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Teodiceia

Acho que Epicuro foi quem formulou a questão a respeito da relação entre a onipotência e a bondade de Deus. A coisa
é mais ou menos assim: se Deus existe, ele é todo poderoso e é bom, pois não fosse todo-poderoso, não seria Deus, e
não fosse bom, não seria digno de ser Deus. Mas se Deus é todo-poderoso e bom, então como explicar tanto
sofrimento no mundo? Caso Deus seja todo-poderoso, então ele pode evitar o sofrimento, e se não o faz, é porque não
é bom, e nesse caso, não é digno de ser Deus. Mas caso seja bom e queira evitar o sofrimento, e não o faz porque não
consegue então ele não é todo-poderoso, e nesse caso, também não é Deus. Escrevendo sobre o Tsunami que abalou a
Ásia, o Frei Leonardo Boff resume: “Se Deus é onipotente, pode tudo. Se pode tudo porque não evitou o maremoto? Se
não o evitou, é sinal de que ou não é onipotente ou não é bom”.
Considerando, portanto, que não é possível que Deus seja ao mesmo tempo bom e todo-poderoso, a lógica é que Deus
é uma impossibilidade filosófica, ou se preferir, a ideia de Deus não faz sentido, e o melhor que temos a fazer é admitir
que Deus não exista.

Parece que estamos diante de um dilema insolúvel. Mas Einstein nos deu uma dica preciosa. Disse que quando
chegamos a um “problema insolúvel”, devemos mudar o paradigma de pensamento que o criou. O paradigma de
pensamento que considera o binômio “onipotência/bondade” como ponto de partida para pensar o caráter de Deus nos
deixa em apuros. Existiria, entretanto, outro paradigma de pensamento? Será que as palavras “onipotência” e
“bondade” são as que melhor resumem o dilema de Deus diante do mal e do sofrimento do inocente? Há outras
palavras que podem ser colocadas neste quebra-cabeça?

Este problema foi enfrentado por São Paulo, apóstolo, em seu debate com os filósofos gregos de seu tempo. A
mensagem cristã era muito simples: Deus veio ao mundo e morreu crucificado. Pior do que isso: Deus foi crucificado
num “jogo de empurra” entre judeus e romanos, isto é, diferentemente dos outros deuses, o Deus cristão foi morto não
por deuses mais poderosos, mas por homens. Sendo Deus, jamais poderia ser morto por mãos humanas, e sendo o
Deus onipotente, jamais poderia nem mesmo ser morto. Paulo, apóstolo, estava, portanto, diante de um dilema
semelhante ao proposto por Epicuro: Deus era uma impossibilidade filosófica.

Foi então que os apóstolos surgiram com uma resposta tão genial que os cristãos acreditamos que foi soprada pelo
Espírito Santo: antes de vir ao mundo ao encontro dos homens, Deus se esvaziou da sua onipotência[i], isto é, abriu
mão do exercício de sua onipotência, e por amor[ii], deixou-se matar por eles[iii]. (Eu disse que “Deus abriu mão do
exercício de sua onipotência”, bem diferente de “Deus abriu mão de sua onipotência”).

O apóstolo Paulo admitia que não fosse possível pensar em Deus sem considerar o binômio bondade/onipotência. Optou
pela palavra amor, assim como o apóstolo João, que afirmou “Deus é amor”[iv]. Jesus de Nazaré foi Deus encarnado na
forma de Amor, e não Deus encarnado na forma de Onipotência. Os cristãos não dizem “Deus é poder”, dizemos “Deus
é amor”.

Isso faz todo o sentido. Um Deus que viesse ao encontro das pessoas em trajes onipotentes chegaria para se impor e
reivindicar obediência irrestrita, impressionando pela sua majestade e força sem iguais. Jung Mo Sung adverte que “a
contrapartida do poder é a obediência, enquanto a contrapartida do amor é a liberdade”. Também assim pensou o
apóstolo Paulo, ao afirmar que o que constrange as pessoas a viver para Deus é o amor de Deus (demonstrado na
morte de Jesus na cruz)[v]. Não é o poder de Deus que cativa o coração das gentes, mas sim o amor de Deus.

Na verdade, “Deus não tinha escolha”. Ao decidir criar o ser humano à sua imagem e semelhança, deveria criá-lo livre.
Desejando um relacionamento com o ser humano, deveria dar ao ser humano a liberdade de responder
voluntariamente ao seu amor, sob pena de ser um tirano que arrasta para sua alcova uma donzela contrariada.
Somente o amor resolveria esta equação, pois somente o amor possibilita a liberdade para que o outro possa inclusive
rejeitar o amor que se lhe quer dar.

André Comte-Sponville é um ateu confesso (sei que vou levar pedradas) que discorre a respeito do amor divino como
poucos que já li. Acredita que o amor divino é um ato de diminuição, uma fraqueza, uma renúncia. Usa os argumentos
de Simone Weil: “a criação é da parte de Deus um ato não de expansão de si, mas de retirada, de renúncia. Deus e
todas as criaturas é menos do que Deus sozinho. Deus aceitou essa diminuição. Esvaziou de si uma parte do ser.
Esvaziou-se já nesse ato de sua divindade. É por isso que João diz que o Cordeiro foi degolado já na constituição do
mundo. Deus permitiu que existissem coisas diferentes Dele e valendo infinitamente menos que Ele. Pelo ato criador
negou a si mesmo, como Cristo nos prescreveu nos negarmos a nós mesmos. Deus negou-se em nosso favor para nos
dar a possibilidade de nos negar por Ele. As religiões que conceberam essa renúncia, essa distância voluntária, esse
apagamento voluntário de Deus, sua ausência aparente e sua presença secreta aqui embaixo, essas religiões são a
verdadeira religião, a tradução em diferentes línguas da grande Revelação. As religiões que representam a divindade
como comandando em toda parte onde tenha o poder de fazê-lo são falsas. Mesmo que monoteístas, são idólatras”
[vi].

Você já imagina onde quero chegar. Isso mesmo, entre a onipotência e a bondade de Deus existe a liberdade do
homem, e o compromisso de Deus em respeitar esta liberdade. Isso ajuda a entender porque existe tanto sofrimento
no mundo. O mal não procede de Deus e não é promovido ou determinado por Deus. O mal é conseqüência inevitável
da liberdade humana, que teima em dar as costas para Deus e tentar fazer o mundo acontecer à sua própria maneira.
Diante do mal e do sofrimento, o Deus com os homens, encarnado em Amor, também sofre, se compadece, tem suas
entranhas movidas de compaixão[vii]. E morre. O Deus Amor encarnado em Jesus de Nazaré é assim, entre matar e
morrer, prefere morrer.

Mas você poderia perguntar por que razão Deus não acaba com o mal. Isso é simples: Deus não acaba com o mal
porque o mal não existe, o que existe é o malvado. O mal não é uma entidade ao lado de Deus. O mal é o resultado de
uma ação humana em afastar-se do Deus, sumo bem. O monoteísmo cristão afirma que há um só Deus, e que o mal é
a privação da presença de Deus. Os cristãos não somos dualistas que postulamos a existência do bem e do mal. O mal
é apenas a ausência do bem. Por isso, o mal não existe, o que existe é o malvado, aquele que faz surgir o mal porque
se afasta de Deus, o supremo e único bem.

Ariovaldo Ramos me ensinou assim, e completou dizendo que “para acabar com o mal, Deus teria que acabar com o
malvado”. Mas, sendo amor, entre acabar com o malvado e redimir o malvado, Deus escolheu sofrer enquanto redime,
para não negar a si mesmo destruindo o objeto do seu amor. Por esta razão Deus “se diminui”, esvazia-se de sua
onipotência, abre mão de se relacionar em termos de onipotência-obediência, e se relaciona com a humanidade com
base no amor, fazendo nascer o sol sobre justos e injustos[viii], e mostrando sua bondade, dando chuva do céu e
colheitas no tempo certo, concedendo sustento com fartura e um coração cheio de alegria a todos os homens[ix].

A equação amor e liberdade na relação entre Deus e o homem resulta um escândalo: um Deus que sofre por amor. E
quando Deus sofre, o homem sofre. Ou, na verdade, Deus sofre porque o homem sofre, isto é, Deus sofre porque ama
o homem que sofre.

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