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II - Dos contratos entre pais e filhos

II. 1. Aspectos gerais

O Código Civil de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1916), no seu artigo 1.132, in verbis,
estabelecia:

"Art. 1132. Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que
os outros descendentes expressamente consintam."

Também no respeitante ao contrato de troca, assim ficou disposto:

"Art. 1164. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e


venda, com as seguintes modificações:

. . . .

II - É nula a troca de valores desiguais entre ascendentes e


descendentes, sem consentimento expresso dos outros descendentes.".

Sob a mercê destes dispositivos legais, o Supremo Tribunal Federal formulou, inclusive, a
Súmula 494, que apontava o prazo prescricional de 20 (vinte) anos para a anulação da
venda de bens do ascendente para o descendente, sem o consentimento dos demais
filhos. (1)

Ao tratar do contrato de doação entre pais e filhos, o Código de 1.916 ordenou:

"Art. 1171. A doação dos pais aos filhos importa adiantamento da


legítima."

Com o novo Código Civil (Lei 10406/02, de 11-01-2002), a sistemática não muda. As
mesmas restrições são encontradas nos contratos de compra e venda, de doação e de
permuta. Com efeito, o artigo 496, in verbis, reza:

"Art. 496. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os


outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem
consentido".

Parágrafo único: Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do


cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória."

Cria-se aqui uma inovação. Outrora fazia-se mister apenas o consentimento dos demais
descendentes. Hoje, pela nova redação, além deste consentimento, também o cônjuge há
de anuir.

Seguindo a mesma tendência, no respeitante ao contrato de troca assim ficou disposto.


"Art. 533. Aplicam-se à troca as disposições referentes à compra e
venda, com as seguintes modificações:

. . . .

II - é anulável a troca de valores desiguais entre ascendentes e


descendentes, sem consentimento dos outros descendentes e do cônjuge
do alienante."

Outra vez a nova legislação cria a necessidade não só da anuência dos descendentes,
como também, do outro cônjuge.

Respeitante à doação, o artigo 544, in verbis, disse:

"Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a


outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança."

Conforme Débora Gozzo (2), no Brasil sempre vigeu as proibições que hoje estão
estampadas, sobretudo, no artigo 1.132, do Código de 1.916. As ordenações Manuelinas
(1.521) e Filipinas (1.603), ambas com aplicação no Brasil colônia, já continham
disposições neste sentido.

A mesma autora (3)ensina que são poucos os países que possuem dispositivos iguais aos
do Brasil. Cita o exemplo de Portugal, cujo artigo 877 veda a venda de pais e avós aos
filhos e netos, sem o consentimento dos demais.

Em outros países, como na Argentina (art. 1.359, do CC), no Chile (art. 1.796 do CC) e no
Equador (art. 1.726,do CC), são vedadas as vendas entre pais e filhos enquanto perdurar
a menoridade deste. Finda a menoridade, o contrato poderia ser realizado normalmente.

Contudo, por haver citado alguns códigos da Europa, cabe salientar que tanto o francês,
quanto o alemão e o italiano, não adotam a proibição questionada (4).

Ora, por que, então, nosso legislador cria essa legitimação extraordinária para os contratos
de compra e venda entre ascendentes e descendentes, na contramão das legislações
alienígenas?

III. 2. Fundamentos para a existência das limitações

A doutrina, sempre partindo da mesma premissa, traz vários apontamentos para existência
dos ditos artigos.

J.M. Azevedo Marques (5)e Washington de Barros Monteiro (6)entendem que a razão da
existência destes impedimentos é evitar-se o prejuízo das legítimas.

J.M. de Carvalho Santos (7) também trilha por essa tendência.


Pontes de Miranda tem outra visão, conquanto dentro da mesma vertente. Reconhecendo
que o Código não veda as doações, mas sim as vendas e compras, o que se visa é
impedir simulação de doações e, por conseguinte, ultrapassar-se as legítimas. (8)

Débora Gozzo (9), por seu turno, sustenta que:

"O objetivo do legislador pátrio foi o de evitar a desigualdade dos


quinhões hereditários, ou seja, da legítima, que é aquela porção de
bens do de cujus, reservada, por lei, aos herdeiros descendentes ou
ascendentes, correspondente à metade de seus bens".

Caio Mário da Silva Pereira (10) segue mesma tendência:

"Não podem os ascendentes vender ao descendente, sem que os demais


descendentes expressamente o consintam. Com essa proibição, pretendeu
a lei resguardar o princípio da igualdade das legítimas contra a
defraudação de que resultaria de dissimular, sob a forma de compra e
venda, uma doação que beneficiaria a um, em prejuízo dos outros."

No mesmo diapasão está Maria Helena Diniz (11), entendendo que o legislador visou evitar
as fraudes contra a legítima dos demais herdeiros.

De fato, parece esta ser a intenção do legislador: evitar as fraudes às legítimas dos
herdeiros, com a possibilidade de se contemplar um ou uns, em detrimento dos demais.

Neste passo, considerar-se-á pontualmente as limitações criadas pela lei, no que toca aos
negócios jurídicos havidos entre descendentes e ascendentes.

III. 3. Da doação

Para uma grande maioria, a doação é um contrato (Orlando Gomes (12), Maria Helena Diniz
(13)
). Tanto é assim que nosso Código a colocou no rol dos contratos.

Para outros, a doação não tem natureza contratual, pois, em algumas situações, o
consentimento do donatário não se verifica.

O próprio Código Civil francês não alista a doação como contrato, apenas a considerando
como forma de aquisição de propriedade. (14)

Contudo, mostra-se prevalente a primeira tese, a qual permite definir "doação" como um
"contrato pelo qual uma das partes de obriga a transferir gratuitamente um bem de sua
propriedade para o patrimônio da outra, que se enriquece na medida em que aquele
empobrece." (15)

Essa é, inclusive, a interpretação autêntica do contrato de doação, previsto no artigo


1.165, do Código Civil de 1.916, in verbis, que prevê:
"Art. 1165: Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por
liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de
outro, que os aceita."

A mesma definição é encontrada na Lei 10.406/02, que dispõe:

"Art. 538: Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por


liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de
outra."

III. 3.1. Doações inoficiosas

A lei impõe certas limitações ao doador. Neste desiderato, o artigo 1.176, do Código Civil
de 1.916:

"Art. 1176: Nula é também a doação quanto à parte, que exceder a de


que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em
testamento."

E, no mesmo diapasão, o artigo 549, da Lei 10.406/02:

"Art. 549: Nula é também a doação quanto à parte que exceder à de que
o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento."

Sendo assim, o doador disporá de duas partes de seu patrimônio. Uma que se denomina
parte disponível, à qual o oferente poderá dar o fim que lhe aprouver; e uma outra parte,
denominada legítima, que deve ser resguardada em favor de seus herdeiros.

Tem-se, destarte, que não se admite a doação inoficiosa, qual seja, aquela doação em que
o doador, no momento da liberalidade, excede a legítima dos herdeiros. Não se concebe
que alguém doe além do que poderia dispor em testamento.

O conceito da inoficiosidade é ditado pelo parágrafo único, do artigo 1.790, do Código de


1.916:

"Considera-se inoficiosa a parte da doação, ou do dote, que exceder a


legítima e mais a metade disponível."

Cumpre mencionar que o Código Civil de 2.002 não traz texto expresso, com igual ou
semelhante redação.

Legítima, então, é a parte de 50% (cinqüenta por cento) do patrimônio do doador, cabível
aos seus herdeiros necessários, que pelo Código Civil vicejante, perfazem os
descendentes, os ascendentes e os cônjuges.

Visando proteger o interesse dos herdeiros, preceituou o legislador, no artigo 1.171, do


Código de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1.916), que a doação dos pais aos filhos importa em
adiantamento da legítima.
Igual preceito restou lançado no Código Civil de 2.002, agora no artigo 544, que prescreve:

"Art. 544. A doação de ascendentes a descendentes, ou de um cônjuge a


outro, importa adiantamento do que lhes cabe por herança."

Nos dizeres da lei, quando o ascendente doa ao descendente, em vida, isto representa
adiantamento daquilo que lhe caberia na herança.

Sobreleve-se, apenas, que o ascendente não necessita do acordo dos demais para doar a
um descendente, ao contrário do que ocorre na compra e venda e na permuta, pois, na
hipótese da doação, já há a presunção de adiantamento de legítima.

Logo, a doação de ascendente para descendente, sem o consentimento dos demais, não
é nula. O caso é da conferência prevista no artigo 1.786 (16), do Código Civil de 1.916, com
idêntica redação do artigo 2.002 (17), da Lei 10.406/02; trazendo o ato realizado de doação
para a colação dos bens doados.

Por assim dizer, quando um descendente recebe em vida doação um bem de seu
ascendente, deverá declarar nos autos do inventário essa doação, e isso lhe será contado
como adiantamento da parte que lhe caberia na herança.

Portanto, tem-se que a doação de ascendente para descendente importa em adiantamento


da legítima. Deste modo, quando da abertura do inventário, o herdeiro contemplado com a
doação é obrigado a trazer à colação, nos autos do inventário, os bens e dotes que
recebeu.

Colação é, então, o ato pelo qual os herdeiros necessários, beneficiados em vida com
doações do de cujus¸ declaram, no inventário, tudo aquilo que receberam, para que sejam
conferidas e resguardadas as respectivas legítimas.

A finalidade desta colação está prevista na própria lei. O artigo 2.003, do novo Código
Civil, assim a considera:

"Art. 2003: A colação tem por fim igualar, na proporção estabelecida


neste Código, as legítimas dos descendentes e do cônjuge sobrevivente,
obrigando também os donatários que, ao tempo do falecimento do doador,
já não possuírem os bens doados."

Caso já não os tenha, o donatário deverá trazer à colação o valor correspondente em


dinheiro.

Em havendo negativa na apresentação destes bens, incorrer-se-á em sonegação, a qual


tem resultado previsto no novo Código Civil (Lei 10.406, de 10-01-2002), pelo artigo 1992:

"Art. 1.992: herdeiro que sonegar bens da herança, não os descrevendo


no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento,
no de outrem, ou que os omitir na colação, a que os deva levar, ou que
deixar de restituí-los, perderá o direito que sobre eles lhe cabia."
Neste particular, repita-se, a doação de pai para filho não é nula ou anulável. Ela é válida.
Nula seria tal doação se o filho donatário fosse contemplado com a totalidade dos bens,
em prejuízo dos demais descendentes, ou mesmo na parte em que excedesse o
disponível do doador. (18)

O que se reclama na doação entre ascendentes e descendentes é que tal seja declarada
nos autos do inventário, quando da colação. Caso o bem doado ao herdeiro seja mais
valioso que o quinhão hereditário a que faria jus, haverá necessidade de conferência e
redução. A propósito, eis o artigo 2.007, do novo Código Civil:

"Art. 2007: São sujeitas à redução as doações em que se apurar excesso


quanto ao que o doador poderia dispor, no momento da liberalidade."

Por outro lado, poderão operar-se doações de ascendentes para descendentes, sem que
se dê a ulterior conferência, por intermédio da colação. Concorde, Maria Helena Diniz (19):

"O pai poderá fazer doações a seus filhos, que importarão em


adiantamento da legítima, devendo ser por isso conferidas no
inventário do doador, por meio de colação, embora o doador possa
dispensar a conferência, determinando, em tal hipótese, saia de sua
metade disponível, calculada conforme o Código Civil, art. 1.722,
contanto que não a excedam, porque o excesso será considerado
inoficioso, e portanto nulo."

Portanto, não está sujeito à colação imóvel recebido em doação por filho, se o pai doador
determinou que fosse retirado de sua parte disponível o objeto da liberalidade, conforme já
decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo. (20)

No mesmo sentido, Rogério Marrone de Castro Sampaio (21), para quem é possível a
dispensa da colação, e, por conseguinte, que a doação beneficie um filho em detrimento
dos demais, desde que o doador inclua o ato de liberalidade dentro de sua parte disponível
na herança. (22)

Outrossim, convém lembrar que à luz do artigo 2.011, do novo Código Civil, que

"as doações remuneratórias de serviços feitos ao ascendente também não


estão sujeitas à colação." (23)

Por assim dizer, quando um descendente recebe uma doação de seu pai, em face dos
serviços que lhe prestou, esta doação não se sujeita à colação, uma vez que se reveste de
caráter remuneratório, e não se configurando um verdadeiro donativo.

III. 3. 2. Partilha em vida

O artigo 1.089, do Código de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1916), e o seu correspondente


artigo 426, do novo Código Civil, rezam que

"não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva."


Contudo, os artigos 1.776, do antigo Código, e 2.018, do novo, pontificam:

"É válida a partilha feita pelo pai, por ato entre vivos ou de última
vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros
necessários."

Deste modo, o ascendente poderá dispor da partilha de seus bens, ainda que em vida,
desde que não ferindo a legítima dos herdeiros.

Sendo assim, é lícito e legítimo que já se faça a partilha, em vida, confiando previamente o
quinhão sucessório aos herdeiros, sempre, contudo, respeitando a legítima que cabe a
cada um destes, dispensando-se, inclusive, futura colação em inventário.

Outrossim, da parte que lhe é disponível, poderá o compartilhante confiá-la a quem lhe
aprouver, pois a lei prevê apenas e tão-somente que seja preservada a parte legítima.

III.4. Compra e venda

O contrato de compra e venda vem a ser, como ensina Caio Mário da Silva Pereira (24), o
contrato em que uma pessoa (vendedora) se obriga a transferir a outra (compradora) o
domínio de uma coisa corpórea ou incorpórea, mediante o pagamento de certo preço em
dinheiro ou valor fiduciário correspondente.

Diz o artigo 1.132, do Código Civil de 1.916 (Lei 3.071, de 01-01-1916), que o descendente
não pode vender ao ascendente, sem que os outros descendentes consintam. Na mesma
esteira, o artigo 496, do novel Código (Lei 10.406. de 10-01-2002), diz ser anulável essa
venda, se não houver o consentimento dos demais descendentes, bem como do cônjuge,
dispensando-se a outorga uxória se o casamento for regido pelo regime da separação total
de bens.

J. M. de Azevedo Marques (25), nos idos de 1.929, comentou o artigo 1.132, acima citado,
da seguinte forma:

"Há que interpretar scientifcamente, para evitar absurdo e


contradicções, esse texto do nosso código civil, de harmonia com os
axiomas do Direito.

Elle é reprodução da Ordenação do Reino, Liv. 4, tit. 12, que dizia:

‘Para evitarmos muitos enganos e demandas, que se causam e podem


causar das vendas, que algumas pessoas fazem a seus filhos, ou netos,
ou outros descendentes, determinamos que ninguém faça venda alguma a
seu filho, ou neto, nem a outro descendente. Nem outrosi faça com os
sobreditos troca, que desigual seja, sem consentimento dos outros
filhos, netos ou descendentes, que houverem de ser herdeiros do dito
vendedor.’"
Aliás, o mesmo J. M. Azevedo Marques (26), pontifica que:

"Essa proibição não recai exclusivamente sobre o contracto de compra e


venda e é extensiva a todos os contractos entre pais e filhos, desde
que nelles seja possível verificar a lesão entre descendentes
quaesquer."

Em vários acórdãos (27), nossa jurisprudência orientava-se no sentido de ser nula de pleno
direito, não gerando nenhum efeito, a venda de ascendente para descendente, sem o
consentimento dos demais.

Mas, será que essa venda é, deveras, nula? Ou seria meramente anulável? A nova teoria
dos negócios ineficazes teria pertinência ao caso em comento?

III.4.1. Do vício que fulmina a compra e venda entre ascendentes e descendentes,


sem o consentimento dos demais herdeiros

Uma questão de grande relevância é saber se a compra e venda, feita de ascendente para
descendente, sem autorização dos demais herdeiros e do cônjuge, seria ato nulo, anulável
ou meramente ineficaz? Outrossim, como ficaria a posição de um terceiro que
posteriormente adquirisse o bem do descendente?

Para que um negócio jurídico seja válido, requer-se agente capaz, objeto lícito, e forma
prescrita ou não defesa em lei, exigências do artigo 81, do Código de 1.916.

O artigo 104, do Código de 2.002, praticamente repete os dizeres, apenas adicionando


quanto ao objeto que, além de lícito, tem de ser determinado ou determinável. (28)

Deste modo, o negócio será válido quando atender a esses requisitos, e inválido no caso
contrário. (29)

A invalidade, segundo Zeno Veloso (30), é o gênero, do qual decorrem as espécies de atos
nulos e anuláveis. Haveria, ainda, uma classe intermediária, denominada de nulidade
relativa.

Convém tecer alguns comentários sobre suas diferenças.

Em síntese, se a norma violada for de natureza imperativa, cogente, estaremos diante de


um vício essencial, que poderá acarretar nulidade absoluta ou nulidade relativa. Por outro
lado, se a norma violada for de natureza dispositiva, estaremos aí diante de um vício que,
embora também seja essencial, poderá acarretar anulabilidade. O ato nasce válido, eficaz,
mas possui defeito, vício que, se for apresentado oportunamente em juízo pelo
prejudicado, poderá ser tornado ineficaz, desconstituído.

Danilo Alejandro Mognoni Costalunga (31) ensina:

"A distinção entre as nulidades absolutas e as relativas vem esteada,


igualmente, na natureza da norma infringida e nos fins tutelares da
norma violada. Se a norma transgredida tiver natureza cogente e
tutelar interesse predominantemente público, a nulidade poderá ser
considerada absoluta. ‘Vício dessa ordem deve ser declarado de ofício,
e qualquer das partes pode invocar...’ Se a norma violada tiver
natureza cogente e tutelar interesse predominantemente de parte, a
nulidade será relativa e, por isso, o vício poderia ser sanado."

Antônio de Pádua Ribeiro é do mesmo pensar, lecionando que a nulidade absoluta vicia
interesse coletivo, e a anulabilidade e a nulidade relativa, fulminam interesse da parte
envolvida no negócio. (32)

E completa:

"O critério que distingue a nulidade relativa da anulabilidade


repousa, ainda, na natureza da norma. Se ela for cogente, a violação
produzirá nulidade relativa. É o caso da ilegitimidade processual
provocada pela falta de representação, assistência ou autorização.
‘Sendo imperativa a norma que ordena a integração da capacidade, não
pode o Juiz tolerar-lhe o desrespeito. Como ela visa a proteger o
interesse da parte, a conseqüência é que o vício poderá ser sanado.
Daí decorre a faculdade de o Juiz proceder de ofício, ordenando o
saneamento pela repetição ou ratificação do ato, ou pelo suprimento da
omissão.’"

A nulidade decorre de um negócio que ingressou no mundo jurídico, com disposições que
ferem a ordem pública e o interesse geral.

A nulidade absoluta afeta todos e pode ser reconhecida de ofício. Já na nulidade relativa
ou na anulabilidade, embora o ato seja viciado, somente os interessados é que podem
buscar sua decretação.

Ao passo que a nulidade protege interesses gerais, a anulabilidade visa interesses


privados, individuais, de uma das partes que figuram no negócio jurídico

Também, a pretensão para a ação de nulidade é imprescritível, sendo que a da


anulabilidade prescreve em tempos variados e fixados pela lei.

Outrossim, a nulidade absoluta é insanável, deveras irremediável; sendo certo que a


anulabilidade pode ser suprida.

No tocante aos interessados em requerê-la, a nulidade absoluta, dada sua gravidade,


pode ser alegada pelo juiz, ex oficio, pelo Ministério Público, e, sobretudo, pelos
interessados. Já a nulidade relativa ou mesmo a anulabilidade podem ser deduzidas
somente pelos interessados, sendo vedado o reconhecimento de ofício e a representação
do Ministério Público neste diapasão.

E, sobretudo, o ato nulo não produz efeitos; já o ato anulável produz efeitos enquanto não
for anulado.
Quanto à ineficácia do ato, implica em dizer que este é válido, apenas não surtindo efeitos
entre algumas pessoas.

Pois bem, o Código Civil de 1.916 não esclarecia que tipo de vício atingiria o negócio
havido entre pais e filhos, sem o consentimento dos demais herdeiros. Deste modo, a
primeira vista, a nulidade seria absoluta.

Débora Gozzo (33), mesmo ante a literalidade do artigo comentado, já era proselitista de
tese oposta. Para ela, a nulidade em questão não se revestia de caráter absoluto:

"Esclareça-se que, no campo doutrinário, a invalidade do contrato ora


em estudo encontraria melhor respaldo na teoria da nulidade relativa,
que é um tipo de nulo que não é absoluto. Ela entra em cena quando
houver infração à norma de ordem pública, mas que se refira a
interesses privados; só as pessoas titulares desses interesses é que
podem pleitear em juízo a decretação da nulidade do negócio. Destarte,
somente os descendentes que não anuíram é que poderão pleitear em
juízo a decretação da sua nulidade, muito embora a infração cometida
pelos contraentes seja à norma cogente. Ademais, se aceito esse
entendimento, a ilegitimidade do vendedor (ascendente) poderia ser
sanada posteriormente à realização do contrato, como acontece com os
atos jurídicos meramente anuláveis."

Como já fora demonstrado em parágrafos anteriores, vários acórdãos, contudo, viam na


venda de bens, com ferimento do então artigo 1.132, do Código Civil de 1.916, uma
nulidade absoluta. Neste particular, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal assim se
manifestou:

"AÇÃO DECLARATÓRIA - Nulidade de escritura pública de compra e venda


de ascendente a descendente. Falta de anuência dos demais herdeiros
necessários. Inteligência do art. 1.132, do CC. Sentença anulatória do
ato, confirmada, unânime. A venda de imóvel de ascendente para
descendente, sem a prévia, simultânea ou posterior anuência dos demais
herdeiros necessários, é nula de pleno direito, ex vi do art. 1.132,
do CC. (TJDF - AC 1999.01.1.025843-9 - (138.097) - 1ª T. - Rel. Des.
Eduardo de Moraes Oliveira - DJU 06.06.200106.06.2001)" (34)

Caio Mário da Silva Pereira comunga desta opinião: (35)

"Interdizendo a lei este contrato ("não podem"), a conseqüência seria


a nulidade, pois quando a lei institui uma proibição, a sua
contrariedade tem essa conseqüência. Pela nulidade, aliás, pronuncia-
se Sebastião de Souza, sob o fundamento de que a expressa anuência de
todos é da própria substância do negócio jurídico."

No entanto, o mesmo autor, embora reconhecesse a nulidade do ato, não via nenhum
interesse público relevante em jogo. Logo, propugnava que apenas os herdeiros
interessados poderiam alegar o vício. Entendia-a, então, como nulidade relativa.
Por outro lado, o Superior Tribunal de Justiça já decidiu que o ato é meramente anulável:

"Inobstante, farta discussão doutrinária e jurisprudencial, adota-se a


corrente que entende cuidar-se de ato anulável, de sorte que o seu
desfazimento depende da prova de que a venda se fez por preço inferior
ao valor real dos bens, para fins de caracterização da simulação,
circunstância sequer aventada no caso dos autos, pelo que é de se ter
como lícita a avenca (STJ - REsp 74.135 - RS - 4ª T. - Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior - DJU 11.12.200112.11.2001)) (36)".

J.M. Carvalho Santos (37)é adepto desta corrente. Pontifica que a nulidade é relativa, não
podendo ser alegada senão pelos herdeiros prejudicados.

Contudo, essa discussão parece ter chegado ao fim, com a recente redação proposta pelo
Código de 2.002 (Lei 10.406, de 10-01-2002). Este recita:

"Art. 496: É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os


outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem
consentido."

Preconiza Ênio Santarelli Zuliani, in "O novo Código Civil" (38) que:

"O novo Código, em termos de contrato ou da venda de ascendente a


descendente, rende-se, mais uma vez, ao poder da interpretação
judiciária. O art. 1.132 do Código atual reprime, com a nulidade, esse
tipo de negócio, sem consentimento dos demais descendentes, uma
abertura para legalizar injustiças diante de recusa inexplicável (ou
por capricho) de um filho para uma alienação com preço real, portanto,
verdadeira ou eficaz.".

E continua:

"A jurisprudência, sensível ao drama familiar, alterou o sentido da


norma e passou a considerar como ‘anulável’ e não ‘nula’ a compra e
venda realizada nessas condições, pois o comprometimento da eficácia
dependeria da prova da simulação ou de eventual prejuízo dos demais
filhos. O TJRJ (Ap. 3.670/2001, Des. LAERSON MAURO, in Seleções
Jurídicas ADV/COAD, de set./2001, p. 71) não reconheceu a nulidade em
uma situação semelhante, o mesmo ocorrendo com o STJ (REsp 74.135/RS,
Min. ALDIR PASSARINHO JUNIOR, RT 789/180 e Revista Síntese de Direito
Civil e Processual Civil, Porto Alegre, nº 10, p. 117, verbete nº
1.071): Não obstante farta discussão doutrinária e jurisprudência,
adota-se a corrente que entende cuidar-se de ato anulável, de sorte
que o seu desfazimento depende da prova de que a venda se fez, por
preço inferior ao valor dos bens." (39)

Deste modo, embalado pelas tendências jurisprudenciais, o legislador civilista entendeu


ser "anulável" a venda forjada entre ascendentes e descendentes, sem o consentimento
destes não envolvidos no negócio. Ademais, exige-se, agora, além do assentimento dos
descendentes, também a concordância do outro cônjuge.

Sem embargo, em que pese essa disposição, parece que a melhor interpretação do
dispositivo é considerar tal alienação meramente ineficaz em relação aos que não
consentiram, permanecendo válido o ato entre os demais envolvidos na relação e,
notadamente, perante terceiros.

III.4.2. A teoria da ineficácia do negócio jurídico

A teoria da ineficácia já ganha espaço nos nossos Tribunais. O Tribunal de Justiça de São
Paulo, por exemplo, já decidiu que:

"Se o marido renuncia a herança, sem assentimento da mulher, com quem


é casado sob regime da comunhão universal de bens, tal negócio
jurídico dispositivo não é nulo nem anulável, mas ineficaz, assim como
o é a conseqüente adjudicação do quinhão hereditário a terceiro." (40)

O Tribunal mineiro faz coro a este entendimento:

"Encontra-se, hoje, superado o entendimento de que a fraude contra


credores torna o ato anulável e a fraude à execução o torna nulo. Na
realidade, a alienação é apenas ineficaz em face dos credores" (Carlos
Roberto Gonçalves, Sinopses Jurídicas – Direito Civil – Parte Geral,
5. ed., São Paulo: Saraiva, 1999, p. 117) (41)

A teoria da ineficácia é praticamente pacífica, hodiernamente, no tocante à fraude contra


credores, e mormente na fraude à execução (42).

Humberto Theodoro Júnior (43), comentando esta teoria, leciona:

"No entanto, aos poucos está se esboçando uma corrente modernizadora


nos tribunais que se torna permeável à lição dominante na doutrina
mais atual, que se bate pelo deslocamento da figura da fraude contra
credores do campo da nulidade para o da ineficácia."

Deste modo, a venda fraudulenta é ineficaz perante o credor prejudicado, mas válida entre
o devedor e o terceiro adquirente. Eis as lições de Gelson Amaro de Souza (44):

"Como se vê, não se trata de nulidade e nem de anulabilidade, mas tão-


somente de ineficácia em relação ao credor e tão-somente em relação a
este, sendo ato perfeito e eficaz com relação a qualquer outra pessoa,
até mesmo outros credores que ainda não tinham demanda pendente por
ocasião da venda ou oneração."

A teoria dos atos ineficazes foi incorporada, por exemplo, pela Lei de Falências (Decreto-
Lei nº 7661, de 21-06-1945), cujo artigo 52 reza que os atos ali alistados, "não produzem
efeitos relativamente à massa", mas são válidos entre os demais envolvidos no negócio.
Ademais, a penhora de bem imóvel não registrada no Serviço de Registro Imobiliário, tal
como impõe o artigo 659, § 4º, do Código de Processo Civil (Lei 5869, de 11-01-1973) não
é nula ou anulável, mas meramente ineficaz perante terceiros. (45)

E tal teoria parece ser absolutamente aplicável ao caso em tela. A venda de ascendente
para descendente, sem o consentimento dos demais, não atinge diretamente normas de
interesse público. Antes, leva em consideração apenas o interesse de alguns dos
herdeiros. Não há, repita-se, predomínio de interesse público, pois qualquer ato que
contrarie interesse público será nulo e não apenas ineficaz.

No caso, a situação ainda é mais branda, não se tratando sequer de ato anulável. A
ineficácia de que se diz é somente relativa e em relação aos herdeiros que não
consentiram, e sempre condicionada à vontade deste em tomar a iniciativa para a
declaração de ineficácia.

Via de conseqüência, a venda de bens entre ascendentes e descendentes, sem que os


demais consintam, é meramente ineficaz perante estes.

Como já exposto, o que a lei visa é burlar a fraude da legítima. A problemática reside,
portanto, na proteção à fraude.

Ora, mas não são meramente ineficazes os atos praticados em fraudeà execução e
fraude contra credores?

Logo, a doutrina e a jurisprudência têm admitido que em se tratando de negócio


fraudulento, o mesmo é meramente ineficaz.

E a venda de ascendente a descendente nada mais é do que uma fraudeà legítima dos
demais herdeiros. Se fraude é, a solução deve ser, então, a mesma daquela havida na
fraude à execução e na fraude contra credores: a declaração de ineficácia do ato, perante
os herdeiros que não anuíram.

Ademais, entendemos que o simples fato de não ter existido a concordância dos demais
herdeiros, não retiraria, de per si, a validade do negócio.

Reclama-se, ao nosso ver, entre outros requisitos, que seja demonstrado o prejuízo, como,
por exemplo, de que o bem tenha sido alienado por valor inferior ao de mercado. Neste
sentido, repise-se julgamento do STJ:

"Inobstante, farta discussão doutrinária e jurisprudencial, adota-se a


corrente que entende cuidar-se de ato anulável, de sorte que o seu
desfazimento depende da prova de que a venda se fez por preço inferior
ao valor real dos bens, para fins de caracterização da simulação,
circunstância sequer aventada no caso dos autos, pelo que é de se ter
como lícita a avenca (STJ - REsp 74.135 - RS - 4ª T. - Rel. Min. Aldir
Passarinho Junior - DJU 11.12.200112.11.2001)) (46)". – Não há grifos no
original.

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