana Lauriana, mal passou a trovoada, foi-se até ao quintal. A terra
parecia tão fresca e louçã que nem que acabasse de sair do molde novinha em folha.
Regalada, não avistou, porém, a rica abóbora, mimo do panelão se lhe juntarem
presunto e salpicão. E depois duma careta de assombro, boca escancarada, gritou:
- José Barnabé!?
-Ué?!!
Seria aquele papa-moscas ou o eco? E deitou a correr. Foi encontrá-lo à beira do rio,
de olhos fitos na corrente, como se estivesse à espera dum bacalhau.
- Mulher,… lá se foi a aboborinha!
- Ai foi?! Pois se foi, nem telhado, nem panelinha!
Em seu desafogo, mestre grilo fazia à boca da lura, para cigarras, ralos, rãs, sapos, a
história - a sua história - da catástrofe dum dia de Verão:
- Cri-cri-cri! Muito me eu ri!!! Cri-cri-cri!. .. “

Aquilino Ribeiro
Arca de Noé – III Classe

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