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Revista de Economia Politica, vol. 13, n¢ 3 (51), julho-setembrol1993 Valor e moeda em Marx: critica da critica* MARIA DE LOURDES ROLLEMBERG MOLLO** 1. INTRODUGAO Este trabalho se insere num esforgo teérico mais amplo que visa recuperar 0 pensamento monetirio de Marx, bem como ressaltar, nas andlises monetarias em geral, os aspectos qualita- tivos em vez dos quantitativos. Seu objetivo especifico é avangar na compreensio e na discussio de alguns trabalhos que vém sendo desenvolvidos na Franca, na area de economia politica, no que diz respeito a concepgiio de moeda. Referimo-nos mais particularmente is discusses monetii- rias levadas adiante por alguns autores de formagaio marxista, co- mo Carlo Benetti e Jean Cartelier, que assumiram, entre os anos 70 e 80, uma postura critica ao marxismo., Esta orientagao é, em parte, resultado das discussdes que se seguiram a publicagao do trabalho de Sraffa, Produgdo de Mercadorias por meio de Mer- cadorias. Partindo da critica ao trabalho de Sraffa! e ao contetido ricardiano de algumas interpretagdes da obra de Marx, esses autores centramsuaatengio em algumas falhas de Ricardo jé apontadas por Marx em sua época, entre as quais se destacam a auséncia de anilise monetiria e o privilégio dado a economia real. Esse tipo de critica conduziu os mencionados autores a uma leitura particular de Marx e, finalmente, & rejeigdo da teoria do valor, por razGes inteiramente distintas das apresentadas pelos neo-ricardianos. Mais que isso, propdem uma trajetéria analitica diferente, e mesmo oposta, A seguida por Marx quando analisa a moeda. Em vez de * Este trabalho recebeu financiamento do CNPg, a quem aproveito nesta nota para agradecer. ** Do Departamento de Economia da UnB — Universidade Federal de Brasilia !V, Benetti, Brunhoff e Cartelier. “Elgments pour uma eritique marxiste Politique, n° 3. ra", Cahiers a’ Economie 54 seguir a ordem mercadoria — valor — moeda, Benetti e Cartelier propdem comegar com a moeda e, a partir dela, derivar a nogiio de produgiio mercantil, sem passar pelo valor mas, ao contrario, rejeitando a teoria do valor. A proposta de mudanga de trajet6ria foi precedida, é claro, de criticas sérias € engenhosas aos argumentos usados por Marx ao longo da exposigao da teoria do valor- trabalho. E ai que se situam, por exemplo, a idéia de incorregao da génese da moeda na obra de Marx e a visio de que o tratamento da forga de trabalho, da moeda e do capital, como mercadorias, é inadequado. Sao criticas como estas que conduzem os mencionados autores a falar de incompatibilidade entre as teorias da mais-valiae da mereadoria, ou de inadequagio do ciclo completo de reprodugo do capital para, como queria Marx, compatibilizar a troca de equivalentes ¢ 0 aparecimento da mais-valia. Entender os motivos que levaram a tal tipo de critica e aprofundar a compreensio dos argumentos utilizados é fundamental, em primeiro lugar, no sentido de permitir uma melhor apreensio da obra do préprio Marx, em particular de sua concep¢ao monetiria, seja aceitando a critica de Benetti e Cartelier, seja negando-a, para 0 que sera necessdria uma contestagio cuidadosa dos argumentos que utilizam. Mas 0 esforgo de avaliagao dos trabalhos de Benetti e Cartelier tem ainda outro objetivo. Esses autores diio destaque e priorizam a andlise monetiria e procuram fugir do marco teérico marxista, sem contudo aceitar integralmente os demais marcos te6ricos existentes. Trata-se, pois, de um esforgo analitico que pretende inovar em matéria de teoria monetiria. Nesse sentido a discussio dos assuntos e problemas levantados por Benetti ¢ Cartelier tende a ser excelente fio condutor para uma andlise da moeda que privilegia seus aspectos qualitativos. Dividiremos 0 trabalho em trés partes dedicadas ao exame das mercadorias chamadas por Marx de especiais: a forga de trabalho ,a moeda e o capital-mercadoria. Ao longo de cada uma das partes teremos duas ordens de preocupagdes: aquelas relacionadas com a anilise critica feita por Benetti e Cartelier da obra de Marx € aquelas que tém a ver coma proposta positiva desses autores. Assim, levantaremos os pontos de divergéncia entre Benetti e Cartelier, de um lado, ¢ Marx, do outro, com vistas adestacar nossos acordos ¢ desacordos. Em seguida, comentaremos as propostas de mudangas tericas de Benetti ¢ Cartelier. ‘A escolha desses dois autores nao implica exclusio dos demais estudiosos franceses que témem comuma formagiio marxista, a postura atual critica ao marxismo eaindaa preocupagio com o estudo da moeda, como € 0 caso, por exemplo, de Michel Aglietta, André Orlean ¢ Michel De Vroey. Ao contrério, estes serdo também discutidos. Entretanto, observa-se no momento uma grande heterogeneidade entre os pensamentos desses autores, embora algumas discuss6es entre eles ¢ alguns pontosem comum tenham permeado 0 inicio de seus trabalhos. Assim, preferimos nos deter na apreensio dos trabalhos de Benetti e Cartelier como fio condutor da aniilise, para poder explorar melhor suas especificidades, embora usando, sempre que se fizerem neces- , as contribuigdes dos demais autores. 2. A FORGA DE TRABALHO No que se refere a forga de trabalho, a critica formulada por Benetti é a de que “las condiciones que hacen de la fuerza de trabajo una mercancia (principalmente la 55 privacin de medios de produccién) excluyen, si ellas se cumplen a los trabajadores de la divisién del trabajo que engendra las relaciones mercantiles”.? Isso ocorre, segundo o autor, porque as relagdes mercantis téma vercom trabalhos privados realizados independentemente uns dos outros, implicando um processo de trabalho particular, que compreende a forga de trabalho e os meios de produgiio. Como a produgio da forga de trabalho ndo implica esse tipo de proceso, € necessirio negar que possa ser concebida como mercadoria. Essa razio para a negagiio da forga de trabalho como mercadoria pode ter seus argumentos mais detalhados. Como afirma Cartelier, “labour processes have to be private and independently expended in order to be considered part of the commodity division of labour ... To assume that some people are deprived of any means of production amounts to saying they are excluded from commodity production. Labour perfomed by waged workers is neither private nor independent. The choice of commo- dities produced and the way of producing them are determined by capitalists”? Além disso, a presenga de itens produzidos domesticamente no custo de repro- dugdo da forga de trabalho € outro argumento utilizado para diferenciar o processo de trabalho usado para produzir a forga de trabalho daquele empregado na produgio das mercadorias em geral e negar, assim, a pertinéncia da concepgiio de forga de trabalho como mercadoria. Finalmente, segundo De Vroey e Aglietta, “a forga de trabalho se inscreve ... em polaridade com relagiio dis outras mercadorias, porque sua venda nfo realiza nenhuma validagio™, ja que o contrato salarial ndo faz parte da realizado do valor pela circulagio geral de mercadorias. Ao contrario, “s6 as despesas do assalariado fazem parte desta circulagio” Estes argumentos, a0 conduzir a negagao da fora de trabalho como mercadoria, tornam impossivel a compatibilizagdo entre os caracteres mercantil e capitalista propriamente ditos presentes na economia capitalista, conformeaconcepgdiode Marx, porque se torna impossivel compatibilizar a mais-valia, ou o aparecimento do excedente capitalista, com a troca de valores equivalentes, caracteristica de toda economia mercantil. Isso ocorre porque, como sabemos, Marx compatibiliza as nogdes de equivaléncia e exploragiio no interior do ciclo completo de reprodugio do capital FT DM , Pae M?=D? MP onde o primeiro ato é uma compra de mercadorias M contra dinheiro D, que no proceso produtivo permite o aparecimento de um excedente D’ > D. O que permite 2 Benei & Cartelier. “El capital como extensién de la mercanefa: una contradicién de la ceonomia pol Economia, Teoria y Pratica, México: UAM, 1986, n°7, p. 33. 3 Cartelier, J. “Marx's Value, Exchange and Surplus Value Theory: Université’ de Picardie, 4De Vroey, M. “La théorie marxiste de la valeur, version travail abstrait — Un bilan critique”. fn Dostaler, G.e M. Laqueux, orgs. Un Echiquier Centenaire: Théorie de la Valeur et Formation des Prix — La Découverte et Presses Universitaires de Quebec: 1985, p. 47. $ Aglietia, M. Régulation et Crises du Capitalisme: l Expérience des Etats-Unis. Cal 1976, p. 37. Suggested Interpretation”, mimeo, ann-Lévy, Pooces, 56

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