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Sombra e Luz

por André Ludovico


Ninguém gostava de falar com aquele rapaz, era excluído pelos companheiros de
escola. Também pudera, ele tinha hábitos estranhos. Sentava-se num canto da sala,
limitando-se a copiar toda a matéria, para em seguida fitar o vazio com um olhar
sombrio. Ninguém jamais o vira sorrir ou sequer lembrava-se de sua voz. Era uma
sombra nas trevas, um grão de areia ao vento.
Recebera um apelido, porque sempre esqueciam seu nome, e uma alcunha é
perfeita para conversas ao pé do ouvido. A Sombra. Fora o que melhor coubera, caíra
como uma luva, não havia melhor. O rapaz era silencioso como o bater das asas de uma
bruxa. Muitas e muitas vezes causava espanto em alguém, quando, seguindo em certa
direção, andava nos mesmos passos de outrem como se o acompanhasse como uma
sombra.
Este estranho jeito de ser fazia de Sombra conhecido por todos, porque acabava
sempre trombando com alguém. Fora alvo de zombarias por muito tempo, mas seus
opositores logo desistiram, não era tão divertido implicar com um sujeito tão apático. Seu
misantropismo chegou a causar preocupação nos professores, nada o fizera mudar. Ou
quase.
A vida seguia imutável naquele colégio, com seus professores bananas, alunos
valentões, patricinhas, jovens sonhadores e a Sombra; até que um evento fez as
engrenagens enferrujadas do Destino se moverem, dando início a uma reação em cadeia
deixando um efeito jamais visto.
A Sombra encontrou a Luz.
Ou seria a Luz que achou a Sombra?
Sabe lá Deus porque esta coincidência ocorrera.
Ela chamava-se Clara de Luz e seu nome era apenas um reflexo de sua natureza
estonteante. Clara era o tipo de menina que teria uma legião de fãs aos seus pés, somente
para captarem um pouco de seus raios de vida, como se fossem flores promovendo uma
hecatombe ao sol de primavera. Sua alma era pura, desconhecia a malícia que havia na
maioria das pessoas, seu rosto mostrava-se assombrado ou repleto de vergonha ao ouvir
certas barbáries do mundo. Seus sentimentos e suas ações eram sinceros.
A sua voz era um bálsamo aos apaixonados, era uma afinadíssima viola. Era doce
e delicada, mas jamais algo que causasse repulsa por ser extrema. Além da bela voz, a
menina tinha maneiras ao falar, sabia dizer ‘com licença’ e ‘obrigada’ naturalmente.
O que chamava mais a atenção das pessoas e neutralizava qualquer pensamento
sujo, eram seus olhos e seu sorriso. Os olhos, pequeninas pedras de lápis-lazúli,
faiscavam, capturando a luz e quem olhasse aqueles dois lagos, tornar-se-ia Narciso,
desejando tocá-los. Os lábios, em pálidos tons róseos, parecendo que os anjos houvessem
pintado-os com cereja. Seus dentes perfilados, sem uma falha sequer, eram bonequinhos
de algodão a brincar de soldados marchando.

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Suas notas eram excelentes. Ela era a aluna mais dedicada, fazia todos os
trabalhos e exercícios com esmero. Tinha na ponta da língua as respostas para a maioria
das perguntas e quando não as tinha, esforçava-se para tê-las e entendê-las.
É obvio que tal magnificência causava certa inveja, de uma minoria que, como a
palavra diz, cobiçava um quarto de seus atributos. Por mais que existissem misérias
humanas como esta, era algo que não atingia a menina e não apagava sua luz. Como a
nuvem que jamais poderia apagar a luz do Sol, poderia encobri-lo apenas
momentaneamente, até que o astro-rei ache uma brecha e acenda novamente o fogo no
coração dos homens. Assim era com Clara de Luz. O brilho dela sempre retornaria, com
seu faustoso sorriso de anjo e voz de fada.
A única cousa que Clara de Luz teria como falha a sua perfeição era a completa
falta de desejo, de amor carnal por um ser vivo que fosse. Não que ela não sentisse algo
por alguém, mas o sentimento era tão elevado que ela não compreendia o que era o ‘fogo
que arde sem se ver’, o que era aquele sentimento egoísta de se querer alguém para si.
Esta era a sua tristeza, tão interior e solitária que ninguém via, de todos ela escondia. Sua
alma condoia-se por ver os pobres coitados que insistiam em amá-la. A cruz que Clara de
Luz carregava era não ser capaz de amar.
A vida da menina seguia imutável, com as paixões que ela semeava, com os
banhos de luz que encantava a todos e um sofrimento calado, como um amor unilateral,
corroendo a fonte vida. Porém, um evento fez a roda da fortuna girar em sentido oposto,
destroçando os segredos das cartas do Tarô e as predicações das quiromantes.
Clara de Luz encontrou A Sombra.
Ou teria ele a encontrado?
Só Ele sabia o que fizera ao criar este evento aos dois.
Clara de Luz fazia seu trajeto tradicional em direção à escola. Podia-se jurar que
até os animais a acompanhavam arriscando-se na selva-de-pedra, só para ter a sua
companhia. Ela cruzava sempre o parque, aspirando o puro ar e mesclando-se ao perfume
das flores. Neste dia, ao acaso, os caminhos da Luz e de Sombra se cruzaram e cada um,
finalmente, percebeu a existência do outro.
Vestiam o uniforme do mesmo colégio, assistiam às aulas no mesmo horário, em
salas diferentes, mas em todo o tempo que conviveram em um ambiente tão vasto e tão
pequeno, não haviam ainda trocado olhares. Eram como o Sol e a Lua, fugindo um do
outro. O encontro era um eclipse.
Clara de Luz percebeu o vazio que havia nos olhos confusos, ocultos sob os
escuros cabelos que caíam pelo rosto. Naquele olhar, geralmente sem vida, uma centelha
acendeu, atordoando os sentidos e nulificando a trava que o prendia a uma existência
nula. Num canto escuro, daquele olhar morava um menino, olhando sempre para o céu,
esperando uma estrela cair e sua vida mudar. Ele tinha esperança.
Sombra olhou nos olhos que lhe queimavam, que lhe maltratavam tanto. Nunca
vira tamanha beleza reunida em tão minúsculo espaço. Era uma nebulosa, girando sem
parar, num mar de luzes e sombras. No silêncio daquele olhar encontrou o grito
desesperado de uma alma aflita, que descobria ... descobria, o amor.

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