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Lafayete P. Figueira
Marcelo Gomes Justo
Introdução
Há uma visão predominante em nossa sociedade global, propagada aos quatro ventos,
de que a modernidade traz “o novo” e os seus benefícios. Muitos indivíduos agem como se
técnica e tecnologia fossem elementos neutros, como se beneficiasse indistintamente toda a
sociedade e como se esta não fosse constituída de interesses antagônicos. Mas, o que há de
novo realmente no uso da tecnologia e no mundo da Administração?
Neste capítulo busca-se problematizar sociologicamente o papel da Administração e
do Ensino diante da revolução da microinformática. As recentes inovações tecnológicas
transformaram o mundo do trabalho. Do século XIX em diante os aparelhos administrativos
do Estado e as empresas capitalistas representam, pelo mundo afora, os principais geradores
de postos de trabalho.
No mundo moderno, as empresas capitalistas e o serviço público estatal são exemplos
de administração burocrática e expressam formas de dominação legal, corporificada em
contratos trabalhistas regidos por leis. A formação da escola moderna e o papel do ensino
servem para essa administração. Pois, na modernidade, a educação e o ensino ficaram
circunscritos à escola, que tem uma missão específica na sociedade do trabalho.
O trabalho tem uma centralidade na sociedade moderna, mesmo que atualmente esta
centralidade seja questionada. A escola, nesse cenário, é uma das principais instituições
sociais para formar e disciplinar a mão-de-obra. Hoje em dia, as empresas se apresentam
como local de aprendizagem, além de produção. Ao produzir sob novas formas de
administração, o trabalhador cria, inova, adestra sua capacidade intelectual e aprende. Logo, a
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O presente artigo foi publicado em: FIGUEIRA, L.; GRANATO, V.; JUSTO, M.; ROMANELLI, A.; SILVA,
M. (Orgs.). O Professor Universitário: ensino e tecnologia. Itapetininga/SP: NIEPA/FAEI, 2002, pp. 47-67.
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Vale esclarecer que reconhecemos a contribuição da “Teoria Crítica” da chamada Escola de Frankfurt, porém
não a adotamos neste texto.
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foram expulsos dos campos e tiveram seus meios de produção expropriados. Houve, em
conseqüência, nas cidades um processo de incriminar os “vagabundos”, via legislação, e de
disciplinar os trabalhadores assalariados. Ocorreu uma expulsão em massa dos campos, que
não pôde ser absorvida totalmente nas cidades. Como uma multidão flutuante de pobres nas
cidades, os trabalhadores que não foram empregados pela manufatura converteram-se em
esmoleiros, assaltantes e “vagabundos”. Isto originou uma “legislação sanguinária” contra a
“vagabundagem”. No entanto, o que se constata é que todos aqueles expropriados do campo
são membros da classe trabalhadora. “Bandidos” formaram a classe trabalhadora.
Séculos depois desse processo ocorrido na Inglaterra, os conflitos de terra no Brasil
não estão longe dessa situação descrita acima. Aliás, alguns cientistas explicam a luta pela
terra no nosso país pela lógica de expansão das relações capitalistas sobre o meio rural.
No século XIX, as cidades européias emergiram como grande tema para as “Ciências
do Social”, devido à explosão urbana e às doenças transmitidas por contato social. Assim, o
espaço urbano apareceu como um “meio ideal para o crescimento e a transmissão dessas
massas malignas” (BRESCIANI, 1986, p. 27).
Assim, além de leis sobre os pobres, a Inglaterra criou as “Casas de Trabalho” no
século XVII como forma de transformar “vagabundos” em trabalhadores. Bresciani (1986)
mostra como essas políticas constituíram a “Sociedade do trabalho”, que é como a sociedade
moderna ocidental se imagina. “As Leis dos Pobres e as Casas de Trabalho cuidaram de
convencer o homem pobre de que ainda a melhor condição que ele podia aspirar era aquela
que um emprego regular lhe proporcionava” (BRESCIANI, 1986, p. 24). No Brasil, na virada
do século XIX para o XX surgem algumas instituições filantrópicas que tiveram o papel de
“sanear” as cidades diante da população pobre e de disciplinar estas pessoas para o mundo do
trabalho (cf. ADORNO, 1990).
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moderna é fundamental para uma sociedade dividida entre indivíduos que executam funções
diferentes. Preocupado com a possibilidade da “anomia”, a ausência ou desintegração das
normas sociais, o sociólogo francês acredita que a diferenciação entre os indivíduos é uma
fonte de coesão social.
Segundo ele, a divisão social do trabalho, característica da sociedade moderna
ocidental, gera solidariedade, como a existente no organismo humano. Igual ao corpo
humano, cada grupo da sociedade deve cumprir uma função para que o organismo social, sob
comando de um cérebro, viva em ordem. Logo, a divisão do trabalho tem uma função social
que é criar solidariedade.
O ensino escolar e os professores possuem um papel para a manutenção dessa ordem
social. A educação escolar para Durkheim tem um cunho moral assentado sobre três pilares: o
espírito de disciplina, a adesão aos grupos sociais e a autonomia da vontade. Cabe ao
professor moldar o comportamento do aluno de modo a discipliná-lo, no sentido de criar
hábitos regrados, passar a ele a necessidade de aderir a grupos sociais mais amplos como a
Pátria e, principalmente, pregar que a escolha pela sociedade é autônoma – desde que se opte
por essa sociedade, baseada na divisão social do trabalho. Ou melhor, a educação escolar
eficaz é aquela em que o indivíduo autonomamente passa a desejar a Sociedade como esta lhe
aparece – dividida em classes. Enfim, a educação escolar é para transmitir valores morais de
aceitação da ordem social. Pois, os trabalhadores devem sentir na divisão do trabalho a
solidariedade e não insatisfação e o atomismo4.
É possível educar para se opor ao modelo de sociedade que cria desigualdades?
Sabe-se que dentro desse modelo da sociedade moderna ocidental, dividida em classes
e com divisão do trabalho, surge a necessidade de gestores que administrarão a relação entre
classes. Os gestores aparecem como figuras centrais para administrar as desigualdades
internas nos processos produtivos. Encontra-se um interesse crescente, então, na formação
gestores.
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É importante frisar que, neste texto, o enfoque dado ao ensino é sociológico e não pedagógico. Por isso, toma-
se como referência trabalhos da sociologia da educação.
A preocupação de toda a obra de Durkheim é com a crise social e, por isso, a educação tem um importante papel.
Ele via a sua época de forma crítica e, neste sentido, a educação moral serviria para acomodar as crises sociais.
Sabe-se que o projeto político-educacional de Durkheim não se realizou plenamente, mas sua “educação moral”
virou um “sintoma social dominante” (cf. FERNANDES, 1990). Neste sentido é que o autor merece destaque
aqui. Porém, assume-se claramente neste texto uma posição crítica à sociologia da educação de Durkheim. Para
uma crítica da sociologia da educação de Durkheim, além do trabalho de Fernandes (1990), ver Singer (1997).
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Uma solução encontrada numa democracia formal para a situação em que a burocracia cria uma “casta
privilegiada” num sistema que deve ser igualitário é a norte-americana. Numa sociedade mais igualitária que a
brasileira, alguns norte-americanos ganham posição de destaque internacional em suas profissões e, assim,
reforçam a ideologia do sucesso individual dentro da massificação individualista (cf. DaMATTA, 1981.)
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“precarização das relações de trabalho” devido à mudança das indústrias para outras cidades e
a um grande aumento da terceirização e de todas as formas de trabalho não assalariado, junta-
se a isto um contexto mundial de revolução tecnológica da microeletrônica (SINGER, 1998).
Mesmo em termos mundiais recentes, há uma incontestável crise mundial do trabalho
com a revolução da microeletrônica, como muitos analistas mostraram. Esta crise também se
manifesta na Educação. O modelo escolar não criaria os profissionais preparados para tomar
decisões e para ter capacidade criativa de improvisar diante de situações novas, como se pode
ler em revistas semanais como Veja, Exame etc.
Veja-se um caso provocativo. Em agosto de 2001 circulou pela Internet a reprodução
do discurso de Larry Ellison, o segundo homem mais rico do planeta, presidente da Oracle
(então, a segunda maior empresa de programas de computador do mundo) feito na formatura
dos alunos da Universidade de Yale/EUA. Nesse discurso, o grande empresário de sucesso
chama todos da audiência de perdedores. São todos perdedores, enfatiza, porque na
competição aqueles que saíram antes da universidade (sair no sentido de abandonar o curso),
como ele e Bill Gates (dono da Microsoft) fizeram, estão à frente. Ele mostra aos formandos
que eles no máximo terão ótimos salários e carros, mas jamais serão os grandes vencedores,
porque não abandonaram seus cursos.
Como no modo de produção capitalista as grandes fortunas se concentram nas mãos
de poucos, talvez para estes a escolarização não tenha um peso determinante. No entanto,
muitos analistas da conjuntura brasileira enfatizam a importância fundamental da
escolarização diante da seletividade do atual mercado de trabalho.
Na perspectiva de José Pastore, de clara tendência neo-liberal, não haverá emprego
fixo para todos num futuro próximo, em 2010 ou 2020. Em contrapartida, argumenta que
haverá muito trabalho autônomo, sem vínculos empregatícios, para trabalhadores
independentes, qualificados e polivalentes. Trabalhadores intelectuais capazes de vender
produtos, idéias, soluções para qualquer cliente ou consumidor em qualquer ponto do
mercado. “O trabalho do futuro não terá nada de fixo, específico, contínuo ou concentrado
numa empresa” (PASTORE, 1994, p. 2).
O autor tem tratado a questão do desemprego em artigos e livros desde a década de 80
do recém falecido século XX. A argumentação dele é muito interessante (mas questionável).
A revolução tecnológica e a inovação decorrente estão acabando com os empregos ao garantir
custos/produtividade mais baixos. As empresas aptas à competição globalizada terão que ser
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flexíveis e ágeis ao atender as exigências do mercado. Esta competição turbinada exigirá que
as empresas sejam “enxutas” – menor número de recursos humanos, de colaboradores,
altamente qualificadas e quantificadas de acordo com a produção e demandas do mercado;
isto é, mão-de-obra fluída, “just in time”. Devem ser “enxutas” e “horizontalizadas”: poucos
chefes; poucos níveis hierárquicos (3 ou 4), garantindo a rapidez no fluxo de comunicação e
de processo decisório (o mercado muda com a velocidade da internet). Ter recursos humanos
independentes e com múltiplas competências, capazes de trabalhar em equipes variadas,
tomar decisões complexas sobre planejamento de custos, tempo, qualidade e resultados do
trabalho, sem interferências do “chefe” ou supervisor do passado. Recursos humanos capazes
de administrar e avaliar a própria tarefa e de dar “feedbacks” aos colegas de equipe de
trabalho. São pessoas, recursos humanos, que tenham “atitude/postura de empreendedores”:
inovadoras, criativas, assertivas e capazes de arcar com os riscos inerentes às mudanças e que
não confiam mais na segurança dos empregos (e normas) estáveis da empresa do “passado” e
sim na sua competência e capacidade para competir no mercado de trabalho instável –
trocando de trabalho, de equipe, de empresa, aproveitando as ameaças e oportunidades,
“surfando no mercado”.
Nessa perspectiva, a educação escolar é a grande ferramenta para formar a nova mão-
de-obra empreendedora. Pastore critica a baixa escolaridade no Brasil (4 anos em média é a
escolaridade da mão-de-obra) e a qualidade do ensino – com conteúdo e formação voltados
para a mão-de-obra que visa o emprego fixo e para pensar com a cabeça dos outros (chefia e
regulamentos). Na sua proposição, a educação no Brasil deverá ser orientada para a formação
de mão-de-obra competitiva e empreendedora, para criar negócios, resolver problemas e
atender aos clientes, segundo as novas exigências do mercado. A questão é, portanto, “mais
educação” obedecendo às exigências do mercado. Assim, países do primeiro mundo –
América do Norte, Europa e Japão – seriam ricos e desenvolvidos porque têm bons sistemas
educacionais e ajustados ao mercado. O grande exemplo (fora daquele eixo) é a Coréia do
Sul. Nos anos 1950, Brasil e Coréia do Sul estavam no mesmo patamar de desenvolvimento,
com a agravante de que a Coréia havia recém saído de uma guerra envolvendo os Estados
Unidos e a China. Hoje, a Coréia do Sul é um país mais rico, com renda per capita o triplo da
brasileira e é um dos participantes significativos do comércio mundial. Uma das explicações
do “milagre” é a política de investimento do governo sul coreano em educação de base,
puxando a escolaridade da população para 9 anos em média (Lembre-se, no Brasil é 4 anos),
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Mas, não elimina a divisão do trabalho. Os empresários decidem o que produzir, o quanto e
onde investir. O trabalhador “pensante”, no máximo, planeja como produzir, desde que seja
dentro daquelas diretrizes pré-estabelecidas.
Neste sentido, as reivindicações, como visto, por um ensino escolar que forme
empreendedores para o mundo administrado de maneira não burocrática mais uma vez só vem
atender ao chamado do mercado.
Resta a questão: qual educação escolar que se quer? Educar para atender demandas do
mercado de trabalho ou educar os indivíduos para serem críticos e autônomos de fato?
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Autores marxistas do século XX, como Adorno e Horkheimer, vão apontar o predomínio da razão subjetiva no
indivíduo moderno em detrimento de uma razão crítica. A razão subjetiva é aquela capaz de decidir o que é útil,
de relacionar meios e fins, voltada para a adequação de procedimentos e propósitos auto-explicativos. Ou seja,
anula-se a capacidade individual de compreensão crítica do mundo e dos valores e passa a imperar apenas a
auto-preservação.
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Vide Singer, H. República de Crianças: sobre experiências escolares de resistência. São Paulo, Hucitec, 1997.
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Considerações finais
A sociedade moderna é centrada no trabalho, pois é pensada, produzida e vivida em
torno dele. É o trabalho como ocupação, como gerador de riquezas, como manifestação de
prestígio e privilégio. Analisou-se a evolução dessa categoria a partir das origens da sociedade
capitalista moderna: a acumulação primitiva de capital, o trabalho assalariado e alienado, a
divisão social do trabalho e as organizações da empresa e da indústria. Depois, enfocou-se as
vinculações entre a organização capitalista de produção e a escola como formadora da mão-
de-obra assalariada, disciplinada e livre, como ferramenta – recursos humanos – para a
empresa atual.
É óbvio que em 300 anos de mudanças sociais, tecnológicas e políticas, esse tipo de
mão-de-obra formada e a atuação da escola nesse processo passaram por grandes
transformações. Hoje se fala em trabalhador autônomo, criativo, auto-administrado; isto é,
sem chefia fordista autoritária. É a nova administração de empresa democrática, eqüitativa,
não-burocrática. Como foi visto, está administração não-burocrática está inserida no registro
da modernidade e, assim, não tão nova.
Neste sentido, criticou-se o fato de as escolas ficarem à mercê do mercado e,
conseqüentemente, das mudanças ocorridas nele. Propôs-se uma escola orientada para a
formação de sujeitos críticos e realmente autônomos. Isto é, capazes de pensar, entender e agir
nas suas relações com os outros e com a sociedade sem iludir-se com o suposto caráter
inevitável, necessário ou natural das estruturas de dominação, empresarias, escolares, políticas
ou culturais. Pessoas críticas aptas a perceber os cordões sutis da manipulação e da
manutenção da vida social. Para isso é preciso uma outra escola.
Referências
ADORNO, Sérgio. A Gestão Filantrópica da Pobreza Urbana, in: São Paulo em Perspectiva.
São Paulo, 4(2): 8-17, abril-junho, 1990.
ANTUNES, Ricardo. Material e imaterial. Caderno MAIS!, Folha de S. Paulo, 13/08/00, p. 8-
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