Você está na página 1de 125

HANS KNEIFEL

ARMADILHA ESPACIAL

Tradução de A. F. IMMERGUT

Título do original: “DIE RAUMFALLE”


By ERICH PABEL VERLAG — Rastatt, West Germany
Da tradução — EDITORA TECNOPRINT S.A., 1977

Todos os personagens deste livro são fictícios. Qualquer semelhança com


pessoas ou acontecimentos da vida real é mera coincidência.

HISTÓRIA ou ESTÓRIA?
As Edições de Ouro e o Coquetel grafam a palavra história e não estória
por julgar a primeira forma mais correta, conforme dicionários mais
categorizados, que julgam a segunda forma imitação do inglês story, sem
correspondente com raízes em nossa língua.
1

O HOMEM estava postado tranqüilamente diante daquela mesa de


tampo espelhento. Era esbelto e aparentava ter mais que trinta e cinco
anos. Seu rosto magro permitia deduzir que tinha passado a maior
parte de sua vida no espaço. Além disso, possuía aquele algo mais,
que distinguia os astronautas: uma tensão latente, pronta a explodir a
qualquer momento numa ação fulminante. Sua altura devia beirar um
metro e oitenta; os olhos eram castanhos e o cabelo da mesma cor,
cuidadosamente escovado sobre a testa. Observava calmamente os
rostos dos dois homens, que estavam sentados por trás da mesa à sua
frente. Finalmente, um deles disse:
— Bem, major, então está tudo claro, não está?
O comandante Cliff Allistair McLane deu um breve aceno:
— Mais uma vez, está — respondeu, irritado.
Seu interlocutor era o marechal Wamsler; enorme, massudo e
negro, estava plantado na sua poltrona como uma esfinge, recordando
um fato que, no íntimo, causava-lhe uma sensação desagradável: há
quase um ano, McLane havia sido removido, em caráter punitivo, da
frota para o serviço na Patrulha Espacial. E, desde então, McLane e
sua tripulação vinham enfrentando as missões mais arriscadas,
realizando, por mais de uma vez, façanhas incríveis. E isto só serviu
para reforçar as lendas tecidas em torno da sua figura.
— Que quer dizer com isso: "mais uma vez"? — perguntou o
marechal.
McLane ergueu a mão e respondeu:
— Esta é a segunda vez em doze missões que o senhor me manda
correr atrás daqueles malditos espórios, supostamente carregados pela
pressão de radiação. Até hoje não se encontrou nem sombra deles, e
acho que é hora de o senhor se convencer que nunca vamos encontrá-
los.
Wamsler retrucou:
— E daí? Eu por acaso tenho culpa disso?
— Mas é do senhor que recebo as minhas ordens — protestou
McLane. O outro homem, ao lado de Wamsler, permitiu-se exibir um
sorriso meio irônico. Cliff McLane controlou-se e conseguiu ignorá-
lo.
— Acontece que a Divisão de Pesquisas Interplanetárias e o
Centro Científico estão tremendamente interessados nessas coisinhas!
— explicou o marechal.
— Estou começando a me sentir como um botânico — disse
McLane, aborrecido.
— Como se sente ou deixa de sentir, não é coisa que interessa às
Formações de Reconhecimento Espacial de Terra — respondeu
Wamsler, ainda calmo e disposto a discutir com McLane. Não podia
externá-lo, mas tinha um fraco por gente como McLane e sua
tripulação que, com suas proezas, quebravam a monotonia do serviço.
— Sei disso — respondeu McLane — mas o senhor não ignora
que o estado de ânimo é fator dos mais importantes. Consulte as
estatísticas. Os acidentes de conseqüências mais graves foram todos
provocados por comandantes que se encontravam em crise
psicológica.
— Por favor, Cliff — disse Wamsler. — Não dramatize a coisa
tanto assim. Afinal, que mais poderia fazer, do que percorrer o
universo com sua Orion?
— Nada — respondeu o major. — Aí, é que está o busilis.
— Alguma vez já ouviu falar na teoria da panspermia? —
perguntou o outro homem. Cliff virou a cabeça e dignou o ajudante
Spring-Brauner com um olhar, que teria causado o mais vivo pânico
em outras pessoas. Mas Spring-Brauner, o homem mais bem-
apanhado da tropa de Wamsler, nem reparou esse olhar.
Evidentemente Cliff conhecia essa teoria, mas sabia também quão
inseguras eram as premissas nas quais se baseava. Com seriedade
fingida respondeu:
— Ainda não ouvi falar. Mas não caberia em mim de contente se
me deixasse compartilhar seus profundos conhecimentos.
Spring-Brauner não percebeu o olhar de comiseração com que
Cliff o contemplava, nem tampouco que o comandante estava com
toda a intenção de ridicularizá-lo; afinal, ainda havia aquele caso das
ordens trocadas, que tinha lançado Cliff e sua equipe no caldeirão do
diabo.
— Essa teoria ou, se preferir o termo, doutrina, parte do
pressuposto que a vida não se originou em Terra — começou Spring-
Brauner e levantou-se.
— Mas isso é por demais excitante! — disse Cliff. — Então, onde
se originou?
— A vida em Terra pode ter vindo de um outro planeta, de algum
corpo num outro sistema solar. Talvez abrigada nas frestas de
meteoritos, ou impelida pela pressão de radiação, ou, ainda, arrastada
por tempestades luminosas do cosmos. E é claro que seria sumamente
interessante descobrir a verdadeira procedência da vida terrana.
— Simplesmente fascinante — sussurrou Cliff, aparentemente
embevecido.
— Não é mesmo? Agora, se o senhor ou um dos seus colegas nos
pudessem trazer uma amostra da região por onde passa aquela torrente
de espórios...?
— Quer mesmo que eu tente? — quis saber Cliff, com magistral
hipocrisia.
Spring-Brauner franziu a testa, numa expressão de surpresa; não
sabia como interpretar essa pergunta.
— Sim, é claro que eu quero que o senhor tente. Não devia?
Cliff mal conteve uma risada.
— Pode ser que as amostras porventura capturadas ou a inutilidade
dos nossos vôos venham a demonstrar que a teoria panspérmica está
totalmente errada.
Spring-Brauner acenou vivamente.
— Uma prova ao contrário não deixa de ser uma prova — disse
ele. — Vê algum significado especial nisso, major McLane?
— Vejo, sim — respondeu Cliff. — Se ficar demonstrado que essa
teoria é infundada o senhor vai ficar privado para o resto dos seus dias
do único assunto de conversa, do qual parece entender alguma coisa!
O marechal Wamsler, que conhecia a profunda antipatia que
aqueles dois homens nutriam um pelo outro, começou a rir
estrondosamente e largou as mãos carnudas sobre as coxas.
— Muito engraçado, major — respondeu Spring-Brauner, hesitou
por um instante e prosseguiu: — Realmente, muito engraçadinho,
mesmo.
Com esforço, o marechal Wamsler dominou o acesso de riso e
observou:
— Também considero as suas piadas algo fora de propósito diante
da seriedade da missão, McLane.
— Por quê? Humor pode salvar vidas — disse Cliff. — Ainda
outro dia li isso numa novela.
— Está bem, está bem. Mas agora se mande para a base e decole
logo. De minha parte desejo-lhe uma boa pescaria. Traga bastante
espórios!
Cliff arrepiou-se quando se lembrou daquelas redes de arrastão,
afixadas nos setores da casca inferior da nave e que se assemelhavam
a asas dobráveis. Na sua opinião, avacalhavam a sua vistosa Orion,
emprestando-lhe o aspecto de um cruzador-laboratório meio
manquitola.
— Obrigado, marechal — disse assim mesmo, fez uma continência
displicente e dirigiu-se à barreira eletrônica.
Mal Cliff tinha virado as costas, Spring-Brauner começou a fazer
sinais furtivos ao marechal, e finalmente disse baixinho:
— Marechal... a mensagem radiofônica do comandante-em-chefe!
O marechal recordou-se de sopetão, inclinou-se para a frente e
gritou:
— Espere um instante, McLane, me esqueci de um pormenor; é
uma coisinha de nada que... — Wamsler vacilou e parecia inseguro.
— Estou ouvindo! — disse Cliff, a cara petrificada.
— Não é que quase me esqueci mesmo desse detalhezinho? —
começou o homem de ombros largos, cabelos ralos e olhos negros. —
Olhe, o comandante-em-chefe pede-lhe por meu intermédio que lhe
preste um pequeno favor.
Surpreso, Cliff recuou um passo.
— O chefão pede um favor a mim? — perguntou, espantado.
— Pede, sim. O nome de Pieter-Paul Ibsen lhe diz alguma coisa?
— indagou Wamsler, na espreita.
— Pieter-Paul Ibsen — repetiu McLane, baixinho, refletindo. —
Momentinho... creio que já ouvi falar nesse nome. Acho que esse
sujeito escreve, ou estou enganado?
Spring-Brauner acenou.
— É isso mesmo. Ibsen é um dos autores mais conhecidos de
romances futurísticos. Portador do Prêmio Utopia.
Agora McLane se lembrou.
É curioso, pensou, que ele, McLane, dava tão pouca importância às
concepções sobre o futuro de Terra e dos homens, que Ibsen descrevia
com tanta precisão. É que McLane considerava os romances
futurísticos como uma série de experiências mentais que poderiam se
tornar realidade ou não. E até agora a vida tinha percorrido caminhos
bem diversos que as idéias dos autores. Não obstante, McLane possuía
várias obras de Ibsen em sua estante.
— Então o cavalheiro é este! — disse Cliff, finalmente. — Nós,
astronautas, o chamamos de Pie-Po. Sim, li umas duas ou três das suas
publicações.
— E o que achou delas? — quis saber Wamsler.
— Não me dei o trabalho de lê-las com espírito crítico —
respondeu McLane. — Sei que alguns dos meus colegas acham aquilo
tudo uma besteira congênita, mas não creio que a coisa seja tão ruim
assim. Afinal, esse camarada desenvolveu algumas teorias bem
plausíveis.
— Os romances utópicos de Ibsen gozam de fama mundial! —
disse Spring-Brauner, quase aborrecido. — Não perco um único!
— Quer dizer que os aprecia? — perguntou McLane.
— E como! — retrucou Spring-Brauner. — Só para citar um
exemplo, ele afirma que a grande maioria dos comandantes de naves
espaciais é composta por sujeitos encantadores. Neste ponto, ele
diverge da realidade.
Cliff deu um aceno bem-educado.
— Pelo que parece não escreve nada a respeito de ajudante-de-
ordens?
Spring-Brauner manteve-se calado.
— Fora de brincadeira — disse Wamsler. — É voz corrente que as
obras de Ibsen são famosas no mundo inteiro.
— O que não é exatamente lisonjeiro para o mundo — retorquiu
McLane. — Mas o que têm romances futurísticos e Pieter-Paul Ibsen a
ver comigo?
Wamsler só respondeu após uma breve pausa, como se não tivesse
coragem de dar a pílula amarga a McLane:
— O comandante-em-chefe pede-lhe que leve Ibsen a bordo
durante o seu vôo para Umbriel, e que tome conta dele.
McLane olhou estarrecido para Wamsler; estava para lá de
perplexo.
— Levar Ibsen a bordo da Orion...? Wamsler fez que sim, com
uma aguda sensação de mal-estar. McLane sacudiu a cabeça, e sentiu
que os cabelos na sua nuca se eriçavam. Era o máximo: embalar um
escritor através do universo!
— Nunca! — disse McLane e sentou-se, abalado.
— Ora! Faça-me o favor! — observou Spring-Brauner, que não
ocultou sua satisfação pelo efeito que a surpresa tinha surtido. Cliff
reparou isso claramente e apontou para o ajudante.
— Não ficaria admirado se soubesse que está metido em mais essa
— observou, desconfiado. Spring-Brauner sacudiu a cabeça e
respondeu:
— Pieter-Paul Ibsen é noivo da filha do ministro para assuntos
extraterranos.
McLane engoliu em seco e perguntou:
— E por que não faz disso sua profissão principal?
Spring-Brauner e Wamsler encolheram os ombros, num gesto
significativo.
— Por sua vez, o ministro foi colega de turma do comandante-em-
chefe.
— Já entendi — comentou McLane — não há nada como ter boas
relações.
— Certo — respondeu Spring-Brauner. — E Ibsen externou o seu
desejo de participar de uma missão no nosso domínio espacial. Quer
conhecer de perto as dificuldades; considera isso material inestimável
para um novo romance.
McLane largou a mão na mesa.
— Ah, é? — disse, com raiva mal contida. — Pretende coletar
material para um novo romance? Ele que nem pense nisso!
Devia comprar uma assinatura para doze vôos em torno de Marte.
Dinheiro é o que não lhe deve faltar.
Wamsler inclinou-se um pouco para a frente e murmurou:
— Quanto a isso, tenho lá minhas dúvidas. Não sabia que os
autores de ficção científica são muito mal pagos?
— Então, devia datilografar os protocolos da frota! — sugeriu
McLane, amargurado. — Talvez seja mais lucrativo!
Spring-Brauner deu um sorriso perfunctório e disse:
— Está confundindo a situação, McLane. Escritores não são
datilógrafos. O problema é outro; Ibsen quer passar por uma aventura!
— E logo a bordo da Orion, não é? — perguntou McLane, furioso.
— Vai ver que alguém disse a ele que essa era a melhor pedida.
Afinal, o senhor é um homem famoso, McLane.
McLane contorceu a boca num sorriso malévolo.
— Para o senhor, continuo sendo o comandante McLane, Spring-
Brauner.
Visivelmente ofendido, Spring-Brauner retrucou:
— E para o senhor, continuo sendo o tenente Spring-Brauner,
comandante!
Cliff já se tinha virado para Wamsler e indagou:
— E se eu me recusar a levá-lo a bordo? Wamsler encolheu os
ombros e fez uma cara meio espantada. Abriu uma pasta e retirou uma
foto grande, que impeliu por cima do tampo espelhento da mesa.
McLane aparou a foto habilmente com o dedo, e a virou. No verso,
leu: "A um dos meus fãs mais encantadores, dedico esta em cordial
amizade. Pieter-Paul Ibsen." A assinatura era floreada e
psicologicamente interessante, pois um arabesco generoso encimava o
"i" em "Pieter", denotando os processos mentais fantasiosos do
signatário.
— E se eu me recusar? — insistiu Cliff.
— Pode fazê-lo. Mas... — respondeu Wamsler.
— Sim? Estou ouvindo.
— É um direito que lhe assiste. Pode fazê-lo, se quiser me colocar
numa situação mais que embaraçosa. Pense duas vezes, major, antes
de se decidir. Leve-o consigo. Faça isso por mim.
— E o que eu vou ganhar com isso?
— Um exame bastante benevolente do seu caso, para ver se é justo
mantê-lo por mais tempo na Patrulha Espacial. Afinal, daqui a pouco
vamos festejar o nosso primeiro aniversário, não é mesmo?
McLane limitou-se a acenar.
— É uma vergonha inenarrável para toda a repartição, queimar um
homem fora de série como esse na Patrulha! — observou Spring-
Brauner, com mordacidade.
— É algo que nunca vai poder acontecer consigo — respondeu o
major.
— Como é? Vai levar Ibsen ou não? — perguntou Wamsler
tranqüilamente.
— Se eu comunicar isso ao meu pessoal, vai haver motim a bordo!
— respondeu McLane.
— Hasso é calmo e comedido. Vai tomar conhecimento disso e
ponto final — disse Wamsler. — Atan vai fazer alguns comentários
jocosos, ao menos na opinião dele. Quanto às duas senhoritas
encantadoras, que o senhor leva a bordo, tenho certeza de que vão
discutir com Ibsen a respeito da importância da literatura trivial no
século do consumo em massa. Já De Monti vai lhe passar uma
carraspana, de vez em quando. Cabe a si, McLane, apresentar Ibsen da
maneira apropriada.
McLane acenou, aborrecido.
— Por cima de tudo, ainda esperam que cumpra formalidades
sociais! Apresento quem a quem?
— Sempre deve apresentar os cavalheiros às damas! — elucidou
Spring-Brauner, obsequioso.
— Conhece Ibsen pessoalmente? — quis saber Cliff do marechal.
— Apenas superficialmente. Não é tão mascarado quanto a
maioria dos literatos, mas não deixa de ser vaidoso, como todos os que
ganham a vida escrevendo. Mas esse defeito o senhor vai conseguir
corrigir em três tempos. Basta incumbi-lo de uma tarefa, na qual ele
fracasse. Garanto que isto cura o convencimento de qualquer literato,
fazendo-o voltar à normalidade, ou àquilo que os meios literários
consideram o estado normal. Entendeu?
— Perfeitamente! — respondeu Cliff. — Ave Wamsler, morituri te
salutant! (Salve, Wamsler; os que vão morrer te saúdam!)
— Viu? — disse o marechal — já está até citando um texto de um
colega de profissão de Ibsen!
Ambos riram.
McLane levantou-se e acenou.
— Está bem — disse, estendendo a mão para Wamsler. — Vou
levar Pieter-Paul Ibsen e iniciá-lo nos segredos dos cosmos. Espero
que depois desta missão ele pare de confundir os planetas com os sóis,
e se convença que a nebulosa de Andrômeda não fica colada na órbita
de Plutão.
Os dois homens trocaram um aperto de mão. Cliff ignorou a
fotografia do escritor, que continuava em cima da mesa, e dirigiu-se à
barreira eletrônica. Segundos depois, as torrentes de elétrons
reativadas ocultaram-no da visão de Wamsler e Spring-Brauner. Cliff
McLane acenou para as moças bonitinhas na ante-sala, enveredou por
um largo corredor e pegou o elevador, que o levou para a superfície de
Groote Eylandt, onde se encontrava o seu bangalô. Partiria daqui a
vinte e quatro horas.
***
No dia seguinte: O disco reluzente da Orion VIII pairava dez
metros acima do solo, sustentado pelos raios antigravitacionais.
Círculos luminosos no piso de concreto delimitavam os trechos
mortíferos, sobre os quais esses raios incidiam. A tripulação já estava
a bordo. Cliff torceu o nariz quando viu os grandes dispositivos
retangulares, afixados à parte inferior da sua nave. Destinavam-se a
captar e filtrar a poeira cósmica, e eram capazes de reter qualquer
corpo estranho que medisse mais de um micromilímetro. Concluída a
missão, essas partículas seriam entregues ao Centro Científico, que se
submeteria a um minucioso exame.
Cinco rostos atentos aguardavam McLane na cabina de comando
da Orion, um deles na tela do videofone: Hasso Sigbjörnson
encontrava-se na sala de máquinas.
— Minha cara e estimada tripulação — começou McLane. — A
rigor, a surpresa já devia ser do conhecimento geral.
— Ouvi falar em "surpresa"? — perguntou Mario de Monti, que
estava sentado diante da unidade de entrada do computador.
— Ouviu direito. Fomos contemplados com um hóspede.
Tamara notou que os outros olharam para ela e sorriu; estava
novamente recostada naquela escora inclinada, seu lugar predileto.
— Não — disse — não sou eu. Certamente o comandante McLane
não me consideraria um hóspede, não é?
No que dizia respeito a Tamara, a consciência de Cliff não era das
mais limpas. Só raramente e a contragosto lembrava-se de certos
acontecimentos no planeta Chroma.
— Tem razão; se me referisse à sua pessoa, teria dito: um hóspede
especialmente caro a todos nós! Mas acontece que a senhora faz parte
da Orion como as máquinas e as telas de imagens, queridíssima
Tamara.
Hasso estava ficando impaciente. Sua voz alta veio dos alto-
falantes:
— Diga logo, comandante; quem é o nosso hóspede?
Cliff estendeu os braços num gesto de resignação e disse:
— PIETER-PAUL IBSEN! Pasmado, o astronavegador de cabelos
negros sussurrou:
— Que idéia mais maluca, Cliff!
— Não é minha; é do comandante-em-chefe — desculpou-se
McLane.
— Isso é uma piada. E não das melhores!
Mario calcou, com raiva, uma tecla na unidade de entrada.
— Uma piada digna de um literato! — comentou, acerbamente.
McLane encolheu os ombros e respondeu:.
— Alguém já viu o comandante-em-chefe fazer uma pilhéria?
Não, meus amigos, isto não é uma piada; trata-se da realidade nua e
crua. Temos a súbita honra de viajar em companhia de um cavalheiro
agraciado com o Prêmio Utopia!
— Ai! — gemeu Helga — nesse caso, suponho que vai se
apresentar de blazer com um brasão desse tamanho!
— Será que a falta de gosto dele chega a tal extremo? —
conjecturou Atan.
Mario de Monti, o subcomandante de ombros largos e expressão
flegmática, queixou-se:
— É de lascar! Parece que criaram o hábito de largar tudo quanto é
abacaxi nas mãos da gente!
McLane absteve-se de dar resposta.
— Pie-Po! — resmungou Atan Shubashi, agitado. — Podem
escrever: é o sujeito com a imaginação mais fértil e despropositada da
nossa geração! Nos romances dele, os homens dominam o salto
tempo-espaço, conhecem não sei quantas raças estranhas, e percorrem
o universo em naves maiores que antigos condados terranos! E é com
um cara desses que vamos ter que passar nossos dias no cosmos!
Inquietado pelas notícias alarmantes, Hasso abandonou seu posto
na casa de máquinas e subiu para a cabina de comando. Postou-se
diante de Cliff e disse:
— Uma coisa é certa: se esse sujeito tentar aproximar-se dos meus
propulsores, vou recebê-lo de HM-4 na mão!
Helga Legrelle, a telegrafista da Orion, rompeu o silêncio que se
seguiu às palavras de Hasso:
— Não sei para que essa exaltação toda. Esperem ele aparecer...
vai ver, que é até muito bonzinho...
Atan Shubashi soltou uma daquelas suas risadinhas nervosas.
— Bonzinho! Desde que o primeiro livro de Moisés foi escrito,
não apareceu mais um só literato bonzinho! É um bocado de otimismo
de sua parte! Um poeta-futurólogo!
— Eu também acho essa história um pouco estranha — comentou
Tamara. — Ao menos deviam ter avisado o Serviço de Segurança!
— Se é só isso que a preocupa nessa maçada, então eu me
pergunto... — começou Mario, enfurecido, mas Cliff cortou-lhe a
palavra com um gesto da mão.
— Prestem atenção — disse, em tom calmo. — Concordei em
levar Ibsen para livrar Wamsler de uma situação embaraçosa.
Portanto, peço que o tratem com amabilidade, está bem? Estou mais
preocupado com outra coisa.
— Posso saber o que é? — perguntou Hasso, esperançoso. Em vez
de responder, Cliff consultou o cronômetro de bordo.
— Hora de partida menos quatro minutos — constatou. — Vamos
decolar pontualmente. Se Ibsen não aparecer a bordo dentro de
duzentos e quarenta segundos, vai ficar a ver navios.
Mario de Monti observou:
— É, mas a bagagem dele já está no camarote!
2

— Já terminou a programação, Mario? — perguntou Cliff, três


minutos mais tarde.
Mario acenou afirmativamente.
— A primeira fase do vôo já está programada.
Hasso estava recostado na mesa do transmissor, ao lado de Helga,
e lançou um olhar pensativo pela sala de comando.
— Então vamos cair fora, Cliff. O que estamos esperando?
Cliff olhou novamente para o relógio. Ainda faltava um minuto.
— Vamos decolar na hora prevista. Não quero que depois digam
que sabotamos a operação "Literatura no Cosmos". Vou esperar até o
último segundo. Se aí o grande poeta não aparecer, partimos sem ele.
Shubashi riu alto.
— Vai ver que ainda está procurando uma rima.
— Não se preocupe, astronavegador Shubashi — disse uma voz
estranha. — Acabou de encontrá-la.
Seis pares de olhos fitaram, surpresos, a porta do elevador. "Ele"
entrou na cabina de comando.
— Oh!
Helga não conseguiu conter essa exclamação, baixinha, mas bem
audível. Cliff exibiu um sorriso maroto e viu que Helga corou; a
situação até que era cômica. E lá, parado no elevador, estava Pieter-
Paul Ibsen; um homem de boa aparência e talvez trinta e cinco anos de
idade. Contemplou os membros da tripulação com um sorriso radioso,
não isento de um ligeiro traço de orgulho. Trajava um jaquetão,
confeccionado de um tecido no qual predominavam os fios metálicos.
Cliff constatou, aliviado, que não ostentava o brasão da Ficção
Científica. Com o sorriso consciente de um escritor que viu as suas
obras em exposição na banca do porto espacial, Ibsen dirigiu-se a
McLane, fez uma continência perfeita e disse numa voz, que não tinha
nada de desagradável:
— Pieter-Paul Ibsen apresenta-se a bordo, comandante!
Cliff não teve escapatória e trocou o aperto de mão oferecido; a
tripulação começou a se aproximar lentamente.
— Olhem aqui — disse Ibsen, orgulhoso, e exibiu um livro
alongado e fino — o primeiro exemplar do meu novo romance...
praticamente, acabou de sair do prelo. Fiz questão de trazê-lo, daí o
meu atraso. Devem saber que o autor é sempre o último a receber suas
próprias obras. Primeiro, enviam exemplares aos jornais e aos críticos
— por pouco, Ibsen não soltou um palavrão
— depois, abastecem o comércio e só então consigo botar os olhos
no meu livro. Acabei de comprá-lo. Foi por isso que me atrasei.
Tamara Jagellovsk havia acompanhado essa verborragia com
atenção e respondeu, em tom seco:
— Diante das justificativas apresentadas, desculpamos o seu
atraso!
— Ótimo! — disse Ibsen e estendeu o livro a McLane. Cliff viu
uma capa horrorosa e um título, que devia ser uma jóia literária.
— Peço-lhe que aceite esta insignificante lembrança, comandante
— disse Ibsen, e acrescentou, com mal velada ansiedade: — Prefere o
livro com ou sem dedicatória?
Não constituía exceção à regra: como todos os autores, Ibsen
estava possuído pela obsessão de oferecer obras de sua lavra apenas
com dedicatórias.
Cliff não deu resposta e limitou-se a sacudir a cabeça.
— Podíamos decolar, major McLane — disse Pieter-Paul Ibsen,
ainda radiante e cheio de si, ostentando o livro na mão direita, como se
fosse um objeto exorcístico.
O comandante perguntou laconicamente:
— Me disseram que sua bagagem já se encontra a bordo.
Ibsen acenou.
— Certo. Encontra-se no camarote número nove, que me
indicaram por telefone.
— Foi o senhor mesmo quem a levou para lá? — perguntou Cliff,
espantado.
— Claro!
— Conhece as instalações internas da minha nave?
Ibsen vislumbrou uma oportunidade para demonstrar seus
conhecimentos e respondeu sem titubear. Helga Legrelle estava meio
irritada e não conseguia desprender o olhar de Ibsen, examinando,
repetidamente, aquele jaquetão reluzente, as calças bem talhadas, e as
botas leves.
— Eu me preparei exaustivamente para essa missão, major. Por
isso, estudei minuciosamente as plantas-baixas da nave.
Como o senhor sabe, já se encontram à venda nas bancas; custam
uma ninharia. São mal desenhadas, é verdade, mas nem por isso
deixam de ser um bocado instrutivas. Claro?
Surpreso, Cliff virou-se para Tamara.
— Pode-me explicar isso? — perguntou, perplexo. — Pensei que
plantas das naves pertencentes às forças armadas espaciais só
poderiam ser publicadas com autorização expressa do SSG.
Tamara encolheu os ombros e respondeu:
— Parece que a editora tem relações de que nem suspeitamos...
— Além disso — intrometeu-se novamente Ibsen — a imprensa
começou a se interessar pelas aventuras da Orion. Já publicaram
algumas reportagens. Daí o meu interesse especial na sua pessoa,
major McLane, na sua tripulação e na sua nave.
Depois de digerir a enxurrada verbal, McLane disse:
— Já que é assim, certamente gostaria que lhe apresentasse os
membros da minha tripulação, não é, mister Ibsen?
Com uma expressão radiante, Ibsen ergueu a mão, num gesto
grandiloqüente.
— Pode me chamar de Pie-Po, comandante! Afinal, é assim que se
referem a mim, quando não estou presente!
— Muito bem; então vamos às apresentações. Vamos começar
pela tenente de l.a classe Tamara Jagellovsk, do Serviço de Segurança
Galático... — disse McLane e apontou para Tamara, que o encarou
com um sorriso irônico e estendeu a mão estreita para Ibsen.
Ibsen apertou a mão de Tamara, virou-se e explicou ao
comandante perplexo:
— Mas não há necessidade alguma de me apresentar o seu pessoal
um por um, major. Conheço sua tripulação perfeitamente bem através
de numerosas reportagens e programas videofônicos. Procurei me
informar o mais detalhadamente que pude. Além disso, vi o senhor e
sua equipe não sei quantas vezes quando realizava os meus estudos
ambientais.
Mario de Monti encostou-se no metal frio da unidade de entrada e
enterrou o rosto nas mãos. Estava abalado, e murmurou, por entre os
dedos:
— Estudos ambientais? Que maravilha!
— Onde os realizou? — perguntou Cliff, pasmado.
— No Cassino Starlight, major! — foi a resposta.
— Se estudou tudo com tanta minúcia — perguntou o
subcomandante, agora em voz alta — não vejo que vantagem poderia
tirar desse vôo. O senhor já conhece e sabe tudo. Vai ver que além
disso, ainda é psicólogo diplomado.
Com amabilidade genuína, Ibsen respondeu:
— Teoricamente, sou. Mas na prática, qualquer astronauta leva
uma grande vantagem.
— Correto! — exclamou Hasso, que não conseguiu mais se conter.
— Os astronautas apresentam a vantagem de saber se limitar a
relatórios verbais concisos. Não escrevem, ou se o fazem, escrevem
pouco.
— Se bem que poderiam, Hasso — comentou Atan.
— Claro! — respondeu o engenheiro de bordo de cabelos brancos
e dirigiu-se ao elevador. — Claro que poderiam; você,
principalmente!
McLane acabou com a discussão.
— Então vamos partir — disse. — Já nos atrasamos três minutos.
Depois, mais alto, em tom de comando:
— Ocupem seus postos! Ligar controles. Acionar máquinas! De
Orion para base: estamos prontos para decolar.
Em seguida, a voz do computador de partida iniciou a contagem
regressiva, durante dez segundos. Os anteparos protetores sobre o
cilindro de aço se recolheram, e no Golfo de Carpentária começou a se
formar aquele grande remoinho.
— Dez... nove... oito... sete... seis... Silenciosamente Ibsen
aproximou-se de
Cliff e perguntou:
— E eu posso me sentar aonde, comandante?
— Tenente Jagellovsk? Tenciona estabelecer medidas de
segurança especiais em relação à pessoa do escritor Ibsen?
Tamara encolheu os ombros encantadores e lembrou-se daquela
aventura em Chroma.
— O chefe é o senhor, major! — respondeu em tom sério.
Cliff conectou o computador e o piloto automático aos seus
instrumentos e sinais luminosos. Lentamente, à razão de alguns
metros por segundo, a Orion VIII elevou-se do piso da base submarina
na ponta setentrional da Austrália.
— Fico satisfeito em ver que finalmente reconheceu isso, tenente
Jagellovsk — disse Cliff. Recostou-se e apontou para a poltrona vazia
diante do outro painel de instrumentos, do qual também se podia
manobrar a nave. — Desculpe a falta de melhores acomodações,
mister Ibsen, mas por enquanto vai ter que se contentar com o lugar de
Hasso. Vamos decolar!
A nave espacial Orion estava iniciando uma nova missão, desta
feita com um hóspede a bordo. Cliff sabia que se tratava de mais um
desses vôos rotineiros, durante os quais dificilmente ocorria algo de
interessante. Nutria, porém, a esperança de poder entabular uma
conversa proveitosa a respeito de literatura — ou daquilo que Ibsen
imaginava ser literatura.
"Como se sabe, viajar também é cultura", pensou o comandante, e
chamou à memória aqueles acontecimentos em Chroma. De resto,
fazia votos para que não ocorressem novamente eventos totalmente
inesperados.
A Orion lançava-se vertiginosamente espaço adentro. O cérebro de
Ibsen parecia registrar o mais débil clique dos instrumentos com a
precisão de um gravador magnético. Cliff observou-o com o rabo dos
olhos e reparou que Ibsen estava se concentrando. McLane começou a
simpatizar um pouco mais com aquele homem. Mas teria que conviver
com ele durante um longo período, e a missão mal tinha sido
iniciada...
Realmente, a tarefa a cumprir não passava da mais pura rotina, tão
excitante como, por exemplo, uma descida de elevador de Groote
Eylandt para os escritórios de Wamsler. A tripulação da Orion e seu
hóspede, o poeta do espaço cósmico Ibsen, estavam ocupando
tranqüilamente os seus lugares. McLane agarrou o microfone:
— Do comandante para livro de bordo — disse a meia voz,
enquanto Helga se apressou em calcar uma tecla larga.
— Decolagem normal. A Orion está saindo da faixa controlada
pela Estação Avançada IV e dirige-se às coordenadas do cubo espacial
Dois-Norte 101. Desligo.
— Permite-me uma pergunta, comandante? — disse Ibsen.
— Pois não, desde que não seja difícil demais para responder!
— Está realmente satisfeito com o seu computador digital? — quis
saber o escritor.
— Estou, sim; por que não haveria de estar? — respondeu o
comandante, admirado.
— Porque dentro de uns dez a quinze anos essa instalação não vai
passar de um montão de ferro velho — profetizou Ibsen.
— O que lhe faz afirmar isso? — indagou Cliff e reparou a
expressão indignada de Mario.
Em tom professora! Ibsen disse:
— Acompanhando de perto a evolução tecnológica, não tenho
dúvidas que, dentro desse prazo, vão conseguir num único bloco
energético a instalação de força, o mecanismo de acionamento e o
comando programável.
Aborrecido, Mario de Monti murmurou:
— O senhor é quem sabe, Pie-Po.
Ibsen exibiu o sorriso condescendente de um cientista, para o qual
a descoberta de métodos novos, assustadoramente revolucionários,
não apresentava dificuldades maiores que a fabricação de uma
torradeira. Pôs-se a explicar sua afirmação:
— A evolução tecnológica vai ter que seguir obrigatoriamente esse
rumo. Querem uma prova disso? Acabei de observar as suas
manobras, comandante McLane. Não seguiu as instruções de operação
previstas para este tipo de nave, efetuando, por conta própria, o
acoplamento de posto de comando, piloto automático e computador
original.
McLane recostou-se e perguntou, espantado:
— Certo. Com isso conseguimos reduzir o trabalho de cálculo ao
mínimo indispensável, evitando as computações desnecessárias. O que
tem isso de tão notável?
Ibsen ergueu as sobrancelhas e sorriu.
— O que tem de notável? Apenas a genialidade da solução que o
senhor encontrou! Estou desconfiado, comandante, que o senhor
mesmo nem notou isso! Uns seis meses atrás, tive ensejo de descrever
esta solução no meu livro "Os Homens da Estação Espacial".
Ibsen examinou suas unhas bem feitas.
— Se agora me derem licença, vou me refrescar um pouco e pôr
no papel algumas idéias que me ocorreram.
Levantou-se, fez uma breve mesura e dirigiu-se ao elevador com
os passos elásticos de um celebrado ator de TV, que tinha acabado de
receber seu polpudo pagamento. A porta semicircular girou nos
gonzos e estalou ao encaixar-se nos fechos. O que Ibsen deixou na
cabine de comando, foi uma tripulação mais que perplexa.
— Eta ferro! — exclamou Atan Shubashi, abalado. — Que sujeito
mais arrogante!
Helga girou a poltrona e apontou para o astronavegador.
— De bobo ele não tem nada, Atan — observou, não sem um traço
de admiração.
— Ninguém afirmou isso — disse McLane, algo irritado. — Um
homem, que consegue ficar no mercado de livros durante anos a fio,
não pode ser bobo. Muito pelo contrário. Tem que ser ambicioso,
obstinado e, vez por outra, até mesmo gentil. Como agora.
Com a voz arrastada de uma atriz cinematográfica enfadada,
Tamara comentou:
— Acho ele até bastante divertido, meus amigos!
— Um sujeito encantador! — concordou Helga, quase sem fôlego.
Mario fez uma cara chorosa. McLane refletiu durante alguns
instantes e depois disse:
— Até chegarmos ao campo de operações, a presença das distintas
senhoras na cabina de comando é perfeitamente dispensável. Que tal
se fossem descansar um pouco nos camarotes?
Helga e Tamara entreolharam-se e começaram a rir gostosamente.
— Estão rindo de quê? — quis saber Atan, enfurecido.
— Estamos contentes — explicou Tamara com um sorriso
indulgente e desceu do seu lugar cativo — em ver que a presença
desse homem encantador já produziu um efeito muito salutar. Quer
nos parecer que os demais cavalheiros a bordo estão ligeiramente
enciumados. Isso é ótimo!
Em bela harmonia, as duas dirigiram-se ao elevador e desceram ao
convés, no qual se encontravam os camarotes e a cozinha. Um silêncio
embaraçoso reinou na cabina durante alguns momentos, depois Mario
de Monti disse, desalentado:
— Será que o mau gosto das mulheres não conhece limites?
O sorriso de McLane saiu meio forçado.
— Ainda outro dia, me fiz a mesma pergunta.
— Quando? Onde? Por quê? — perguntou o subcomandante
rapidamente.
— Quando eu vi você no Cassino Starlight em companhia de duas
pequenas lindas de morrer!
De Monti ergueu a mão e advertiu:
— Não seja invejoso, comandante!
— Não tem perigo — respondeu Cliff.
***
Helga Legrelle estava folheando o exemplar da última obra de
Ibsen com um ar sonhador.
— Deve ser uma sensação fabulosa — disse, embevecida — saber
que se é capaz de inventar uma história dessas!
Quando foram "convidadas" a se retirarem da cabina de comando
pela indireta de Cliff, Tamara e Helga não tinham a menor intenção de
se recolherem a seus camarotes. Resolveram bater papo com Ibsen, e
agora se encontravam no camarote deste, sorvendo chá e discutindo
animadamente vários aspectos da ficção científica. Um assunto
praticamente inesgotável, na opinião de Ibsen. Com a habilidade
comum a todos os autores, tinha conseguido, em questão de minutos,
que a conversa versasse apenas sobre o seu tema predileto. E isso,
para ele, era duplamente proveitoso: não só lhe satisfazia a vaidade,
como também lhe permitia lançar uma pequena campanha publicitária
das suas obras. Não o fazia, porém, de maneira ostensiva. Ocultava as
suas verdadeiras intenções por trás da fina ironia com que descrevia a
sua profissão: nada tinha de especial em relação a tantas outras, como
afirmava. E isto encantava a quantos o ouviam.
— Pode crer que escrever um livro desses no fundo não passa de
uma trabalheira insana! — confidenciou a Helga, como se estivesse
discorrendo sobre a construção de um anteparo contra o Overkill.
— Espere um pouco! — objetou Tamara, sorrindo. — Com uma
imaginação fértil como a sua, isso não pode ser tão difícil assim!
Ibsen lembrou-se das longas e acaloradas discussões com os
redatores e revisores nos escritórios da editora.
— Quer me parecer, minha cara — disse, em tom sério — que a
senhora tem uma concepção bastante romântica de como se escreve
uma novela. Posso lhe garantir que é um trabalho estafante, que nada
tem de romântico. Além disso, de todos os fatores envolvidos na
produção de um livro, o mais fácil de ser substituído é o autor, não
importando se se trata de uma obra "standard" sobre psicologia ou de
pura beletrística. Lembra-se do que conta a mitologia a respeito da
Hidra de Hércules? Pois bem, a mesma coisa acontece com os
escritores. Um autor se desilude e pára de escrever, e imediatamente
surgem cinco ou seis concorrentes para lhe tomar o lugar. É nisso que
reside a miséria dessa profissão.
— Mas, não há limites para sua fantasia — contrapôs Helga. —
Pode inventar coisas e também destruí-las à vontade.
— Mesmo isso nada representa além de um trabalho árduo —
insistiu o mestre e recostou-se, assumindo uma postura de grande
efeito decorativo. — É como na navegação espacial. A gente imagina
que vai viver uma aventura eletrizante e, no fim das contas, constata
que o vôo realizado não passou de uma combinação de tecnologia
requintada com destreza humana...
E assim continuaram a discutir animadamente. Na cabina de
comando, Hasso, Cliff, Atan e Mario estavam postados diante da mesa
do comandante, olhos fitos na tela do videofone, e acompanhavam,
em silêncio, a edificante conversa entre as duas moças ávidas de saber
e o afamado autor, que exibia um sorriso bonachão. Vez por outra,
Mario sacudia a cabeça.
— ...e nem sempre se tem o privilégio de viajar em companhia tão
encantadora quanto a sua. Portanto, navegar pelo espaço também não
deixa de ser uma atividade bastante monótona. A missão, que ora
iniciamos, corrobora a minha afirmação: caçar espórios na vastidão do
cosmos!
O comandante ergueu a mão e golpeou, de leve, um botão no
painel seletor do intercomunicador de bordo. O botão era o de número
nove: o número do camarote de Ibsen. Os sulcos que atravessavam a
testa de Cliff denotavam sua profunda irritação.
— Não dá nem para discutir! — desabafou Mario. — Então nossa
atividade é monótona, é?
Cliff encolheu os ombros e olhou para Hasso. Poucos minutos
separavam a nave do mergulho no hiperespaço.
— Precisa bolar alguma coisa, chefe!
Algo que torne o vôo menos monótono para esse paspalhão
fantasioso. Que tal se você provocasse um pequeno incêndio no
camarote dele?
Cliff sacudiu a cabeça e exclamou:
— O diabo que vá!
— E por que não? — pediu Atan. — O que esse cara precisa, é
uma sensação de perigo. Basta um tiquinho de nada!
— É só" o que faltava no rol dos nossos pecados: meter em perigo
a preciosa vida do genro de um ministro! Vamos passar o resto dos
nossos dias como faxineiros de bordo!
— Uma constatação irrefutável! — concordou Mario de Monti. —
Não valeria a pena tentar.
— Tenham um pouco de paciência — disse Cliff. — Vamos
descobrir um macete perfeitamente legal, para lhe pregar uma peça.
— Agora confiamos na sua fantasia, Cliff! — disse Hasso. E
pouco depois a Orion VIII mergulhou no hiperespaço. Curso: Dois-
Norte 101.
3

"É IMPRESSIONANTE", pensou a jovem ordenança feminina,


"como uma sala pode mudar de aspecto, sem que uma única poltrona
sequer tenha mudado de lugar."
Um refletor substituiu a luz do dia, que normalmente iluminava o
gabinete através da janela panorâmica submersa. A claridade chegava
até o compartimento por meio de um complicado sistema de espelhos
variáveis.
— Confidencialmente, marechal Wamsler, houve uma briga feia lá
em casa.
O ar surpreso do marechal condizia com o seu tom de voz.
— Foi mesmo? — perguntou.
— Infelizmente! Pouco antes da decolagem da Orion, na qual se
encontra o meu genro. E passando bem, espero eu!
Spring-Brauner fez um gesto tranqüilizador.
— Tenho certeza de que está passando bem. A Orion é uma das
nossas naves mais seguras, e McLane não é homem de fazer algo
impensado. Mormente com uma carga tão delicada a bordo como uma
agente do SSG e o seu estimado genro, senhor ministro.
Spring-Brauner tomou fôlego e viu o alívio estampado no rosto do
ministro.
— Minha filha não queria deixá-lo partir! — disse o ministro.
— Quem? McLane?
— Não. Pieter-Paul. O senhor sabe como são as mulheres...
imaginam um sem-número de sustos, aventuras e perigos que, afinal,
nunca chegam a se concretizar.
Wamsler colocou as mãos na mesa, entrelaçou-as e encarou o
ministro com um olhar franco.
— Esta missão não oferece o menor perigo, senhor ministro! —
afirmou, com ênfase.
— Nenhum perigo! — confirmou Spring-Brauner, solícito.
Algo vacilante, o ministro disse:
— Mas, como se sabe, a tripulação da Orion é... como direi...
mista. Há duas moças a bordo...!
Wamsler liquidou os receios do ministro com um gesto
grandiloqüente. Riu abertamente.
— Quanto a isto, pode ficar inteiramente tranqüilo, senhor
ministro! — disse e deu uma cotovelada nas costelas de Spring-
Brauner. O ajudante-de-ordens apressou-se a acompanhar a
gargalhada do seu superior, mas o fez com uma nítida expressão de
dor no rosto.
— Se estou bem informado — disse o marechal, bem-humorado
— Helga Legrelle, a telegrafista, está perdidamente apaixonada pelo
major Cliff McLane. Secretamente, é claro; extra-oficialmente, por
assim dizer, se bem que todo mundo na base 104 está cansado de
saber disso.
O ministro fez um gesto vago. Ainda não se deu por satisfeito.
— Mas ainda há aquela outra moça que, pelo que me consta, Villa
destacou em missão especial... — começou, preocupado.
O gesto de Spring-Brauner não podia ser mais desdenhoso.
Repetiu-o por várias vezes.
— A camarada Jagellovsk! — murmurou, em tom mordaz.
— Quanto a Tamara — continuou a explicar Wamsler — bem, até
hoje a tripulação masculina da Orion está na dúvida, se ela é realmente
uma mulher ou apenas um robô feminino de aspecto bastante
apetitoso.
— Ah, sei! Diga-me, marechal, seria possível estabelecer uma
ligação radiofônica com a Orion?
O que Wamsler mais gostaria poder fazer naquele momento, era
levantar-se e ir para casa. Balançou o crânio enorme e disse:
— Não sei bem, se vai ser possível.
— Devolveria a tranqüilidade à minha filha, se pudesse contar a
ela que consegui falar com Pieter-Paul.
— Como é que é? — perguntou Wamsler a seu ajudante.
— Infelizmente, no momento não há condições de estabelecer esta
ligação — asseverou Spring-Brauner, num tom de voz que soava
genuinamente lamentoso. Exibiu um sorriso amável. — Acontece,
senhor ministro, que a comunicação hiperradiofônica com a Orion foi
interrompida por perturbações cósmicas. Nossas mensagens não
passam.
O ministro levantou-se sobressaltado e exclamou:
— Mas isto é... isto é simplesmente pavoroso! O que é que eu vou
contar à minha filha?
Wamsler disse, em tom tranqüilizador:
— Isso acontece a toda hora, senhor ministro; não é nada de
excepcional. Esses campos de perturbação cósmica fazem parte do
nosso dia-a-dia, e não oferecem o menor perigo. Prometo-lhe chamar
Cliff McLane assim que essas interferências cessarem; depois
transferimos a ligação para o seu aparelho.
O ministro acenou, ainda deprimido. Em tom quase suplicante,
disse:
— Peço-lhe encarecidamente, marechal, que me mantenha a par
dos acontecimentos. Em qualquer caso! Só faço votos que consiga
restabelecer a ligação o mais breve possível!
Wamsler, que ansiava pelo fim da conversa como pelo dia da sua
aposentadoria, levantou-se e estendeu a mão carnuda ao ministro.
— Mas é claro que vou mantê-lo informado de tudo! — apressou-
se em assegurar.
— Conto com isso. Caso contrário, é bom que saiba, vou me
encontrar numa situação sumamente desagradável. E não posso
conceber que o senhor vai deixar que isto aconteça, marechal!
— De forma alguma isto vai acontecer!
— prometeu Wamsler.
— De forma alguma, senhor ministro!
— ecoou Spring-Brauner.
O ministro despediu-se e desapareceu por trás da barreira
eletrônica. Durante alguns instantes Wamsler e Spring-Brauner
entreolharam-se em silêncio. Por fim, o ajudante perguntou:
— Gostaria de saber, de que este cavalheiro tem mais pavor: da
língua da sua filha ou de um acidente no cosmos?
— É claro que morre de medo da filha. Está colhendo os frutos da
educação que resolveu dar a ela. Quem mandou ele enfiá-la num
desses caríssimos internatos luxemburgueses!
E Spring-Brauner deu um aceno significativo.
***
Quarenta e oito horas e alguns minutos após a partida, a Orion VIII
emergiu do hiperespaço. Pairava no cubo espacial Dois-Norte 101,
uma região isenta de estrelas, mas permeada de massas gasosas em
constante movimento, e que eram emitidas por um sol distante.
Campos magnéticos se encarregavam de dar um formato mais
definido a essas massas amorfas, transformando-as em torrentes de
forma tubular que se deslocavam em direção ao centro da esfera
espacial com uma velocidade que correspondia à do vento solar.
Hasso encontrava-se na casa de máquinas; os demais membros da
tripulação, inclusive o ilustre autor, estavam reunidos na cabina de
comando.
— Nada ainda? — perguntou Cliff.
— Nada — respondeu Helga Legrelle — nem um pio, chefe.
Estamos completamente isolados!
— Muito estranho! — comentou Atan Shubashi.
— Isso só pode ser devido aos campos de perturbação cósmica —
lembrou Cliff. — Não é a primeira vez que afetam a nossa
comunicação radiofônica. Bem, o que há de se fazer? Não recebemos
perguntas e, portanto, não precisamos das respostas.
Puxou o microfone para perto e disse, a meia voz:
— Do comandante para livro de bordo! Reiteradas tentativas de
estabelecer contato com F.R.E.T. por radiofonia hiperespacial, pois
estas fracassaram. Interferências cósmicas impossibilitam
comunicação. Nave Orion chegou ao campo de operação. Baixamos
filtros e iniciamos a procura de espórios. Desligo.
Cliff dirigiu-se à tripulação e disse em voz alta:
— Está tudo pronto, amigos?
As diversas confirmações vieram pelo intercomunicador de bordo.
— Vamos voar através daquela torrente cuja direção Atan
determinou. Inicialmente o gás interestelar será filtrado pelo processo
magnético. Se tivermos sorte, pegamos tantos daqueles benditos
espórios carregados pela pressão de radiação, que o Centro Científico
tem um ano de análises pela frente. O que para nós significa menos
doze meses de missões idiotas.
Ibsen apontou para um pequeno ponto fluorescente na tela de
imagem.
— Posso lhe fazer uma pergunta, comandante?
Cliff nem se mexeu e disse:
— Faça quantas quiser, mestre das teclas!
Atan não se conteve e soltou mais uma daquelas suas risadinhas
irritantes.
Ibsen apontou novamente para aquele pontinho e disse:
— Aquilo lá é um minúsculo asteróide; pelos meus cálculos, deve
distar uns duzentos mil quilômetros de Umbriel.
McLane acenou, concordando.
— Sei disso — respondeu. — Quer comprá-lo?
Ibsen sorriu e disse, sem qualquer traço de ironia ou sarcasmo:
— Há séculos que este pedaço de rocha está pairando aí, bem no
meio do trajeto do vento solar. Por que vai se dar todo esse trabalho
com a nuvem de gás? Para aspirar algumas partículas? Para conseguir
coletar meia dúzia de amostras?
— Vai rir se eu lhe contar — disse Mario de Monti. — Mas foi
única e exclusivamente para este fim, que viemos para cá. E lhe
garanto que conheço no mínimo uns cem lugares, onde preferíamos
estar agora. Não é mesmo, Atan?
Shubashi acenou, sem proferir palavra.
— A atração exercida por aquele asteróide sem nome é muito
superior à da Orion e todos seus apetrechos. Então por que ainda
continua a boiar aqui com filtros baixados e tudo? — insistiu Ibsen.
— Por uma razão muito simples — disse Cliff e deu um sorriso de
superioridade. — Porque esses espórios, se é que existem, não podem
ser caçados como, por exemplo, borboletas exóticas, prezado mestre!
Ibsen arreganhou os dentes numa expressão da mais pura
ingenuidade e disse, calmamente:
— Uma única lasca de pedra daquele asteróide vai lhe poupar dias
de trabalho, se o senhor for lá e tirá-la.
A estupefação de McLane era autêntica. Pesou a proposta daquele
homem ao seu lado, que nunca antes tinha voado pelo espaço e que
parecia conhecer coisas, que um astronauta experiente só descobria
após longas reflexões. Cliff percebeu os olhares consternados da sua
equipe.
— Não deixa de ter razão — comentou. — Realmente, isso faz
sentido!
— Parece que a minha presença a bordo não é de todo inútil,
comandante — respondeu o escritor. — Isso me deixa muito
satisfeito, e me fez perder a inibição de externar um pedido.
Cliff olhou para Ibsen com um ar de surpresa.
— Deseja alguma coisa?
— Desejo, sim. E não faz idéia quanto este desejo me atormenta,
comandante!
A expressão de McLane era marota como quê quando respondeu:
— Sinto muito, meu caro, mas vai ter que sofrer mais um pouco.
No momento, as damas a bordo estão de serviço!
Atan Shubashi começou a rir. Ibsen aparou a observação maliciosa
de Cliff com um sorriso suave.
— Não se trata disso, comandante. Meu desejo é de outra natureza.
Ao menos uma vez na vida, gostaria de dirigir uma Lancet, e nunca
estive tão perto de realizar esse sonho. Depende apenas da sua
permissão, major McLane!
Cliff levantou-se bruscamente e exclamou:
— Ficou maluco?
Ibsen remexeu no bolso da sua reluzente jaqueta e finalmente
mostrou um pedaço retangular de plástico, que apresentava um retrato
seu e uma infinidade de carimbos. Bastou olhar de relance, para
McLane saber que documento era esse.
— Ouça, por favor! — disse Ibsen em tom quase humilde. —
Algumas semanas atrás me inscrevi num curso de pilotagem
automática, e consegui ser aprovado com distinção!
Cliff sacudiu a cabeça energicamente e respondeu:
— Isso não passa de pura teoria. Seu treinamento se resumiu em
pular para meia dúzia de pontos dentro da atmosfera, e isso é uma
tarefa elementar que qualquer um pode realizar.
— Perdão, comandante. O senhor sabe muito bem que o princípio
básico não muda. Só quero experimentar a sensação de voar sozinho
pelo espaço.
McLane olhou de esguelha para Tamara, viu a expressão de
expectativa dela e disse categoricamente:
— Pode experimentar quantas sensações quiser, mas essa não!
— Peço-lhe encarecidamente que atenda ao meu pedido,
comandante — insistiu o literato. — Seria o melhor presente de
aniversário que já recebi. Depois de amanhã, vou fazer trinta e seis
anos.
Mario de Monti soltou o seu possante barítono:
— Happy birthday to you...
Durante alguns segundos, a cabine de comando ressoou da
gargalhada geral, da qual, para espanto de McLane, o próprio Ibsen
participava a plenos pulmões. Depois, o escritor ficou novamente
sério e aguardou a próxima pergunta de Cliff.
— Sabe mesmo manejar um troço desses? — quis saber McLane,
desconfiado.
— Comandante! — disse Ibsen, quase ofendido — já nas minhas
primeiras obras, coisas do gênero da Lancet são lembradas apenas
como pertencentes ao ferro-velho!
— É verdade! A evolução descrita em seus livros é realmente
espantosa. Até a desmaterialização já não constitui problema algum
para os seus heróis, não é mesmo? — retorquiu Cliff.
Ibsen ignorou essa observação fora de propósito e continuou a
pedir insistentemente que McLane lhe confiasse uma Lancet.
Cliff, que por uma questão de princípios desconfiava de tudo e de
todos, não tirava os olhos do rosto de Ibsen. Finalmente, chegou a
uma conclusão e disse:
— Vá lá que seja!
— Obrigado, comandante! — exclamou Ibsen e agarrou a mão de
McLane.
— O tenente De Monti vai acompanhá-lo — acrescentou Cliff.
— Não, comandante... por favor, deixe-me voar sozinho! — pediu
Pieter-Paul.
Cliff soltou uma risada e fez um gesto inequívoco.
— E uma responsabilidade que não posso assumir! — disse, em
tom incisivo.
Ibsen parecia não ter entendido a resposta; estava começando a
devanear:
— Voar sozinho pelo espaço... sem ninguém ao meu lado para
auxiliar... cara a cara com as estrelas, com um sol distante, com um
pequeno asteróide... esse é o meu sonho!
— Além de tudo ainda é romântico! — constatou Cliff, em tom
repreensivo.
— Nós, literatos, somos os últimos românticos desse século
tecnológico — explicou Ibsen. — Revelamos a beleza que se oculta
por trás da aparente frieza das coisas materiais, e a relacionamos aos
anseios da humanidade.
Cliff estava encostado na escora da mesa do transmissor, cheio de
dúvidas quanto à permissão que havia concedido. A voz um tanto
impertinente de Helga arrancou-o das suas reflexões:
— Acho que um pouquinho de romantismo bem interpretado não
faria mal a ninguém.
Sem olhar para ela, Cliff respondeu, em tom gélido:
— Tenente Legrelle! Suas obrigações a bordo resumem-se na
vigilância espacial e no estabelecimento de contatos radiofônicos de
toda a espécie. Portanto, queira guardar a análise critica de charme
masculino para as suas horas de folga!
— Como eu sou feliz — retrucou Helga sem o menor respeito —
por não possuir um gênio detestável como o seu!
Ibsen cortou a cena voltando a suplicar:
— Por favor, comandante, não me estrague esse prazer! Afinal,
não há o menor perigo!
— Estou vendo que não vai sossegar o pito enquanto eu não lhe
deixar voar sozinho. Muito bem, então voe! Mas o risco é todo seu;
previno-o pela última vez, alto e em bom som, entendido?
Com uma expressão da mais completa felicidade, Ibsen balbuciou:
— Não sei como lhe agradecer, comandante! Muito obrigado!
Muito obrigado, mesmo!
— Vai vestir um traje espacial, está claro? Mario, ajude-o, por
favor!
Mario acenou em silêncio. Dava para notar que considerava a
permissão de McLane inteiramente desnecessária, além de perigosa.
Cliff ordenou:
— Aprontar Lancet I! Preparar câmara de ejeção para ignição! —
virou-se para Atan e disse: — E você vai vigiar o vôo dele, entendido?
— Entendido, Cliff.
Ibsen não fez o menor empenho em esconder a alegria
verdadeiramente infantil de que estava possuído. Lentamente Tamara
Jagellovsk aproximou-se do comandante, postou-se rente a ele e
perguntou, em tom tranqüilo:
— Pelo visto, major McLane, não lhe ocorreu a brilhante idéia de
consultar o encarregado da segurança, ou seja, a minha humilde
pessoa?
Com voz calma, Cliff respondeu:
— Pensei nisso, sim. Acontece que tive que reformular as minhas
idéias a seu respeito, depois que o nosso ilustre hóspede pôs os pés na
Orion.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Tamara asperamente.
Estava pálida.
— O que eu quero dizer com isso, é que a senhora... ora bolas,
vamos deixar isto pra lá!
Cliff interrompeu a si mesmo e disse, em tom conciliador:
— Peço que me desculpe a observação irrefletida. Realmente os
seus sentimentos não são da minha conta.
Virou-se e fixou o olhar na tela central. Por isso, não viu a
expressão no rosto de Tamara; era óbvio que o ciúme manifestado
pelo comandante lhe causava intensa satisfação. Parecia que ela o
conhecia melhor que ele a si próprio.
— Lancet I pronta para partir!
— Está bem, Mario. Pode ejetar a nave auxiliar. Boa viagem,
mister Ibsen!
Mario iniciou a contagem regressiva.
— Cinco... quatro... três... dois... um... zero!
A silhueta esférica da Lancet desprendeu-se do disco da Orion à
qual os filtros disformes, baixados, emprestavam um aspecto mais que
esquisito. Durante alguns instantes, os tripulantes ainda viram as luzes
dos instrumentos e o vulto do escritor no traje espacial por trás das
pequenas cúpulas de Plexol. Depois a Lancet reduziu-se a um ponto,
que se deslocava velozmente em direção a um outro, algo maior.
— Quais são as nossas coordenadas? — perguntou Tamara,
enquanto os homens observavam os mostradores.
— Dois-Norte 101 — disse Atan, sem levantar o olhar.
— Major McLane, sabe o que se encontra nesse cubo espacial?
Cliff estranhou o tom ominosamente baixo da voz de Tamara.
Olhou para ela, surpreso e sacudiu a cabeça. "Não sei, não!"
— Está vendo aquele sol lá na frente? Bem perto dele, Mura
desloca-se através do espaço!
— Com mil diabos! — exclamou Cliff. — Logo Mura!
Claro que todos sabiam o que era Mura, e o que representava. E
bastou que se lembrassem disso para, sem exceção, sentirem uma
súbita sensação de mal-estar. Cliff mais que os outros.
4

MCLANE estava postado imóvel diante da mesa de comando,


absorto em pensamentos nada agradáveis. Mario havia ouvido a
conversa na câmara de ejeção através do intercomunicador de bordo, e
apressou-se em subir. Ficou parado na porta do elevador, a testa
franzida. Helga acompanhava a trajetória da Lancet na tela central,
enquanto Tamara e Shubashi controlavam os instrumentos
rastreadores na mesa do astronavegador. Um silêncio ameaçador
reinava na Orion. Todos falavam baixinho; o canal radiofônico
permanentemente aberto garantia a Ibsen a possibilidade de um
contato imediato com a cabina de comando.
— Não deveria ter deixado ele voar, comandante — disse Tamara,
em tom de censura.
— Não me venha com essa agora! — respondeu Cliff, a meia voz.
— Realmente, não vejo o menor perigo. A ligação radiofônica está
estabelecida em caráter permanente, e além disso a Lancet está voando
guiada por um raio-piloto, do qual não vai conseguir se desprender.
No mesmo segundo, ouviram a voz de Ibsen.
— Alô, comandante?
— Estou ouvindo! — respondeu Cliff, em voz alta.
— Devo confessar que estou um pouco desapontado.
— Por quê? Está achando a Lancet muito lenta? — quis saber
Cliff, sarcasticamente.
— Isso não. Mas o senhor me prendeu num raio-piloto! E sei
muito bem que a Lancet pode percorrer o espaço, guiada apenas por
esse raio. Tornei-me, portanto, uma figura meramente decorativa a
bordo!
— Tive lá minhas razões para isso — respondeu Cliff, imaginando
o que o frustrado literato iria fazer agora. Não se enganou. Pieter-Paul
Ibsen estava sentado diante da pequena mesa de comando da Lancet.
Com os movimentos um pouco tolhidos pelos largos cintos de
segurança, empurrava e puxava, inutilmente, as alavancas dos
controles, que não lhe obedeciam. Finalmente, resignou-se a observar
os instrumentos e a pequena tela à sua frente. Mas isso era tão
frustrante quanto mexer nos controles inoperantes. Ibsen deu um
suspiro e resolveu olhar para fora, para o universo imóvel que se
estendia diante das pequenas cúpulas de Plexol da Lancet. E o que foi
que viu?
Viu um sol antiqüíssimo, cuja luz suave banhava o pequeno
asteróide. E longe, atrás desse asteróide, distinguiu o contorno
foiciforme de um grande corpo, talvez um planeta, que acabava de
penetrar na luminosidade do sol; pairava no meio daquelas névoas
gasosas que a Orion havia sulcado, e que aqui se apresentavam algo
mais densas. Uma sensação curiosa, indefinível, apossou-se do
escritor.
Havia, porém, um traço de tristeza nos seus pensamentos, pois
pouca diferença tinha constatado até agora entre teoria e prática. Cá
estava ele, um homem de trinta e seis anos, pela primeira vez na vida
sozinho no espaço. Apesar das suas maneiras um tanto afetadas, Ibsen
não era nada simplório e muito menos um sonhador. Mas para
descrever, numa novela, as emoções por que passa um cosmonauta,
era preciso experimentar as mesmas sensações; se possível, com a
mesma intensidade. Sem isto, qualquer diálogo soaria falso, a
narrativa careceria de autenticidade, a descrição das sensações jamais
poderia ficar impregnada do poder de convicção de quem as tinha
efetivamente experimentado. Já a esta altura, poucos minutos depois
da excitante decolagem, Ibsen julgava-se possuidor de um rico
cabedal de experiências pessoais. Sabia de antemão o que iria
procurar. E tinha certeza de que sua busca não seria em vão.
Procurava a aventura. A aventura autêntica, única, que tinha que ser
vivida pessoalmente. Não poderia admitir que precauções exageradas
frustrassem seu intento.
Ibsen agarrou o microfone e disse, desapontado:
— Comandante McLane! Peço-lhe que pare de me tratar como um
recém-nascido! Eu agora vou desligar o automático e assumir
pessoalmente os controles da Lancet. O alvo já está perfeitamente
enquadrado.
E desligou uma chave, que se distinguia das demais pelo seu botão
vermelho.
McLane começou a berrar como um louco e os alto-falantes na
Lancet estalavam, supersolicitados.
— Não se atreva a fazer esta besteira, ouviu, Ibsen? Entendeu o
que eu disse?
Ibsen manteve-se calado. Cliff aguardou alguns segundos; depois
voltou a berrar:
— Religue imediatamente o automático, ouviu?
Nunca Ibsen havia sentido taquicardia tão forte. Identificou-a
prontamente como o primeiro sintoma da grande aventura no cosmos
que teria início daqui a instantes. Respirou profundamente e
respondeu:
— Não se preocupe, comandante. Não vou me afastar das
coordenadas.
Imprimiu maior velocidade à Lancet e a fez seguir uma trajetória
curvilínea em direção àquele minúsculo asteróide, que se destacava
nitidamente do fundo fracamente luminoso das massas de gás
impelidas pelo vento solar.
Shubashi apontou para uma das suas telas de radar. Rapidamente
agruparam-se em torno da mesa do astronavegador e observaram o
seguinte quadro: torrentes de partículas de um sol desconhecido
atravessam a tela de lado a lado. Talvez estivessem arrastando consigo
germes estranhos, encapsulados, e imobilizados pela temperatura
cósmica de zero graus Kelvin. Nos fundos, longe, havia um sol,
apenas um disco luminoso. À sua direita, talvez a uns 180 mil
quilômetros de distância, a tela mostrava o impulso de um corpo
rochoso, que pairava no meio da corrente gasosa. E à esquerda, quase
na margem da tela, delineava-se parte da superfície de um planeta.
MURA!
— Olhem! Está se desviando! O sujeito está se desviando do
curso! — exclamou Atan, alarmado. — Esse poeta de uma figa acaba
me arrancando os últimos cabelos!
McLane explodiu:
— Esse idiota! — agarrou o microfone e berrou: — Que
maluquice é essa? Não se afaste das coordenadas, entendeu, Ibsen?
— Se ele não conseguir manter o curso — observou Mario,
inseguro — pode acontecer que a Lancet seja atraída por Mura. E com
essa velocidade, isso vai ocorrer dentro de poucos minutos!
— Mura... eta lugarzinho gostoso e acolhedor! É só o que nos
faltava na nossa coleção de coisas impossíveis — disse Cliff.
Depois gritou novamente no microfone:
— Ibsen! Está me ouvindo?
A esta altura já estava mais do que arrependido de ter levado Ibsen
nessa missão. Certo, tinha concordado em prestar esse favor a
Wamsler, para livrar o marechal de uma situação embaraçosa. Mas
jamais Wamsler se viria em tamanho apuro como Cliff, agora. O
comandante amaldiçoou livros, literatos e editores em geral e a
administração em particular. Coisas estranhas se apresentavam nas
telas de radar de Atan...
Em vez de seguir mais ou menos a reta entre a Orion e o asteróide,
a Lancet descrevia uma curva ampla, desviando-se para a esquerda, e
aumentando ligeiramente a velocidade. O impulso na tela tornava-se
cada vez mais débil, e ninguém sabia dizer para onde Ibsen estava
levando a nave auxiliar. Apenas uma certeza: não era em direção ao
asteróide. Mas isto, o próprio Ibsen não sabia. Estava sentado na sua
poltrona, traje espacial aberto, e falava ao microfone.
— Estou lhe ouvindo, comandante! Ficou sem resposta.
— Parece que este negócio, que o senhor teve a gentileza de me
confiar, apresenta algumas manhas. Estou me desviando do curso, mas
não sei a que atribuir isso. Continua me rastreando?
Ibsen cerrou os olhos e concentrou-se, mas os alto-falantes
permaneceram mudos, mesmo aqueles bem à sua frente.
— Alô... McLane! Está me ouvindo? Silêncio.
— Calcule um novo curso; vou religar o automático.
Nada.
— Alô... Por que não responde mais?
Pronto. Agora estava vivendo a aventura com que tanto tinha
sonhado. Sem poder se comunicar com a Orion, vagando meio
desamparado através do espaço com controles emperrados e
velocidade cada vez maior...
Ibsen voltou a sentir a palpitação violenta do seu coração e
começou a imaginar as passagens empolgantes que esta situação
inesperada lhe permitiria engendrar para as próximas novelas.
"Perdido no universo!, Pairando desgovernado entre as estrelas!,
Flutuando ao sabor das torrentes de gás interestelar, ou, quem sabe?...
intergaláctico!" Por outro lado, Ibsen sabia que a Lancet dispunha de
boas reservas de ar, alimentos e energia de propulsão. Só lamentava
que não houvesse uma única arma a bordo, pois isto o impedia de
realizar o desembarque com a espetaculosidade que havia imaginado.
Ele, Ibsen, descendo a escada da Lancet com ar altaneiro e uma
possante HM-4 na mão enluvada a garantir-lhe a posse da conquista...
Realmente, sem o detalhe da arma empunhada, a cena perderia
muito do seu efeito dramático. Paciência. Desembarcaria desarmado,
mas com o mesmo ar de altivez, e fincaria os pés naquele solo nunca
dantes pisado por botas de astronautas. Nem por um instante, o
fantasioso escritor desconfiou que pudesse estar redondamente
enganado. Mas estava.
***
Ibsen sentia-se completamente indefeso, tão desamparado quanto
uma criança.
Talvez mais ainda, pois uma criança poderia chorar de desespero.
Mas Ibsen estava longe de desesperar. As peripécias do vôo haviam
despertado nele forças interiores que ele mesmo desconhecia. Forças
que evitaram que entrasse em pânico. Conseguia raciocinar com
lucidez e por isso sentiu o efeito produzido por outras forças. Mas
essas eram externas e agarravam a Lancet com punhos de aço. O
planeta aproximava-se com alucinante rapidez, ocupando, de uma
hora para outra, todo o campo de visão. A imagem na tela parecia
explodir. A Lancet estava sendo implacavelmente atraída para o lado
claro do planeta. Após tantas tentativas fracassadas, Ibsen já não
nutria mais esperanças de poder recuperar o controle da pequena nave.
Tanto maior foi sua surpresa quando constatou que, ao mexer mais
uma vez nos comandos, estes voltaram a lhe obedecer. Imediatamente,
fez os propulsores impelirem a Lancet "para baixo", portanto, em
direção à superfície do planeta, e quando o altímetro indicou uma
altura de vinte e cinco quilômetros, incrementou o empuxo das
máquinas. Instantes depois, sentiu o efeito da aceleração negativa, o
que o deixou aliviado, pois acreditava ter eliminado o perigo de se
espatifar naquela massa amarelada lá embaixo. A Lancet começou a
baixar lentamente. Ibsen olhou para fora, à procura de um local de
pouso apropriado. Não sabia, porém, que essa escolha não seria sua.
Por mais que quebrasse a cabeça, Ibsen não conseguia descobrir
quem o havia colocado nessa situação desgraçada. Mas tinha certeza
de que sairia dela tão airosamente como um dos heróis antológicos das
suas histórias: um pouco combalido mas indomado, e ostentando o
sorriso desdenhoso do vencedor entediado. Resolveu tentar mais uma
vez estabelecer contato com a Orion:
— Aqui fala Pieter-Paul Ibsen, a bordo da Lancet I. Estou
chamando a Orion VIII. Comandante McLane, está me ouvindo?
Não recebeu resposta. A superfície do planeta aproximava-se
vertiginosamente. Ibsen podia influir no desempenho das máquinas,
mas o sistema direcional não lhe obedecia. Limitou-se a realizar todas
aquelas manobras que havia exercitado milhares de vezes, em Terra.
Incrementou o efeito frenador, baixou os suportes de pouso e, poucos
minutos depois, pousou num areai do tamanho de um campo de pólo.
Em seguida, respirou profundamente.
— Pieter-Paul Ibsen gravando no livro de bordo da Lancet — disse
a meia voz e girou uma chave. — Causas inteiramente desconhecidas
fizeram a Lancet se afastar do curso. Acabo de pousar num mundo
igualmente desconhecido. Vou tentar decolagem de retorno à Orion,
segundo as coordenadas já programadas!
Desligou o livro de bordo magnético e examinou os instrumentos
no painel semicircular.
— Está tudo em ordem — murmurou. — Portanto, vamos tentar!
Puxou a alavanca, que acelerava as máquinas, dando início à
operação "decolagem". A Lancet saltou para cima e por uma fração de
segundo, Ibsen foi imprensado contra o seu assento. Depois, parecia
que cabos elásticos estavam retendo a nave auxiliar. A Lancet não
chegou a se erguer mais que dez metros quando foi puxada de volta ao
solo. Os amortecedores hidráulicos dos suportes de pouso chiaram
violentamente, como que protestando contra essa aterrissagem inábil.
Ibsen olhou para fora, através das cúpulas transparentes, mas não
descobriu nada de suspeito.
Encolheu os ombros. Uma sensação extremamente desagradável
começou a se apossar dele. Ligou novamente o gravador:
— De Ibsen para livro de bordo. Primeira tentativa de decolagem
fracassou. Máquinas funcionam normalmente, mas algo me puxou de
volta ao solo. Vou tentar de novo, desta vez recorrendo à instalação de
partida de emergência. Desligo.
Um minuto depois, Pieter-Paul Ibsen voltou a ligar o livro de
bordo. Forçou-se a exibir um sorriso desdenhoso, e conseguiu
imprimir um tom ligeiro à sua voz, quando disse:
— Ibsen, mais uma vez. Já que persiste a incomunicabilidade
radiofônica com a Orion, continuo a relatar as ocorrências para o livro
de bordo:
"A tentativa de decolagem mediante o acionamento do dispositivo
de emergência também falhou. Parece que o corpo, em que pousei,
apresenta características razoavelmente semelhantes às de Terra. Ao
menos no que diz respeito aos valores referentes à pressão e teor de
oxigênio, conforme marcação nos instrumentos externos. Assim, vou
desembarcar com o traje espacial fechado, a fim de examinar a
consistência do solo. Talvez consiga descobrir as causas que
frustraram as tentativas de decolagem. De minha parte, acredito estar
sujeito aos efeitos de uma influenciação externa. Vou me empenhar ao
máximo para não desmerecer a confiança em mim depositada.
Desligo."
Ibsen soltou os cintos de segurança e levantou-se. Depois, colocou
o capacete espacial transparente na cabeça e o atarraxou firmemente
no anel de encaixe. Por fim, deu um puxão final nas luvas, mexendo
vivamente com os dedos da respectiva mão: era um gesto que possuía
algo de marcante, de tão marcante, que Ibsen jamais havia deixado de
incluí-lo em suas histórias...
Ibsen contornou a mesa de comando e desceu habilmente a escada
que levava à pequena eclusa da Lancet. Transpôs a primeira comporta
que se fechou novamente atrás dele. Abriu a comporta externa e
baixou a escada dobradiça; certificou-se que a extremidade inferior
estava firmemente apoiada no areai e começou a descer.
Imediatamente teve que se agarrar aos degraus da escada, senão teria
despencado. Sentiu-se totalmente inseguro sob o efeito inicial da
gravidade, que aqui era inferior à da Terra. E assim desceu
cautelosamente, de costas para o planeta, numa postura bem menos
dignificante do que havia imaginado, não fazia muito...
Finalmente chegou ao solo. Virou-se lentamente e... deu de cara
com os canos de quatro projetores energéticos, inequivocamente
apontados para a sua cabeça.
Ibsen estacou no meio do movimento. É realmente um fato curioso
que se passa com homens dotados de imaginação fértil: formam com a
maior facilidade uma imagem mental perfeita do que está para
acontecer, e depois ficam pasmos quando a realidade lhes apresenta
um quadro inteiramente discordante. E foi por isso que a reação de
Ibsen não correspondeu em absoluto à atitude desassombrada e
displicente com que, em sua imaginação, costumava enfrentar
situações como a presente. Ibsen estava pura e simplesmente com
medo. E essa sensação, tão elementar e nada fantasiosa, reduziu a
frangalhos a concepção que vinha nutrindo há tanto tempo a respeito
do seu comportamento heróico.
Lívido, desfigurado pelo terror, Ibsen mal conseguiu balbuciar:
— Quem são vocês?
Olhou para aqueles rostos estranhos, abrigados por trás dos
visores. Os alto-falantes no capacete de Ibsen transmitiam claramente
a respiração dos seus captores; portanto, deviam ter ouvido a sua
pergunta.
— O que querem de mim? — insistiu Ibsen.
Mas os quatro homens naqueles trajes espaciais cinza-claro
continuaram mudos.
Dois deles avançaram e agarraram Ibsen firmemente pelos braços.
Aos empurrões, fizeram-no galgar uma pequena elevação, do alto da
qual se via, a menos de um quilômetro de distância, uma curiosa
construção rasa, constituída por um sistema de cúpulas transparentes
interligadas. Ibsen surpreendeu-se com a existência dessa edificação,
pois não a havia notado durante seu pouso forçado. Já algo mais
controlado, voltou a perguntar:
— Para onde estão me levando, assim, sem mais nem menos...?
Ficaram malucos?
Um dos quatro homens desferiu-lhe um violento soco nas costas.
— Hei! — gritou Ibsen. — Exijo uma explicação! Afinal, quem
são vocês?
Porém, mais uma vez não lhe deram resposta.
Ibsen caminhava trôpego, tentando desvencilhar-se dos seus
captores. Mas aqueles homens pareciam ter punhos de aço e o
arrastavam impiedosamente para diante. Ibsen resolveu mudar de
tática. Acompanhou-os sem oferecer resistência por alguns metros. De
repente, retesou-se e jogou-se para trás. Conseguiu livrar-se do sujeito
à sua direita, mas imediatamente um dos dois outros acertou-lhe uma
coronhada seca na altura dos rins. Por pouco, Ibsen não desfaleceu de
dor.
Começou a cambalear, e mal se deu conta de que já se encontrava
bem perto daquelas construções cupulares. Atravessaram um trecho
pontilhado de pedregulhos, por trás dos quais o vento havia
amontoado verdadeiras dunas de areia seca e amarelada, e finalmente
seguiram por um caminho constituído por elementos plásticos
indentados, perfeitamente encaixados uns nos outros. Pararam diante
de um edifício de uma porta pré-fabricada. A comporta externa abriu-
se para dentro e para cima, sem o menor ruído e sem que alguém
tivesse dado um sinal. Mais um empurrão violento, e Ibsen se
encontrava no interior da eclusa.
As pontas de duas HM-4 continuavam apontadas para seu peito.
Os rostos que Ibsen distinguia por trás dos visores denotavam que
esses homens estavam dispostos a tudo... pensando bem, era essa a
expressão de alguém que não tinha mais nada a perder. Mas como é
que esses sujeitos vieram parar aqui, nesse planeta desconhecido?
Desconhecido? É que Ibsen não sabia da existência de Mura. MURA
— o mundo dos banidos.
5

COM os filtros retangulares ainda baixados, a Orion continuava a


pairar no espaço, a pouco menos de uma unidade astronômica do
pequeno planeta Mura.
— Aposto o que vocês quiserem — disse Mario, encolhendo os
ombros — que esse poeta maluco só está querendo nos pregar um
susto.
As respostas de Helga estavam se tornando cada vez mais
mordazes. Parecia que nesse vôo tinha descoberto os segredos da
ironia.
— Não acredito que Pieter-Paul possua uma mentalidade tão
infantil quanto a sua! — retrucou.
O subcomandante disse, em tom queixoso:
— Basta a gente dizer uma palavrinha contra o ilustre senhor
literato, e pronto — Helga o defende como uma leoa a sua cria!
— Helga... o cavalheiro ficou noivo da filha do ministro para
assuntos extraterranos. E ela não está para brincadeiras, o ministro que
o diga! — comentou Hasso, que vinha acompanhando a conversa
através do intercomunicador de bordo.
Shubashi observou:
— O cara deve ter despertado o instinto maternal de Helga!
— Instinto gozado, esse! — murmurou Mario, com uma expressão
enigmática no rosto. — Esse gajo vai fazer trinta e seis anos amanhã!
Você acha mesmo que ele ainda precisa de paparicos maternos?
McLane largou a mão espalmada sobre a mesa de comando e
gritou:
— Parem de se comportar como cadetes enciumados! Algum
motivo ele tem, para não entrar em contato conosco. Afinal, já
demonstrou que não é burro e deve saber perfeitamente que estamos
preocupados como quê!
Cliff amaldiçoou a hora em que disse "sim!" a Wamsler. Fungando
de raiva, olhou para os rostos ao seu redor. Agora só faltava que
Tamara também se manifestasse. E não deu outra coisa.
— Raciocinou com uma lógica arrebatadora, major McLane —
disse ela, em tom cáustico. — Mas que motivo o nosso querido
hóspede tem, para não responder aos nossos chamados?
Cliff encolheu os ombros.
— Talvez esteja com cãibra na musculatura do queixo, ou
sofrendo de paralisia das cordas vocais. Eu sei lá!
Tamara não sorriu quando respondeu:
— Seu delicioso senso de humor parece-me um pouco impróprio
face â seriedade da situação, caro comandante. O que propõe? O que
podemos fazer?
— Calar a boca! — vociferou Cliff.
Em seguida, agarrou novamente o microfone, girou o
potenciômetro de emissão até o batente e gritou:
— Orion VIII chamando Ibsen! Ibsen... responda!
Os alto-falantes continuaram mudos.
***
Pieter-Paul Ibsen estava em vias de assistir a uma seqüência de
cenas tão empolgantes quanto as que costumava descrever em suas
obras. "Assistir" talvez não fosse bem o termo, "participar" seria mais
apropriado, pois o papel do ator principal havia sido reservado para
ele. Mas isto Ibsen só ficaria sabendo daqui a instantes, para profundo
desgosto seu.
Ibsen nada conseguia reconhecer na sala para a qual o tinham
levado. Estava envolvido pela mais completa escuridão, e seus
esforços para devassá-la foram baldados por um possante foco de luz,
que incidia frontalmente no seu rosto. Ofuscado, cerrou os olhos e
pôs-se a esperar, angustiado. Seus ouvidos registraram um ligeiro
zumbido. Em seguida, uma voz fria atravessou a escuridão:
— Onde se encontra a Orion?
— Nas proximidades de Umbriel — respondeu Ibsen, falando com
dificuldade, pois um cinto largo, preso ao espaldar da poltrona,
comprimia-lhe a garganta. Não estava revelando segredos, pois sabia
que mesmo uma aparelhagem das mais simples conseguiria localizar a
Orion.
— Onde? Quero saber as coordenadas exatas!
— Essas eu desconheço. A nave se desloca constantemente.
Aquela voz continuou a falar. Soava estranhamente impassível,
mas pertencia sem dúvida alguma a um homem de meia-idade.
— Se estiver mentindo, vai se ver em maus lençóis!
Ibsen não respondeu. A pergunta seguinte não se fez demorar.
— Quantos tripulantes leva a bordo?
— Além de mim, mais seis — disse Ibsen, procurando mover as
mãos, que estavam firmemente atadas aos braços da poltrona por meio
de largas faixas metálicas. Ibsen só conseguiu mexê-las alguns
milímetros.
Em torno dele reinava a noite, a escuridão, o negrume total... e
desse negrume emanavam os ruídos causados por respiração e
movimentos ligeiros. Portanto, devia estar rodeado por outros homens,
provavelmente armados. Ibsen lembrou-se que os heróis das suas
histórias nunca paravam de provocar o adversário, aguardando
pacientemente que cometesse um descuido que lhes possibilitaria a
fuga. Talvez ele também pudesse agir dessa maneira.
— Quem está no comando? — voltou a perguntar aquela voz.
Ibsen esboçou um sorriso fraco e respondeu:
— Nem a própria tripulação sabe isso ao certo — disse, louco para
cocar o olho, no qual aquela grande gota de suor havia finalmente
escorrido da sobrancelha.
— Como devo entender isso?
— Além do comandante, há um tenente do SSG a bordo. E os dois
brigam o tempo todo.
— Quem é o comandante? E que posto ocupa?
— O comandante é o major Cliff Allistair McLane — disse Ibsen.
— Sofreu uma punição disciplinar e foi removido para o serviço na
Patrulha Espacial.
Aquela voz não mudava nem de intensidade nem de tom, e
continuou a formular perguntas com a impassividade de uma
gravação.
— Major McLane... aquele que tempos atrás comandava uma nave
das Formações de Combate Rápidas?
— O próprio. Um sujeito encantador, que precisava apenas... mas
que mais está querendo saber? Por acaso acha que tenho cara de
dicionário?
Ibsen considerou sua resposta deveras espirituosa e resolveu
complementá-la com um sorriso de superioridade. Só que não pôde
mirar-se num espelho.
— Limite-se a responder às minhas perguntas. Nada de
comentários irrelevantes. Agora quanto à Orion, ela pode ser
considerada uma nave de combate de grande porte?
— Creio que sim. Realmente é uma nave bastante grande —
respondeu Ibsen. — Mas não sei absolutamente nada a respeito do
armamento de que dispõe.
— A que tipo pertence?
— Se não me engano, ao tipo alpha III; foi equipada com um
dispositivo especial para a coleta de espórios. A tripulação ficou um
bocado aborrecida quando soube que teria que percorrer o cosmos
com aqueles troços disformes e feios pendurados no casco inferior.
Silêncio. Depois aquela voz prosseguiu:
— Isso é bom... isso é até bom demais! O senhor agora vai falar
com a Orion. Só para sua informação: sabemos em que freqüência
opera e fomos nós que cortamos a ligação radiofônica entre a Orion e
a sua ridícula nave auxiliar.
— Ah! Então foi o senhor?
— Duvida disso? — perguntou a voz, que vinha de algum lugar
bem em frente a Ibsen.
Ibsen sacudiu a cabeça.
— Ainda bem. Então o senhor vai contar ao major McLane que se
viu forçado a realizar um pouso de emergência em Mura por causa de
um defeito nos controles manuais.
— Mura? — quis saber Ibsen. — Quem ou o que é Mura?
— Este planeta. Chama-se Mura.
— E o que fazem aqui?
O dono daquela voz deu uma risada curta e contida.
— Eu faço as perguntas — disse. — O senhor apenas responde.
— Com imenso prazer! — retrucou Ibsen, já meio rebelde.
Espantou-se que não houve revide à sua provocação.
— Agora preste atenção! Explique ao major McLane que a Lancet
não está em condições de decolar com força própria. Depois peça-lhe
para pousar em Mura a fim de recolhê-lo a bordo. Entendeu isso
direitinho?
Durante alguns instantes, Ibsen manteve-se em silêncio. Em
seguida respondeu, algo relutante:
— Entendi, sim; afinal não sou nenhum analfabeto!
— Qual é a sua profissão?
— Sou escritor.
Alguém soltou uma breve risada e aquela voz fez uma observação
injuriosa que, isso Ibsen jurou a si mesmo, não passaria impune. Esta
ofensa clamava por vingança e, assim que as circunstâncias o
permitissem, Ibsen iria se vingar de uma maneira terrível... a voz havia
dito: "E desde quando isso é considerado uma profissão?"
Qual uma aranha pendurada no seu tênue fio, um microfone
desceu da escuridão acima de Ibsen, e parou rente aos seus lábios. O
suor lhe escorria pelo rosto e era absorvido pela gola da reluzente
jaqueta.
— Está disposto a falar?
Ibsen encolheu os ombros fracamente.
— Muito bem, então vai falar. Mas antes que comece é preciso que
fique a par de mais um pequeno detalhe — disse a voz. — Dois
projetores de raios Omicron estão apontados para o seu crânio. Uma
vez ativados, estes finíssimos raios, que não deixam qualquer vestígio,
vão lhe causar dores cruciantes. São especialmente eficazes para irritar
os nervos subcutâneos. Quer uma pequena demonstração?
O dono da voz estalou os dedos. Dois aparelhos esféricos
aproximaram-se lentamente pelos lados da cabeça de Ibsen, até que as
curiosas protuberâncias de que eram providos estavam quase
encostadas nos ossos malares do apavorado escritor. Um leve zumbido
emanava das duas esferas e fazia vibrar os tímpanos. Por um breve
instante, dois raios finos e esbranquiçados saltaram das extremidades
dos projetores e tocaram levemente a pele de Ibsen. Uma dor quase
insuportável varreu-lhe o rosto. Sentiu o violento tremor convulsivo
do nervo trigêmeo e teve a impressão que todos os seus dentes tinham-
se transformado em magnésio incandescente. Ibsen soltou um gemido
alto, e ouviu novamente aquela voz:
— Quentinho, não é? E olhe que os projetores ainda estavam a
quinze milímetros da sua pele. Mas isso pode ser facilmente corrigido.
Ibsen estava sentindo frio; o suor na sua testa tornou-se gélido.
— Vou falar com McLane — sussurrou, com a boca em brasas. —
Falo tudo que o senhor quiser.
Os dois projetores afastaram-se do rosto de Ibsen.
— Ótimo! — disse aquela voz odiosa. — Então estamos
entendidos. Creio que não preciso salientar o que vai acontecer se
tentar prevenir Cliff McLane.
***
Um silêncio inquietante reinava na cabine de comando da Orion.
As seis pessoas que ali se encontravam, entregues a pensamentos
sombrios, já haviam enfrentado um sem-número de perigos, e vencido
todos os desafios. Mas agora estavam se defrontando com um inimigo
que não conheciam e, portanto, não podiam atacar. Cliff sacudiu a
cabeça, desalentado.
— É totalmente inútil insistir! — disse, em tom decidido.
— Você sabe — respondeu Mario calmamente — que eu topo
qualquer parada. Já resolveu o que vai fazer?
— Alguma coisa deve ter acontecido a ele durante o pouso.
Atan acenou com a cabeça, concordando:
— É bem provável.
— Vamos buscá-lo — decidiu Cliff. — Atan! Quero as
coordenadas exatas de Mura! O astronavegador procurou os dados no
manual e os forneceu ao subcomandante, que já estava postado diante
do teclado do computador digital.
— Hasso?
— Sim, o que é? — o rosto estreito do engenheiro de bordo
apareceu na tela do videofone.
— Como é que estão os propulsores?
— Na mais perfeita ordem: tanto os meus quanto os da nave!
Cliff esboçou um leve sorriso. Helga Legrelle notou o sinal
luminoso na sua mesa e rapidamente ligou um amplificador.
No mesmo instante, voltaram a ouvir a voz de Ibsen, alta e clara;
não havia mais a menor interferência.
— Pieter-Paul Ibsen chamando a Orion VIII. Comandante
McLane... por favor, responda!
A tripulação entreolhou-se, surpresa. Cliff deu um suspiro de
alívio e respondeu, quase gritando:
— Até que enfim, Ibsen! O que foi que aconteceu? Ficou uma
eternidade sem dar sinal de vida!
A voz de Ibsen soava diferente. Ao menos não denotava mais
aquele tom autoconfiante, ao qual a tripulação já se havia habituado.
— Sinto muito, comandante, mas vou ter que lhe pedir para pousar
em Mura. As coordenadas relativas neste cubo espacial são dezessete-
quatro-oito.
A revelação contida nessa resposta acabou com a sensação de
alívio de McLane.
— Que diabo está fazendo em Mura? — berrou. — Como é que
foi parar aí?
— O controle manual emperrou, comandante. O senhor precisa vir
me buscar.
McLane começou a ficar desconfiado.
— Espere um pouco! — gritou. — Por acaso está ferido? Por que
fala de maneira tão esquisita? Há algo de errado?
Um sucessão de imagens passou diante do seu olho mental: Ibsen,
suando em bicas, procurando consertar algum defeito... Ibsen,
levemente ferido, tentando sair de baixo dos escombros da Lancet...
decididamente, algo de anormal estava se passando. Por que Ibsen
hesitava toda vez que ia dar uma resposta? E por que não parava de
ofegar? Ao menos uma das muitas dúvidas podia ser dirimida logo, e
McLane perguntou:
— Ibsen! Está falando de onde? Da Lancet?
Desta feita, a voz de Ibsen soou calma.
— Não, comandante; estou falando da Administração Central da
colônia em Mura.
Cliff lançou um olhar significativo para Tamara. A agente do SSG
acenou e fez um gesto desolado com a mão.
— Há mais alguma coisa, Ibsen? Ou está tudo bem?
Mais uma vez Ibsen hesitou. O que McLane não podia ver, e muito
menos imaginar, foi isto: aqueles projetores redondos voltaram a
emergir da escuridão e se aproximaram novamente do rosto de Ibsen,
lançando pequenas descargas faiscantes pelos minúsculos bocais...
longe ainda do seu alvo, mas chegando cada vez mais perto...
Antes que fosse tarde demais, Ibsen apressou-se em responder:
— Está tudo em ordem, comandante. Desligo.
Imediatamente os projetores pararam de soltar faíscas e
desapareceram de novo na escuridão. Com uma frieza espantosa, a
voz disse:
— Meus parabéns, Ibsen! Portou-se esplendidamente!
— Obrigado, seu patife! — gemeu Pieter-Paul.
Por um instante, parecia que aquele homem estava rindo. Depois,
disse em tom ríspido:
— Já que colaborou satisfatoriamente, merece uma pequena pausa.
Podem levá-lo!
Alguém acendeu a luz. Finalmente Ibsen teve ensejo de examinar
o local do seu padecimento. Viu que se encontrava numa sala de
forma octogonal, cuja parte central era ocupada por uma instalação,
também octogonal: todo o contorno externo era formado por uma
rampa, pela qual se podia subir facilmente à parte interna, uma
plataforma anular que se erguia talvez meio metro acima do chão. O
vazio no centro dessa plataforma dava acesso a um rebaixo no piso e
sobre esse piso rebaixado estava colocada a poltrona à qual Ibsen tinha
sido amarrado. Com este arranjo, a poltrona ficava bem abaixo do
nível da plataforma, e este fato incitou a curiosidade inata de Ibsen.
Mas não teria tempo para tentar descobrir a razão de ser dessa
estranha disposição.
Dois dos homens, que o haviam feito prisioneiro, estavam agora
tratando de desamarrá-lo. Ibsen reconheceu-os imediatamente, apesar
de não trajarem mais os ternos pressurizados, que tinham substituído
por uma espécie de uniforme negro. Porém Ibsen jamais esqueceria
aqueles rostos empedernidos. Arrancaram-no violentamente do
assento, mas logo viram que aquele homem não estava em condições
de caminhar sozinho. Ibsen atravessou a sala com passos trôpegos,
amparado pelos dois verdugos. A dor, que martelava as suas têmporas,
recrudesceu; seu rosto parecia arder em brasas, mas quando o apalpou,
verificou que estava gélido. Ibsen não se lembrava mais da atitude
impecável dos seus heróis imaginários, com os quais costumava se
identificar. Não passava de um indefeso ser humano, à mercê do
terror.
***
McLane encontrava-se no camarote de Tamara, fitando-a com ar
pensativo.
— Não ia me fazer uma pergunta? — lembrou ela, a meia voz.
— Dê uma olhada nas prescrições do SSG, e depois me diga se
posso ou não pousar em Mura.
Tamara não teve necessidade de consultar o regulamento;
conhecia-o de cor e salteado.
— Fez bem em perguntar, major. Com exceção dos órgãos do
Serviço de Segurança e das naves de abastecimento, ninguém mais
pode pousar em Mura, a não ser que disponha de uma autorização
especial expedida pela chefia e endossada pelo próprio coronel Villa.
O texto não dá margem a qualquer dúvida: sou obrigada a lhe proibir
o pouso em Mura.
Cliff passou a mão pelos cabelos, refletindo.
— Obrigado — disse, pausadamente — era isso que eu queria
saber.
— Por outro lado, Villa vai se encarregar pessoalmente de me
arrancar a cabeça, se voltarmos sem Ibsen. E o senhor também não vai
ter muitos motivos para rir.
— Menos do que tenho agora, é impossível — respondeu Cliff,
acenando sombriamente. — Nas circunstâncias, quais são as suas
ordens, tenente?
Aborrecida, Tamara disse:
— Só respondo a perguntas objetivas, comandante!
— Muito bem. Então vou lhe fazer uma: nós a bordo não sabemos
praticamente nada a respeito da vida em Mura. Se dermos crédito aos
boatos, deve ser um inferno. É verdade isso? Dizem que Mura não
passa de um vasto estabelecimento penal, no qual os detentos ficam
sujeitos a uma disciplina férrea, sofrendo as mais severas restrições,
etc., etc.
Tamara manteve-se calada, e depois apontou para a tela que havia
sido instalada na parede externa do seu camarote, na abertura
normalmente destinada à vigia. Viram a superfície do planeta, que se
aproximava lentamente: seca, amarelada e muito pouco hospitaleira.
— Bem — começou Tamara. — Na verdade, o lugar não é lá dos
mais atraentes, mas as condições de vida dos deportados são bastante
boas. Têm tudo de que precisam, e podem circular livremente por todo
o planeta. Até uma espécie de administração própria lhes foi
concedida. Em resumo, recebem um tratamento humano.
McLane balançou a cabeça; discordava dessa afirmação.
— Considera humano, banir os homens do seu torrão natal, de
Terra?
— Antigamente eram simplesmente executados ou então
trancafiados em penitenciárias para o resto das suas vidas. Em
comparação, viver como expatriado num outro planeta deve ser até um
prazer. Pessoalmente, preferia estar em Mura do que morta.
— Acabou de afirmar que antigamente esses indivíduos eram
condenados à morte ou à prisão perpétua. Quer dizer que esse
adorável lugar está fermentado por bandidos da pior espécie?
Tamara sacudiu a cabeça com veemência.
— Lá não há apenas criminosos na acepção corriqueira da palavra.
Há também elementos indesejáveis, pessoas capazes de colocar em
perigo a ordem interna. Infelizmente, existe um grande número de
celebridades entre os deportados, gente que não conseguiu se
enquadrar e usou sua inteligência para fomentar a discórdia e coisas
do gênero.
Cliff disse por cima do ombro:
— Então Ibsen está no lugar certo! Não lhe faltam qualificações
para ser admitido nessa agremiação, senão vejamos: uma celebridade
ele é, sem dúvida alguma; e um indesejável também, ao menos a
bordo da Orion, basta lembrar o que passamos nestas últimas horas!
De repente, o rosto de Atan Shubashi apareceu na pequena tela do
intercomunicador de bordo.
— Cliff?
— Sim, Atan, o que há? — perguntou Cliff rente ao microfone.
— Estamos nos aproximando da zona de segurança e temos que
pousar. A Lancet e parte da colônia já estão nas telas.
Cliff abriu rapidamente a porta e gritou:
— Aprontar para o pouso! Já estou indo!
Em seguida, saiu na disparada em direção ao elevador.
Obedecendo aos comandos inaudíveis do computador digital, a
nave se aproximou lentamente da superfície do planeta e baixou ao
solo, bem perto da Lancet. Ninguém a bordo podia imaginar que este
pouso fosse representar algo mais que uma mera operação de rotina.
Cliff virou a chave principal e, com isso, desligou todo o sistema
propulsor.
— Muito bem — disse — primeiro recolhemos a Lancet e depois
vamos apanhar o poeta lá na Administração Central.
— Entendido — respondeu Hasso e Mario, quase que ao mesmo
tempo.
6

— MANOBRA de pouso concluída! — avisou Shubashi.


— OK, Atan, obrigado! — disse Cliff. — Atenção, tripulação!
Vestir trajes espaciais! Baixar elevador telescópico! Preparar
desembarque! Atan e Helga, vocês vão ficar a bordo como vigias. Os
demais...
Neste instante, Helga Legrelle o interrompeu, apontando para o
aparelho radiofônico.
— Cliff! Parece que alguém quer falar com a gente!
McLane calcou uma tecla na sua mesa, conectando todos os alto-
falantes ao receptor, inclusive aqueles embutidos nos capacetes.
Uma voz fria e impessoal fez-se ouvir.
— Administração Central Mura chamando comandante McLane a
bordo da Orion VIII! Está me ouvindo, major?
McLane respondeu em voz alta:
— Recepção perfeita! Pode falar!
— Por favor, ligue também as telas; sintonize as telas; sintonize o
canal 90. Temos algo para lhe mostrar!
Surpreso, Cliff ajustou o seletor no canal indicado e depois ligou a
tela de reserva do videofone. E no mesmo instante Cliff recuou,
espantado. De repente, o impacto da imagem que se estabilizava à sua
frente quase o derrubou. Ibsen! O rosto daquele homem enchia
praticamente a tela toda. Os olhos injetados estavam cravados nas
lentes da câmara. O suor que brotava na testa escorria lentamente pela
face, contornando o nariz saliente e a boca distorcida. Ibsen respirava
com dificuldade e notava-se que o menor movimento devia causar-lhe
dores cruciantes. Dois estranhos projetores, que pareciam flutuar de
um lado e do outro da sua cabeça, emitiam finos e faiscantes raios
esbranquiçados, que mal lhe tocavam a pele do rosto. Mas isso devia
ser o suficiente, pois ao mais leve contacto, Ibsen voltava a estremecer
de dor. Seus gemidos baixinhos adquiriram um tom agonizante.
— Ibsen! — sussurrou McLane, atônito. — O que...?
Aquela voz incisiva e fria interrompeu-o imediatamente.
— Major McLane, sem dúvida já percebeu em que situação pouco
invejável se encontra o seu hóspede. O senhor e a sua tripulação vão
agora desembarcar da Orion. Desarmados e um de cada vez. E sem
oferecer a menor resistência, é claro. Basta um movimento suspeito, e
seu amigo aqui vai se consumir em brasas. Ao menos, terá essa
impressão. Entenderam as instruções? Estou esperando!
— Uma pergunta, antes que me mexa: quem é o senhor? —
perguntou Cliff com voz dura.
Os outros membros da tripulação acotovelavam-se atrás dele e
fitavam horrorizados aquele quadro que os canais radiofônicos
transmitiam.
— Nada de discussões! — avisou aquela voz incisiva.
— Mas... — insistiu McLane.
— E não tente deixar alguém escondido a bordo. Graças à pequena
instalação, que está tendo o privilégio de ver em pleno funcionamento,
obtivemos todas as informações que julgávamos necessárias.
Sabemos, portanto, quantos são. E agora chega de conversa; andem
logo! — os alto-falantes estalaram e a imagem se extinguiu. Por entre
os dentes cerrados, Cliff disse:
— Do comandante para a tripulação: desembarquem como ele
ordenou; um de cada vez, e sem armas. Não tentem resistir. Eu vou
por último.
Em silêncio dirigiram-se ao elevador e desceram. Pouco depois, a
plataforma do elevador telescópico tocou o solo de Mura e a comporta
interna começou a se abrir. Ninguém falava. McLane estava possuído
por um ódio frio, e jurou a si mesmo que, na primeira oportunidade,
esmagaria aqueles vermes sem a menor contemplação. Apesar de
tudo, havia um certo ar solene a revestir aquela cena: a Orion VIII
pairava majestosamente dez metros acima do solo, com aqueles filtros
disformes recolhidos. Qual uma tromba metálica, o elevador
telescópico havia baixado sobre o pequeno areai, em que, poucos
minutos atrás, ainda se encontrava pousada a Lancet, a esta altura já
abrigada novamente no bojo da nave.
Doze homens em trajes espaciais leves, de cor cinza-claro,
formavam um semicírculo em torno da nave, as armas apontadas para
a comporta externa da pequena eclusa do elevador. Estava
escurecendo rapidamente mas o crepúsculo difuso ainda fornecia
luminosidade suficiente. Nos alto-falantes dos capacetes, a tripulação
ouvia o murmúrio dos homens que os esperavam lá fora. A um sinal
de Cliff, Mario apertou um botão e a comporta externa abriu-se
lentamente. Tamara foi a primeira a pisar naquela areia escura.
— Mãos ao alto! — ordenou uma voz. Tamara ergueu os braços,
mãos à altura da cabeça. Um dos doze homens avançou, agarrou-a
pelo ombro, encostou-lhe a ponta da arma nas costas, e empurrou-a
em direção a um ponto de luz nos fundos, que cintilava fracamente
através da penumbra.
— Eu disse: mãos ao alto! — repetiu aquela voz.
Um atrás do outro, e cada qual acompanhado por dois guardas
armados, dirigiram-se àquele foco de luz. Quando chegaram perto,
viram que era o refletor central de uma cúpula, sob a qual
proliferavam plantas terranas.
A porta metálica se abriu. A tripulação procurou se comunicar por
meio de olhares e gestos furtivos; mas logo viram que qualquer
tentativa de reação fracassaria, pois mal conseguiam se mexer naquela
apinhada câmara de pressurização. E assim, os poucos segundos
preciosos passaram inaproveitados. Depois, a comporta interna se
abriu, desvendando um corredor largo e baixo, iluminado por
luminárias embutidas nas paredes laterais, e em cuja extremidade
oposta se delineava a porta de um elevador. Homens em uniformes
pretos e fortemente armados estavam postados de ambos os lados da
porta. Mantinham-se em silêncio e não davam a impressão de serem
meras figuras decorativas.
Aos empurrões, a equipe da Orion foi obrigada a entrar no
elevador. Com os guardas que a acompanharam, havia talvez umas
doze pessoas na cabine, que começou a descer rapidamente. Segundos
depois, parou e a porta se abriu com um chiado agudo. Até agora, os
membros da tripulação não haviam proferido uma única palavra.
Estavam gravando na memória todo passo que davam, todo marco
característico que viam, para que, mais tarde, não errassem o caminho
de volta.
Escoltados por dois guardas armados, um de cada lado, os seis
prisioneiros começaram a percorrer uma extensa galeria. Assim,
caminharam uns quarenta metros, quando receberam ordem de parar,
em frente à entrada de um corredor secundário, que ramificava para a
esquerda. Cliff era o último da fila e viu Hasso se virar rapidamente
para ele, com um olhar alarmado. No mesmo instante, Hasso recebeu
um golpe nas costas que o fez cambalear.
— Cliff! — exclamou, ofegante — estão querendo nos separar!
Novamente o guarda o golpeou, desta vez com maior violência.
— Seus patifes miseráveis! — esbravejou Hasso — vou mostrar a
vocês com quem estão lidando!
E com uma rapidez espantosa para um homem da sua idade,
desferiu um tremendo soco no estômago do guarda à sua direita. O
homem tropeçou e se chocou contra a parede. Lentamente escorregou
ao chão. Antes que Hasso pudesse esboçar qualquer reação, foi
atingido na altura dos rins pelo pesado projetor do outro guarda. Hasso
quase desfaleceu de dor.
— Não resista, Hasso! — gritou Cliff. — É inútil!
Depois perdeu sua tripulação de vista, pois os homens que o
vigiavam obrigaram-no a penetrar naquele corredor secundário. Cliff
reparou que se tratava de uma passagem estreita e mal iluminada;
além disso, o traçado curvo não permitia ver para onde levava. Os
homens estavam com pressa e caminhavam a passos largos. Cliff ia na
frente, sob a ameaça constante daquela arma que um dos homens
mantinha firmemente pressionada contra sua espinha. McLane ainda
vestia o pesado traje espacial por cima do macacão de bordo. Mas
como lhe haviam ordenado que soltasse o capacete e desligasse os
pequenos agregados supridores, ficou sujeito às condições da
atmosfera ambiente e começou a suar profusamente. Sentiu-se algo
aliviado quando, finalmente, avistou uma espécie de ante-sala, na qual
aquela passagem curvilínea terminava. Dez metros separavam Cliff
daquela larga porta de correr, em direção à qual o estavam
empurrando, quando a porta ao lado se abriu. Antes que Cliff pudesse
lançar um olhar naquele recinto, teve o campo de visão obstruído por
três vultos que, por um instante, ocuparam o vão da porta. Dois
daqueles vultos eram guardas que, com a arma na mão, impeliam o
terceiro para diante. Cliff estarreceu quando viu que era Ibsen, um
Ibsen alquebrado, cambaleante, que mal conseguia manter-se em pé.
— Ibsen...! —cochichou McLane.
— Comandante.
Cliff percebeu a dificuldade com que Ibsen sussurrava. Bastou um
relance para notar que este homem tinha chegado ao fim de sua
resistência. Não apresentava o menor ferimento visível, mas McLane
sabia que os raios Omicron eram capazes de infligir torturas terríveis
ao sistema nervoso. Praticamente não havia sensação que não pudesse
sugerir ao cérebro: calor e frio, ferimentos de todos os tipos. E isto
sem deixar qualquer vestígio na pele que mal tocavam. O olhar que
Ibsen lançou para McLane fez o comandante estremecer. A expressão
daqueles olhos revelava toda uma gama de emoções, todas as
sensações angustiantes de que era possuído: desespero profundo,
sentimento de culpa e a consciência de ter fracassado. Com um
violento empurrão, obrigaram Ibsen a retomar sua caminhada trôpega.
— O que foi que vocês fizeram com ele, seus covardes? — disse
McLane com voz rouca. Sua garganta ardia e somente um diminuto
resto de autodomínio impediu que Cliff se lançasse a distribuir socos e
pontapés a torto e a direito. Sabia que isto não teria melhorado a sua
situação em nada.
— Cale a boca! E vá andando!
"O vocabulário desses verdugos não parece ser dos mais ricos",
pensou McLane num leve acesso de humor macabro.
Pressentia que, dentro de alguns minutos, ficaria sabendo mais a
respeito dessa extorsão misteriosa. Não se enganou... Flanqueado
pelos dois guardas, McLane parou diante de uma escrivaninha. Por um
instante, ainda ficou olhando, curioso, para aquela estranha instalação
que lhe havia atraído a atenção assim que entrou nessa sala octogonal:
com a parte externa em rampa, uma plataforma anular circundava,
meio metro acima do piso, um rebaixo no qual havia uma cadeira de
espaldar alto com braços reforçados. Cliff encolheu os ombros e
encarou seu vis-à-vis.
O homem refestelava-se na sua poltrona, as pernas esticadas sob a
mesa. Em cima dela, só havia um videofone e uma barra de teclas de
controle. Os dois homens estudaram-se em silêncio, frios e calmos,
como duas feras antes da luta fatal. Mas por trás desse diálogo mudo
ardia a brasa do ódio. McLane não deixou que a emoção lhe turvasse a
lucidez do raciocínio. Agora conhecia seu inimigo: um homem que já
não era tão poderoso como antes, quando o anonimato o tornava
praticamente intangível. Devia ter uns cinqüenta anos. O cabelo,
bastante ralo, apresentava fortes entradas, que se estendiam além das
orelhas. O que cedia expressão extremamente inteligente àquele rosto
eram os olhos cor de âmbar, nos quais fulgia o brilho do fanatismo. O
homem trajava uma jaqueta escura, de corte bastante simples, e calças
da mesma cor. Um colarinho alto cobria-lhe o pescoço.
— Bem-vindo a Mura, comandante McLane!
McLane não respondeu e mais uma vez fitaram-se em silêncio.
— Quem é o senhor? — perguntou Cliff, finalmente, a meia voz.
O homem parecia achar graça na pergunta e ergueu as
sobrancelhas.
— Meu nome é Tourenne.
Cliff recordou-se que, muitos anos atrás, este homem fora banido
de Terra por ter se envolvido num rumoroso incidente. Na época, o
caso tinha causado o maior alvoroço; disso, Cliff também se lembrou.
Só não conseguiu se lembrar do que realmente tinha ocorrido.
— Seu nome não me diz muita coisa — observou, calmamente.
— Vai mudar de opinião, isso eu lhe garanto! — prometeu o outro
com um sorriso diabólico nos lábios retorcidos.
— Para que serve tudo isso aí?
Com um gesto breve, Cliff apontou para as paredes da sala
octogonal e para aquela estranha instalação no centro.
Os dois guardas ajudaram-no a despir o traje espacial e Tourenne
pôs-se a examinar a plaqueta de identificação que Cliff ostentava no
lado direito do macacão de bordo.
— Tenha a bondade! — disse Tourenne, de leve.
Cliff não se deixou iludir pelo agradável tom de conversação que
aquele homem ardiloso estava empregando agora. Tourenne fez um
gesto rápido com a mão.
— Por favor, sente-se!
Cliff virou-se e descobriu, encaixada num recorte da rampa
externa, a segunda cadeira daquela instalação.
Sentou-se devagar e com cuidado. Examinou por instantes aquelas
largas fitas de aço e depois recostou-se.
Tourenne prosseguiu:
— Seu amigo Pieter-Paul passou algumas horas bastante
desagradáveis nessa poltrona; tenho certeza de que foram as mais
desagradáveis que já passou em toda a sua carreira literária. Sentiu na
própria carne um pouco daquilo que faz os seus heróis sofrerem a toda
hora. Se aprendeu a lição, nunca mais vai esquecer a bruta diferença
que existe entre teoria e prática.
Com um sorriso sarcástico, Cliff observou:
— Possui uma voz extraordinária, meu caro senhor Tourenne.
Tourenne respondeu com uma mesura irônica.
— Uma voz — continuou McLane — que, pelo visto, o senhor
não se cansa de ouvir. Porque até agora só falou, falou, falou, e não
disse nada.
Tourenne engoliu o insulto, sem mudar de expressão. Apenas o
brilho daqueles olhos frios tornou-se mais ameaçador. Voltou a falar:
— Estou certo de que não precisamos submetê-lo a esse
tratamento, major; afinal, é reputado como um homem inteligente.
McLane manteve-se em silêncio. Estava pensando num meio de
provocar Tourenne. Este homem era tudo, menos um fanfarrão
presunçoso. Ao contrário, era um adversário temível, que urdia seus
planos com uma lógica cristalina. Era preciso desnorteá-lo de alguma
maneira; caso contrário, a Orion não tinha a menor chance de escapar
incólume desse lugar.
— O que lhe dá o direito de nos aprisionar e ameaçar nossa
integridade física? — perguntou McLane rispidamente.
— Devagar, comandante, vamos com calma. Já disse que me
chamo Tourenne; mas isso agora não vem ao caso. Tenho imenso
prazer em poder dar-lhes as boas-vindas.
— Pare com essa baboseira — disse McLane.
Começou a vislumbrar, vagamente, o que Tourenne queria e,
também, para quê.
— O que está se passando aqui? Por enquanto ainda estou
inclinado a considerar seu procedimento como uma pilhéria de
extremo mau gosto. Pelo que me consta, o planeta Mura é uma colônia
de desterrados e não um depósito de armas.
Tourenne sorriu e disse, concordando:
— Tem inteira razão; pode falar sem rodeios, major. Mura é um
mundo dos banidos, dos expatriados.
Cliff encolheu os ombros e respondeu em tom provocador:
— E quem são esses banidos que aqui gozam de ampla liberdade e
condições de vida humana? São homens que, pelos crimes que
cometeram antigamente, teriam sido condenados à morte ou à prisão
perpétua.
Tourenne concordou novamente; apenas seu sorriso tornou-se mais
gélido.
— Seja como for, fato é que Mura continua sendo uma colônia de
exilados. Mas não mais por muito tempo.
McLane apontou para a HM-4 de um dos guardas.
— Como conseguiu apoderar-se dessas armas?
Tourenne deitou a cabeça no ombro e entrelaçou as mãos em cima
da mesa.
— Uma pergunta inteligente, comandante.
— Quisera poder dizer a mesma coisa das suas explicações,
Tourenne!
Cliff reparou que tinha subestimado o adversário. Não era tão fácil
abalar o autodomínio desse homem. Ele, Cliff, já teria reagido
violentamente. Portanto, era preciso reforçar a dose.
— Realmente, essa foi a maior dificuldade que tive que resolver
durante a minha longa vida. Levamos anos para descobrir um ponto de
penetração nas repartições de Terra. Mas um belo dia, encontramos o
homem certo: um chefe de seção na Secretaria Geral do
Abastecimento Planetário.
— Então não entendo por que não requisitou logo uma porção de
naves espaciais! — a ironia dessa observação não produziu o efeito
que Cliff esperava, pois Tourenne respondeu com a maior seriedade.
— Bem que tentamos, mas infelizmente nosso homem não tinha
competência para tanto.
Com um sorriso insolente, McLane disse:
— Fez tudo errado. Devia ter começado na cúpula, não no escalão
inferior. Qualquer homem medianamente inteligente sabe disso. Mas
vai ver que suas faculdades mentais não são lá essas coisas.
Recostou-se e riu abertamente na cara de Tourenne.
Com ar pensativo, Tourenne disse:
— Admiro a sua coragem, comandante. Se bem que, no momento,
não vejo o que espera conseguir com suas intermináveis provocações.
— Modéstia à parte, mas todos os astronautas são terrivelmente
corajosos — respondeu Cliff, impassível. — Mas... continue a contar
sua história. Estou fascinado!
— Descobrimos que esse homem era venal, além de viciado.
Assim, começamos a suborná-lo com pílulas de euforita, em troca das
quais deveria nos fornecer armas energéticas. Mas quando chegou a
hora de agir, ficou com medo e quis tirar o corpo fora. Porém,
percebeu que já era tarde demais para recuar. Sabia que bastava uma
palavra nossa para que ele próprio fosse deportado para Mura. Diante
dessa alternativa nada agradável preferiu continuar a prestar sua
valiosa colaboração.
McLane prometeu, em tom severo:
— Esse sujeito não vai lhe enviar suprimentos por mais muito
tempo. Nem mesmo rações enlatadas. Assim que pousar em Terra,
vou agarrá-lo com minhas próprias mãos!
— Creio que isso vai ser um pouco difícil! — respondeu
Tourenne, com um sorriso de infinita superioridade. — Não posso
imaginar que seja tão ingênuo, a ponto de acreditar que vou deixá-lo
voltar belo e fagueiro para Terra! Se foi isso que pensou, pense de
novo, pois jamais vai rever aquele maldito planeta de carrascos!
Cliff não tinha certeza de coisa alguma, mas conseguiu emprestar
um tom confiante à sua voz quando respondeu:
— Pra falar a verdade, um pouso em Terra nos próximos dias faz
parte dos meus planos imediatos. Sabe o que arrisca se nos manter
presos aqui?
— Justamente isso não oferece risco algum!
— Não consigo acompanhar seu raciocínio — disse o comandante.
— Presos como estão, o senhor e sua tripulação não representam
qualquer ameaça para mim. Portanto, não estou arriscando nada,
mantendo-os como prisioneiros. Por outro lado, se eu os libertasse, aí
sim, eu estaria arriscando tudo. E sem a menor necessidade. Acha
mesmo que eu cometeria uma besteira dessas?
— Afinal de contas, o que pretende fazer? — perguntou Cliff e
cruzou as pernas.
Seguiram-se alguns momentos de profundo silêncio. Depois
Tourenne disse, os olhos fixos num ponto à distância:
— Hoje é um dia memorável. Para mim e para Mura. Nossos
esforços não foram em vão. Trabalhamos com perseverança na
elaboração do nosso plano, um plano que tornaríamos realidade
quando o dia, tão ansiosamente esperado, chegasse. Finalmente,
chegou. E considero um sinal alentador do destino que tenha sido
justamente o senhor, major McLane, quem caiu na nossa armadilha!
— Socorro! — exclamou Cliff. — Acaba me estourando os
tímpanos com sua espantosa loquacidade! — depois, perguntou
baixinho: — Afinal, o que quer de mim?
— Pensei que já soubesse. A Orion VIII, é claro!
Cliff começou a rir.
— Mais nada?
— Não. Só queremos a nave.
— Continue, sou todo ouvidos — Cliff sacudiu a cabeça,
incrédulo.
— Naturalmente não foi nada fácil convencer meu pessoal que,
para atingir o nosso objetivo, era preciso que nos armássemos de
muita paciência e evitássemos qualquer ação irrefletida. Disse-lhes
que provavelmente a espera seria longa, e expliquei-lhes porque não
fazia sentido algum tentar capturar uma das naves de abastecimento
que nos visitavam a intervalos regulares.
Tourenne parecia sentir um prazer diabólico em relatar os detalhes
do seu misterioso plano a um estranho. Cliff convenceu-se que tinha
diante de si um louco. Não um demente e sim, um louco inteligente.
Tourenne prosseguiu:
— Só poderíamos iniciar a operação planejada na hora em que, por
obra do acaso ou pela lei da probabilidade, conseguíssemos deitar as
mãos numa nave espacial moderna e de grande porte. Portanto, só nos
restava esperar... esperar. E ficar à espera de alguma coisa em Mura é
uma experiência enervante. Mas valeu a pena. Conseguimos apresar a
nave que queríamos. E logo a Orion VIII! Confesso que jamais sonhei
com essa possibilidade!
— Para que precisa da Orion? — perguntou Cliff, controlando-se
com dificuldade.
— Para empreender uma viagem, major McLane. Apenas uma
viagem de ida. A não mais ver, entendeu?
Cliff tentou argumentar.
— Pode se esconder onde quiser, Tourenne; garanto que a frota vai
descobrir seu paradeiro!
— Não vai, não, major, isso eu garanto! Em breve Mura vai voltar
a ser o que era, antes de se tornar o exílio dos cidadãos indesejáveis de
Terra: uma insignificante bola parasita perdida na vastidão do
universo.
— Parece que já leu as obras completas de Ibsen! — comentou
Cliff, com ironia.
— Não foi preciso. Entendeu meu plano?
— Afinal, para onde pretende ir? Para a nebulosa de Andrômeda?
Se for o caso, desista. Nem mesmo a Orion consegue chegar lá. Não
pense que vai ter êxito onde homens infinitamente melhores que o
senhor fracassaram. Até hoje, todos tiveram que voltar com o rabo
entre as pernas.
— Para Terra não passamos de lixo... — começou Tourenne.
— O que é perfeitamente compreensível!
— ...talvez reconheçam o nosso valor em outras paragens. Não
tenho a menor dúvida de que oferecemos um preço de compra
bastante convidativo. Afinal, um cruzador ligeiro...
Cliff estarreceu de pavor.
— Não está insinuando que vai procurar os extrater...?
Tourenne acenou afirmativamente.
— Estou, sim, McLane. E por que não? Cliff respirou
profundamente, estendeu os dedos e começou a enumerar:
— Não temos nada em comum com esses extraterranos. Isso está
mais do que provado e é do conhecimento geral. Ninguém sabe de
onde vieram e onde vivem. Só sabemos que infestam o espaço além
das regiões da esfera espacial que constitui o domínio de Terra.
Sabemos ainda que conseguem viver no vácuo ou em atmosferas
isentas de oxigênio, pois esse gás os mata instantaneamente, enquanto
que para nós, para mim e para o senhor, Tourenne, ele se constitui na
própria fonte da vida.
"Não falam o nosso idioma. Quanto à sua tecnologia, continua
sendo um mistério para os nossos cientistas, apesar dos esforços
incríveis com que vêm tentando, já faz mais de ano, desvendar os
segredos daquelas naves espaciais que capturamos em MZ-4.
"Seja sensato, Tourenne! Como pretende entabular negociações
com eles, se não lhes conhece a língua? Se conseguir enviar uma única
palavra que eles entendam, será um milagre!"
A argumentação de Cliff não surtiu o menor efeito. Tourenne
continuou tão seguro de si próprio como antes. Retomou a palavra:
— Eu sei, major, que para o senhor e gente da sua laia seres
extraterranos não passam de feras e animais repelentes. Até de "sapos"
já foram chamados!
— Criaturas que colocam um planeta em chamas num curso de
colisão com Terra, não são bem aquilo que eu chamaria de "amigos",
Tourenne!
O outro ignorou a réplica; contrariava seu ponto de vista; portanto,
não houve resposta.
— Nós em Mura aprendemos a pensar de outra maneira. O ódio
que Terra nutre pelos extraterranos, nós nutrimos pelos terranos.
— Quer dizer que pretende se passar para o lado dos estranhos? —
perguntou Cliff. — Está firmemente decidido a concretizar seu
projeto?
— Correto!
— Então não resta dúvida que está doido varrido, Tourenne!
Tourenne empertigou-se bruscamente. O olhar que lançou para
Cliff parecia pregar o comandante ao assento.
— Uma vez, lá em Terra, afirmaram que eu era louco. Só que se
enganaram. Aliás, duvido que chegaram a descobrir o quanto estavam
enganados.
De repente McLane lembrou-se daquela ocorrência, tão
intimamente ligada ao nome desse homem. Ainda surpreso pela súbita
recordação, exclamou:
— Tourenne!... Não foi o senhor que...?
— Sinto-me lisonjeado, McLane. Sinceramente, não esperava que
conseguisse se lembrar de tudo, devido à sua pouca idade. Sim,
naquela época, eu era a maior autoridade no assunto, uma celebridade.
Meus ensaios com os raios paralisantes eram uma sensação mundial e
hoje ainda o seriam.
McLane concordou, amargurado.
— É. Mas esqueceu de acrescentar que durante esses ensaios a
vida de milhares de pessoas correu o mais sério perigo.
Tourenne não respondeu; apenas fez um gesto displicente com a
mão. Esse aspecto da coisa era o que menos lhe interessava. Cliff
concluiu:
— E é por esta razão que está aqui em Mura!
Desta vez Tourenne respondeu. Cheio de ódio, disse:
— Sim. Estou aqui. Apenas um proscrito há muito esquecido. Um
homem condenado a passar o resto dos seus dias nesse desolado
planeta a mais de noventa parsec de Terra. Vegetando como um
leproso na antigüidade. E por quê?
— Sim, por que será que fizeram essa maldade com você, seu
patife? — perguntou Cliff, sem o menor traço de ironia na voz.
— Por quê? — Tourenne mostrou-se espantado. — Porque a
minha concepção da ética não coadunava com a daqueles falsos
guardiães da moral em Terra. Não se interessaram pelos meus raios
paralisantes! Mas Terra vai ter que se interessar por eles, e muito,
quando se encontrarem nas mãos dos extraterranos! Só que aí já vai
ser tarde demais. Entendeu agora, o que pretendo fazer, comandante
McLane?
Cliff acenou, profundamente abalado.
— Sim, entendi tudo. O senhor só deseja colocar sua terrível arma
nas mãos ou tentáculos daqueles estranhos; mais nada. Tem certeza de
que sabe o que está dizendo?
— Certeza absoluta! Ninguém me manda para o exílio em Mura
impunemente!
Desesperado, Cliff começou a exortar Tourenne.
— Por maior que seja o ódio que nutre por Terra, justificado ou
não, isto não altera o fato de que é um homem, um ser humano,
Tourenne! Não é possível que, de sã consciência, possa desejar tão
ardentemente o extermínio da sua própria raça!
Tourenne sacudiu veementemente a cabeça.
— Aqui em Mura ninguém tem o menor motivo para lamentar o
ocaso de Terra, major!
Para McLane tudo estava claro agora. Tourenne queria se apoderar
de Orion e fugir para os estranhos, acompanhado dos seus asseclas. E
levaria o projeto dos raios paralisantes. Mais cedo ou mais tarde,
toparia com os extraterranos no cosmos longínquo e, a partir daquele
instante, Terra estaria condenada. Esse homem era um doente. Sofria
de uma doença altamente contagiosa. McLane teria que impedir por
todos os meios que Tourenne pusesse os pés na Orion. O problema era
como conseguir isso, e Cliff não via a menor chance de poder tomar
alguma iniciativa, o que o levou às raias do desespero. Com ele, todos
os membros da tripulação haviam sido aprisionados e agora
provavelmente se encontravam trancafiados em celas severamente
vigiadas. No momento, só podia tentar ganhar tempo, prolongando
aquele diálogo macabro.
— Realmente foi de uma crueldade sem par, condená-lo ao
desterro — disse em tom amável e com um sorriso forçado. —
Deveria ter sido executado logo, ou paralisado com seu próprio raio!
— Uma santa idéia, comandante! — respondeu Tourenne. A esta
altura dos acontecimentos encontrava-se a um passo do triunfo, e
poderia ser desastroso, se perdesse a calma justamente agora que iria
pôr em execução a fase final do seu plano demoníaco. Não, McLane
poderia insultá-lo o quanto quisesse que ele, Tourenne, o virtual
vencedor dessa contenda, não se deixaria abalar, não perderia o
controle.
— Foi apenas uma idéia sensata — respondeu Cliff — que
infelizmente não ocorreu ao pessoal em Terra naquela época.
— Por falar em idéias, estou tendo uma agora que promete um
efeito espetacular, meu caro comandante!
Meio desconfiado, Cliff perguntou:
— Uma idéia envolta em mistério; não pode ser mais explícito?
— Não é preciso. Sabe muito bem de que se trata!
Cliff fitou os olhos daquele louco à sua frente, imóveis e frios
como os de um réptil.
— Não sei de nada — respondeu.
— Não tenho escolha, McLane. E olhe, pode não acreditar nisso,
mas acho uma pena ter que matá-lo. Vi que é um homem inteligente e
capaz, e para mim foi um prazer poder discutir com o senhor. Bem
que poderia me ajudar. Seria o auxiliar ideal.
Cliff respondeu sem titubear, e cada palavra era um pingo de
ironia:
— Acha mesmo? Então vou fazer força para não desapontá-lo.
Prometo executar qualquer tipo de serviço com rapidez e perfeição!
Tourenne permaneceu impassível e depois continuou a expor seu
raciocínio.
— Acontece, porém, que o senhor já se tornou um herói, um
símbolo. McLane e sua tripulação são verdadeiros ídolos em Terra. E
ídolos são perigosos. Defensora intransigente dos princípios terranos,
a equipe da Orion representa uma ameaça permanente para os meus
objetivos, e por isso tem que ser eliminada.
— Receio que não posso impedi-lo de cometer mais este crime!
Pela primeira vez, Tourenne deu um sorriso que não denotava ódio
ou sarcasmo.
— Tem razão. Não há nada que possa fazer. E o que empresta uma
conotação tragicômica à sua morte, é o fato de que o famoso major
McLane cai vítima da própria fama!
Tourenne estava visivelmente satisfeito por ter feito esta
observação macabra. Cliff lançou mão de um novo argumento:
— Não precisa assassinar nem a mim nem a minha tripulação. Não
acha muito mais simples cair fora e nos abandonar aqui em Mura?
Tourenne respondeu sem querer refletir, o que evidenciava que já
tinha analisado esta alternativa.
— Não posso fazer isso. O senhor sabe demais, e é mais do que
óbvio que, era três tempos, as autoridades de Terra ficariam a par de
tudo. Não, McLane, quanto menos souberem agora, tanto melhor para
mim. Vão ter que descobrir sozinhos que eu, por assim dizer, passei a
trabalhar para a concorrência.
Cliff inclinou-se ligeiramente para a frente, e perguntou:
— Por que então me expôs as suas estúpidas idéias com tanta
minúcia? Se era tão mais seguro para o senhor, me manter na mais
completa ignorância?
Cliff reparou que, com um movimento rápido, poderia se apoderar
do projetor do guarda que estava ao seu lado. Avaliou o tempo que
levaria para surrupiar a arma, soltar por cima da plataforma e vencer
os poucos metros que o separavam da mesa de Tourenne. Chegou à
conclusão que tinha uma boa chance de dominar aquele louco, antes
que os guardas pudessem se refazer da surpresa e esboçar qualquer
reação. Voltou a olhar rapidamente para Tourenne quando este
respondeu:
— Se eu não lhe tivesse revelado meus pequenos segredos,
McLane, teria me privado de um prazer pessoal, de uma alegria toda
especial!
— Prazer? Alegria? Cliff reexaminou sua avaliação anterior e
retesou os músculos.
— Isso mesmo. Não pode imaginar o prazer que senti ao ver o
pavor estampado na sua cara. Só aquela expressão dos seus olhos
quando descobriu a verdade, já me compensou pelos longos anos que
fui forçado a passar nessa solidão cósmica.
Cliff arrancou a arma da mão do guarda e galgou a plataforma com
um só salto.
— Então foi por isso, seu grande miserável!? — berrou a plenos
pulmões.
Lançou-se sobre a rampa e já estava engatilhando a HM-4 quando
o terceiro guarda, que ele não tinha visto, vibrou-lhe um violento
golpe nas costas. Cliff estatelou-se no chão e os três homens o
arrastaram de volta à cadeira. Desta vez, o amarraram. A tentativa de
fuga havia fracassado.
Tourenne exibiu o sorriso indulgente do vencedor e disse, com
ironia:
— Mas o que é isso, major McLane? É assim que agradece o
tratamento benevolente que lhe dispensei até agora? Tenho a maior
admiração pelo senhor e por isso mesmo resolvi matá-lo de uma
maneira toda especial que, para seu enlevo, é absolutamente indolor.
— Obrigado! — resmungou Cliff com raiva e tentou romper as
fitas de aço que o prendiam.
Nem se mexeram.
— Mas é claro que posso mudar de idéia a qualquer momento! —
finalizou Tourenne e levantou-se.
7

O CARGO que o marechal Wamsler exercia na Suprema


Comissão Espacial era de suma importância estratégica e abrangia
uma vasta esfera de influência. Mas, apesar do poder e do prestígio
que este posto conferia ao seu ocupante, ninguém o cobiçava.
Wamsler não estranhava esse aparente contra-senso. Realmente, era
preciso ter uma paciência de Jó para conseguir conciliar tantos
interesses conflitantes. E a tarefa ingrata, com que Wamsler se
defrontava todo santo dia, era exatamente essa: procurar agradar a
gregos e a troianos. Encontrava-se, por assim dizer, entre dois fogos.
O Alto Comando soterrava seu gabinete sob uma avalancha de
regulamentações novas, instruções normativas e ordens específicas
para alguma operação; e cabia a Wamsler examiná-las e discuti-las
uma por uma, para depois transmiti-las aos seus comandados. E estes,
por seu lado, queixavam-se amargamente a ele quando recebiam uma
missão que lhes parecia por demais estapafúrdia. Muitas vezes tinham
inteira razão.
No momento, Wamsler encontrava-se numa situação nada
invejável: diante dele, estava sentado o futuro sogro de Pieter-Paul
Ibsen que evidenciava um estado de espírito dos piores.
— E tem a coragem de me dizer uma coisa dessas? — vociferou
após ouvir o relato de Wamsler. — A Orion está no universo e há seis
dias o senhor não tem notícias dela?
Wamsler baixou o enorme crânio num gesto de resignação, e
perguntou:
— Preferia que eu lhe contasse uma mentira?
— E a minha filha? O que é que eu vou dizer a ela?
Wamsler permitiu-se uma breve risada.
— Uma pergunta, senhor ministro — disse a meia voz, e Spring-
Brauner estremeceu. — Tem medo de ser agredido fisicamente por
sua filha, quando lhe contar que perdemos o contato com a Orion?
Furioso, o ministro fez que não.
— Não chega a esse ponto, graças a Deus; mas me enche a
paciência de uma maneira que... bem, o que é que eu posso fazer? Não
tive a felicidade de poder escolhê-la a dedo! Agora, foi uma
leviandade imperdoável de sua parte, confiar o meu futuro genro logo
a esse McLane!
O sangue afluiu ao rosto de Wamsler, que se irritou profundamente
com esta observação. Começou a gaguejar ligeiramente.
— Perdão, senhor ministro, mas essa idéia não foi minha! Foi o
senhor mesmo quem insistiu nesse ponto, já que Ibsen fazia questão
total de voar com McLane e sua tripulação!
Em silêncio, o ministro olhou alternadamente para Wamsler e
Spring-Brauner. Finalmente disse, e parecia um pouco cansado:
— É. Mas o senhor não deveria ter dado ouvidos ao meu pedido!
Wamsler apoiou o queixo largo na mão e fitou o ministro. Sentia
uma vontade louca de responder aos berros, mas controlou-se e disse,
num tom calmo e baixo:
— Veja bem, senhor ministro! Telefonou para mim e me pediu
que não poupasse argumentos para convencer McLane a levar a bordo
da Orion a figura mui estimada do seu futuro genro. Me expus ao
perigo de ser considerado um desmiolado por um dos meus melhores
homens, só porque me atrevi a externar um pedido tão despropositado.
Pedi a McLane que o fizesse por mim, porque, caso contrário o senhor
despejaria sua ira sobre a minha atormentada cabeça. Pois bem,
consegui persuadir McLane a levar seu genro e a partir daquele
momento não tive mais um único segundo de sossego. McLane já
realizou um sem-número de missões das mais malucas; mas
invariavelmente conseguiu sair da enrascada e voltar são e salvo.
Então por que a Orion haveria de sofrer um acidente justamente agora,
espatifando-se contra um asteróide ou coisa parecida? Só por que
Ibsen se encontra a bordo? Acho que está sendo muito injusto comigo,
senhor ministro!
O futuro sogro de Ibsen acenou lentamente, mais do que aflito.
— Mas o senhor conhece esse tal de McLane melhor do que
ninguém. Era sua obrigação alertar Ibsen e fazê-lo abandonar sua idéia
fixa!
Wamsler acenou sombriamente e disse:
— É verdade. Eu conheço McLane. É o melhor homem que eu
tenho!
Spring-Brauner estremeceu; era extremamente susceptível a
afirmações como essa. Mas era também um homem prudente e
absteve-se de fazer o comentário sarcástico que, a seu ver, a
asseveração do seu chefe pedia.
— Faço votos que o senhor tenha razão, marechal — concluiu o
ministro. — Vamos ver se esse homem é tão bom como o senhor
afirma.
Despediu-se de Wamsler com um aperto de mão, acenou para
Spring-Brauner e deixou o gabinete. Um homem velho e cansado. Um
ministro de Estado que participava das decisões que norteavam o
destino de Terra. Mas que, no momento, não passava de um homem
temeroso do inevitável acesso de cólera da sua própria filha. Wamsler
agradeceu aos céus nunca ter se casado.
***
A cela tinha o formato de um favo, com dois diâmetros diferentes.
Uma moldura espessa, hexagonal, guarnecia uma porta sextavada
cujas faces laterais, bastante largas, estavam voltadas para o interior
do cubículo. A pesada placa de aço, que completava a estranha
configuração, era inteiramente lisa, sem qualquer vestígio que
indicasse onde se encaixava a complicada fechadura. No centro das
faces superior e inferior, destacavam-se as saliências dos pequenos
mancais que sustentavam os eixos grossos e curtos, em torno dos
quais essa porta podia girar. Dois catres duros, colocados ao longo das
paredes longitudinais, constituíam a mobília dessa cela desprovida de
qualquer conforto. À direita da porta, na parte superior do trecho
inclinado da parede, via-se a aparelhagem do sistema de comunicação
e vigilância. Reunidos numa só peça, o microfone, o alto-falante e o
teclado formavam a parte central da instalação. À direita encontrava-
se a tela de imagem e, à esquerda, um jogo de lentes móveis, uma
delas do tipo grande-angular; a respectiva focalização era feita por
meio de controle remoto. Um zumbido alto e fino emanava do alto-
falante. Tamara sentou-se num dos catres e lembrou-se de uma outra
cela, bastante parecida com esta... lá em Chroma... mas já pertencia ao
passado, a um passado infinitamente longínquo... Tamara murmurou:
— Acho que está enganada, Helga... Helga acomodou-se no outro
catre e fitou os olhos de Tamara.
— Será?
— Acho que sim. Não creio que estejam interessados em nós duas.
O que eles querem é a nave.
Após alguns instantes de silêncio, Helga perguntou:
— Digamos que tenha razão. Pode me dizer para que querem a
Orion?
Tamara sacudiu a cabeça.
— Não faço a menor idéia; só sei que naquela confusão toda
alguém mencionou o nome da Orion. Estou tentando me lembrar
quem foi. — e pôs-se a refletir.
A primeira coisa de que se lembrou foi que havia um microfone
aberto por cima da porta. Mas, no momento, isso não tinha a menor
importância: dessa conversa podia se inteirar quem quisesse. A coisa
mudaria um pouco de figura, se ela e Helga tivessem que discutir um
assunto mais recatado. Nesse caso, a agente do SSG lançaria mão de
um ou dois dos numerosos truquezinhos que conhecia... Por fim,
Tamara se lembrou:
— Foi Ibsen, Helga! Sussurrou qualquer coisa relacionada com a
Orion no meu ouvido, quando passamos por ele naquele corredor. Só
que não deu para entender tudo, pois aqueles sujeitos nos separaram
imediatamente com seus delicados empurrões. Devo estar cheia de
equimoses.
— Vou lhe aplicar uma massagem daquelas! — prometeu Helga.
— Sabe o que pensei no primeiro momento, quando nos pegaram?
Tamara deu um breve sorriso.
— Provavelmente a mesma coisa que eu, Helga. Quer ver? Mura...
colônia penal... tremenda escassez de mulheres... não foi isso? Pois é;
e eu estava certa de que Ibsen já tinha revelado a existência de duas
moças a bordo da Orion. Depois de ligar uma coisa à outra, eu ainda
poderia ter alguma dúvida quanto à intenção desses caras? Claro que
não! O que eles mais queriam, era carregar a gente: duas mulheres, um
presente literalmente caído do céu! Só comecei a ficar desconfiada de
que o objetivo principal deles talvez fosse outro, quando ouvi Ibsen
mencionar a Orion, naquela fracassada tentativa de me segredar algo
importante.
Helga sacudiu a cabeça.
— Se eles realmente querem a Orion, é porque pretendem alcançar
algum objetivo de natureza política. E quando homens acima dos
quarenta tratam de assuntos políticos, não têm cabeça para pensar em
mulheres. Com raras exceções. Quer me parecer que o caso não é bem
esse.
Tamara estremeceu.
— Bem, não deixa de ter razão — murmurou. — Chegou a notar o
olhar daqueles dois guardas que nos trancafiaram aqui?
A telegrafista acenou.
— Se notei! Nunca na vida senti tanto arrepio!
— É. Uma sensação das mais agradáveis — ironizou Tamara. —
Mesmo assim, tive pena de um deles. Um sujeito tão moço, e no
entanto já é expatriado! Gostaria de saber por que o condenaram.
Helga enrolou uma mecha de cabelo no dedo e disse, com um
toque de sarcasmo:
— Vai ver que infringiu regulamentos demais! Quem sabe? E por
causa disso está vegetando aqui em Mura!
— É, mas parece que o padecimento dele está chegando ao fim —
disse Tamara sobriamente. — Como eu vejo a coisa, esse pessoal
pretende dissolver a sociedade. Precisam da Orion como meio de
transporte.
Helga ergueu a cabeça e cravou o olhar nos olhos de Tamara.
— Tem alguma idéia? — perguntou Tamara, sussurrando.
Helga respondeu, lançando um rápido olhar para a tela de imagem.
Tamara examinou a cela detidamente e depois cochichou:
— Perto da porta, há um lugar ótimo pra gente conversar à
vontade. Se falarmos baixinho, não vão conseguir entender uma só
palavra. Os microfones dessas instalações são muito pouco sensíveis.
— Então vamos.
Tamara levantou-se, aparentemente indecisa, e depois caminhou
com a maior naturalidade para aquele lugar junto à porta, que seu olho
treinado lhe havia revelado como o mais apropriado para uma
conversa sigilosa. Meio minuto depois, Helga juntou-se a Tamara.
— Se precisam tanto da Orion, se dão tanto valor a ela, então não
acha que podemos usar a nave para fazer uma chantagem com eles?
— perguntou Helga, o espírito empreendedor brilhando nos seus
olhos.
— Sim, mas como?
Helga apontou para a parede à sua direita.
— Hasso e Mario foram trancados nessa cela aí ao lado. Temos
que lançar mão de um ardil.
— Está pensando numa fuga simulada?
— Isso mesmo; vamos fazer de conta que a senhora fugiu.
— Ótima idéia!
Com um gesto, Tamara deu a entender a Helga que esperasse mais
um pouco. Sabia de que lado da porta giratória ficava aquela
fechadura invisível. Tamara tinha prestado atenção no detalhe ao ser
trancafiada: ficava à sua esquerda, portanto, à direita de quem
estivesse olhando a porta do lado de fora. Com um sorriso de
satisfação, a agente do SSG postou-se na cavidade daquela estranha
porta sextavada, amoldando o corpo às faces laterais o quanto pôde.
Constatou que, nessa posição, estava fora do alcance das lentes do
monitor.
— Entendeu o que pretendo fazer? — perguntou apressadamente.
Helga acenou em silêncio e colocou-se bem em frente do
videofone. Calcou uma tecla. Segundos depois o rosto atento do
guarda surgiu na tela de imagem. ""
— O que é que há? — perguntou, em tom aborrecido.
— Estou chateada, não tenho com que me distrair! — respondeu
Helga, com um sorriso provocador.
— Trate de ficar quieta! — resmungou o guarda.
Helga o contemplou com um sorriso sedutor.
— Tenho algo muito importante a comunicar! — disse a meia voz
e passou a ponta da língua nos lábios.
O guarda, que era o mais moço daqueles dois que haviam
aprisionado Helga e Tamara, disse, em tom desdenhoso:
— Deve ser uma revelação estarrecedora!
Helga inclinou a cabeça ligeiramente para o lado e continuou a
sorrir para aquelas lentes.
— Acertou em cheio, meu jovem!
O vigia estava começando a se divertir com esse diálogo, mas era
óbvio que nem pensava em abandonar o seu lugar junto aos monitores.
Respondeu:
— Deixe-me em paz. Detestamos mulheres abelhudas.
Helga sacudiu a cabeça e observou:
— Será que todos aqui são tão mal-educados assim? Se for este o
tratamento que dispensam a jovens damas, então não me admira que
tenham sido banidos!
Uma leve expressão de interesse apareceu nos olhos do guarda, e
Helga resolveu insistir no assunto, pelo visto, o ponto fraco desse
sujeito.
— Não existem damas aqui em Mura!
— E eu? Por acaso não sou uma dama? — perguntou Helga, em
tom agressivo. A expressão de interesse apagou-se bruscamente.
Conversar em tom amável não parecia ser o forte dos homens
empedernidos no planeta dos expatriados.
— Afinal o que quer de mim? — perguntou o guarda.
— Bem... — disse Helga e não completou a resposta.
— Não posso perder tempo com suas besteiras. Estou de serviço.
Se não ficar quieta, vai receber uma dose reforçada do paralisador.
Helga arreganhou os dentes num sorriso insolente.
— Vai se encarregar disso pessoalmente?
O guarda não pôde conter o riso.
— Até que a senhora é uma mulher gozada, sabia? — disse em
tom bem menos irritado. Ficou pensativo e acrescentou: — Estou
ficando com pena da senhora. Realmente, é uma lástima. Mas o que é
que eu posso fazer?
— Descer e me fazer companhia — respondeu Helga sem titubear.
Desta vez o guarda não riu e observou:
— Daqui a pouco, o seu senso de humor não vai adiantar mais
nada!
— Empregou "seu" no singular ou no plural? — quis saber Helga,
com uma expressão ingênua e depois acrescentou, com ironia: — Vou
reformular a pergunta em termos menos difíceis: estava se referindo
ao meu senso de humor ou ao de todos os membros da tripulação da
Orion?
O guarda amarrou a cara e respondeu, irado:
— Claro que me referi a todos!
— Tem certeza de que ainda estão todos aí? — perguntou Helga,
num tom impertinente.
O guarda olhou para ela com uma expressão alarmada.
— O que quer dizer com isso? — rosnou.
— O tempo todo tentando lhe contar o que aconteceu, seu
sabichão. Minha colega fugiu. Eu estava pensando que talvez o senhor
pudesse interceder por mim, já que lhe relatei o fato.
Os olhos do guarda começaram a se acomodar de uma maneira
diferente; Helga sabia que ele estava ajustando o monitor para
vasculhar a cela com a grande-ocular. Claro que não conseguiu ver
Tamara.
— É impossível! — exclamou.
— Tamara Jagellovsk pertence aos quadros do Serviço de
Segurança Terrano — disse Helga. — O senhor não faz a menor idéia
da quantidade de truques que ela conhece. É capaz de quebrar
fechaduras com a mesma facilidade que nozes ou corações
masculinos.
— Vou aí correndo! — gritou o guarda. A tela se apagou. Helga
postou-se do lado direito da porta e acenou para Tamara. Trocaram
um rápido sorriso e depois prestaram atenção aos passos apressados
que ressoavam lá fora, no corredor. Cessaram e, em seguida, ouviu-se
o zumbido da fechadura. A porta começou a girar. Tamara lançou-se
com toda a força contra a pesada chapa de aço, aumentando-lhe a
velocidade de rotação. O guarda recebeu um violento impacto nas
costas e cambaleou para dentro da cela. O cano de sua arma desviou-
se e apontou para o alto. Helga agarrou o homem pelo braço, dobrou o
joelho e puxou forte. O vigia foi projetado como um petardo por cima
da cabeça da telegrafista e estatelou-se num dos catres, que se
despedaçou com um estalo ensurdecedor. Atordoado, o guarda
sacudiu a arma no ar. Enquanto isso, Tamara já havia encostado
novamente a porta, para que ninguém pudesse suspeitar de alguma
anormalidade.
— Pronto. O resto faz parte do seu ofício — disse Helga e
entregou a arma a Tamara.
Rapidamente Tamara regulou o pesado projetor para a potência de
tiro mínima e o apontou firmemente para a cabeça daquele homem
estonteado.
— Nem um pio e nada de movimentos bruscos, senão eu atiro! E
pode acreditar que não estamos brincando, tão pouco quanto vocês.
Não temos mais nada a perder. Entendeu isso?
O guarda limitou-se a acenar em silêncio. Sentia-se completamente
desmoralizado. Nunca tinha visto duas mulheres agirem com tamanha
rapidez.
— Quantos homens há lá fora, no corredor?
O homem parecia ter dificuldade em articular as palavras.
Respondeu lentamente:
— No momento, não há ninguém lá fora.
— Vai abrir a cela ao lado ou não? Mais uma vez a resposta
resumiu-se num aceno silencioso.
— Então vamos!
Tamara encostou a ponta aguçada da HM-4 firmemente na espinha
do guarda, impelindo-o para o corredor. Helga os seguiu e trancou a
porta.
Não viram ninguém. Em questão de segundos, venceram os dez
metros que separavam aquela porta da seguinte. Tamara aumentou a
pressão e o guarda abriu o complicado mecanismo com três
movimentos rápidos e precisos. A porta começou a girar lentamente.
No mesmo instante Hasso acordou e pôs-se de pé, sobressaltado.
Levou alguns segundos para alcançar o verdadeiro sentido daquela
invasão inesperada. Quando viu Tamara de arma na mão, sua
expressão apreensiva transformou-se numa de surpresa e
incredulidade. Tratou de acordar Mario, que estava dormindo o sono
dos justos. O subcomandante piscou e levantou-se com a calma do
flegmático. Inteirou-se da situação e contemplou as duas moças com
um sorriso de aprovação. Depois fechou o punho, mas Hasso o
agarrou pelo braço, impedindo que Mario nocauteasse o guarda
apavorado.
— Helga... Tamara... o que vocês...? — perguntou Hasso, ainda
não refeito da surpresa.
Helga apontou para a porta e disse, precipitando as palavras:
— Depressa! Caiam fora! Procurem chegar à Orion sem demora!
Tamara entregou o projetor a Hasso, pois Mario já se havia
plantado ameaçadoramente atrás do guarda, e Tamara conhecia a força
descomunal do subcomandante.
— Levem a arma. Esse sujeito pode servir de refém ou de escudo,
pouco me importa. Mas, pelo amor de Deus!, depressa! Eles querem é
a Orion! Entenderam? Querem capturar a Orion! — balbuciou Helga,
aflita. — O tempo todo só estavam pensando na nave! Vocês precisam
chegar lá antes deles! Depois vocês podem empregar até o Overkill,
para mim tanto faz como fez!
— Entendido! — resmungou Mario. — Vamos indo, Hasso!
Deu um empurrão no guarda, que fez o infeliz atravessar a cela de
ponta a ponta, e rosnou em tom ameaçador:
— Nós temos os nossos trajes espaciais. Você não. Mas uma
corridinha através desse ar rarefeito não vai lhe custar a vida. Portanto,
vamos embora!
Impelindo o prisioneiro para diante, saíram apressadamente da
cela. Era uma corrida contra o tempo. Mas Mario e Hasso conheciam
o caminho que levava ao elevador. Ao serem levados para a cela,
retiveram na mente o trajeto que os guardas percorreram. E este fato
se constituiu agora numa vantagem inestimável: chegaram ao elevador
sem terem parado uma única vez para se orientarem naquele
intrincado sistema de corredores. Ganharam segundos preciosos.
Entraram no elevador, que subiu velozmente. Depois parou e a porta
se abriu.
Não viram ninguém; o caminho até a abertura em frente estava
desimpedido, o que aliviou um pouco a tensão nervosa.
— Venha! — disse Hasso, num tom surpreendentemente brando.
Correram em direção à comporta interna.
Enquanto a leve escotilha começou a deslizar para o alto, Hasso
disse, ofegante:
— Se você abrir a boca, nem que seja para tossir, vai se juntar a
seus antepassados bem mais cedo do que imaginou. Só não sei se vão
ficar contentes em conhecer um descendente tão malcriado.
Fecharam os trajes espaciais e ligaram os sistemas do suprimento
interno. Mario colocou o indicador nos lábios, pedindo silêncio. Os
aparelhos de rádio permaneceram desligados. Depois correram através
da noite em direção à Orion.
8

O AMBIENTE que dominava aquela sala desprovida de qualquer


atrativo era de pura ameaça. Cliff continuava sentado na cadeira de
torturas, fortemente amarrado e vigiado por três guardas, mais do que
atentos. Tourenne havia se levantado e agora estava caminhando
nervosamente para lá e para cá por trás da sua escrivaninha.
De repente, deu um quarto de volta e olhou fixamente para o
comandante. O rosto do deportado contorceu-se numa careta
indefinível. Tourenne disse:
— Devo confessar, comandante, que estou até me divertindo com
esse nosso bate-papo.
Impassível, Cliff respondeu:
— O senhor elaborou um plano até os mínimos detalhes, mas não
levou em consideração o fator mais importante. Passou inteiramente
despercebido!
Uma expressão de interesse apareceu nos olhos de Tourenne.
— A saber? — perguntou laconicamente.
— Como pretende levar uma nave do tipo da Orion VIII para o
campo de operações dos extraterranos, se não dispõe de uma
tripulação devidamente adestrada?
O espanto de Tourenne parecia autêntico. Riu baixinho e disse:
— Vejo que não tem a menor noção do grande número de
especialistas que se encontram aqui em Mura. Gente perfeitamente
habilitada e que está doida para voltar a dirigir uma nave espacial.
A risada de McLane era nitidamente injuriosa.
— E quando foi a última vez que um dos seus pretensos
especialistas teve ensejo de manobrar uma nave de grande porte dessa
classe, se me permite a pergunta?
Tourenne refletiu durante alguns segundos e depois respondeu:
— O melhor homem que eu tenho chegou aqui faz três anos.
— Qual o crime que cometeu?
Com a maior naturalidade, Tourenne respondeu:
— Estava morrendo de ciúmes do seu astronavegador e aí resolveu
jogá-lo num dos pântanos de fósforo.
Cliff riu e depois contemplou o líder dos banidos com uma
expressão da mais profunda comiseração:
— Três anos atrás! Deve estar mais maluco do que eu pensava,
Tourenne! Se esse sujeito começar a brincar com os controles da
Orion e fizer apenas duas ligações erradas: está perdido. E a nave
também. E isto, se não me engano, deve alterar ligeiramente os seus
planos. Pelo fato de ter representado uma única vez o papel do
comandante, um ator de TV pode ser considerado um perito em
navegação espacial? É mais ou menos isso que está tentando fazer,
Tourenne!
Visivelmente irritado, Tourenne retrucou:
— Está querendo blefar!...
— Escute — disse Cliff, emprestando um tom entediado à voz. —
Sei muito bem em que situação me encontro. Não tenho mais nada a
perder. Mas se existe uma coisa que eu detesto, é gastar meu latim à
toa. Se quiser, pode me mandar para o além com auxílio desses seus
aparelhinhos encantadores. Sabe o que vai acontecer então? Vou
voltar. Voltar como manda o figurino: plantado numa nuvem cor-de-
rosa, tocando harpa, e tal e coisa. Só para assistir ao estonteante
espetáculo pirotécnico com que seu renomado especialista vai liquidar
o senhor e sua cambada de vagabundos ainda dentro da atmosfera de
Mura. O único senão é o fim inglório daquela linda nave.
A argumentação de Cliff era por demais convincente para que
Tourenne se preocupasse com os floreios irônicos e insultuosos de que
vinha enfeitada. Para levar a efeito o seu plano, Tourenne precisava de
uma nave de grande porte. E esta, ele já tinha. Mas as observações de
McLane davam o que pensar. Se as insinuações desse major insolente
não passassem de pura invencionice, não haveria problemas e o
pessoal de Tourenne se encarregaria de conduzir a nave ao seu
destino. Por outro lado, se correspondessem à realidade,
representavam um novo obstáculo à concretização do plano: Tourenne
dispunha da nave mas não dos homens capazes de dirigi-la. O banido
considerou a primeira possibilidade apenas por um desencargo de
consciência, pois, em momento algum, chegou a admitir que McLane
talvez estivesse exagerando ou contando uma mentira deslavada. Não,
este homem tinha falado a verdade, Tourenne estava convencido
disso. Passou a mão pela testa franzida e perguntou, pensativo:
— Será possível que modificaram as instalações de maneira tão
radical assim?
McLane encolheu os ombros e perguntou num tom cansado:
— Algum dos seus facínoras sabe como se estabelece um campo
de gravitação artificial?
Tourenne mostrou-se surpreso e inquieto.
— Gravitação artificial...? Isso não existe!
— Não só existe — respondeu Cliff — mas é exatamente do que
vai precisar, se quiser chegar ao esconderijo dos seus amiguinhos.
Pela primeira vez, Tourenne não acreditou numa afirmação de
McLane. Furioso, respondeu:
— É mentira! É tudo mentira!
Com um ar de desprezo, Cliff retorquiu:
— Está se exaltando à toa! Espere, que vai ver por si mesmo!
— Parece que está nos subestimando, comandante! — advertiu
Tourenne e fitou longamente os olhos de McLane.
— Não estou, não — respondeu o major. — Sei muito bem com
quem estou lidando. Aliás, o senhor me faz lembrar aquele infeliz que
quis demonstrar que chumbo era mais leve que água. Vestiu um colete
de chumbo e pulou no mar, num lugar bem profundo.
— Se pensa que não estamos atualizados, está redondamente
enganado — disse Tourenne. — Nossas fontes de informação são das
melhores.
Obstinadamente McLane procurou despertar novas dúvidas na
mente do seu adversário. E tudo que alegava correspondia à mais pura
verdade. Esse fato contribuiu decisivamente para tornar suas palavras
ainda mais convincentes.
— Aquela maquineta de cálculo que levamos a bordo é a última
palavra em matéria de computador digital. Possui um equipamento
periférico dos mais sofisticados e uma memória com capacidade para
armazenar 640 bilhões de dígitos. Esse aparelho é tão sensível que vai
ficar inteiramente biruta se um dos seus serventes começar a brincar
no teclado. Por que não desiste de vez, Tourenne?
— De jeito nenhum, comandante!
— Sei que pode me matar na hora que bem entender...
— Correto!
— ...mas não consegue me impressionar. Agora me convenci que
o senhor não passa de um sujeito tapado, bronco e limitado.
Tourenne virou-se com incrível rapidez, disposto a revidar esta
injúria com os punhos cerrados. Conseguiu dominar o ímpeto, mas
custou a recuperar o autocontrole. Olhou para McLane em silêncio e
com uma expressão impenetrável.
— Vai pagar caro por isso. Jamais vou lhe perdoar esse insulto!
— Vejam só! — ironizou Cliff. — Que palavras patéticas!
Conversou demais com o nosso poeta do espaço, não foi?
— Ainda bem que eu sou um homem comedido — disse
Tourenne, baixinho.
— Pena, que o senhor seja um homem limitado. Duvido que
aqueles estranhos possuam senso de humor; já os enfrentei algumas
vezes e não vi o menor sinal disso. Mas se tiverem apenas um tiquinho
de nada, vão se divertir em demasia com o senhor e seu bando. Vai
levar uma vida ótima, Tourenne, como animal doméstico ou coisa que
o valha.
Cheio de ódio, Tourenne sussurrou:
— Pela última vez, McLane...
— Agora, o mais lamentável nisso tudo é que o senhor jamais vai
chegar àquelas regiões além da décima zona de distância, seu velho
ridículo, peçonhento.
Tourenne estacou sob o impacto dessa ofensa. Por um instante
parecia que, desta vez, o ódio prevaleceria sobre a razão. Tourenne fez
menção de se lançar cegamente sobre Cliff, doido por massacrar a
cara daquele atrevido. Porém conteve-se no último segundo, com um
esforço quase sobre-humano. Um único pensamento lúcido o deteve
naquele momento de raiva irreprimível: era preciso manter a calma,
agora mais do que nunca. E fazer com que ele, Tourenne, perdesse a
calma, outro não havia sido o objetivo das intermináveis provocações
daquele maldito major. Mas a hora da vingança não tardaria a chegar...
Tourenne voltou à sua poltrona por trás da escrivaninha e fez um
gesto rápido com a mão direita. Quase no mesmo instante, a sala ficou
às escuras. Alguém acendeu um refletor. Um ofuscante feixe de luz
arrancou o rosto de McLane da escuridão. A voz contundente de
Tourenne fez se ouvir:
— Esquentem ele, rapazes!
Os dois projetores esféricos emergiram das trevas e pararam a
poucos centímetros das faces de McLane. Com um movimento
brusco, um dos guardas fechou a argola metálica em torno do pescoço
de Cliff, prendendo-a no espaldar da cadeira.
Um leve crepitar! Os raios Omicron irromperam dos minúsculos
ejetores e banharam a cabeça de Cliff numa claridade pálida.
— Talvez esta maneira de conversar lhe agrade mais, comandante.
Não pense que me sinto perdido diante de gente tão arrogante como o
senhor!
Cliff manteve-se em silêncio e cerrou os dentes.
— Aproximem mais esses raios! —vociferou Tourenne.
Cliff fechou os olhos e começou a sentir nas orelhas e nos ossos
malares aquele calor escaldante que estava sendo sugerido aos nervos.
Suava e arfava, porém não proferiu uma única palavra.
— Está escuro, McLane, mas eu posso vê-lo! — sussurrou
Tourenne.
Cliff não respondeu e tentou ignorar aquela dor intensa.
— Não está vendo nada, McLane, mas eu sim; estou vendo os
mínimos detalhes!
A dor começou a se alastrar pela musculatura do rosto.
— Vejo o pavor nos seus olhos; está fazendo feio, McLane, tão
feio como algumas horas atrás aquele ridículo poeta do cosmos.
Comandante McLane... sua vida de herói está chegando ao fim!
— Não tente bancar o literato, seu crápula inculto! — murmurou
Cliff, só para desviar o pensamento daquela dor.
Tourenne riu baixinho.
— Está com medo! Admite que está com medo?
Até agora Cliff tinha conseguido suportar o suplício sem soltar um
único grito. Sabia que, a partir de um determinado momento, qualquer
dor, por terrível que fosse, não significaria mais nada. Cliff ansiava
por este momento.
Tourenne parecia disposto a tirar o máximo proveito da sua tortura
sádica; sussurrou em tom insistente:
— E não pense que vai ter uma morte rápida, McLane! Ao
contrário, vai morrer aos poucos, bem devagarzinho, e sofrendo
horrores!
Uma nova onda de dor varou o cérebro de McLane. Tourenne não
tirava os olhos do rosto contorcido do comandante e ofegou, agitado:
— Vai confessar agora que está com medo?
Enquanto o suor lhe escorria profusamente pelo rosto, McLane
respondeu lentamente, com fôlego pesado:
— Sim, estou com medo; com medo de um velho ridículo e
venenoso, cujo único prazer consiste em torturar gente indefesa.
Tourenne ficou fora de si e berrou:
— Encostem os projetores! Encostem os aparelhos na cara dele!
O zumbido dos projetores tornou-se insuportável e as crepitações
daqueles raios pareciam reverberar no crânio de Cliff. Várias coisas
aconteceram quase que ao mesmo tempo, mas a mente atormentada de
McLane só registrou esses fatos por alto.
Um estalo ensurdecedor emanou dos alto-falantes. Em seguida, o
videofone na mesa de Tourenne iluminou-se, e uma voz gritou:
— Alarma!
Um guarda aproximou-se correndo de Tourenne e disse em voz
alta:
— Dois tripulantes da Orion conseguiram fugir!
Os projetores afastaram-se na mesma hora. Os nervos fustigados
da pele só se acalmavam muito lentamente, mas os véus diante dos
olhos de Cliff se dissiparam em poucos instantes. Alguém acendeu
novamente a iluminação da sala.
— Chefe!
— Sim, o que é? — gritou Tourenne e virou uma chave.
— O culpado só pode ser Henry, porque também sumiu. Creio que
se deixou enganar pelas duas moças, e aí foi obrigado a acompanhar
os dois caras que fugiram. O diabo é que não os encontramos em parte
alguma. Simplesmente desapareceram. Acha que devíamos insistir na
busca?
Tourenne fez que não, e levantou-se. Cliff esforçou-se para manter
uma expressão impassível. Dois dos seus homens tinham conseguido
escapar e Cliff sabia que podia confiar na sua tripulação. E Helga e
Tamara? Já tinham sido recapturadas? Ou ainda estavam livres,
ocultas em algum canto daquele sistema de corredores? Tourenne
aproximou-se de McLane e disse com um aperto na voz:
— Bem, McLane, reconheço que seu plano deu certo. Prolongou a
nossa conversa o quanto pôde, só para ganhar tempo. O suficiente
para seu pessoal poder descobrir uma saída. Muito bem, obteve pleno
sucesso.
— Minha intenção foi exatamente essa — respondeu Cliff, com
voz áspera.
— Só que não vai lhe adiantar coisíssima nenhuma!
— Acha mesmo? — perguntou Cliff, num tom mordaz. — Como
eu conheço a minha turma...
— Muito pelo contrário. — Tourenne ignorou a resposta de
McLane. — Isso me deu uma idéia luminosa!
Visivelmente excitado, Tourenne contornou a sua mesa e depois
parou novamente diante de Cliff.
— Talvez tenha razão. Pode ser que eu realmente precise do
senhor e da sua tripulação para chegar ao campo de operações dos
extraterranos. Mas existe alguém que eu posso dispensar com a maior
tranqüilidade: aquele seu escritor de araque!
Preocupado apenas com a fuga dos companheiros, Cliff não se
havia lembrado de Ibsen. Agora as palavras de Tourenne
desvaneceram por completo em sua última esperança. Nem tentou
ocultar seu profundo desânimo.
— Ibsen vai morrer! — disse Tourenne com voz dura.
— Por quê?
— Para servir de exemplo ao senhor e seus comandados.
— Seu sádico nojento!
Tourenne engoliu mais esta injúria e continuou a expor sua idéia
macabra:
— E assim, toda vez que fizerem algo para obstruir o meu plano,
um tripulante da Orion vai morrer. E vai morrer de uma maneira lenta
e muito pouco agradável, se me entende. É claro que não vou matá-los
indiscriminadamente. Já considerei o grau de importância de cada um,
comandante. Por isso Ibsen vai primeiro: é o mais prescindível. A
segunda vítima deverá ser aquela agente do SSG; aquela outra moça
será a terceira e assim por diante. E só lá no finzinho vai chegar a sua
vez. Que acha dessa medida? Afinal, foi idealizada por um velho
ridículo e venenoso!
McLane cravou os olhos cheios de ódio naquele rosto sádico e
triunfante. Se não estivesse amarrado, teria estrangulado aquele
demônio sem ligar para a própria sorte. Manteve-se calado. Tourenne
deu uma ordem:
— Rapazes!
Dois dos homens deram um passo à frente.
— Arranquem aquele literato cósmico da sua cela e tragam-no
para cá. Depois amarrem o bestalhão naquela cadeira!
Apontou para a cadeira de torturas ultramoderna. Quatro homens
cercaram Cliff para soltá-lo e, ao mesmo tempo, impedir que atacasse
Tourenne. Por enquanto a partida estava empatada.
Mas, já estavam buscando a vítima. No momento, ainda se podia
tentar descobrir uma saída, mas o assassinato de Ibsen modificaria
tudo. Cliff começou a refletir febrilmente; ainda nutria a débil
esperança que uma providência salvadora ocorresse a um dos
companheiros...
9

A ORION pairava na paisagem noturna de Mura sem qualquer


ligação com o solo. Há poucos instantes Hasso Sigbjörnson e Mario
de Monti haviam recolhido o elevador telescópico e agora entraram
correndo na cabine de comando. Exaustos e ofegantes, jogaram-se nas
poltronas.
— E o nosso hóspede de Mura? — perguntou Mario.
— Está trancado na câmara de amostras, gozando as delícias do
sono crioterápico.
— Ótimo! Esse sujeito é importante para nós, como testemunha. Já
imaginou se não tivéssemos ele para corroborar a nossa história?
Ninguém acreditaria em nós, como de hábito. Se eu penso como
Wamsler deve estar possesso agora... mas, vamos logo, Hasso!
Prepare a partida de emergência!
Hasso sacudiu a cabeça energicamente e levantou-se.
— Você ficou maluco? — perguntou com sua voz grave. — Eu
não saio daqui sem os outros!
De Monti postou-se ao lado da unidade de entrada do computador
e disse:
— Mas essa é a nossa única chance, seu idiota!
Hasso voltou a sacudir a cabeça; Mario tentou argumentar:
— Quando perceberem que caímos fora, não vão se atrever a
cometer mais algum desatino. Ou você acha que eles não sabem que
em três tempos a Primeira Frota Tática vai escurecer o céu de Mura?
Hasso murmurou:
— Considero isso arriscado demais. Mario lançou um olhar de
espanto para o companheiro e começou a programar o curso de
retorno a Terra. Hasso observou:
— Não duvido nem um pouco que eles matem Cliff e os outros por
ódio, após a nossa decolagem. Parece que o chefe deles, esse tal de
Tourenne, é louco. Você ouviu o que os guardas disseram?
— Bem; admito isso. Mas então o que podemos fazer?
Hasso começou a andar para lá e para cá, entre a mesa de comando
e o transmissor. Refletiu longamente e depois pediu a Mario:
— Ligue o aparelho radiofônico. Estou começando a me sentir
melhor. Sua falta de imaginação continua a mesma, pelo visto, e isso
acalma os meus nervos como quê. Quer me ajudar? Então procure
estabelecer uma ligação audiovisual com a colônia penal. Preciso falar
com o manda-chuva dessa joça. Quanto tempo você acha que leva
para aprontar o Overkill?
Mario refletiu um instante.
— O alvo já está enquadrado. Digamos... ao todo, uns dez
minutos. Você pretende...?
— Ainda não sei. Vou tentar fazer uma chantagem com eles.
Mario sentou-se na poltrona de Helga diante do transmissor e, em
poucos segundos, conseguiu estabelecer a ligação que Hasso havia
pedido. A tela do videofone se iluminou e...
***
Havia um intenso movimento naquela sala octogonal. Todas as
luzes estavam acesas e os homens da tropa de Tourenne, trajados de
negro, corriam agitados de um lado para o outro, aparentemente a
esmo. Pelo visto, McLane devia ser considerado homem da maior
periculosidade, pois estava cercado por um verdadeiro cinturão de
guardas, todos fortemente armados. Os dois "rapazes" de Tourenne
voltaram com o prisioneiro. Arrastaram Pieter-Paul Ibsen através da
sala e o prenderam à cadeira, fechando as argolas metálicas em torno
dos pulsos e do pescoço. Somente agora Ibsen reparou que McLane
estava presente, e mais uma vez olhou para o comandante com aquele
olhar profundamente angustiado e perplexo de um animal ferido.
Tourenne fez um sinal aos seus homens, que se afastaram da cadeira
de torturas.
— Comandante! — disse Tourenne em voz alta. — Peço-lhe que
acompanhe nos mínimos detalhes a cena que vai se desenrolar daqui a
instantes. Procure vivê-la, identificando-se com o ator principal. Um
homem vai morrer. Certamente isso não representa nada de especial
para o senhor; creio poder afirmar que, na sua vida de cosmonauta,
houve inúmeras ocasiões em que o senhor se viu obrigado a assistir à
morte de um homem. Mesmo assim, solicito o favor da sua atenção;
garanto que o espetáculo não vai entediá-lo.
— Seu verme nojento! — chiou Cliff.
Impassível, Tourenne prosseguiu:
— Por assim dizer, vai poder assistir à sua própria morte. É a sua
pré-história. Em outras palavras: terá o privilégio de morrer duas
vezes. Além do senhor, quem mais pode se gabar disso?
— Não acha — disse Cliff, a garganta seca — que está mesmo
doido varrido?
— De modo nenhum — respondeu Tourenne. — Pelo contrário.
Os homens deviam ter terminado os preparativos para uma nova
aplicação dos raios Omicron, pois um deles fez um sinal para
Tourenne.
Durante alguns segundos o olhar de Tourenne se deteve em Ibsen
que ainda não dava mostras de perder o controle. Depois Tourenne
olhou novamente para Cliff e disse:
— Tempos atrás, um poeta afirmou que somente na hora da morte
o homem é capaz de sentir a verdadeira essência da sua vida. Ao pé da
letra, isso significa que lhe estou concedendo a vida duas vezes.
Exibiu um sorriso sardônico, e acrescentou:
— Não acha que a minha generosidade merece a sua gratidão?
Com a voz apertada, McLane respondeu:
— Se merece! E se algum dia eu conseguir escapar daqui com
vida, vou bolar algo todo especial para você, Tourenne. E lhe garanto
que vai ser tão fascinante, que, em comparação à morte de Ibsen, não
passará de um ato de misericórdia.
Tourenne riu como se Cliff tivesse contado uma piada das mais
picantes.
— Excelente idéia! Pena que jamais vai poder realizá-la. Tudo
pronto, rapazes?
O guardas acenaram. Tourenne voltou à sua mesa e girou uma
chave. Os dois projetores aproximaram-se do rosto de Ibsen, emitindo
aquele zumbido nefasto. Cliff viu que Ibsen retesou a musculatura do
queixo. Este homem já havia se conformado com o inevitável e agora
aguardava em silêncio a chegada da morte. No mesmo instante, uma
voz ressoou pela sala.
***
— Posto externo para chefe. Mensagem radiofônica da Orion!
Rápido!
Tourenne desligou os projetores e apertou uma barra abaixo do
videofone. O rosto de Hasso se estabilizou na tela. Cliff e Ibsen não
podiam vê-lo, mas reconheceram imediatamente aquela voz. Cliff
pensou que fosse desmaiar de alegria.
— Quero falar com o patife-mor! Aquele que se intitula chefe
desses canalhas! Apresente-se, Tourenne! Ah! Resolveu aparecer, seu
bandido megalomaníaco?
Cliff ficou pasmo. Jamais desconfiou que Hasso fosse capaz de
falar desse modo; seu velho amigo estava blefando como quê.
— O que quer? — perguntou Tourenne, alarmado.
— Antes de mais nada quero saber se estou realmente falando com
o aborto da natureza número um de Mura?
Tourenne ergueu as sobrancelhas, profundamente indignado.
— Responda logo, senão meia dúzia vai voar pelos ares já, já!
"Overkill", pensou Cliff, quase estourando de contentamento.
— Aqui fala a administração central de Mura, Tourenne ao
microfone. O que deseja?
Hasso devia estar seguindo um plano cuidadosamente traçado;
pois sua resposta foi rápida e clara.
— Como já sabe, estamos a bordo da Orion. Aprontei a nave para
a decolagem e ativei a pilha atômica. Dispomos de um aparelhinho
que atende pelo nome de Overkill. Sabe o que isso significa?
Tourenne assustou-se, enquanto Cliff mal conseguia conter o riso.
— Fale! — murmurou Tourenne, visivelmente preocupado. — O
que pretende fazer?
— A nave está abarrotada de energia. Se eu virar uma certa
alavanca, o projetor Overkill começa a funcionar e em três tempos a
nave explode. Considerando o nosso potencial energético, isso vai lhe
custar mais ou menos a metade do planeta. Bem entendido: aquela
metade, na qual se encontra esse seu depósito de imundície.
— Dentro de alguns minutos, meu pessoal vai chegar aí...
A risada de Hasso era contundente.
— Dentro de alguns minutos eu vou ligar o projetor. Se dentro de
dez minutos a totalidade da tripulação da Orion não estiver sã e salva a
bordo, metade desse planeta malcheiroso vai pelos ares. Se for
sensato, vai dispensar uma demonstração; garanto que lhe
proporcionaria muito pouco prazer. Entendeu tudo?
Tourenne mordeu os lábios e recuou lentamente da mesa.
— Escute... meu pessoal...
— Escuto coisa nenhuma! — respondeu Hasso, num tom incisivo.
— Daqui a exatamente quinze minutos eu faço explodir a Orion. E
olhe que a precisão do cronômetro de bordo é de um milésimo de
segundo!
— Estabelecemos uma zona de bloqueio em torno da Orion —
disse Tourenne. — Eu posso...
Hasso devia estar sacudindo a cabeça, pois luz e sombra se
alternavam no rosto de Tourenne.
— O que o senhor pode, eu lhe digo depois. Se a tripulação não
estiver a bordo dentro de quinze minutos, a nave vai pelos ares. E é só.
A tela se apagou. Cliff teve que se controlar para não soltar um
berro ou praticar um outro desatino qualquer. Parecia que Hasso, o
velho Hasso, havia conseguido salvar a situação. Tourenne olhou
longamente para Ibsen e depois se dirigiu a McLane, falando
lentamente, como se precisasse catar as palavras uma por uma:
— Só me resta reconhecer que ganhou este round, McLane. Pode
ir! Mas fique sabendo que a luta ainda não terminou!
Incrédulo, McLane levantou a cabeça e viu que os guardas
estavam soltando Ibsen. O escritor ergueu-se da cadeira e conseguiu
manter uma boa postura; apenas os seus joelhos tremiam.
— Pois vá, McLane, e leve sua tripulação!
Cliff ainda não estava acreditando no que tinha ouvido.
— Está falando sério? Estamos livres? — perguntou, inseguro.
Tourenne acenou.
— Estão, sim. Apenas reformulei minhas disposições. Talvez mais
tarde venha entender melhor. Agora pode ir. Garanto a sua segurança.
O senhor e sua tripulação não serão molestados.
McLane consultou o relógio e juntou-se a Ibsen. Colocou o braço
no ombro de Pieter-Paul e os dois se dirigiram à saída daquela sala
octogonal tenebrosa. Não viram o ar enigmático de Tourenne...
***
Sigbjörnson e De Monti sorviam café quente e observavam o
avanço inexorável dos ponteiros triangulares do cronômetro de bordo.
— Uma coisa eu não entendo! — disse Mario e apertou um botão,
acionando os servo-motores do elevador telescópico, que começou a
baixar.
— O quê? — perguntou Hasso.
— Por que será que não vigiaram a nave?
Hasso olhou novamente para os ponteiros.
— Provavelmente não contaram com a possibilidade de que
alguém pudesse escapar daquelas celas. Além disso, não deve ser
muito do agrado deles, passar a noite ao relento.
— É, deve ser isso.
— Faltam quatro minutos! — disse Hasso, olhos fitos no triângulo
negro do ponteiro dos segundos.
Duas lâmpadas começaram a piscar; Mario reconheceu o
significado desse sinal e berrou:
— Hasso! Estão chegando!
Hasso ergueu-se rapidamente e disse, baixinho:
— Deu certo, Mario! Conseguimos libertá-los!
Segundos depois, o pequeno elevador interno trouxe a primeira
leva: Helga, Tamara e Ibsen. Sem perda de tempo, Helga correu para a
mesa do transmissor, enquanto Ibsen se largou na primeira poltrona
que encontrou. Cliff e Atan chegaram em seguida. Hasso lançou um
olhar significativo para Cliff e desceu rapidamente para a casa de
máquinas.
— Do comandante para todos! — gritou Cliff. — Ocupem os seus
lugares! Aprontar partida de emergência!
— Computador programado! — avisou Mario laconicamente.
— Precisamos decolar antes que aquele miserável mude de idéia.
Tudo pronto? Ligar geradores! Ultra-impulso!
O videofone se aclarou e o rosto de Hasso apareceu na tela.
— Tudo pronto, chefe! — disse Sigbjörnson.
Cliff sentou-se diante do painel de instrumentos e começou a
mexer em alavancas e botões como um possesso.
— Atenção, Hasso! Agora!
Apertou o botão de decolagem. O computador digital havia sido
programado para realizar todas as operações necessárias para lançar a
nave verticalmente para o alto, partindo da posição de pouso dez
metros acima do solo. Os neutralizadores de gravitação começaram a
uivar, combatendo o tremendo empuxo da aceleração e evitando que a
tripulação fosse esmagada nas suas poltronas. A Orion decolou
abruptamente, lançou-se verticalmente, mas estacou. Da casa de
máquinas, vieram os silvos agudos de motores supersolicitados.
Combatiam aquele fenômeno a plena potência, mas a nave
permaneceu imóvel a uma altura de cinqüenta metros. Cliff
interrompeu o processo de decolagem e a Orion baixou lentamente até
ficar novamente pousada no sistema de raios antigravitacionais. A
intensidade dos ruídos decresceu imediatamente. Cliff olhou para a
tela do videofone e perguntou:
— Hasso, o que é que há com os nossos propulsores?
Hasso respondeu, irado:
— Não há nada; estão na mais perfeita ordem. Só que estavam em
vias de se derreterem. Por que você freou?
De Monti viu as lâmpadas de aviso acesas nos instrumentos do
computador e exclamou, perplexo:
— Que diabo significa isso?
— Mas por que razão não conseguimos nos desprender? — quis
saber Atan, confuso, mexendo a esmo nas suas aparelhagens.
Ibsen já tinha recobrado a voz e apressou-se em dizer:
— A mesma coisa aconteceu comigo na Lancet: tentei decolar
duas vezes, mas só consegui subir uns poucos metros. Algo me reteve
preso ao solo, mas não sei o que foi.
Hasso e Cliff entreolharam-se.
— Você iniciou a manobra de decolagem corretamente? —
perguntou Hasso, desconfiado.
Cliff limitou-se a acenar em silêncio. Depois, disse:
— Vamos tentar mais uma vez. Libere toda a energia de que você
possa prescindir.
Hasso balançou a cabeça grisalha e resmungou:
— Liberar a energia latente tão perto do solo é loucura final, Cliff!
— Não temos alternativa, Hasso! Vamos ter que correr esse risco!
No mesmo instante, Atan gritou:
— Hei! Já descobri o que nos prende. Estamos mergulhados num
campo de força eletromagnético dos mais estranhos. Parece
inacreditável, mas é a mais pura verdade: esse campo está usando a
própria Orion como fonte de energia!
E apontou para um instrumento, cujo ponteiro havia atingido uma
marcação vermelha, em cima da qual parou, oscilando ligeiramente.
— Estamos perdendo energia! — gritou Hasso, agitado. — O nível
da reserva está baixando com uma rapidez assustadora e olhem que
não estamos consumindo praticamente nada! A nossa decolagem
desencadeou esse processo!
Hasso tinha razão. Os instrumentos no painel de McLane
acusavam inequivocamente aquele escoamento inexplicável.
— Mario, vá ao posto de combate e verifique a reserva de energia
do Overkill!
Mario saiu na disparada.
— Isso é uma armadilha para naves espaciais! — disse Pieter-Paul
Ibsen e levantou-se. — Há alguma coisa que eu possa fazer,
comandante?
— Pode, sim — respondeu Cliff. — Guarde suas observações
espirituosas. Gostaria de não ouvir mais nenhuma hoje.
Desligou todas as máquinas e só manteve ativados os raios
antigravitacionais, que impediam que a nave pousasse diretamente no
solo. Aquele ponteiro, que Atan havia apontado, deslocou-se e fixou-
se na marcação zero.
— O próximo lance pertence a Tourenne! — observou Helga.
Pelo visto, Tourenne ainda guardava algumas surpresas. A
tripulação manteve-se em silêncio, à procura de uma explicação para
aquele estranho fenômeno. Depois Mario de Monti retornou à cabine
de comando. E o que relatou não era nada encorajador.
10

Não restava dúvida que Tourenne havia feito um lance decisivo


nesse jogo de vida ou morte. Era louco, mas só no que tangia ao
objetivo do seu plano desvairado. O plano em si era de uma
simplicidade genial. McLane agarrou o microfone e disse em voz alta:
— Do comandante para a tripulação: controlem-se e não percam a
cabeça. Vamos usar a massa cinzenta para descobrir uma saída para
essa enrascada. Lembrem-se de que até hoje sempre nos ocorreu a
idéia salvadora. Quando chegar a hora, precisamos agir em frações de
segundos. Cada qual deve prestar a máxima atenção naquilo que o
outro disser. E se disser algo que lhes pareça estranho, não deixem
isso passar. Pelo contrário, agucem o raciocínio e procurem decifrar o
significado dessa observação. Pode ter uma importância fundamental.
— Entendido — disse Hasso. — Está pensando em algo
específico?
— Não estou, não — respondeu Cliff. — Não sei de nada. Só sei
que vamos ter que aguardar o próximo lance de Tourenne.
Ibsen, que se considerava membro da tripulação, também disse
"entendido".
— É incrível, Cliff: todos os instrumentos acusam a mesma coisa!
— disse Mario.
Cliff ergueu as sobrancelhas.
— Acusam o quê, Mario?
— A pilha atômica está produzindo energia em grande quantidade.
Só que não vai nada para os acumuladores, que estão a zero. Tudo o
que a pilha gera, se escoa na mesma hora.
— Isso por acaso significa — quis saber Tamara, baixinho — que
o pessoal de Mura descobriu um processo que lhes permite roubar a
nossa energia lá de fora, sem qualquer ligação direta com a pilha?
McLane olhou para Tamara e acenou.
— É o que está acontecendo. Vamos tentar mais uma vez. Será que
dá, sem que a pilha entre em ebulição?
— A propósito: a energia para o nosso armamento, inclusive o
Overkill, também está se escoando.
— Entendi. Já bloqueou tudo?
— Evidentemente! — respondeu Mario, em tom ofendido.
Parecia querer acrescentar alguma coisa, mas depois resolveu não
sobrecarregar mais ainda a mente já bastante atormentada do seu
chefe.
Ibsen postou-se ao lado de Cliff e disse:
— Comandante... caímos numa armadilha espacial. Lá fora deve
haver uma instalação que, por assim dizer, suga a nossa energia e que
utiliza essa mesma energia para erigir uma campânula por cima da
nave. Quanto mais energia produzimos, tanto mais esse pequeno
campo é reforçado, mantendo-nos presos ao solo.
— É — disse Cliff. — A coisa deve ser mais ou menos essa. E isso
explica a tranqüilidade com que Tourenne nos concedeu a permissão
para voltarmos a bordo.
— E se empregarmos o Overkill...? — perguntou Helga. Notou
pelas reações de Cliff e Mario que sua sugestão não tinha sido das
melhores.
— Se ativarmos o projetor, isso nada mais significa do que ceder
energia de uma outra forma. Vai se escoar do mesmo jeito, sem causar
o menor dano. Aliás, se conhecêssemos o princípio de funcionamento
daquela instalação, disporíamos de uma proteção maravilhosa contra o
Overkill.
— Então só resta uma coisa a fazer! — gritou Atan Shubashi e
ergueu-se de um pulo.
— O quê? — perguntou o comandante.
— Desembarcar e procurar! Precisamos encontrar e destruir a
fonte eletromagnética daquela instalação!
Cliff deu uma risada meio rouca.
— E você acha que esses caras vão nos deixar perambular por aí?
Não vão ficar de braços cruzados enquanto liquidamos com o seu
segredinho!
— É, besteira minha! — Atan voltou cabisbaixo ao seu lugar.
— Cliff!
O comandante virou-se e olhou para Helga.
— Vai entrar um chamado audiovisual. Aperte a tecla número
quatro!
Cliff já imaginava quais seriam os próximos passos de Tourenne.
Calcou a tecla com o polegar e fitou o rosto de Tourenne na tela do
videofone. Tourenne contemplou Cliff com um ar de superioridade.
— Olá, McLane, como tem passado? Cliff ia estourar de raiva,
mas controlou-se e respondeu em tom afável:
— Muito bem, obrigado. Principalmente depois que fiquei privado
da sua agradável companhia. Mais alguma coisa que possa fazer?
— Pode sim. Que tal uma tentativazinha?
Cliff manteve-se calado. Mais uma vez, os dois homens travaram
um duelo silencioso com os olhares. Por fim, Tourenne soltou uma
curta risada.
— Não quer tentar decolar?
Silêncio. Tensa e amargurada, a tripulação acompanhava esse
estranho diálogo. Lembraram-se das recomendações do comandante e
puseram-se a refletir.
— É muito sensato de sua parte, pois seria totalmente inútil. Estou
convencido de que ficou bastante impressionado com o segredo
tecnológico da minha armadilha espacial.
— Correto — disse Cliff.
— O que mostra que os homens especialistas não são tão atrasados
como andou imaginando, não é?
— Inventou mais uma maneira de atormentar as pessoas, seu
sádico?
— Está me lisonjeando, McLane! — respondeu Tourenne.
— Por que nos fez voltar a bordo se já sabia que não ia nos deixar
decolar?
Com ar sério Tourenne respondeu:
— Isso foi uma brincadeira que bolei. Uma espécie de gato e rato,
entende? Afinal, eu não podia tolerar que aquele moleque, aquele seu
mecânico de bordo grosso como quê...
— Hasso! — interrompeu Cliff. — Espero que você também se
lembre disso!
— Pode ficar tranqüilo — respondeu Hasso da tela do outro
videofone — que eu não vou esquecer coisa alguma!
— ...fizesse voar pelos ares a bela Orion VIII. E agora seja
razoável, McLane. Vou lhe propor um negócio.
— E quem é que vai sair lucrando?
— Nós dois — disse Tourenne, solícito. — Com sua permissão,
um grupo dos meus homens vai subir a bordo e aí o senhor lhes
explica as instalações técnicas da nave. Em troca, prometo que não
vou mais matá-los. Nós partimos, e deixamos vocês aqui em Mura.
— Acha que sou tão ingênuo a ponto de acreditar numa só sílaba
do que diz? — perguntou Cliff. — Como vou saber que vai cumprir
sua palavra?
— Se acredita ou deixa de acreditar, é problema seu. Não tem
alternativa, McLane!
Tamara devia estar pensando num plano qualquer, pois disse,
baixinho, atrás de Cliff:
— Não temos escolha, comandante! | Aceite a proposta!
Cliff não respondeu. Mas três segundos depois, disse, com
evidente relutância:
— Está bem, Tourenne. Mande seu pessoal.
— Ótimo! — foi a resposta. — Já estamos a caminho. Ah! Antes
que me esqueça, pode-se poupar o trabalho de procurar suas armas.
Estão em nossas mãos!
A tela se apagou. Hasso esperou até que Helga tivesse cortado a
ligação e depois ergueu o braço direito. Empunhava uma reluzente
HM-4.
— Todas menos essa! — disse Hasso. Mario murmurou
amargurado:
— O idiota se esqueceu desse detalhe! McLane acenou.
— E isso vai lhe quebrar o pescoço. Prestem atenção... precisamos
separá-lo dos outros. Vou tentar fazer isso, quando o levar ao posto de
combate!
Shubashi não concordou.
— Não, Cliff, lá não. Procure fazê-lo no elevador. No interno, bem
entendido, não no telescópico. Esse nós podemos bloquear com um
simples aperto de botão.
— Você tem razão, Atan! — disse Cliff McLane. — Vocês têm
que me empurrar junto com ele para dentro da cabine. Aí vai levar
tanto safanão que em três tempos manda abrir essa maldita armadilha.
— Isso pode funcionar — disse Tamara, pensativa — desde que
ele não traga um batalhão de guarda-costas.
Helga lembrou um pormenor importante:
— Creio que vai dispensar os capangas, pois deve achar que
estamos completamente desarmados.
— Parece que essa vai ser a nossa última chance — disse Mario,
sombriamente — vou empregar meus punhos com imenso prazer.
Ibsen abriu os olhos e apontou o indicador estendido para o alto.
— Comandante — disse lentamente — sinto necessidade de me
redimir perante todos e a minha própria consciência. Permite que eu
faça uma das minhas observações espirituosas?
Cliff dirigiu um olhar benevolente para Ibsen. Aquele homem não
tinha passado pelo treinamento brutal dos comandantes e no entanto
havia suportado as dores mais cruciantes com um estoicismo digno de
todos os louvores. Não, não havia por que condenar Pieter-Paul Ibsen.
— Pois não! — disse Cliff.
— Considerem o seguinte problema: um homem deve arremessar
um objeto frágil, de grande valor, através de uma placa de vidro duro
e resistente sem, no entanto, danificar aquele objeto... reparem que o
nosso problema é semelhante. E o que é que esse homem tem a fazer?
Primeiramente, estilhaçar aquele vidro com uma pedra, ou seja, um
objeto sem valor algum. Depois poderá lançar seu objeto precioso pela
abertura, sem destruí-lo. Entenderam a comparação?
Cliff olhou para Ibsen com ar radiante.
— Claro que entendi! Obrigado, Piepo! Mario!
— Entendi!
— Os demais... entenderam?
Todos tinham entendido. Ao menos assim afirmaram. Hasso subiu
da casa de máquinas e entregou a arma a Cliff.
— Olhe o sinal luminoso! — avisou Helga. — Baixe o elevador
telescópico!
Cliff acenou e acionou uma chave. O dispositivo hidráulico entrou
em funcionamento, baixando a tromba metálica ao solo.
— Chegaram! — disse Helga, sem necessidade alguma.
Realmente, de bobo Tourenne não tinha nada. Descobriu
imediatamente como ligar o interfone na cabine do elevador ao
sistema geral de bordo, e agora sua voz fria ressoava dos alto-falantes:
— Atenção, McLane! Vamos subir! E nada de bobagens. Lembre-
se de que estão desarmados, o que não é bem o nosso caso!
Cliff fez um sinal para Mario e o subcomandante fez o elevador
subir. Tourenne e seus capangas chegaram ao corredor circular na
parte inferior da nave e levaram alguns segundos até descobrirem o
elevador menor que os levaria à sala de comando. Mario sussurrou:
— Parece que vai dar certo! O banido não está lembrado da arma!
Cliff acenou, tenso.
— Calma! — recomendou, baixinho. — E esperem até que eu dê o
sinal!
Permaneceram nos seus lugares, olhos fitos na porta do elevador.
Tourenne apareceu, seguido de perto por dois guardas fortemente
armados. Mais três homens surgiram na pequena porta; deviam ser os
"especialistas". Os dois guardas plantaram-se diante de Cliff,
apontando os projetores para o peito do comandante. Ninguém falava.
Tourenne examinou rapidamente a instalação da cabine de comando;
parecia ter encontrado o que havia imaginado. Interrompeu
bruscamente seu passeio de inspeção e parou a menos de um metro de
Cliff.
— E agora, meu amigo — disse em tom benévolo — certamente
vai me dizer, quem ficou com a arma que surrupiaram daquele garoto
avoado?
Cliff franziu a testa e perguntou com ar inocente:
— Que arma?
— Deixe de besteira, major! — respondeu Tourenne. — Acha
mesmo que eu sou tão bobo assim? Nem por um único segundo me
esqueci daquela arma!
— Que arma? — Cliff repetiu a pergunta com uma expressão de
espanto. A tripulação prendeu a respiração.
— Eu sabia o que essa arma representava para o senhor — disse
Tourenne, com um sorriso malicioso. — Por isso mesmo não dei a
entender antes, que me lembrava do pormenor. Sei lá se essa revelação
prematura não o teria levado a cometer um ato desesperado. Agora
não corro mais esse perigo. Agora estou aqui para impedir que tal
coisa aconteça.
Mais uma vez, Cliff estava encurralado. Imóvel, fitava Tourenne e
seus acompanhantes silenciosos. Esse homem parecia falar por todos
os deportados deste mundo; talvez fosse isso mesmo que o obrigava a
falar ininterruptamente.
— Como é? — disse, já em tom mais ríspido. — Vamos logo!
Quem ficou com ela?
McLane ainda vacilou. Tourenne lançou um rápido olhar para
Helga e Tamara e disse, em tom gélido:
— Se não disser imediatamente onde se encontra essa arma, vou
mandar arrancar a roupa de todos, até ficarem nus em pêlo. Receio
que isso possa vir a ser algo embaraçoso para as duas senhoras!
McLane deixou a arma escorregar da manga, agarrando-a
delicadamente pela co-ronha. Impassível, entregou o pesado projetor a
um dos guardas. Bem-humorado, Tourenne exclamou:
— Bravo! Trata-se de um cavalheiro!
Nada mais nos impede de começar com a demonstração. Por favor,
comandante McLane, a palavra é sua.
Cliff começou a falar, só para ocultar seu desapontamento sem
fim.
— Tourenne — disse, controlando a voz com dificuldade —
estamos mais uma vez à sua mercê. Mas aqui a bordo o senhor é
apenas um estranho e exijo que se comporte com um mínimo de
decência, senão vou contar lorotas tecnológicas aos seus homens. E aí
acaba por destruir a nave no duro. Portanto, está avisado: quero muito
respeito!
— Não precisa me dar lições de boas maneiras, major —
respondeu Tourenne, num tom displicente.
Cliff virou-se e apontou para sua poltrona.
— Bem, creio que devíamos começar pelas coisas mais simples.
Vou mostrar como se realiza uma decolagem normal. Preste atenção
nas manobras e acompanhe as diversas funções nos instrumentos
desse painel. Qual dos senhores é o astronavegador?
Dirigiu-se aos três técnicos, que até agora vinham mantendo um
silêncio total.
— Eu! — disse um deles, lacônica- I mente.
— Então me faça o favor e fique ao lado do meu subcomandante;
lá o senhor pode observar os trabalhos no elemento de entrada do
computador. Perfeito, Mario?
— Vou programar um curso hipotético para Umbriel, está bem
assim?
O segundo técnico observou o colega que se afastava e depois
disse a Tourenne:
— Quero ir à casa de máquinas.
— Hasso — disse Cliff e reparou o aceno do engenheiro — queira
ter a bondade de dedicar sua atenção a este cavalheiro.
— Com todo o prazer! — asseverou Hasso, em tom suave.
O terceiro dos técnicos resolveu externar seu pedido:
— E eu quero me familiarizar com a técnica das manobras.
Com um gesto Cliff o chamou para junto de si e perguntou a
Tourenne:
— E o senhor, não tem também um desejo especial?
Tourenne sacudiu a cabeça.
— Eu não. Se não tiver objeção, vou ficar grudado no senhor e
observar todos os seus movimentos.
Cliff nada respondeu, e depois deu uma ordem:
— Do comandante para a tripulação: ocupar posições para
decolagem.
Um dos técnicos dirigiu-se à casa de máquinas; claro que conhecia
as plantas de uma nave espacial e encontrou o caminho com
facilidade. Cliff sentou-se, mas não afivelou os cintos de segurança.
— A propósito, Tourenne: meus parabéns pela campânula
energética que erigiu por cima da nossa nave. É verdade que serve a
um fim execrável, mas não deixa de ser uma obra-prima. Qual é o
diâmetro dela?
Desconfiado, Tourenne respondeu com outra pergunta:
— Para que quer saber isso?
— Olhe, daqui a instantes vai assistir a uma decolagem. Mas eu
preciso saber até que altura eu posso deixar a nave subir, para que não
esbarre no fecho da sua campânula. Isso implicaria num
superaquecimento dos propulsores que se derreteriam na mesma hora.
Aliás, será uma ótima oportunidade para observar a precisão dos
nossos freios automáticos.
Tourenne dirigiu-se ao técnico que se encontrava ao lado de Cliff.
— Isso interessa a você, Joe?
O homem acenou com veemência e respondeu com uma voz
desagradável:
— Claro que interessa, chefe!
Sem poder esconder o orgulho, Tourenne explicou:
— Essa campânula tem um diâmetro de quinhentos e oitenta
metros; o vértice, ou fecho, já que parece preferir esse termo,
encontra-se a oitocentos e sessenta metros acima do solo.
Cliff chamou a atenção de Atan e disse:
— Atan, calcule o ângulo de ataque e a potência necessária para a
subida até o fecho!
Atan não entendeu o que Cliff tinha em mente. Mas depois
lembrou-se da comparação que Ibsen havia feito, e percebeu o olhar
insistente de McLane. Rapidamente pôs-se a operar na sua calculadora
de mesa e segundos mais tarde entregou os resultados ao comandante.
— Shubashi! — alertou Tourenne, — Daqui por diante, faça logo
o que lhe mandam. Não vá pensar que vou tolerar resistência passiva!
Atan resmungou algo ininteligível e dedicou-se novamente às suas
telas e chaves. Desconfiado, o técnico perguntou:
— Para que precisa saber o ângulo de ataque?
McLane virou-se para Mario, que estava esperando ansiosamente
por uma deixa.
— Para a neutralização dos campos de força...
Mario entendeu imediatamente. Agora McLane dirigiu-se a Ibsen,
perguntando:
— Diga-me uma coisa. Já explorou a idéia do equilíbrio de forças
nos seus vôos literários?
— Vez por outra — respondeu Ibsen, em tom alegre. — Esse
fenômeno físico permite bolar uma série de coisinhas que tornam a
narrativa bem mais interessante.
"Tomara que a turma tenha entendido tudo", pensou Cliff, mais
tenso do que nunca. Ouviu Tourenne dizer:
— Pare com essa lengalenga! Quero ver logo essa decolagem!
Do fundo da sala de comando, veio o matraquear do computador.
— Terminou a programação, Mario? — perguntou Cliff.
— Tudo pronto, chefe!
Cliff agarrou o microfone do intercomunicador e disse:
— Do comandante para casa de máquinas e primeiro sistema de
segurança: cinco segundos após o inicio da contagem regressiva,
abastecer LA Um com carga total. Está claro isso?
— Está claro! — responderam Hasso e Mario, em tom indiferente.
— O que significa LA Um? — quis saber o técnico.
— É a nossa abreviatura para o primeiro dispositivo de
Lançamento Automático — disse Cliff, mostrando os dentes. — Estou
dizendo que vai longe com esses seus especialistas, Tourenne! Talvez
consigam percorrer um quilômetro, se tanto.
— Foi por isso que o contratei, McLane! — retrucou Tourenne
sarcasticamente.
— Vamos logo, continue!
— Do comandante para o segundo sistema de segurança: tudo
pronto?
Lá do computador Mario respondeu:
— Mas...?
Cliff virou -se rapidamente e berrou:
— O que você ainda está fazendo aí? Vá imediatamente ao seu
posto!
Mario fez uma porção de gestos apaziguadores, dizendo sem parar:
— Está bem... está bem... está bem... já estou indo!
— Ocupem as posições!
— Um momento! — disse Tourenne a Mario, que já tinha
agarrado a maçaneta da porta do elevador. — Onde pensa que vai?
Mario apontou para baixo.
— Para o posto de observação no sistema de segurança, é claro!
— E para quê?
McLane olhou de relance para o cronômetro de bordo e depois se
virou para Tourenne. Sacudiu a cabeça lentamente, como se estivesse
profundamente entristecido e disse em tom quase amigável:
— Está lembrado do que eu lhe disse a respeito da evolução
tecnológica nos últimos três anos? Aí tem um exemplo disso. Naves
de grande porte, do tipo da Orion, passam por um momento dos mais
críticos na primeira fase da decolagem. Para ser mais preciso, na hora
em que se desprendem do solo. É preciso controlar constantemente o
consumo de energia e as diversas manobras. Para maior segurança,
esse controle é realizado por dois sistemas completamente
independentes um do outro. E é por isso que alguém tem que ficar na
sala de controle. Situa-se no convés inferior, onde, aliás, confluem
todas as demais redes energéticas de bordo. O meu subcomandante
não quer outra coisa, senão ocupar esse posto, de vital importância.
— Está bem — disse Tourenne — faz sentido.
Chamou um dos guardas:
— Você vai com ele, para impedir que cometa algum desatino!
— Lógico, chefe! — respondeu o homem carrancudo.
Mario e o guarda deixaram a cabine de comando. Pouco depois, se
encontravam na câmara de ejeção da Lancet e Mario começou a
explicar as inúmeras operações necessárias para a realização de um
controle perfeito da decolagem. Apontou a esmo para diversos
instrumentos e mostradores e, de passagem, ligou o intercomunicador
de bordo. Finalmente abriu o diafragma de vedação acima do poço de
lançamento da nave auxiliar. Uma lâmpada de aviso acendeu-se na
mesa de Cliff.
— Hasso... está tudo entendido?
— Tudo claro! — respondeu Hasso, aparentemente mal-
humorado. — Propulsão pronta para a partida!
Atan ligou o computador.
— Cinco segundos para a contagem regressiva! — avisou.
Algo perplexo, Tourenne observou:
— Pensei que a contagem regressiva fosse realizada pelo seu
computador digital, por meio de impulsos automáticos.
— Claro! — respondeu Cliff. — É só prestar bem atenção, que vai
entender tudo num instante.
Uma voz impessoal começou a contar:
— Dez... nove... oito...
A tripulação da Orion retesou os músculos. Sabiam o que iria
acontecer quando a contagem regressiva chegasse a cinco. Estavam
em vias de realizar uma decolagem, mas nem de longe a "decolagem
normal" que Cliff havia prometido a Tourenne...
— ... seis... cinco... quatro...
A contagem de "cinco" um leve abalo percorreu a nave. No mesmo
instante, a cabeça de Mario desapareceu do videofone que Cliff e
Tourenne estavam observando. A tela se apagou.
— Droga! — rosnou Cliff. — Volta e meia essa tela idiota pifa!
Depois vou ligar uma outra...
— ...dois... um... zero!
Ao quinto impulso, Mario puxou a alavanca de ejeção. Como uma
bala, a Lancet, abarrotada de energia, foi projetada verticalmente para
cima e atingiu a campânula energética exatamente no fecho, onde os
campos de força dos diversos projetores confluíam. Um ofuscante
clarão rasgou o céu.
O anteparo se desfez e antes que os projetores pudessem produzir
energia em quantidade suficiente para reconstituí-lo, a Orion se lançou
pela abertura, atravessando a chuva de escombros da Lancet e
desapareceu na escuridão.
11

O RELUZENTE disco prateado continuou a subir, acelerando


incessantemente. Ouvia-se o zumbido grave dos absorvedores.
Qualquer que fosse a aceleração imprimida à nave, essas máquinas
possantes eram capazes de manter constantemente em 1g a gravitação
no interior da Orion. Tenso como uma mola de aço, McLane estava
sentado diante da mesa de comando, observando a tela que mostrava o
planeta. Mura afastava-se continuamente, tornava-se cada vez menor,
até se transformar num corpo esférico perdido no espaço. Aflito,
Tourenne perguntou:
— O que foi isso?
— Uma decolagem experimental! — respondeu Atan, lá da mesa
do astronavegador. Seu rosto denotava o estado de tensão em que se
encontrava. Tourenne apontou a arma para as costas de McLane.
— Isso não foi uma simples demonstração! O que está fazendo
McLane?
Friamente Cliff respondeu:
— Se me matar agora, comete suicídio. A nave explode feito uma
bomba!
Nem se virou e disse no microfone do intercomunicador de bordo:
— Do comandante para casa de máquinas: bloquear energia
latente! Rápido! Desligar todos os absorvedores... evitar inundação
energética!
Todos entenderam. McLane e sua tripulação sabiam o que
aconteceria em seguida. Os absorvedores seriam desligados
temporariamente e, com isso, a gravitação artificial a bordo deixaria
de existir. E como os propulsores estavam trabalhando em ponto
morto, não imprimindo qualquer aceleração à nave, tudo se tornaria
imponderável por um curto período de tempo. Agarraram-se da
melhor forma possível. Uma violenta pancada sacolejou a Orion.
O abalo pegou Tourenne, o guarda e o técnico de surpresa.
Perderam o equilíbrio e começaram a girar. Bruscamente Hasso
reativou os absorvedores. A oportunidade era ótima. McLane
levantou-se e viu que a arma não estava mais apontada para ele e sim,
para o teto da cabine. Sem perda de tempo desferiu um violento soco,
que atingiu Tourenne abaixo do esterno. Cego de dor, o deportado
começou a cambalear. Tamara aproximou-se de lado e desarmou
Tourenne com um certeiro golpe de caratê. A arma resvalou pelo piso,
pois Hasso estava alterando constantemente a posição da nave,
manejando os controles de emergência na casa de máquinas, ora
aumentando ora diminuindo a potência dos absorvedores. A Orion
bamboleava loucamente através do espaço, enquanto a luta a bordo
continuava acirrada. Tamara chutou a arma, que desapareceu de vista.
McLane agarrou Tourenne pela gola da jaqueta e ergueu o punho.
— Com as mais cordiais recomendações da tripulação da Orion!
— disse e desferiu o golpe sem a menor contemplação.
Tourenne deu um gemido rouco, girou em torno do próprio eixo e
estatelou-se no chão.
Tamara soltou um grito lancinante:
— McLane! Cuidado!
Cegamente Cliff lançou-se para a frente. O guarda, que Helga e
Atan estavam tentando dominar, conseguiu livrar o braço e apontou a
arma para o comandante. O tiro passou chiando rente à cabeça de
Cliff, estilhaçando algum instrumento nos fundos. Agora Ibsen
resolveu intervir. Deu um salto por cima da poltrona, à qual se tinha
agarrado durante as manobras audaciosas de Hasso, e parou, avaliando
rapidamente a distância. Com o canto da mão, acertou o guarda na
carótida. O homem tombou pesadamente ao chão, sem um gemido
sequer, A cabine de comando estava libertada.
— Vamos, Atan, para a câmara da Lancet. Ajude Mario e Hasso!
Shubashi saiu na disparada em direção ao elevador. Cliff olhou ao
redor. Pelo visto, Ibsen tinha feito o serviço completo. O outro técnico
também jazia no chão e não se mexia. Pieter-Paul Ibsen esfregava a
mão e riu para Cliff.
— Vou para a sala de máquinas — disse Cliff e fez menção de
seguir Atan.
A voz de Hasso o fez parar.
— Não é preciso, Cliff, meu amigo já está dormindo.
Cliff entrou no elevador junto com Ibsen e os dois correram para a
câmara de ejeção da Lancet...
Não foi à toa que Tourenne havia destacado o mais forte dos seus
guardas para acompanhar Mario. O páreo ia ser duro. Meio segundo
após a ejeção da nave auxiliar, Mario conseguiu agarrar a arma
daquele brutamontes trajado de negro. Inutilizou o pesado projetor,
entortando o cano com a maior facilidade e agora estava engalfinhado
num violento corpo-a-corpo.
Mario acertou um soco no peito do adversário e não teve que
esperar muito pelo troco. Levou uma violenta pancada no ouvido e
bateu com a cabeça contra a luva de uma tubulação que corria ao
longo da parede. Ouviu passos... Ibsen, Cliff e Atan entraram correndo
na câmara de ejeção. Ibsen terminou a luta, torcendo o braço do
guarda para trás e aplicando mais uma vez aquele golpe na carótida.
Este devia ser seu golpe predileto. Resfolegando, Mario desencostou-
se da parede e sacudiu a cabeça aturdida.
— Se o senhor escrever tão bem... — murmurou e agarrou a mão
do escritor — como luta caratê, então é perfeitamente possível que
algum dia receba o Prêmio Nobel!
Riram um para o outro.
— Muito bem — disse Cliff. — Ainda não é hora de descansar.
Primeiro temos que coletar aqueles cavalheiros, manietá-los como
manda o figurino e depositá-los nas celas apropriadas. Depois vamos
estabilizar essa nave maluca, programar um curso preciso rumo a
Terra e entregar tudo ao piloto automático.
Daqui a pouco a Orion mergulharia no hiperespaço. Todos os
instrumentos funcionavam normalmente. O planeta Mura e o sol
Umbriel jaziam longe na distância. McLane girou a poltrona.
— Acho que agora todos nós merecemos um generoso gole de
whisky.
Olhou para Pieter-Paul Ibsen. O escritor estava feliz; isso se notava
de relance. Esparramado na poltrona, contemplava o comandante com
um largo sorriso. Que mais poderia querer? Tinha vivido sua grande
aventura, e agora estava aqui, numa nave espacial das mais modernas,
em cujo interior havia descoberto coisas que iriam influenciar
decisivamente as suas obras futuras.
— Merecemos, sim, comandante! — respondeu, em tom quase
fervoroso.
— Não se esqueça, Atan — repetiu Cliff — temos que voltar o
mais rapidamente possível!
O pequeno astronavegador, de cabelos negros, limitou-se a acenar.
E depois a Orion mergulhou no hiperespaço.
***
Em condições normais, o vôo da segunda zona de distância para o
centro da gigantesca esfera espacial de 900 parsec de diâmetro durava
aproximadamente dois dias. Desta vez, porém, o retorno à base 104
não levaria mais de trinta e seis horas, pois McLane solicitou os
propulsores ao máximo, lançando mão de toda a energia disponível.
Cinco horas antes do pouso a tripulação estava reunida na cabine
de comando. Sentado na poltrona, Cliff McLane balançava um
enorme copo na mão e trocava risos e olhares com seu pessoal.
— O que mais me aborreceu foi sua total inaptidão para a pescaria,
meus amigos! — disse o comandante, ainda rindo.
— Pescaria...? — perguntou Tamara, perplexa.
— Foi o que eu disse, sim senhora! — respondeu McLane.
— Não pode explicar isso um pouquinho melhor? — sugeriu
Hasso.
— Tá vendo? Bem que eu disse que vocês não dão para esse
esporte! Está acontecendo de novo! Poxa, gente, vocês levaram uma
eternidade até pescar o que eu realmente queria! Fiquei com um medo
dos diabos que esse Tourenne desconfiasse de algo, se eu falasse em
termos mais claros!
Mario parecia ofendido, mas isso talvez pudesse ser atribuído ao
consumo alcoólico.
— Eu acho — respondeu lentamente — que nós entendemos tudo
até bem depressa!
Tamara apontou para Ibsen e disse:
— Para ser honesta: até agora não entendi bulufas!
O ambiente a bordo não podia ser mais descontraído. Uma farta
refeição e algumas horas de sono haviam contribuído
consideravelmente para que todos se refizessem do susto por que
tinham passado. O resto correu por conta do êxito alcançado. Ibsen
escrevia febrilmente, anotando cenas e mais cenas. Pelo visto, lançaria
não um livro, mas sim, toda uma série após esse vôo. Com a língua
enrolada, começou a explicar:
— Ora, caríssima camarada Jagellovsk, mas isso é tão óbvio! Se
nós enchemos uma Lancet de energia e depois a lançamos sob um
ângulo de noventa graus de encontro ao fecho da campânula
energética, criamos, no momento do impacto, uma justaposição de
campos de força, que se neutralizam.
— Que coisa mais fascinante! — exclamou Mario de Monti, com
um sorriso maroto.
— Está querendo me gozar? — quis saber Ibsen.
— Longe de mim tal coisa! Afinal, a idéia foi sua!
Ibsen engoliu e levantou-se. Com o copo na mão direita, fez aquele
gesto grandiloqüente, que todos conheciam, e prosseguiu:
— Por um instante, a armadilha espacial se abriu, nesse mesmo
instante... sssssst!
Imitou uma série de barulhos que, na sua opinião, denotavam
perfeitamente o processo da decolagem.
Todos caíram na gargalhada.
— Uma idéia genial! — finalizou Ibsen. Secamente, McLane
retrucou:
— Pena, que não foi minha...!
— Mas é tão boa, que seria digna do senhor, comandante! E vou
aproveitá-la na minha próxima novela...
Olhou ao redor e encarou um por um os rostos sorridentes da
tripulação.
— ...se vocês, meus amigos, não fizerem objeção!
McLane comparou o seu soldo com os honorários de um literato e
respondeu:
— Só se me der participação nos seus lucros!
— Vou oferecer um jantar! — prometeu Ibsen, ligeiramente tonto.
Atan deu uma risadinha como sempre i dava quando achava que ia
dizer algo engraçado.
— Sei a quem ele vai oferecer participação nos lucros! — disse e
lançou um olhar malicioso para Tamara, que se acomodara numa das
enormes poltronas e não desviava os olhos de Ibsen. O escritor recuou
alguns passos, tropeçou e derramou um pouco de whisky. Caiu de
costas na poltrona. Tamara virou a cabeça e, por sua vez, olhou para
Helga Legrelle.
— Receio que a felizarda seja outra, Atan!
Ibsen não sabia do que se tratava e retomou o assunto que mais lhe
interessava.
— Uma idéia genial! O herói do meu livro, e já sei com quem vai
se parecer, romperá aquela armadilha espacial exatamente da mesma
maneira como nós fizemos com tamanha displicência! Igualzinho!
Hasso começou a rir estrondosamente.
— Cliff! — exclamou. — Cuidado! Ibsen é capaz de escrever um
livro sobre Cliff McLane! Imagine só, você, herói de um livro! Essa
eu não agüento! Morro de rir, só de pensar nisso! — fez um gesto para
Ibsen. — Ei! O senhor aí! Seu escritor! Pelo que eu sei, a ficção
científica trata de coisas que ainda não existem. Mas aquela armadilha
idiota existiu. Como é que explica isso? Afinal, o senhor é o perito em
assuntos futurísticos, não é?
Com um gesto grandioso, Ibsen fez que não.
— Deixei de ser!
— O queeeeê? — a exclamação escapou da boca de Tamara.
Parecia não acreditar que o ídolo dessa missão pudesse deixar de
escrever de uma hora para a outra. — Ib- ' sen, não pode fazer uma
coisa dessas! Não i deve estar falando sério!
— Vou escrever sobre vocês! — anunciou em tom triunfante. —
Vocês são muito mais fascinantes que o futuro!
Levantou-se e cambaleou perigosamente. Depois ergueu o copo e
brindou os membros da tripulação um por um. Tamara virou-se para
Cliff e disse:
— De tanto falar em Ibsen, acabamos negligenciando nossas
obrigações, comandante! Lembre-se de que devíamos entrar em
contato com Wamsler!
— Com mil diabos! — disse Cliff. — Não é que eu me tinha
esquecido disso!
— E olhe que já estamos com sete dias de atraso! — lembrou
Tamara.
— Será que nesse estado deplorável você consegue estabelecer
uma ligação com o gabinete de Wamsler? — perguntou Cliff, com
grossura total.
Helga, a quem Cliff havia dirigido a pergunta, não respondeu de
imediato. Ainda estava ocupada em observar Ibsen que, sob o efeito
do álcool, afundava cada vez mais na poltrona. Segundos depois,
começou a roncar. Helga virou-se para Cliff:
— Em resposta à sua pergunta pouco galante, major McLane,
posso lhe assegurar que estou apta a cumprir as suas ordens. Nem que
eu tivesse bebido o dobro!
— Então, faça-me o favor!
— Agora mesmo, comandante!
— Sim, agorinha mesmo!
Enquanto Helga procurava estabelecer a ligação, Cliff recostou-se
e começou a refletir.
Tinham conseguido frustrar o intento de Tourenne na última hora.
Mas, se houvessem falhado, o que teria acontecido? Cliff admitia a
possibilidade de que a inteligência privilegiada desse homem pudesse
encontrar uma maneira de estabelecer contato entre os terranos e os
estranhos. E nesse caso o adversário ficaria de posse da nave.
Teria à sua disposição os homens e seu saber, o que lhe daria
condições para se inteirar facilmente de tudo que se passava naquela
esfera espacial. E teria em suas mãos o segredo do Overkill, a única
arma eficaz com que Terra podia se defender contra a tecnologia
superior dos inimigos. Daqueles inimigos misteriosos, dos quais se
sabia apenas que não recuavam diante de nada.
Por que motivo os extraterranos queriam ver Terra destruída? Por
que tencionavam exterminar bilhões de seres humanos? Que vantagem
esperavam tirar disso, se todos os mundos habitados, colonizados ou
explorados pelo homem não apresentavam as condições de vida de
que necessitavam?
A poucas horas do pouso na base 104, Cliff estava inquieto. Talvez
alguém em Terra pudesse elucidar esses pensamentos contraditórios.
Cliff assustou-se ao ouvir a voz de Helga:
— Cliff, consegui estabelecer a ligação!
12

O MARECHAL Wamsler já havia passado por tantas situações


enervantes na sua longa vida, que nada mais podia irritá-lo a ponto de
ter um ataque histérico. Ou quase nada, pois uma coisa o marechal
detestava acima de qualquer outra: a incerteza. E, no momento, não
tinha a menor certeza a respeito da sorte da Orion. Wamsler estava
furioso, e falava em voz tão alta, que o ministro não podia deixar de
notar a insegurança do marechal.
— Ainda não há qualquer motivo para ficar preocupado, senhor
ministro!
O ministro para assuntos extraterranos fuzilou Wamsler com os
olhos.
— Há sete dias que o senhor afirma isso. Essa história está mal
contada! Exijo uma resposta clara!
Wamsler apontou para a tela do videofone e disse duramente:
— Eis a minha resposta clara: não sabemos o que aconteceu à
Orion. Ninguém sabe!
— Não faz nem idéia do que possa ter ocorrido?
— Sinto muito — respondeu Wamsler — mas não sou vidente.
Talvez sirva para tranqüilizá-lo um pouco, se eu lhe revelar que, certa
vez, McLane esteve sumido durante dezessete dias. E no décimo
oitavo retornou belo e fagueiro, como se nada de especial tivesse
ocorrido. Colocou em cima desta mesma mesa um jogo de transistores
do mais alto valor para os nossos técnicos, e ainda quis saber como
andava minha pressão sangüínea.
Amargurado, o ministro observou:
— Um homem espirituoso!
— Além de ser um homem espirituoso, senhor ministro, McLane é
um comandante excelente!
O ministro debruçou-se ligeiramente, olhou de relance para
Spring-Brauner e depois perguntou, baixinho e em tom confidencial:
— Diga-me uma coisa, marechal... É verdade que McLane adora
tomar umas e outras?
Wamsler empertigou-se e fitou o interlocutor com ar severo. Não
brincava com um assunto desses.
— Está querendo insinuar que McLane é um pau-d'água? —
explodiu.
Spring-Brauner manteve-se na expectativa.
— É exatamente isso que eu quero saber.
— Sim; McLane é capaz de ingerir uma quantidade espantosa de
álcool. Mas só o
I faz quando não está de serviço. E é isso que
i me interessa.
O ministro acenou lentamente com a cabeça. Mostrava-se tão
abatido como se tivesse recebido a notícia de que sua filha havia
desmanchado o noivado.
— Era só o que faltava! — disse em tom lamentoso. — Quer dizer
que o senhor confiou o futuro esposo da minha própria filha a um
alcoólatra! É inacreditável! Ibsen, o escritor de fama mundial,
entregue à irresponsabilidade de um beberrão inveterado!
O rosto de Wamsler começou a mudar de cor, tingindo-se de um
vermelho doentio.
— Não é nada disso! — gritou. — É rigorosamente proibido
ingerir álcool a bordo durante as missões!
— E antes e depois das missões?
— Até hoje não ocorreu um único acidente em toda a frota
espacial, cuja causa tivesse sido o consumo de bebidas!
Wamsler estava em vias de sofrer um colapso nervoso, quando a
cigarra do videofone ressoou pelo gabinete. A tela se aclarou e
mostrou a imagem tridimensional da ordenança feminina, que estava
de serviço na ante-sala, e agora contemplava o marechal com um
sorriso solícito.
— O que é? — gritou Wamsler, agitado.
— Entramos em contato com a Orion. Chamado de McLane.
Surpreso, Wamsler hesitou por um instante e depois fez um gesto
rápido para a moça:
— Transfira a ligação para esse aparelho, aí.
— Entendido; só um segundo.
A sigla da Estação Avançada IV apareceu na tela tremeluzente.
Depois a imagem se estabilizou, e Wamsler, Spring-Brauner e o
ministro viram o meio-corpo de um Cliff McLane muito bem
disposto.
"Podia ter escovado o cabelo um pouco mais", pensou Spring-
Brauner, que fitava atentamente os olhos sérios do comandante.
McLane fez o seu relato dentro do mais rigoroso formalismo
militar:
— Cruzador espacial rápido Orion VIII anuncia regresso sob
comando do major McLane. Acabamos de passar pela estação
retransmissora e já iniciamos manobras para pouso na base 104.
Wamsler começou a berrar; estava com raiva, mas ao mesmo
tempo sentia um alívio incomensurável.
— McLane! Onde foi que se escondeu esse tempo todo, homem de
Deus? Ficou sete dias sem dar sinal de vida; quase nos mata de tanta
preocupação. O que foi que houve?
— Nosso atraso corre por conta de uma lamentável estadia forçada
em Mura.
— Mura? Que diabo andou fazendo em Mura?
— Tivemos que pousar lá, para apanhar Ibsen. Essa operação deu
origem a uma série de pequenos incidentes que, infelizmente, nos
obrigaram a permanecer em Mura um pouco mais do que
esperávamos.
Durante alguns segundos, a imagem ficou distorcida; depois
estabilizou-se novamente.
— Mas, as suas ordens...! Cliff acenou.
— Tenho certeza que vai achar as nossas aventuras sumamente
interessantes, marechal! Assim que pousar, vou dar um pulo aí, para
apresentar um relato completo. Posso adiantar que a coisa não foi
fácil.
Wamsler resolveu não fazer mais perguntas e aguardar pelo
relatório. Conhecia Cliff bem demais, para se deixar .enganar pelo tom
displicente do comandante, nem tampouco por aquela meia dúzia de
observações jocosas. O marechal sabia que por detrás delas se
ocultava algo muito sério. Sem dúvida alguma, McLane não se havia
limitado a procurar espórios no espaço cósmico...
— McLane, como é que está passando o meu genro? — perguntou
o ministro, aflito.
— Da última vez que o vi, estava passando bem.
O ministro arregalou os olhos, sobressaltado.
— O que quer dizer com isso... quando o viu da última vez? Quero
falar com ele agora mesmo!
Cliff sacudiu a cabeça.
— Sinto muito, mas não vai ser possível.
— E por que não?
— É que, lamentavelmente, o senhor seu genro no momento não
está em condições de fazer bom uso da voz.
— Bobagem! Insisto em falar com ele!
— Está recolhido ao leito, no seu camarote.
O ministro emudeceu de susto. Relacionou recolhimento ao leito
pouco antes do pouso com doença, e doença adquirida no universo
com agonia... quase chegou a se sentir mal diante de perspectivas tão
sombrias.
— Ele está... está doente? — perguntou, balbuciando.
Cliff caiu numa ruidosa gargalhada e depois disse, com toda
nitidez:
— Doente, não; só bêbado como um gambá! Desligo!
A tela se apagou. Perplexo, o ministro se virou e viu que Wamsler
e Spring-Brauner se entreolhavam em silêncio. Ia dizer alguma coisa,
mas antes que pudesse abrir a boca, o marechal e seu ajudante-de-
ordens desataram a rir estrondosamente. O ministro levantou-se
lentamente e deixou o gabinete.
Uma hora mais tarde Cliff apresentou-se a Wamsler e convenceu o
marechal a acompanhá-lo até a superfície, onde poderiam conversar
mais à vontade, sem serem interrompidos a toda hora. Agora, os dois
estavam sentados debaixo do toldo daquele enorme terraço que se
estendia por cima da praia. Afora o murmúrio das ondas e dos passos
distantes de um garçom, tudo era silêncio. Cliff relatou o que se tinha
passado durante os últimos dias.
— E suas vítimas, ainda se encontram a bordo?
Wamsler mexeu o líquido no seu copo e olhou para a imensidão do
Golfo de Carpentária.
— Estão a bordo, sim — respondeu McLane. — Trancados nos
camarotes e bem amarrados. Não têm como escapar.
— Muito bem. E esse tal de Ibsen, que tipo de sujeito é?
Pensativo, Cliff disse:
— Não é exatamente um durão, mas a verdade é que se comportou
com uma dignidade surpreendente. Na minha opinião, abraçou a
profissão certa.
— E a campânula energética de Tourenne, como funciona?
Cliff apontou para o rádio de pulso.
— Acho que devia informar o coronel Villa sem delongas,
marechal. Só que Tamara já deve ter feito isso. O que importa é que
Villa consiga obter o projeto dessa instalação. Seria de grande
utilidade para nós.
Wamsler concordou plenamente.
— Vou avisar Villa, assim que estiver de volta ao meu gabinete.
Tem mais algum pedido a fazer, algum desejo?
Wamsler observou Cliff de lado, enquanto o comandante mantinha
a cabeça baixa, absorto em pensamentos.
Cliff começou a cocar o queixo e disse:
— Andei refletindo um pouco, durante o vôo de retorno. Receio
que estamos na iminência de sermos envolvidos num conflito
gigantesco. Mas parece que ninguém desconfia disso. Tenho a
impressão que os extraterranos estão tramando mais uma das suas;
têm-se mostrado calmos demais ultimamente, não acha?
Wamsler acenou sombriamente.
— É, todos nós aqui temos essa impressão.
— Nesse caso, há uma porção de coisas que eu simplesmente não
entendo.
— Por exemplo?
Cliff silenciou por alguns instantes, depois respondeu:
— Se essa calma momentânea realmente só for a calmaria antes da
tempestade, então estou achando que todos nós, comandantes,
astronavegadores, etc., estamos muito mal informados. Teríamos que
ser praticamente onipresentes, pois não sabemos como e onde o
inimigo vai atacar...
Wamsler sorriu ao reparar o entusiasmo com que Cliff expunha
seu ponto de vista.
— O que lhe autoriza a pensar que ainda não elaboramos um sem-
número de planos dos mais minuciosos, nos quais cada nave vai
exercer um papel bem definido, inclusive a Orion?
— Pode ser; mas lembre-se, marechal, que eu liquidei um planeta
em brasas e me recordo, quão pouco Terra estava preparada para este
ataque inesperado!
— Isso foi dez meses atrás, McLane!
— E hoje?
— Hoje temos um plano para rechaçar uma invasão. O coronel
Villa e sua equipe do Serviço de Segurança passaram os últimos
meses coligindo dados e mais dados, e acabaram por bloquear o
Centro de Computação durante trinta dias com seus cálculos e
programas.
— Está convencido de que Villa tem condições de repelir um
ataque em grande escala?
McLane estava céptico como sempre.
— Sim, estou convencido disso — disse Wamsler. — Se há uma
coisa em que eu confio, é na capacidade de Villa. Henryk é um
perfeccionista do maior gabarito.
— Não sei, não... — disse Cliff, cheio de dúvidas.
Após alguns instantes voltou a perguntar:
— O que pretende fazer com Tourenne e seus capangas? Claro que
era o sujeito mais inteligente e perigoso naquele planeta dos banidos.
A propósito: quantos deportados vivem em Mura?
Wamsler ergueu a mão.
— Calma, McLane, uma coisa de cada vez. De acordo com as
estatísticas, a população de Mura é de aproximadamente quarenta mil,
entre homens e mulheres.
Cliff começou a rir.
— Eu estava crente que Tourenne tencionava fugir com todos que
vivem lá! Realmente, quarenta mil é um pouco demais para caber na
Orion e nas Lancets!
Wamsler pediu mais um drinque, e depois debruçou-se sobre a
mesa. Seu rosto largo estava sério quando prosseguiu:
— Primeiro Tourenne e seu pessoal vão ser interrogados pelos
especialistas de Villa. Depois, vamos agarrar aquele sujeito que lhes
arranjou as armas. Um processo será instaurado. Mas não sei se
Tourenne vai ser deportado novamente para Mura. Talvez o
trancafiem aqui em Terra ou num dos planetas maiores, onde não
possa mais causar mal algum.
— Muito bem. E o que é que eu ganho por ter entregue o bicho,
vivo, embrulhado e tudo?
Wamsler tentou fazer uma cara surpresa ao mesmo tempo que
indignada; a tentativa foi um fracasso.
— Está querendo algo em troca, Cliff?
— Mas é claro; todo serviço tem sua paga!
— Deve ter algo em mira. Quer ser reincorporado à frota? Não vou
conseguir isso!
— O mínimo que o senhor pode fazer por mim, marechal, é tomar
as devidas providências para que a boa Orion não volte a levar um
escritor a bordo e nem seja requisitada para realizar tarefas idiotas!
Wamsler continuou a se fazer de bobo.
— O que precisamente considera uma tarefa idiota, Cliff? —
perguntou.
— Esse negócio de coletar espórios, por exemplo.
— Vou me empenhar ao máximo, para livrar a Orion de missões
desse tipo. Desde já, vou mandar desmontar aqueles filtros.
— Muita gentileza de sua parte, marechal! — disse Cliff, sem
qualquer euforia.
Wamsler acenou.
— Gostaria de lhe fazer uma pergunta, comandante McLane.
— Faço votos que seja uma pergunta que eu possa responder com
a consciência tranqüila — disse Cliff, algo vacilante.
— Pode respondê-la, sim — Wamsler sorriu maliciosamente. —
Agora, se com a consciência limpa ou não, isso eu não sei.
Cliff encolheu os ombros.
— O que há entre o senhor e Tamara Jagellovsk?
Cliff olhou para Wamsler com uma expressão de puro espanto.
— Acho que não entendi bem a sua pergunta, marechal —
respondeu. Começou a refletir febrilmente, tentando descobrir o
quanto Wamsler sabia. Será que ele estava a par do que tinha
acontecido naquela cela em Chroma? E por que perguntava?
— Faz pouco mais de um ano que o Serviço de Segurança
Galático destacou um oficial de segurança a bordo da Orion. A função
de Tamara Jagellovsk era impedir que o senhor continuasse a cometer
terríveis indisciplinas também no serviço da Patrulha Espacial.
Cliff sufocou toda uma série de imprecações.
— Ainda não estou entendendo a sua pergunta, marechal! — disse
a meia voz.
Wamsler exibiu um sorriso insolente.
— Com base nas minhas observações bem como nos boatos que
circulam por aí, creio poder afirmar que o senhor está mantendo uma
ligação amorosa com Tamara. Sabe muito bem que isto também é
proibido a bordo, tanto quanto o álcool!
Cliff sacudiu a cabeça.
— É perfeitamente possível, marechal, que o senhor tenha ouvido
algum boato nos corredores lá embaixo. Também não ficaria admirado
se o meu caro amigo Spring-Brauner colocasse em circulação
manchetes apropriadas, como por exemplo: "McLane apaixonado!" ou
então: "Comandante da Orion acometido de delírio amoroso". Só
posso dizer uma coisa: nada disso corresponde à verdade!
Wamsler cravou o olhar nos olhos de McLane.
— Pode jurar que não é verdade?
— Depende — disse Cliff com sangue-frio. — Acha mesmo que
vou me sentar diante dos controles, de mãozinhas dadas com meu
oficial de segurança, enquanto a minha tripulação morre de rir?
Wamsler não conseguiu conter o riso.
— É; acredito que não faria uma coisa dessas; mas ainda não
respondeu à minha pergunta. Afinal, não existem apenas naves
espaciais.
Cliff levantou-se e disse:
— Com todo o respeito que lhe devo, marechal, mas o senhor não
tem o menor direito de meter o nariz na minha vida particular.
Wamsler manteve-se impassível.
— Não estou perguntando por uma questão de curiosidade pessoal,
McLane, e sim, por razões estritamente oficiais!
— É; o teor das perguntas era mais ou menos esse — respondeu
Cliff, com sarcasmo.
— Não se torne mordaz; não lhe fica bem!
Cliff retorquiu:
— Engraçado! Tourenne fez a mesma observação!
Durante alguns segundos, só se ouvia o tilintar dos cubinhos de
gelo; depois Wamsler perguntou, em tom mais calmo e menos
agressivo:
— Eu não queria ofendê-lo, McLane. Eu só lhe fiz esta pergunta,
para atender a um pedido insistente do coronel Villa!
— Acabo ficando maluco! Villa?
— Ele mesmo; fez uma porção de indagações a respeito do seu
caráter. Tive a satisfação de poder tranqüilizá-lo. Ele parecia ter
razões para considerar o senhor um sujeito intragável.
— Ah, é? Que razões?
— Pelo que consegui deduzir, alguém se queixou do senhor.
— Quem foi?
— Alguém que o senhor conhece muito bem.
— Meu caro e estimado marechal! Peço-lhe com todas as
formalidades de praxe que me revele quem se queixou a ele. Foi
algum membro da tripulação? Não, isso é inconcebível!
— Mas foi!
— O quê?... Diga-me quem! Wamsler respondeu calmamente, mas
por uma razão que ele desconhecia, sua resposta abalou Cliff McLane
profundamente:
— Tamara Jagellovsk pediu a Villa que a desobrigasse da sua
função de oficial de segurança da Orion. Alegou que lhe era
humanamente impossível continuar a suportar a vida a bordo. Não
disse, porém, o porquê. "Wamsler", pensei com meus botões, "atrás
disso está McLane, o eterno apreciador da beleza feminina."
— E qual foi a reação de Villa?
— Recusou o pedido. Tamara vai continuar a bordo da Orion
como agente do SSG.
O marechal Winston Woodrov Wamsler levantou-se e deu um
aceno de despedida para um Cliff McLane completamente aturdido.
***
Desbaratando a gang interplanetária de Tourenne, o cientista
louco, a Orion dá por encerrada mais uma viagem de combate.
Em Invasão, título da próxima aventura da Patrulha das Estrelas,
novas emoções vão acontecer.

Você também pode gostar