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DIREITO CONSTITUCIONAL III

Prof. Luiz Gustavo de Andrade

Atividade Avaliativa

Análise do texto: TOKARS, Fabio. Função (ou interesse?) social da empresa. Publicado no
Jornal O Estado do Paraná. Caderno Direito e Justiça. 17.08.2008. p. 12.
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Função (ou interesse?) social da empresa
Fábio Tokars

Qual seria a finalidade de uma norma que declarasse, por exemplo, que todos os cidadãos de nosso país são
pessoas felizes e realizadas? Um intérprete menos atento à realidade social provavelmente escreveria odes à
modernidade de nosso direito e de nossa sociedade. Mas ninguém sorriria em razão de tal norma, ou de todas as
suas interpretações doutrinárias.

Há mais de cem anos, a escola sociológica cravou a conclusão de que o direito condiciona a realidade social, ao
mesmo tempo em que é por ela condicionado. Mas esta clássica lição não pode ser tomada no sentido de que a
declaração normativa de uma nova realidade bastaria para que ela passe a ser considerada o novo panorama social
em que desenrolamos nossa história.

É claro que não existe nenhuma norma que declare nossa felicidade. Mas há outras que chegam perto disso.
Constituem verdadeiras válvulas de escape psicossocial. São postulados que nos trazem o conforto derivado da falsa
sensação de sermos integrantes de uma sociedade justa e avançada. Contudo, sua aplicabilidade é nula.

No plano do direito empresarial, há algumas matérias que podem ser enquadradas nesta categoria. A regulação do
abuso de poder econômico, por exemplo, já foi objeto de diversos estudos que apontam a absoluta falta de eficiência
da lei, que contém a possibilidade de justificar o mais absoluto dos monopólios debaixo da alegação de que o
interesse dos consumidores está sendo desta forma atendido. Outra matéria, a respeito da qual eu gostaria de tratar
com maior atenção, é o princípio da função social da empresa.

De acordo com a interpretação de um conjunto de preceitos constitucionais, somada à norma constante do


parágrafo único do art. 116 da Lei das Sociedades Anônimas (que prevê que o controlador da companhia deve usar
de seu poder de voto no sentido do atendimento não só dos interesses dos acionistas, como também dos anseios
dos trabalhadores e da comunidade em que a empresa está inserida), construiu-se a fórmula pouco questionada de
que a empresa deve atender à sua função social. Mais do que os interesses egoísticos dos sócios e administradores,
no sentido da maximização dos lucros, a empresa seria uma unidade social que deveria ser direcionada à satisfação
das necessidades de todos os que vivem sob a sua esfera de influência.

Sem dúvida, trata-se de um princípio de conteúdo nobre. Poucos não desejariam sua plena aplicação. Aplicação que
levaria o Brasil a construir um modelo próprio de capitalismo, em que os benefícios sociais não seriam uma
derivação da atividade empresarial, mas sua condicionante. Pena, contudo, que o princípio não tenha condições de
passar do mundo do papel.

Para construir esta triste conclusão, basta partir de um exemplo concreto.


Imaginemos um empresário que tem um capital elevado investido em uma atividade industrial, onde trezentas
pessoas são empregadas. Após gastar os dedos na calculadora, este empresário percebe que seu dinheiro renderia
mais, com muito menos risco, se ele desativasse uma determinada área de produção, vendesse os equipamentos e
aplicasse os recursos obtidos em renda fixa. No meio deste processo, duzentos funcionários perderiam seus
empregos.

No plano moral, talvez seja indefensável a atitude de um empresário que, para maximizar seus ganhos, coloca
duzentas pessoas na berlinda. Não há justificativa ética. Mas, se realmente existir uma função social da empresa,
com forma normativa, o direito deve fornecer instrumentos de proteção efetiva aos interesses dos trabalhadores,
que determinem a manutenção da linha de produção e a preservação dos contratos de trabalho. Se estes
instrumentos jurídicos existirem, haverá função social da empresa.

Contudo, sabemos, para a tristeza de todos os que desejam uma sociedade menos dependente dos frios postulados
capitalistas, que não há instrumentos jurídicos que permitam aos interessados obstaculizar a estratégia do
empresário que deseja produzir menos (e empregar menos) para ganhar mais. E, exatamente por tal razão, perde
materialidade aquilo que chamamos de função social da empresa.

Muitos afirmam que o cumprimento da função social da empresa seria uma decorrência do atendimento às normas
que impõem aos empresários uma série de deveres trabalhistas, tributários, ambientais e de diversas outras
naturezas. Deve-se considerar, contudo, que o descumprimento de tais normas não motiva a aplicação de sanções
com fundamento central no descumprimento do princípio da função social da empresa. As sanções derivam das
normas específicas que foram desrespeitadas. Ou seja: mesmo que a conclusão venha no sentido da inexistência de
uma função social da empresa, o empresário que desrespeitar uma norma trabalhista sofrerá exatamente as
mesmas sanções que sofreria se todos concordassem que a atividade empresarial em nosso país é regida por aquele
princípio.
Outros ainda apontam que o princípio teria corpo se considerássemos que as sanções também podem ter natureza
premial, concedendo-se vantagens aos empresários que conduzissem sua empresa em consonância com a função
social dela esperada. Por exemplo, estes empresários teriam privilégios em procedimentos licitatórios. Mais uma
vez, o argumento não convence. Se o empresário pode escolher entre usufruir ou não de tais vantagens, o
atendimento ao princípio seria uma questão de conveniência, afastando-o mais uma vez da condição de norma
jurídica.

Da resumida análise destes fundamentos (que são objeto de longas e bem urdidas teses), deflui a conclusão de que
a empresa gera interesse social, ainda que não esteja obrigada ao cumprimento da alegada função social. O fato de
existir a empresa gera benefícios à sociedade: empregos são criados, tributos são recolhidos, incentiva-se a
inovação, incrementa-se a concorrência (e a conseqüência busca pela eficiência). Benefícios que são obtidos
independentemente da motivação do empresário. Adam Smith já havia sentenciado que "ele [o produtor] não
pretende a rigor promover o interesse público, nem percebe que o promove quando dirige a indústria e gera valor.
Seu único propósito é o lucro, para o qual é guiado por uma mão invisível, a qual promove um fim que não está em
seus planos. Nem sempre isso é o pior para a sociedade. Ao perseguir o seu próprio interesse, ele freqüentemente
promove o da sociedade, de forma mais efetiva do que se tivesse a intenção de fazê-lo. (...) Não é da benevolência
do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que nós devemos esperar nossa refeição, mas da busca de seu próprio
interesse." Desta percepção derivou o princípio da preservação da empresa.

Outra conclusão possível é a de que a busca pela função social da empresa é uma regra de conteúdo moral, e não
de conteúdo jurídico, em razão do sentido de sua obrigatoriedade e da natureza das sanções derivadas de seu
descumprimento. O atendimento aos interesses da comunidade em que a empresa está inserida é um objetivo moral
inquestionável, cujo descumprimento pode levar a sanções sociais difusas. Mas tal comportamento não pode ser
juridicamente exigido.

O último aspecto a ser destacado é que a conclusão no sentido da inexistência de uma função social da empresa não
significa o abandono da luta pela promoção do desenvolvimento social em nossa nação. Desenvolvimento social que
somente poderá existir se o Estado puder combater as iniqüidades que naturalmente advêm da atividade
econômica. O que se pretende é ser efetivo neste combate. É avançar para além da retórica. É sair do conforto do
mundo ideal para combater no plano do concretoprimento pode levar a sanções sociais difusas. Mas tal
comportamento não pode ser juridicamente exigido.

O último aspecto a ser destacado é que a conclusão no sentido da inexistência de uma função social da empresa não
significa o abandono da luta pela promoção do desenvolvimento social em nossa nação. Desenvolvimento social que
somente poderá existir se o Estado puder combater as iniqüidades que naturalmente advêm da atividade
econômica. O que se pretende é ser efetivo neste combate. É avançar para além da retórica. É sair do conforto do
mundo ideal para combater no plano do concreto.
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