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Alvaro Vieira Pinto Sete licdes sobre educacao de adultos 16* edicao 6° TEMA 0 problema da alfabetizacao Q analfabeto como individuo que nao necessita ler Para se discutir corretamente o problema da educagio e chegar a conclusdes capazes de orientar sua solugdo, é preciso que se tome um ponto de partida justo e verdadeiro. Este s6 pode ser o ponto de vista humanista, nao idealista. Consequen- temente, é necessério partir do analfabeto como ser humano e nao do analfabetismo, que é um conceito abstrato. Partir do fato real, concreto, e considerar como secundério, derivado, o aspecto sociologico de tal fato, oanalfabetismo. O analfabeto é uma realidade humana, enquanto o analfabetismo é uma real O passo imediato consiste em chegar & definicao auté doanalfabeto: para encontré-la é necessario superar a definigéo espontanea, vulgar e, por isso, ingénua, que concebe o analfa- beto tao somente como 0 individuo que so sabe definigao literal, etimolégica e por isso Sbvia, mas imprépria SETELIgGES SOBRE EDUCAGAO DE ABULTOS 6 para a anilise filoséfica que desejamos empreender. E impré- pria porque nao apreende a esséncia da realidade concreta do homem analfabeto. Limita-se a referir-se ao fato bruto, acidental de um indi- viduo que nao sabe ler, mas nao contém nenhuma referéncia a0 ser proprio de tal individuo, ser este que explica (isto é contém as causas de) sua realidade de iletrado. A definicao auténtica parte da existéncia concreta do analfabeto, ou seja, da sua realidade como ente humano em ‘um mundo circunstante, em uma sociedade que vive determi- nado momento histérico, no conjunto de relagdes que mantém com seus semelhantes. Ora, o mais importante dos aspectos, nos quais se manifesta sua relagdo com os demais homens, & seu trabalho. Porque, de acordo com a natureza concreta do trabalho que desempenha, esté designada a ele uma posicao na sociedade (e nao 0 inverso) Por conseguinte, o analfabeto, em sua esséncia, nao é aquele que nao sabe ler, sim aquele que, por suas condigSes concretas de existéncia, nao necessita ler. Esta é sua definigao real. F a exposigio de sua esséncia, porque nao apresenta o fato de ser iletrado como um acidente, mas como algo orig essencial, que tem que ser assim, dada sua condicao de vida, fundamentalmente de trabalho. Porque se assim nao fosse, se necessitasse saber ler para sobreviver, ou bem saberia (e entao nao haveria 0 problema) ou entio simplesmente nao exi Oconceito de “necessitar saber” ou “ndonecessitar saber vem da origem, do intimo do ser considerado em sua plena realidade, enquanto o de “saber” e “ndo-saber” (como fatos |ém de ser impossivel definir com rigor absoluto ites entre 0 “saber” e 0 “nao-saber” (daf que nao ha uma “necessitar” & uma coisa que ou € satisfeita (se & exigéncia inte- 6 uvano via oro ente (por exemp! ao qual se referem a leitura e a escrita é de cardter soci vez que tem por fundamento o trabalho). Aleitura ea escrita sao primordialmente dois dos recursos a que o individuo recorre para a execugao de um trabalho que no pode ser feito sem esse conhecimento. Por conseguinte, 0 conhecimento da leitura e da escrita é uma caracterfstica do tra- balho. Sua valoracao s6 pode ser feita tomando em consideragao de trabalho que cada individuo executa na sociedade. Pode-se dizer que é 0 trabalho que alfabetiza ou analfabe- tiza ohomem, segundo exija dele o conhecimento das letras, ou rense de conhecé-las. Como, porém, trabalho, por sintetizar 0 conjunto de relagdes sociais as quais ‘© homem est sujeito, toca a esséncia do homem, a definigao do analfabeto (definigao auténtica) tem que ser estabelecida em mos de necessidade ou nao de saber ler, e de nenhum modo pelo fato exterior do simples desconhecimento, Esta a razdo pela qual néo tem sentido dizer que a crianca (que, por sua idade, esté isenta de trabalho) ou o indigena de uma tribo primitiva, na qual ndo hé nenhuma espécie de traba- Iho que exija 0 conhecimento das letras, sao analfabetos. Concepgées ingénuas relativas ao analfabetismo A consciéncia ingénua ¢ fértil em atitudes referentes a0 analfabetismo. Algumas delas se referem as causas, outras ao significado do analfabetismo. Nao é possivel indicé-las todas, mas somente algumas. a) No que diz respeito as causas, refere sempre o analfabe- tismo a um vicio de formagio individual, pelo qual é respon- ETE Lges soaae EDUCAGAO De ADULTOS ” svel 0 proprio analfabeto ou sua familia, jamais a sociedade ‘como um todo. E quando menciona a sociedade, a entende como um simples meio ambiente, como uma realidade puramente fisica, sem consequéncias existenciais. E assim que as causas podem ser: 1) odescuico da familia em educar seus filhos, 0s vicios € omau ambiente moral em que nasce a crianca; 2) aindoléncia, a preguica do individuo; 3) a incapacidade de adaptagio ao meio, a rebeldia aos bons habitos; 4) obaixo nivel intelectual da crianga; 1agdes da crianca que determinam a evasio 6) as condigdes desfavoraveis do meio mente a distancia da casa a escola; isico, especial- 7) 0 desinteresse dos governos em todos; 8) a pobreza familiar, entendida como fato isolado do conceito de classe social. ar escolas para b) No que se refere as atitudes que cultiva com relagao ao analfabetismo, jé temos indicado que o considera como um uma “enfermidade” social, e tem por ele enorme des- prezo, porque o considera como incultura, como uma mancha na face do pais. As elites intelectuais com frequéncia preferem desinteressar-se do problema, que pessoalmente nao Ihes diz respeito, considerando-o como um residuo de um passado de ignorancia, do qual individualmente se liberaram. ©) Para “combater” ou “erradicar" analfabetismo, o que propdem é a acdo governamental levada a cabo por meio de “campanhas”, que a consciéncia ingénua concebe sempre de forma inadequada. Ja temos dito que ndo deve haver “cam-

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