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ABSTRACT
DOENÇA HEPÁTICA GORDUROSA NÃO ção. A segunda agressão é geralmente atribuída ao stress
ALCOÓLICA (NAFLD) oxidativo, que causa peroxidação de lipídeos na mem-
brana do hepatócito, produção de citocinas que são, em
A doença hepática gordurosa não alcoólica (NAFLD) parte, responsáveis pela progressão de esteatose para
é uma condição clínico-patológica comum, caracteri- esteatoepatite e cirrose (2,3). Toxinas bacterianas, hiper-
zada por depósito de lipídeos no hepatócito do parên- produção de citocinas (especialmente TNFα), alteração
quima hepático (1-3). O quadro patológico lembra o dos estoques de ATP e da atividade da enzima citocro-
da lesão hepática induzida pelo álcool, mas ocorre em mo P450 Cyp2E1 parecem ser gatilhos importantes para
indivíduos que não têm ingestão etílica significativa. O a progressão da doença e fibrogênese. Na obesidade,
espectro de lesão hepática varia de esteatose macro- além da resistência à insulina, há também resistência à
vesicular simples para esteatoepatite, fibrose avançada leptina (4), e os níveis deste hormônio estão elevados. O
e cirrose. A NAFLD é talvez a causa principal de mor- papel da leptina é ainda controverso, com estudos su-
bidade e mortalidade ligadas a doenças do fígado, com gerindo que este hormônio promove esteatose hepática
potencial para progredir para insuficiência hepática. A e esteatoepatite, e outros mostrando que os níveis de lep-
progressão para fibrose ou cirrose parece ocorrer só em tina se correlacionam com esteatose, mas não com infla-
pacientes com evidência de esteatoepatite. mação e fibrose (5,6).
Epidemiologia Diagnóstico
A prevalência mundial de NAFLD não foi ainda deter-
minada, mas estima-se que seja de 10–24% em várias Sinais e sintomas
populações (3). Embora possa haver erros nessas esti- Como em outras doenças hepáticas, muitos pacientes
mativas, a NAFLD é a doença hepática mais comum com NAFLD (50–100%) são assintomáticos. A doença
no mundo ocidental, e sua prevalência está aumentan- hepática é muitas vezes descoberta acidentalmente,
do. Afeta todos os grupos raciais e étnicos, sem durante exames de rotina que revelam um aumento da
predileção por sexo ou idade. AST. A NAFLD é a causa mais comum de aumentos
A NAFLD é a causa de elevação assintomática não explicados de AST, desde que se exclua hepatite C
de aminotransferases em 45–90% dos casos, excluídas ou outras doenças crônicas do fígado. Quando ocor-
outras causas bem estabelecidas. A prevalência de rem os sintomas, em geral são pouco específicos. Dor
NAFLD aumenta significativamente em obesos, vaga, no quadrante superior direito do abdômen,
podendo chegar a 50–75%. É provável que o aumento cansaço e fraqueza são os mais comuns. Ocasional-
na prevalência de NAFLD seja paralelo ao aumento da mente, prurido, anorexia e náusea se desenvolvem.
prevalência de obesidade e diabetes em todos os gru- Icterícia, ascite, sangramento gastrointestinal e mani-
pos etários. festações de encefalopatia são indicativos de doença
hepática avançada (cirrose descompensada), ocorren-
Etiopatogenia do tardiamente na evolução.
Diferentes agentes e condições patológicas estão asso- Não há sinais específicos de NAFLD. A obesi-
ciados com NAFLD, como resistência à insulina dade é a anormalidade mais comum no exame físico.
adquirida, erros inatos do metabolismo, condições Hepatomegalia é descrita em ~75% dos pacientes (por
médicas ou cirúrgicas associadas à perda de peso, e US pode chegar a 95%). Sinais de hipertensão portal
algumas drogas e toxinas. Parece que a NAFLD, o são menos freqüentes, embora a esplenomegalia possa
DM2 e a dislipidemia compartilham mecanismos ser encontrada em 25% dos pacientes na época do
patogênicos. É provável que a esteatoepatite seja medi- diagnóstico. Dos sinais de insuficiência hepática, spider
ada pela resistência à insulina, um solo comum a estas e eritema palmar são os mais comuns (3).
condições.
Embora a patogênese exata da NAFLD per- Achados laboratoriais
maneça desconhecida, a hipótese mais aceita é que diver- Elevações discretas ou moderadas nos níveis de AST e
sas agressões estão envolvidas nesta condição. Em ALT são as alterações laboratoriais mais freqüentes.
primeiro lugar, como resultado da resistência à insulina, Não há correlação entre o grau de elevação destas en-
há uma maior síntese e retenção de triglicérides no zimas com a gravidade histológica da inflamação ou
hepatócito, levando à esteatose macrovesicular. É fibrose. Diferente de pacientes com esteatoepatite
provável que uma menor oxidação de ácidos graxos, por induzida por álcool, que apresentam aumento maior
disfunção mitocondrial, possa contribuir para esta altera- de AST em relação à ALT, em pacientes com NAFLD
a relação AST/ALT é menor que 1. Esta relação tende riscos associados à biópsia são argumentos propostos
a aumentar com o desenvolvimento de cirrose, per- contra a obtenção de tecido hepático. Entretanto, a
dendo capacidade de discriminação diagnóstica. Os biópsia é o único método diagnóstico de esteatoepatite
níveis de fosfatase alcalina podem ser discretamente e a única maneira de se identificar a gravidade do dano
elevados em 1/3 dos pacientes. Hiperbilirrubinemia, hepático, bem como a prognóstico. Há dados clínico-
hipoalbuminemia e aumento do tempo de protrombi- laboratoriais que podem identificar pacientes com maior
na aparecem com menos freqüência, e geralmente são probabilidade de fibrose hepática, nos quais a biópsia
vistos quando há falência hepática. pode ter maior valor prognóstico. Estes dados incluem:
Um pequeno percentual de pacientes com idade > 45 anos, presença de obesidade ou DM2 e
NAFLD pode apresentar baixos títulos (< 1/320) de relação AST/ALT > 1. A decisão de realizar a biópsia na
anticorpos-antinucleares (ANA). O papel do ferro na prática clínica deve ser individualizada e compartilhada
patogênese da NAFLD é controverso. Alguns estudos com o paciente. A figura 1 apresenta um algoritmo para
mostram uma elevação da saturação de transferrina em a investigação diagnóstica de NAFLD.
~10% e da ferritina em ~50% dos pacientes. Não há Os achados histológicos da NAFLD são indis-
indicação para que se pesquise, rotineiramente, hemo- tinguíveis dos decorrentes de doença hepática induzi-
cromatose genética em pacientes com esteatoepatite da por álcool. Há dois tipos de alterações associadas
não alcoólica. com NAFLD: 1) esteatose macrovesicular predomi-
É importante excluir outras causas secundárias nante, isoladamente, ou 2) esteatose macrovesicular
de esteatose, para que se possa fazer um diagnóstico de predominante e graus variáveis de balonamento
NAFLD primária com segurança. A hepatite C (HCV) citológico e áreas de necrose, infiltrado inflamatório
e a doença hepática pelo álcool são particularmente neutrofílico-linfocítico, corpúsculo hialino de Mallory
importantes, pela alta prevalência destes dois agentes e fibrose perisinusoidal. Nem todas as características da
hepatotóxicos. HCV pode induzir alterações histoló- esteatoepatite estão presentes em cada caso. Entretan-
gicas que lembram a NAFLD, e testes sorológicos para to, há padronizações descritas para a análise anátomo-
excluir hepatites virais são pré-requisito para o diag- patológica de NAFLD (7).
nóstico de NAFLD. Pela definição, o diagnóstico de
NAFLD não pode ser feito em pacientes com ingestão História natural
excessiva de álcool. Acredita-se que não se desenvolve A história natural da NAFLD ainda não está bem esta-
esteatose com ingestões < 20g/dia para mulheres e < belecida, mas parece ser determinada pela gravidade da
30g/dia para homens. lesão histológica. Estudos transversais de NAFLD
indicam que a maioria dos indivíduos apresenta
Exames de imagem somente esteatose, e é rara a progressão para estea-
Ultrassonografia (US), tomografia computadorizada toepatite ou fibrose na evolução (1-3). Em alguns
(TC) e ressonância magnética (MRI) podem identi- estudos encontrou-se, no momento do diagnóstico,
ficar a esteatose hepática. Destes, a US é a mais barata. fibrose hepática avançada em 30–40% dos casos, e cir-
Os achados sonográficos de alterações gordurosas rose bem estabelecida em 10–15% dos pacientes. Pode
difusas são ecotextura hiperecóica difusa e aumento de haver progressão para carcinoma hepatocelular. A
ecotextura comparado ao rim. Na TC, evidencia-se coexistência de esteatose com outras doenças hepáti-
menor densidade do parênquima hepático. A com- cas, como hepatite C, pode acelerar a progressão da
paração destes dois métodos mostra que o US é mais doença hepática.
sensível na detecção de mudanças gordurosas difusas. Nos pacientes com diagnóstico de estea-
Entretanto, quando as alterações na gordura são loca- toepatite, estabelecido na biópsia, o seguimento de-
lizadas, a TC e a MRI são superiores à US. Deve ser monstra que 1/3 tem progressão da fibrose, e 1/3
destacado que nenhum dos métodos é capaz de dis- destes com progressão rápida para fibrose avançada. O
tinguir esteatose de esteatoepatite, nem estimar a único dado laboratorial que se correlacionou com a
gravidade da alteração. Assim, a biópsia hepática é o progressão histológica foi elevação dos níveis de AST.
melhor método diagnóstico para esteatoepatite. Dados recentes sugerem que NASH pode ser a
principal causa de cirrose “criptogênica”. Há perda de
Histologia hepática infiltração gordurosa em pacientes com NASH associ-
O valor da biópsia hepática no diagnóstico de ado à cirrose. Serão necessários grandes estudos
esteatoepatite (NASH) na prática clínica ainda é debati- prospectivos nessa área, para uma melhor definição da
do. A ausência de tratamento médico adequado e os história natural da NAFLD.
Prevalência (%)
Nº de Componentes da S. Metabólica Nº de Componentes da S. Metabólica
Figura 2. Prevalência de doença renal crônica e microalbuminúria estimadas pelo número de com-
ponentes da síndrome metabólica (NCEP-ATPIII). Adaptado de Chen e cols. (18).
mente mediada pela resistência à insulina. A resistência Recentemente, a agência internacional para
à insulina também está associada à hipertrofia do pesquisa em câncer (IARC) avaliou toda a literatura
miocárdio (25), e é possível que a angiotensina II disponível sobre a associação entre obesidade e câncer,
tenha ações mitogênicas e de crescimento sinérgicas à considerando tanto estudos epidemiológicos como
insulina neste tecido (26,27). ensaios clínicos e experimentais. Nessa revisão, con-
cluiu-se que evitar o aumento de peso reduz o risco de
desenvolver cânceres de cólon, mama (em mulheres na
ALTERAÇÕES COGNITIVAS pós-menopausa), endométrio, rim e esôfago (adeno-
carcinoma). Essas conclusões foram baseadas em estu-
Estudo recente, avaliando uma população de idosos dos epidemiológicos de indivíduos com sobrepeso e
americanos, demonstrou que a presença de síndrome obesos comparados a indivíduos magros – não em
metabólica aumentava o risco de alterações cognitivas, estudos de indivíduos que perderam peso. Infeliz-
independentemente de variações demográficas, de mente, poucos indivíduos conseguem manter perda de
hábitos de vida e co-morbidades. Neste estudo, os peso significativa após algum tempo, tornando
critérios diagnósticos de síndrome metabólica usados extremamente difícil examinar a conseqüência da
foram os do NCEP-ATP III, e avaliaram-se também redução de peso em grandes populações que perderam
níveis de IL-6 e proteína C-reativa. O risco de redução peso. Conseqüentemente, o IARC concluiu que não
cognitiva era ainda mais evidente em idosos com alte- existem evidências adequadas de que perder peso
rações inflamatórias mais acentuadas (28). reduz o risco de desenvolver câncer (30).
Atualmente, os mecanismos que conectam a
obesidade com o risco aumentado de desenvolver
CÂNCER
câncer envolvem os efeitos endócrinos e metabólicos
Embora a obesidade seja reconhecida como impor- da obesidade e as conseqüentes alterações que eles
tante causa de diabetes e doença cardiovascular, a asso- induzem na produção de peptídeos e hormônios
ciação entre obesidade e diferentes tipos de câncer tem esteróides. Nesse contexto, destacam-se a hiperinsu-
recebido muito menos atenção. Apesar disso, os resul- linemia crônica, alteração da secreção de hormônios
tados de estudos epidemiológicos que começaram na esteróides sexuais e esteatoepatite não alcoólica (29).
década de 70 indicam que a obesidade contribui para A hiperinsulinemia crônica está associada com a
o aumento da incidência e/ou mortalidade por câncer patogênese do câncer de cólon e com os cânceres de
de cólon, mama (em mulheres na pós-menopausa), mama, pâncreas e endométrio. Esses efeitos podem ser
endométrio, rim, esôfago (adenocarcinoma), gástrico mediados diretamente pela presença de receptores de
(cárdia), pâncreas, vesícula biliar e fígado (tabela 1). insulina nas células (pré) neoplásicas, estimulando o
Com efeito, acredita-se que a obesidade atualmente crescimento, ou ter a sua gênese mediada por meca-
seja a causa de 15–20% de todos os cânceres nos Esta- nismos comuns que ocasionam a resistência à insulina
dos Unidos, constituindo-se, dessa maneira, no princi- como, por exemplo, a inflamação crônica subclínica
pal fator de risco para o desenvolvimento de câncer em com o aumento do TNFα, que agiria como agente
indivíduos não fumantes (29). promotor do crescimento tumoral.
Tabela 1. Tumores relacionados à obesidade. Risco relativo de câncer associado com obesi-
dade e porcentagem de casos de câncer atribuído à obesidade na população dos EUA.
O aumento da adiposidade influencia a síntese e 6. Chitturi S, Farrell G, Frost L, Kriketos A, Lin R, Fung C, et al.
Serum leptin in NASH correlates with hepatic steatosis
viabilidade dos hormônios esteróides sexuais, através but not fibrosis: a manifestation of lipotoxicity? Hepatol-
de pelo menos três mecanismos. Primeiro, o tecido ogy 2002;36:403-9.
adiposo aumenta a conversão de andrógenos a 7. Kleiner DE, Brunt EM, Van Natta M, Behling C, Contos MJ,
estrógenos. Segundo, a obesidade ocasiona a redução Cummings OW, et al. Design and validation of a histo-
da síntese da globulina carreadora de hormônios logical scoring system for nonalcoholic fatty liver dis-
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dos estrógenos. Finalmente, a hiperinsulinemia per se 8. Neuschwander-Tetri BA, Brunt EM, Wehmeier KR, Oliver
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pode levar a aumento da síntese de andrógenos ovari- after 48 weeks of treatment with the PPARg ligand
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sclerosis Risk in Communities (ARIC) Study. Circulation Fax: (19) 3788-8950
2005;112:819-27. E-mail: msaad@fcm.unicamp.br