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A chupa-ostra
Por certo se afogara ali mesmo a Chupa-
Ostra, quando o sueste empolou as águas e
escureceu os montes, porque tinha os pés
enterrados na areia e os dedos murchos e
roídos. Veio o povo. Ninguém, porém, queria
pegar o esqueleto malfadado, tocar aquele
pobre corpo que o mar repelira num buraco de
pedra para que o picassem as garoupas e os goiás.
Poucos se compadeceram daquela miséria que
a tormenta esmagou e que jazia na lama,
abandonada, escarnecida por seres cuja vida
também era uma dolorosa encosta de agruras e
desesperanças e que, certamente, um dia, o mar
empurraria para qualquer praia longínqua, já sem
olhos e os ventres esverdeados e moles. Mas
sempre se arranjou um caixão de chita preta, feito
às pressas pelo Dorvalisto, e uma carreta para
levar o corpo ao Pagajá, à cova dos pobres, num
canto do cemitério, junto ao muro esburacado e
triste.
Era uma velha escura, seca e gibosa, o peito
cavado, sempre em farrapos, fedendo a óleo de
peixe e a roupas sujas. Errava de noite, como um
fantasma, pelas praias, praguejando contra o mar,
com uma esteira debaixo do braço. Vivia entre as
pedras, mas, furtiva e medrosa, vinha às vezes
dormir sob a vassoura, nos terrenos do José
Tasca, ao pé da cerca da tia Braga. As crianças
fugiam dela, aos gritos, e os pescadores, mesmo
os jornaleiros, se a encontravam de manhãzinha,
não iam ao mar ou às lavouras: o encontro era de
maus presságios, como galinha arrepiada. A
bruxa excomungada! Por certo morreu num
desses instantes de desespero, de ira,
estrangulada pelos braços desse mar que ela
odiava, do estupor que afogara, um a um, o
marido e o filho.
Gente nova
No galpão do Pedro Lopes, onde morou o
Amâncio, o Carriçobate o dente de maleita. Pobre
Carriço: a sua vida tem sido um continuo e doloroso
percurso entre um chão emprestado e uma cama de
ferro no Hospital de Caridade. Ao pé da cerca do
Miguel, nas marinhas da Santa, sentados em canastras
pregueadas ou de cócoras, sobre canteiros de gramas,
alguns homens macilentos falavam baixo a mulheres
tristes, ou, então, olhavam sem interesse o grande
barco que os trouxera de tão longe, para uma nova
vida que começava sem esperanças.
Vive agora com uma velha- a Zulmira- que ele
trouxe da Guarda da Embaúba, com a caixa, a
cafeteira e as duas canecas do aparado, uma delas
manchada de nódoas azuis. A Zulmira destrava a
língua quando a esmola não chega e a carência é por
demais.
Velha história
A personagem Sinhá Cândida, com 5 filhos, foi
abandonada pelo marido, Geraldino Raposa, que
foi atrás de uma rapariga sardenta, de cabelos de
milho e corpete de seda estalando nos peitos
marcados de lantejoulas. Sinhá Cândida sofreu,
trabalhou muito, mas casou as filhas. Os rapazes
foram cedo para os espinhéis, na dura vida do
pobre. Geraldino foi um ingrato. Os rapazes foram
ao mar e chegou o vento grande, levantando o mar,
partindo galhos. O mar cresceu e afundava negro
como tinta, cheio de listras e de espumas. Sinhá
Cândida lembrava as amargas predestinações da sua
velhice e via os rapazes, quando meninos, alegres,
encardidos, as pernas riscadas pelas ostras. Sinhá
recordava e o mar ali bem perto, que um dia daria à
mãe, já fedendo, embrulhado numa velha esteira. Era
o destino inexorável dos rapazes.
Terra Bárbara
João Claro descia encosta abaixo, rastejando,
para espiar as raparigas que lavavam na fonte, à
sombra fechada dos salgueiros. E varando,
cauteloso e mudo
E Rosa Maga sentia tanto a frescura da linfa
sussurrante que, atirando a cabeça para trás, num
riso de intenso contentamento, uma das pomas lhe
saltara do corpete de chita. Desde esse dia
começara a perseguir a linda rapariga com amor e
com ansiedade, buscando-a, desejando-a com todas
as exigências de seu sangue insatisfeito, todos os
impulsos de sua natureza de gato selvagem.
Espicaçado pelo desejo de ver a rapariga, sacudido
pela ternura rascante daquele canto, João Claro
continuara a caminhar.
Então, num arranco, afastando com as mãos os
galhos altos das vassouras, deitou a correr pela
encosta abaixo, louco de amor e de cio. Uma
semana depois, João Claro, ao anoitecer, casou no
Juiz de Paz com a Rosa Maga.
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AO MAR LARGO
As narrativas que constam na parte Ao mar
largo, têm uma homenagem inicial a Virgilio
Várzea, o grande amante do mar.
PRAIAS
Sinfonia
Coqueiros é uma estrada com tapumes verdes,
com casas silenciosas, entre folhagens. Entre os
arvoredos fica a escola, a capelinha de Santa cruz, o
cemitério onde repousa o poeta do mar, o lírico
iluminado que falava aos fantasmas e recolhia, no
regaço da sua amorável misantropia, os enfermos, os
tristes e os desesperados. Coqueiros nas suas noites
envernizadas de lua cheia, que cheiram a maresias
esverdeadas e a resinas aquecidas, ensimesma-se,
espiritualiza-se e desperta essa saudade, sem motivo e
sem nome, em que a vida se suspende e o passado se
entranha, se funde, para sempre, na alma enternecida
da gente.
Areias e mar
O Campeche fica entre a Ponta da Galheta e o
Morro das Pedras. As dunas ali alteiam os largos
ventres nus, onde o vento desbasta a vegetação
rasteira e áspera. O rumor retumbante do oceano é
descontínuo e alongado. Às vezes, do lado da terra,
dos casais distantes, vem a voz de alguém tangendo o
gado ou o metálico gargarejo das saracuras. As dunas
sofrem o tormento da esterilidade. Errantes e
insatisfeitas vivem à procura de um raio de sol que as
acaricie e beije, e uma chuva que as alegre e fecunde.
A Praia do Meio fica por sobre o mar, até onde a
vista pode alcançar o morro do Ribeirão, as curvas do
Pântano do Sul, e, esfumada à distância, Naufragados,
que o risco azulado da barra prolonga até o Morro dos
Cavalos, na ponta do céu. A Praia do Meio é deserta e
ampla, os ventos ali disparam como bichos selvagens.
É um manso recanto onde não atracam os batelões
atarracados, nem as lanchas da Enseada ou da Ponta
de Baixo cheias de louça de barro, nem os estivadores
de lenha, nem as largas baleeiras onde grunhem
porcos fedidos. A praia é calma que parece que o mar
está saturado de tanto silêncio.
A imagem de Coqueiros em dezembro de 45 é
esta; vultos apressados de mãos nos bolsos. As névoas
úmidas esfumam os contornos. Um ou outro grasnar
de gaivota raspa o ar enxovalhado. A vida se diluiu
em água e neblina. Uma tristeza envelheceu a
paisagem. Entardece.
Em ltapema não há senão praia e mar, rolos de
algas, ríspidos galhos cor de bronze. No inverno, após
as pesadas chuvas e as longas ventanias, àsvezes, se
vêem, ao comprido das areias, cadáveres de pingüins
e velhos corvos de pescoço vermelho, batendo as asas
e grasnando em torno da carcaça de um golfinho.
Sempre a mesma paisagem: ondulações de matos
batidos de vento do lado da terra e que sobem para o
alto de outeiros redondos e ramalhudos, onde as
palmeiras, como enormes aranhas espetadas na ponta
de paus, agitam as longas pernas esfiapadas e verdes.
Itaperobá tem dunas e espumas, e, ao fundo, onde
a névoa freme, do lado da terra, arvoredos sem
frondes, de seiva áspera, que emergem das areias em
longos frisos verde-escuros. Manchas oblíquas de
ilhas flutuam no descampado oceano, que a luz matiza
de tons lustrosos e mansos. Em torno dos ranchos
compridos e baixos, cobertos de tiririca, enxugam as
redes. E o nordeste, forte, sacode velhas roupas nos
varais.
Jaguarunafica bem na espuma do oceano. O
horizonte se encurva longe, liso e vazio, sem a mais
leve mancha de ilha ou garatuja de fumaça. Para o
norte, por detrás das cabeças fulvas dos cômoros, um
cocoruto escuro se destaca; numa ponta das águas
nevoentas, cinzentos e hirtos, vêem os mastros de um
navio naufragado; e um pouco ao largo, sobre uma
tênue nódoa curva, desce o traço esbranquiçado do
farol de Santa Marta