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A República - Livro II

Por Ana Pismel

O que encontramos no Livro I é o inicio de um debate acerca da justiça


nela mesma e que vantagens ela traria, com destaque para a contraposição
delineada entre a doxa e a sophia, ou seja, o discurso do retórico Trasímaco
e o exame de Sócrates em busca da definição de justiça. A hostilidade do
retórico atesta o caráter dogmático e impositivo do sofista. Ao fim do livro,
tem-se Sócrates afirmando nada saber (cf. A República, Livro I, XXIV, 354 c),
no entanto deixando a nítida impressão da prevalência de sua tese.
Servindo de gancho ao Livro II, encontra-se a mesma pesquisa, a respeito
do valor e da definição da justiça. Mesmo não estando totalmente
persuadidos da posição de Sócrates – elogiosa da justiça – os outros
interlocutores desejam persistir no exame para defini-la e provar sua
superioridade perante a injustiça.
Nesse novo exame, diante da exposição renovada e contundente da
tese do sofista feita por Gláucon e Adimanto, Sócrates propõe uma outra
estratégia para levá-los a ver a justiça e seu papel com clareza: a
organização de uma cidade na qual eles inserirão o homem, para assim
perceber o que traz de vantajoso a ele ser justo ou injusto. Após a exposição
do elogio à injustiça, feito para nortear justamente sua defesa, tem-se a
impressão de que ela é exercida apenas pelas vantagens que pode trazer a
quem é tido como justo. Se for assim, aparentar ser justo é mais importante
que sê-lo de fato. O justo, ainda que não o pareça, por sê-lo nada recebe em
retribuição ou em honras, e ainda pode ter infortúnios e humilhações sem
merecê-las.
Diante da pretensa aparência de justiça e da opinião, prejudicial ao
caráter dos jovens, Sócrates se vê na obrigação de persuadi-los de que a
vida do homem justo e virtuoso é infinitamente mais feliz e bem quista
pelos deuses. Nesse horizonte, a cidade ideal organizada por eles a fim de
servir como um recorte do homem e de sua vida em sociedade é que vai
mostrar as implicações da vida justa ou injusta.
Com efeito, a nova cidade vai sendo construída. Surge a necessidade
de guardiões para defendê-la. Examinando esses homens, chega-se à
conclusão de que eles devem ser, por natureza, impetuosos com os
estrangeiros, mas amáveis com os seus concidadãos; devendo ainda

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dedicar-se a isso exclusivamente, como exige qualquer arte quando se visa
ao máximo de perfeição. Para moldar o caráter deles, devem ser educados
desde a infância a serem corajosos, impetuosos e amáveis. Mas antes da
ginástica, é importante que se comece pela alma dos futuros guardiões.
Discorrendo também sobre essa questão, chegam à seguinte conclusão:
deve-se mudar a maneira pela qual os poetas concebem os mitos, de modo
que se coloquem os deuses como realmente o são, ou seja, como
totalmente bons e sempre idênticos a si, e não como seres por vezes
injustos, intrigantes e enganadores dos homens.
Em suma, esse é o teor do Livro II de A República, e quanto a ele há
duas observações pertinentes. A primeira é quanto a critica ao sofista feita
por Platão, que reduz ao absurdo a tese de Trasímaco, dialogando com ele
pela voz de Sócrates. Nesse horizonte, o que chama a atenção além da
crítica e da figura do retórico, assim como sua mera opinião - contrastante
com a busca da verdade empreendida por Sócrates - é a hostilidade com
que intimida os demais, o desejo que tem o primeiro de impor sua tese sem
permitir questionamentos por parte deles e, ainda, a exigência de
pagamento pelo que considera um serviço prestado. Do outro lado da
balança se encontra a simplicidade de Sócrates e sua humildade em afirmar
que nada sabe, e a forma como coloca seu raciocínio, construindo-o por
meio do diálogo com os demais na tentativa de aprender com eles, jamais
cobrando por isso.
Por fim, merece destaque a superação da mitologia que se coloca no
viés de controle da concepção dos mitos, submetendo-os a limites que
visam a não permitir a contradição entre eles e as leis da cidade. Ao
observar como se dá sua organização no diálogo, é interessante voltarmos-
nos à observação do fato de que nela não é a Paidéia aristocrática dos mitos
que norteia sua constrição, mas a busca da verdade empreendida numa
atitude filosófica. Pode-se perceber que, mesmo quando da discussão
acerca de como conceber os mitos a serem narrados aos futuros guardiões,
eles devem seguir certas leis, na medida em que não mais se apresentam
como ensinamentos em si mesmos. Vemos a mitologia servindo à educação,
pois os mitos devem submeter-se à filosofia, que aqui reclama centralidade
no regimento da vida prática em detrimento da tradição dogmática da
mitologia politeísta.
Bibliografia

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Platão, A República; tradução de Ana Lia de Almeida Prado; Martins
Fontes, 2006

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