UM DRAMA NA ALDEIA DE LOBAO
(Narrativa Histérica)
Autor: Candido de Figueiredo
Quem segue a linha férrea da Beira Alta, desde
o Carregal a Nelas, deixa 4 esquerda, uma longa e aspe
ra encosta, denominada Serra da Penela, erigada de pi-
nheiros, urzes, alguns olivedos e raros vinhais.
Cortada de antractuosidades, umas naturais, outras ca
vadas pelas invernias, semeadas de grandes molhes de
granito, muitas das quais sobrepostas a cavernas, a
Serra da Penela, constituia um extenso e crescido mata
gal, em que se abrigavam alcateias de lobos e se cagava
javalis.
Nas faldas da Serra, ao poente, coleia e rumoreja por
entre penedos 0 Pavia, precipitando-se de altos agudes
e percorrendo canais, que abragam insuas e vessadas
fertilissimas. Na margem direita do rio, estende-se a
maior insua, separada pela vala que a rega, de uma
ingreme encosta, em cuja cumeeira se ergue a Ermida
de Nossa Senhora do Crasto, fundada sobre ruinas,
que ainda nao desapareceram, de um velho Castro
Romano.
Olhando-se da Ermida para poente, avista-se 0 povoa-
do de Vila Juzan, que faz parte da populosa freguesia
de Lobio.
La em baixo, sobre a insua do Pavia, ao principio da
encosta, esto ali ainda hoje, alguns muros duma anti
quissima habita¢ao, que foi abandonada pelos morador
es em 1829,
Até Aquele ano, vivia ali uma numerosa familia, de que
era chefe Francisco José de Figueiredo, precedente dos
Figueiredos do Vinhal e Lageosa, casado com umaim eawqiyg tiuBg 9 ELOYUaS ESSON :S07RIO)
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OUSVAD OG VAOHNAS VSSON 3d VAIN,Filha do cirurgiao do Casal, Anténio Rodrigues Lopes.
Além da mulher e seus filhos, tinha o Figueiredo consi
go, um irm4o mais novo, Manuel Joao, um espadatdo
mogo de 25 anos, simpatico e valente, bom ca¢ador de
javalis e de pastorinhas do monte, em horas de écio.
Em horas de trabalho, ajudava o irm4o na direc¢io
duma extensa lavoira, que compreendia nfo sé a {nsua
mas também toda a Ribeira adjacente. Esta abrangia a
volta da habitag4o grandes vessadas, pomares vinhedos
e olivais.
Os Figueiredos da Ribeira, como vulgarmente os desi-
gnavam, logravam afectos e respeito das povoacdes
vizinhas.
Aos Domingos, principalmente depois da missa do
Crasto, reunia-se em sua casa, a mocidade folgazan de
Vila Jusan e Casal, dividindo as horas do dia, entre pra
zeres da mesa ou da adega e as digressdes venatorias
aos lobos e javalis da serra.
As descamisadas da Ribeira, essas ent&io eram verdadei
ras festas, a que nao faltava a flor das raparigas da fre
guesia.
Nio obstante, havia em Vila Jusan um lavrador, que
ndo morria de amores, pelos vizinhos da Ribeira. Era 0
Anténio Pimenta, homem ambicioso e rude, cujas pro
priedades, a beira do rio,confinavam com os da Ribeira
e que no via com bons olhos a abastanga e a relativa
prosperidade dos Figueiredos.
Por mais de uma vez, cortara as aguas do agude, danifi
cando as regas da insua e provocando os lavradores da
Ribeira.
Manuel Jodo, esteve a ponto de lhe cortar uma orelha,
mas atendendo que a que o Pimenta tinha a bronquea
lo os seus sessenta anos, limitou-se a recomendar-lhe
juizo. Acrescia que o Pimenta era pai da Genovava,CASA DO ANTONIO PIMENTA (Vila Jus)
Esta casa mais, conhecida pela casa do “Zé Rabico)
figura central da narragao de Candido de Figueiredo
ainda hoje existe, mas a varanda foi j4 modificada.Um primor de mulher, que levava atras de si os olhos de
Manuel Joao, quando este adergava topa-la no caminho
para as regadas ou para os tercos e novemas do Crasto.
Uma tarde, Manuel Joao, depois duma cagada aos javalis
sem avistar nenhum,aproximou-se da casa,mas no entrou
Como 0 dia estivesse quente, sentou-se debaixo dum carva-
lho, que ainda hoje ali existe, e sombreava a porta da habi-
tac&o, encostou a espingarda ds alvecas de um arado, e pds
se a conversar com os mo¢os da lavoira que chegavam das
empas.
As margens do rio comecavam a cobrir-se de sombras; 0
coaxar das rans na vala da ribeira, era mais distinto e fre-
quente; os mochos erguiam a sua salmodia plangente nos
pinheirais préximos; o disco da lua coroava a cumeada da
Serra; as Aguas espadanando nos acudes, casava o seu mur
mirio ao estridor monotono das taramelas das canoiras.
Manuel Joao, no era poeta, nem achava novo 0 espectacu
lo, mas sentia-se possuido de uma vaga saudade, de um in-
definido encanto, que a natureza lhe instilava.
Um dos mogos da lavoira, dirigiu-se ao curral dos bois,
para lhe distribuir a racdo da noite. Outro encaminhou-se
4 cosinha, onde o esperava 0 caldo verde da ceia, e Manuel
Joao sentou-se no timao do arado, estirou as pernas sobre
a relha, deitou o brago para cima da rabiga, e ficou dormi-
Tando. Se fosse poeta, devaniaria.
De subito, um grito aflitivo, um grito de socorro, reboou da
banda de além do rio, no sopé da Serra.
Manuel Jofo,ergueu-se de um pulo, sobragou a espingarda
galgou com dois saltos 0 pequeno declive que 0 separava
do rio, passou rapidamente as alpondras e achou-se perto
de dois vultos, que corriam desesperadamente para ele,
Reiterando os gritos de socorro. Logo apés a poucasbragas de distancia,quatro luzes scintilantes relampejavam
na sombra, adeantando-se no caminho dos dois vultos.
Manuel Joao conhecia de sobra, aqueles fulgores terriveis;
eram os olhos de dois lobos formidaveis, que ja antegoza-
vam talvez a carne palpitante, do dois transeuntes.
Manuel Joao compreendeu tudo, num lance de olhos, aper
rou a espingarda, que carregara de zagalotes para os Java
lis, e desfechou-a certeiramente. Um dos lobos saltou, feri
do mortalmente e caiu, escabujando numa moita de giestas
O outro saltou um uivo medonho, e desapareceu entre as
queirés e os pilriteiros da serra.Os dois vultos que Manuel
Joao salvara, respiraram chorando de alegria, e um deles
aproximando-se mais...-Bem haja sr Manuel. Foi Deus
que o trouxe aqui!-Ah é a sr* Genoveva. Entéo que novida
de é esta?
Efectivamente era Genoveva, a filha do inimigo dos Figuei
redos da Ribeira, e acompanhava-a um rapaz de 15 anos,
criado do Pimenta. Genoveva explicou: tinha ido ao Vinhal
ver uma tia doente, demorou-se mais do devia, e quando
de la saiu ja ia escurecendo. Ao chegar 4 altura do Pego,
notou que dois lobos a espreitavam, acuados por um
penhasco; benzeu-se e recomendou ao rapaz que apanhas
se dois seixos, para ferir logo que as feras se aproximassem
Ela também tomou duas pedras e sem perder de vista 0
brilho infernal dos olhos dos lobos,foi andando e tremendo
Momentos depois os bichos desciam tranquilamente dos
Penhascos, e entravam no atalho que Genoveva seguia.
Ela e 0 criado trataram logo de ferir fogo, com os seixos,
a ver se amedrontavam as feras. Estas porém prosseguiam
imperturbavelmente e comegavam a apressar 0 passo.
Genoveva e 0 criado, deixaram de andar para correr. Os
lobos corriam também...,entio pela encosta da serra e pelo
vale reboavam os gritos, que atrairam Manuel Joao. Como
lhe estou obrigada, concluiu Genoveva, atravessando 0 riosobre as alpondras. Que pena nao poder demonstrar-lhe
a minha gratidio!-Pode se quiser...
Genoveva nao deixou de ver um rapido sorriso, que instin-
tivamente lhe contraiu os musculos da face, e limitou-se a
retorquir: quero mas nfo sei...
Manuel Joao guardou para melhor ensejo, 0 que mais
naturalmente lhe ocorria, reflectiu um instante e retrocou:
Olhe sr* Genoveva, peco lhe trés coisas: talvez ache muito,
mas outros achar4o muito pouco.
Diga ao seu pai que os da Ribeira, nado Ihe querem mal.
Diga-lhe também, que um deles a salvou.
E quanto a si sr* Genoveva, quando me encontrar, no
deixe de me falar...,Sim?
Pede tao pouco que ninguém lhe diria que nao. Entao sou
eu que lhe fico agradecido.
Iam passando sobre 0 cabouco do moinho e a Agua que
jorrava da calhe sobre as penas do rodizio, fazia tal rumor
que interrompeu a conversa¢ao.
Chegaram 4 casa do Manuel Joao..., e Genoveva- Agora
muito boas noites. Nao é preciso que eu a acompanhe até
Vila Jusan? Da banda de cA do rio nao ha lobos, muito
obrigado...
Manuel despediu-se, apertando com a sua m4o, a mio de
Genoveva. Na Beira, por aqueles tempos, a mulher aldean
ndo conhecia a pratica de apertar a mio, cumprimentando
ou despedindo-se.
Genoveva, sentiu que a mio de Manuel estava trémula,e
entreviu que o coragdo dele, nio estava muito tranquilo.
-Pois entio adeus, disse ela. E estugou o passo, subindo a
ingreme ladeira, que por entre olivais, vai da Ribeira ao
Castro e a Vila Jusan. Manuel Joao ficou imével, fixando
os olhos no atalho, que ela seguia, e que o luar iluminava.
A pouco trecho,Genoveva voltou-se, e tornou a dizer adeus
com a mio.Que encanto de rapariga, dizia consigo, Manuel Jodo. Mal
empregada em ser filha de tal homem. E ela nfio me quer
mal, de certo. Que saira daqui?
Entrementes 0 vulto de Genoveva, desaparecera sobre as
frondes dos olivedos que sombreiam a encosta, e Manuel
Joao jA era procurado para cear, e foi sentar-se 4 mesa,
mas nao comeu; deitou-se, mas ndo dormiu!
Um dia Manuel Joao, regressando da cag¢a, passou na extre
ma da vessada,que Antonio Pimenta,possuia junto ao Pego
O Pimenta andava capando 0 meloal, enquanto uns cavado
res Ihe surribavam as oliveiras.-Bons dias sr Anténio- disse
0 cagador, ao passar, tirando o chapéu.
Viva la, mas por aqui nao é caminho.-Nao se zangue, que
nio passei da extrema, nem lhe faco mal aos pepinos.
Mas faz me mal aos bofes, e tira-me a vista...
-E facgo-lhe sombra, nao é sr Anténio?-Nao estou para seca,
va andando.E que eu tinha grande curiosidade,de lhe ouvir
uma palavra de boa paz.
-Hum, veio lhe tarde a curiosodade-.
Porque sera que os da Ribeira lhe azedam 0 estbmago?
Nao fazem mal a ninguém.-Isso diz vocé que é um rapazola
E nao sabe da histéria. A coisa ja vem de tras, disse 0
Pimenta,franzindo o labio superior e capando um melociro
mais taludo.
Conte lA que eu sou curioso- Faz-se de novas, todos sabem
como os da Ribeira medraram...-Nao sr Anténio, eu sou
um rapazola, como diz. Nao sei nada.- Entao oi¢a, disse 0
Pimenta, aprumando 0 corpo e atirando para uma manta
de terra os rebentos capados. Oiga: toda esta insua, que
vocé ai tem, e que lhe da o melhor de vinte moios de milho,
afora 0 feijio e a abébora, era do Cura de Ferreiros, do
Padre Alexandrino.Mas que tem isso?-Que tem isso? E
boa! O Padre Alexandrino, nao tinha parentes, mas erapadrinho de Maria Jodo...-de minha mae? Sim de sua mae
e estimava muito a afilhada, a tal Maria Jofo...minha mae
| -Sua mae. E por isso ela era tida como a melhor herdeira
de Vila Jusan, como uma futura Morgada.Vai dai os rapa-
zes do meu tempo,nao lhe largavam a porta,mas com quem
ela queria casar era comigo. Os lavradores do Vinhal, os
Figueiredos,comecaram entio a fazer boca doce ao Padre
Alexandrino, e o Cura embirrou em que, a afilhada havia
de casar com Anténio Joao...meu pai; vou percebendo...
Ora o tal Anténio Joao.. meu pai; o tal Antonio Joao, que
j4 tinha a Casa da Ribeira, e as vinhas do redor, engordou
ainda mais, com a heranca do Cura, e mudou de freguesia
para fingir de Morgado ou Capitao-Mor, ao pé dos de Vila
Jusan!
Vou entendendo. O sr Anténio ficou magoado, porque lhe
tiraram a noiva.
A noiva era 0 menos... 0 pior é que levaram a insua, que
devia ser minha, e nao devo esse favor senao ao Anténio
Jo&o...meu pai. Mas que culpa tenho eu e o Francisco em
sermos filhos do tal... Antonio Joao? Essa é nova! Porque
é que os Judeus...mal comparado; porque é que os Judeus
ainda hoje sAo Judeus, e hio-de ser sempre Judeus? E olhe
que 0 Nosso Senhor, foi morto ha tanto, que nem minha vi
sav6 se lembra disso.Mas os Judeus mataram Jesus Cristo
e eu sou Cristdo,e ja salvei a sr*Genoveva.Veja a diferenga!
Antes a comessem 0s lobos, do que dever favores a alguém
da Ribeira.
Manuel Joao nao se zangava. Empenhado em acarear a
boa disposigao do rabujento velho, escrecéncia maligna
de um noivo preterido, tentou ainda um esforgo:
Digo-lhe uma s6 palavra: se o sr Antonio confessar essas
coisas, a padre que tenha cabega e virtudes, talvez nao
fique pensando como agora.
Desde o Padre Alexandrino,que a minha fé nos confessoressofreu grande quebra. O que eles dizem sei eu! E 0 que eles
fazem também eu sei.
Oh sr Antonio, isso agora é um falar, que nem parece de
um cristéo. Tenha cuidado, nao o saibam os beleguins...
Se o souberem, ja sei quem de denunciou, e nao lhe ficarei
a dever nada. Nao tenha receio. Passe muito bem. Viva...
Manuel Joao viu os seus sonhos quase desfeitos, entre ele
e Genoveva, erguia-se o pai, como barreira inexpugnavel.
Andava triste, nio Ihe apetecia o trabalho, e quando nao
divagava ao acaso, pelas devezas da Ribeira, sobragava a
tarrafa e ia pescar bogas, na levada do moinho. Uma tarde
depois dum bom lango de tarrafa,estava ele no areal,tiran
do as bogas da malha, quando alguém o surpreendeu.
Parabéns pela pescaria...como passou?-Ah a sr* Genoveva
Vém por ai mais lobos? Hoje nao. Sai cedo do Vinhal.
Sua tia vai melhor?-Coitada, esta na mesma. Dali s6 para o
cemitério. La é que se descanga, afinal...
Nao diga isso, enquanto a gente ca anda, sabe onde pée os
pés-
Nem sempre, eu ds vezes nem sei onde ponha a cabeca.
Entio que tem? Se lhe parece! Sei pai embirra com os da
Ribeira, nfo ha meio de o convencer.
Deixe 14, talvez com o tempo...-Nosso Senhor a ouvira,
mas tenho pouca fé nessa suposi¢Ao. Se ele nao fosse pai de
tal filha,havia de dizer-se que é mais teimoso que, ndo digo.
Mas eu ao menos nao o acompanho na teimosia. E verdade
Genoveva, mas isso nao me basta. Quer que diga? Se ele
assim nao fosse,seria eu o mais feliz dos homens,querendo
a Genoveva.
Genoveva, sorrindo: nio desesperemos, o tempo é um
grande remédio.
Vai para casa? Nao, primeiro vou pela vessada, onde 0
meu pai anda com os trabalhadores. La esta ele comaquele castical, tenho sermao concerteza. Adeus.-Até
quando? Nao sei. Se o sr Manuel passar em Vila Jusan e se
meu pai, andar ca na vessada, aparega ao pé da fonte,
talvez o possa ver.Adeus...
Genoveva dirigiu-se 4 vessada, e 0 pai vermelho de célera.
Estavas falando com o Manuel da Ribeira? Passei por ele e
cumprimentou-me. Pois cumprimentou-te a ltima vez.
Se sei que tornas a falar-Ihe, ponho-te os olhos num feixe,
com setecentos diabos. Percebestes? Nao percebi muito
bem, meu pai. Que mal Ihe fez o Manuel da Ribeira? Fez 0
pai dele e é quanto basta. E nada de troco, ouvistes?
Genoveva baixou os olhos, e foi apanhar uma arregac¢ada
de vagens, que levou para casa, quando 0 pai, quando o pai
pondo o sacho ao ombro, disse que eram horas de ir.
O Manuel da Ribeira, ficou ansioso por saber como 0
Pimenta receberia a filha, depois de a ver em conversa ao
pé da tarrafa.
E no primeiro dia, em que tornou a avistar o Pimenta na
vessada, subiu até Vila Jusan, conforme indicagées da
Genoveva. Antes de chegar 4 fonte publica, passou pela
porta do Pimenta, que era a primeira 4 entrada da povo-
fo, e que é hoje possuida pelos herdeiros de um dos Ermi-
taes do Crasto. Como se ji fosse esperado, Genoveva,
assumiu, timidamente a uma das janelas, que ficam sobre
a escada, e certificando-se de que no era observada, disse
a meia voz: Senhor Manuel, nao se demore muito por aqui
olhe que é espiado por ordem do meu pai. Nao volte ca. Se
poder vA Domingo ao ter¢go da Senhora do Crasto. Talvez
eu Ihe possa falar, mas nao entre na Capela. Espere-me 4
saida, antes de findar o tercgo. Adeus...e fechou a janela.
Manuel Jodo voltou para a Ribeira, e aguardou o Domingo
com a maior e mais natural impaciéncia.
No Domingo 4s duas da tarde, antes do toque da sineta
para o tergo, ja ele estava sentado nos degraus da porta doErmitio, ao lado da Capela. Iam chegando grupos de devo
tos e devotos, procedentes de Vila Jusan e de outros povoa
dos da freguesia, desde Varzea ao Casal. Entre esse grupo
passou Genoveva, que em siléncio e sem se voltar, deu pela
presenga de Manuel Jodo, e entrou na capela, ajoelhando
antes de todos os que lA estavam. Ia 0 tergo ao meio e, quan
do o Ermitio José Penalva, que morreu em cheiro de santi
dade, entoava clamorosamente Gloria Patri, Genoveva
ergueu-se a pouco € pouco, e sem que ninguém visse,voltou
as costas e saiu, dirigindo-se ds traseiras da capela, que
fica para o lado do rio. Um minuto depois, como ninguém
estivesse no adro, nem nas proximidades, Manuel Joao le
vantou-se, e seguiu o caminho de Genoveva. Atras da cape
la, sentaram-se num batoréu, e conversaram afectuosamen
te, durante meia hora. Naquele tempo na Beira, as mulher
es tinham geralmente, pelos maridos um respeito filial, e
eram raras as que os tratavam por tu.
Genoveva julgou, dar a Manuel Joao, uma prova de extra
ordinario afecto, tratando-o por tu, e aceitando-lhe igual
tratamento, e contou:
Meu pai sabe que me queres muito, e conhece que eu nao
te quero menos, mas jurou por todos os santos e deménios
que nao havemos de casar, enquanto ele for Antonio
Pimenta!
Ainda nao sei como ele se podera demover, de tal propésito
e se precipitassemos 0 casamento, eu sei como ele é fogoso,
e alguma fatalidade poderia suceder. Em casa vigia-me
todo o dia,e na visinhancga tem homens e mulheres peitadas
para verem quando passas, com quem falas, e para onde
vais.
Queres entao que eu fique privado de te ver e te falar?
Nio digo tanto, digo que é preciso evitar conflitos, e enqua
to meu pai te vir com maus olhos, sé As ocultas te posso ver
e falar-te. Conheces a casa onde vivo: meu pai ocupa 0anb soarsnquarto mais préximo da porta de entrada, a criada fica
para os lados da cozinha,e os criados no palheiro para 0
lado da fonte. O meu quarto da para a varanda, que deita
para o quintal. Poderas teres o trabalho de vir da Ribeira
ao meu quintal 4 noite?O que nao poderei eu por ti Geno-
veva? Irei todas as noites, se é da tua vontade. Pois vai se te
ndo fatigas. As dez horas, j4 ninguém esta levantado...
sendo eu, Mas escuta...vai acabar o tergo e eu vou retornar
ao meu lugar, é bom que me vejam sair, os mesmos que me
viram entrar. Vai e até 4 noite...
Na Casa da Ribeira havia um criado antigo, que ja era
antes da Revolucao Francesa, e que foi modelo de criados
laboriosos e dedicados.
Chamava-se Manuel Joaquim de Carvalho. Serviu aquela
Casa por mais de 50 anos, empregando-se especialmente
em conducio de carros, e faleceu ha pouco tempo, com
mais de um Século de idade. Conheci-o nos ultimos anos
na sua honrada e laboriosa vida, exercendo a profissaio de
magarefe, em Vila Jusan, onde era justamente estimado.
Foi um exemplar celibatario, mas casou aos noventa anos
com uma mulher do povo, a Ana Cortideira, de quem teve
uma filha, se nio mente o assento do baptismo. Mulher e
filhos, vivem ainda em Vila Jusan, creio eu.
Ora no tempo em que se passava a histéria,que vou narran
do, Manuel Joaquim de Carvalho, era j4 homem de mais
de quarenta anos, baixo e magro, tao robusto e temerario,
como dedicado a seus amos.
Manuel Joao chamou-o 4 parte, fez-Ihe uma rapida e sim-
ples confissdo, e declarou-lhe que precisava da sua compa-
nhia. Nao era preciso mais: Manuel Joaquim estava 4 dis
posigio do amo.
Todos os dias, depois das nove da noite, e depois de cearem
na Casa da Ribeira, os dois embrulhavam-se na mata deQuinta da Fonte da Vinha
o criado dos Figueiredos da Ribeira,
vigiava os namoricos do Manuel Joao...carvalheiras, que ficava do lado do norte, desviavam-se de
caminhos e atalhos, atravessavam os vinhedos que ficavam
nas vizinhan¢as ocidentais do Crasto, galgavam os muros
que vedavam as terras da Fonte da Vinha, e nas alturas do
quintal do Antonio Pimenta, saltavam para 0 caminho
publico e do caminho para o quintal.
Manuel Joaquim sem perder de vista 0 amo, alapardava-se
sob o cordao de videiras, que acompanha interiormente 0
muro, e Manuel Joao aproximava-se da varanda, donde
Genoveva lhe falava. Por arma de defesa, nenhum deles le-
vava mais que, um sacho de cabo comprido de castanho.
Era no Outuno. O quintal tinha o pomar avergado de figos
e peras,e era amitde assaltado, pelo rapazio audaz e famin
to. Os criados do Anténio Pimenta, para nao perderem 0
sono, puzeram um dia, de guarda ao pomar, um c4o preso
a um pilar da varanda. Se o c&o desse sinal, eles sairiam en
tao do palheiro, abririam a porta do quintal, e surpreende-
riam entao o larapio.Genoveva nao teve tempo de prevenir
o namorado, e 4 hora convencionada, Manuel Joaquim
amezendava-se debaixo das videiras, e Manuel Joao cami-
nhava resolutamente para junto da varanda, sobre cujos
balustres se debrugava Genoveva.
A subitas, rompe o latido do cio. Genoveva a meia voz; 0
cio nao te morde, mas podem ouvir os criados. Queres que
saia? Escuta...os criados abriram ja 0 portio do quintal.
Se sais é provavel que te encontrem, nao podes subir?
Manuel Joao lancou a pa do sacho, 4 prancha inferior
balustrada, apoiou os pés ao pilar, e num momento, achou
se ao pé de Genoveva. Um criado lorpa entrou efectivamen
te no quintal, mas nao viu ninguém, e convenceu-se que 0
larapio fugiu aos latidos do cdo. Fez calar 0 cio, e escondeu
se debaixo da varanda, resolvido a perder aquela noite, vis
to que 0 pomar estava ameagado. Entretanto Genoveva e
Manuel Joao, nao podiam conservar-se na varanda.EIRA DO PIMENTA
Nuns palheiros ao lado desta eira
dormiam os criados do Pimenta.O menor movimento denuncia-los ia ao lorpa, que estava
por baixo. Recolheram-se ao quarto, que devia ser 0 quar
to nupcial, se nao fosse a teimosia do Pimenta. Decorreram
algumas horas e o criado impertinente, ndo deixava 0 seu
posto.
Entretanto aproximava-se a madrugada, e era preciso dar
solucdo ao incidente. Sair pela varanda seria ocasionar
conflito, e fazer revelagées escandalosas e nocivas.
Genoveva reflectiu que Manuel poderia, com mais seguran
¢a, sair pela porta da rua. E verdade que o pai dormia ali
perto, mas com cuidado, abrir-se-ia o ferrolho e o pai nao
despertaria.Pés em execucao este alvitre, e Manuel guiado
nas sombras, pela mao de Genoveva, aproximou-se da por
ta. Correu-se o ferrolho, e Manuel Joao viu-se na rua.
Coseu-se com 0 penedo do Quintal,e foi chamar o Joaquim
que debaixo das videiras, aguardava impaciente o resulta
do daquela aventura, e que ao aviso do amo, galgou 0 mu
ro, saltando ambos depois, para as terras da Fonte da
Vinha.e desaparecendo para os lados do Castro. O criado
do Anténio Pimenta, como a manhan viesse rompendo,
avistou o vulto que transpusera 0 muro, e correu em seu
seguimento, saltou para o caminho, mas nao viu ninguém
na extensao deste. Ao mesmo tempo, em casa do Pimenta,
alguma coisa se passava de anormal. A precipitagao com
que Genoveva fechara a porta, fez que o ferrolho e os
batentes, fizessem algum barulho,que despertou o Pimenta
Quem anda af? Perguntou ele da cama. Sou eu disse
Genoveva, tremendo-lhe um pouco a voz.- parece que ouvi
bater 4 porta, e fui saber quem era. E entio?
Genoveva nao ouviu esta pergunta, porque se metera no
quarto, nervosa e cheia de receios.
O pai vestiu-se rapidamente, abriu a janela e nao viu
ninguém. Saiu do quarto e foi 4 varanda, para estender os
olhos, até mais longe. Nesse momento. o criado debrugavase ainda sobre 0 muro, observando o caminho, para a
direita e para a esquerda. Que é ld isso José? Perguntou
o amo. Que ha-de ser? O cio ladrou de noite, vim ver 0
que era. Durante a noite no vi nada, mas agora aqui ha
nadinha, um ladrio ou 0 diabo por ele, galgou 0 muro e
parece que a terra se abriu, porque desapareceu e nao vejo
ninguém. O pimenta fazia reflexdes.
A porta da rua aberta... um vulto no muro do quintal...
Hum, aqui ha coisa. Durante o dia, nao falou mais no
incidente. A noite finda a ceia, todos recolheram para
dormir. Era o costume. Anténio Pimenta, porém estendeu
se vestido sobre a cama, e nao dormiu. Ergueu-se silencio
samente, tomou de um canto a sua espingarda de pedernei
ra, carregada com bala, deu uma volta pela casa, chegou
ao quarto da filha, e viu que ela em vez de estar no quarto
a dormir, estava sentada na varanda.Genoveva estremeceu
Que fazes tu aqui a esta hora? Tinha calor no quarto e vim
tomar um pouco de ar. JA nao ha calor que mate. Vai-te
deitar. E 0 pai nado se deita? Demoro-me ainda um pouco,
disse ele com ar sombrio. Conta o José que os larapios
assaltam 4s vezes 0 pomar, e quero ver se descubro algum.
E sentou-se na varanda, com a arma aperrada nos joelhos
enquanto Genoveva cheia de inquietagdes, se recolhia 4
cama.
O Pimenta prevenira 0 José, de que ndo queria mais 0 cio
no quintal. Que dormissem os criados 4 solta, porque ele se
encarregava de guardar a fruta.
Manuel Jodo sentiu o mais vivo desejo,de falar nessa noite
com Genoveva. Como estaria ela, depois daqueles cuidados
e sustos?Que se passaria l4 em casa? O dem6nio era 0 cao,
cujos latidos haviam de ouvir-se no palheiro.
Que dizes tu Manuel? Perguntou ele ao criado. Tenho ca
uma ideia, respondeu o Manuel Joaquim. Dize 14: a gente
vai 4 Vila Jusan, mas pelo sim pelo nao vocemessé naoEntra no quintal, sem que eu bata o mato. Quem entra
primeiro sou eu. Levo um bocado de toucinho, atiro-o ao
cdo, e enquanto o animal se entretem na lambarice, amor
dago-o ou esgano-o. Esta dito...
As dez da noite, os dois estavam 4 porta do Pimenta.
Manuel Joaquim comegou a trepar. Olha, disse 0 amo.
Firma os pés no cabo do meu sacho, que a parede esta esco
rregadia, com 0 orvalho. Manuel Joaquim langou as maos
ao cimo do muro; acima das mAos ergueu a cabega, depois
0 peito. Nesse momento um tiro, disparado da varanda do
Pimenta, alcancou 0 peito do Manuel Joaquim.
Este caiu de costas, nos bracos do amo, sem soltar um gemi
do.Feriram-te?O tiro foi certeiro,mas ouve engano no alvo.
Podes andar? Nao posso, déi-me muito o peito e as costas.
Deite-me ai no chao, junto 4 parede e va chamar alguém.
Manuel Joao pés o criado aos ombros, atravessando com
ele a Vila Jusan, e foi ao Casal, acordou o avé, 0 cirurgiao
Lopes, para examinar e tratar o ferido. Manuel Joao expli
cava: tinha saido da Ribeira para umas esfolhadas,no ca-
minho um celerado qualquer, atirara sobre eles.
O cirurgiao recolheu o ferido, e examinou-o. Uma bala
fracturara duas costelas, e saira pelas costas. O cora¢ao e
os pulmées estavam intactos. O ferimento era grave, mas
nio mortal. Anténio Pimenta, convencido de ter morto 0
Manuel Joao,ia recolher-se da varanda para 0 quarto,qua
ndo a filha, abalada pela explosio do tiro, e alucinada pela
possibilidade de um crime, que lhe langaria 0 luto no cora
cfio,e uma nédoa na familia,saiu vertiginosamente do quar
to. Que fez meu pai? Matei um ladrao, disse ele com ar tur
vo. Quem sabe se seria um ladrao? Sabe-lo tu talvez...
Eu vou ver se haveria alguma desgraga. Se sais daqui, se
dizes uma palavra, parto-te na cabega, a coronha da espin
garda. Genoveva, atirou-se sobre 0 leito, rompendo em
choro convulsivo.A porta da Casa da Ribeira, sentado nas chedas de um
carro, Manuel Joao, distraia-se entretecendo uma nassa de
vimes. Anténio Pimenta de sacho ao ombro, ia descendo
para os lados os moinho, e como avistasse alguém na Ribei
ra, carregou o chapéu largo sobre os olhos, e passava ao la
do do Manuel Joao, sem dar as boas tardes. Salve-o Deus,
disse Manuel Jodo, com mal disfarcada ironia.Nao conhecgo
ninguém. deste sitios, rosnou o Pimenta, andando.
Tem razio! Os assassinos ndo conhecem pessoas de bem.
O Pimenta parou e, franzindo os beigos:que esta vogé alan
zoar de assassinos?
E que os conhego, e no os entrego 4 justiga enquanto nao
quero. O Pimenta estremeceu e, fingindo serenidade: ora
faca nassas, e devirta-se 14 com os seus,...percebe?
Percebi, ea mim também me percebeu...
Anténio Pimenta comegou a descer a carreira, que levava
ao moinho, e as alpondras, passou o rio, e desapareceu na
encosta de além. Ia ao Vinhal ver a cunhada, que estava
muito doente, e de quem esperava ser herdeiro.
As palavras de Manuel Joao, tinham-no ferido profunda-
mente.
Caminhava agora cabisbaixo, meditando e ponderava.
Se 0 tivesse morto, nfo pensava agora nisto.
O filho do Diabo era capaz de me apanhar, nalguma rede.
Nada! £ preciso roer-lhe a matha, antes de ele lancar a
tarrafa. Mas como? E foi meditando.
Na volta do Vinhal, encontrou Manuel Jodo, entre duas
alpondras.
Viva la sr Manuel, disse o Pimenta, com semblante menos
carregado.-ora viva...jé conhece a gente da Ribeira?
Nao me azede o sangue sr Manuel; se vocemessé fosse pai
havia de compreender, e explicar muitas coisas, que pare-
cem mas. Agora é que eu percebo pouco. Pois pouco ha
para perceber. Fui conversando com os meus botées até aoVinhal, e lembrando-me sempre da minha filha. Quem é
pai...quando vocemessé for pai, saber 0 que isso é.
Manuel Joao, entre surpreendido e curioso; entéo que tem
sua filha? Ora que ha-de ter ? Nao come, ndo dorme...o
coracio das mulheres é assim. Qualquer coisa as verga.
Mal comparadas, s4o como os panascos do estio, que qual
quer aragem, dobra e parte.E depois nao tenho sendo aque
la. Estou, estranhando o sr Pimenta. Nunca o ouvi falar
assim! Ent&o que quer? A minha idade ja obriga a pensar.
Um velho nao pode, nem deve ser um ferrabas. Isso é caso
Para Te Deum na Ermida do Crasto!
Te Deum mandaria eu cantar, se visse Genoveva tranquila
e restituida 4 sua antiga saude e alegria. Receio porém que
eu, por mim sé, 0 nfo consiga. Se vocemessé quisesse
ajudar-me? A favor de sua filha, pode contar comigo, disse
com franquesa e confiadamente.-Pois deixe estar. Havemos
de falar mais por miido. Conversarei l4 em casa, com a
Genoveva,e vamos a ver se tenho velhice satisfeita e descan
cada.
*
Para Genoveva,foi a mais agradavel das surpresas, 0 modo
afavel e o aspecto bonacheirao, com que o pai entrou em
casa nesse dia! Nunca o vira tao acessivel e lhano. Trago-te
lembrangas do Manuel da Ribeira, disse ele.
Genoveva, olhou para o pai, com verdadeiro assombro.
Nao te admires, continuou o Pimenta. Isto assim é que nao
pode continuar, eu infernizo-me, definhas a olhos vistos, e
é preciso mudar de rumo. Conversei com tua tia, a doente,
conversei com os meus botées, e esta decidido. Entra-se no
caminho da conciliag4o. Tu gostas do Manuel, nao é verda
de? Se meu pai adivinha, para que pergunta? Esta bem, as
inimizades passaram. Manda-lhe dizer que nao precisa de
ca vir acompanhado, nem entrar pelo quintal. Que venha
cear comigo, para conversar-mos 4 vontade, e que entrePela porta da rua.Genoveva lembrou-se de beijar 0 pai,
cheia de reconhecimento, mas antes de o fazer, lembrou-se
logo, que ficava devendo o cumprimento duma promessa A
Senhora do Crasto, pela conversio de Anténio Pimenta, e
que seria enorme o contentamento de Manuel Joao, ao re
ceber 0 convite para a ceia de outro dia.
*
No dia seguinte, 4 boquinha da noite, j4 Manuel Joao
tomava o caminho de Vila Jusan, e cheio de alvoroco,
subiu a encosta da casa do Pimenta. Este ja 0 esperava.
Minutos depois sentavam-se familiarmente a lareira os trés
Pimenta, a filha e o futuro genro.O Outuno corria fresco e
era agradavel ao lume, sobre a mesa corrediga, presa de
um lado a parede, junto da chaminé, e erguida perpendicu
Larmente, baixava 4 posi¢ao horizontal, sobre duas pernas
movedig¢as, na hora da refei¢Ao.
Enquanto uma criada,a moga como se diz nas Beiras, servi
a 0 caldo verde, e o presunto frito com ovos, os comensais
conversavam, alegremente.Desculpe o sem ceriménia, dizia
o Pimenta. Isto a bem dizer, é tudo familia...
Ora essa, nao ha que desculpar, ha que agradecer. Vamos
14 que vocés sempre,suposeram que os meus rigores fossem
até mais longe.Mas eu tinha alguma razdo. Nao gosto de ar
cas encoiradas. Para que demonio haviam vocés de namo-
rar-se 4s ocultas? Nao tinham impedimentos da Igreja.
Um e outro tém meios para criar familia. Querem-se bem,
para que demdnio servia o mistério? Era melhor que
Manuel viesse logo ter comigo, expor e combinar. Provavel
mente da minha parte, nao havia grande oposi¢io ao con
sorsio. E verdade que vocemessé, meu futuro genro,é de
uma familia, com quem nao me tenho ligado muito. Reco
nhego porém que os da Ribeira, sio boa gente, e nao me
deshonra, que se ligue com eles. Ja vé que ndo receberiamal 0 pedido da mao de minha filha. Receava sempre, e
deixe-me dizer-lhe que todo, perfeitamente tranquilo e
feliz, s6 me julgarei no dia da boda,que ainda nao sabemos
quando sera. Da minha parte, e por minha vontade, pode
ser hoje. Estas coisas nao devem esfriar. Caldo requentado
faz mau estémago. Portanto é tratar da papelada, e maos a
obra.
Que eu devia castigd-los...com essa pirracazinha qualquer,
em paga das pirracgas que me pregaram.- Pirragas, disse 0
Manuel da Ribeira?
Ent&o nao é pirraca, uma pessoa estar deitada na sua cama
e assaltarem-lhe 4 falsa fé, o quintal, a casa...e eu sei la!
Rapaziada sr Antonio. Mas rapaziada que mostra muita
coragem,la isso mostra. O que eu nfo sei é como vocemessé
teve a habilidade de saltar ca para cima, sem escada. Ora,
n&o me custou nada.Quando quero subir a uma arvore,nao
preciso de me abracar a ela,deito o sacho a uma pdla, finco
os pés no tronco, e subo como um passaro. Foi 0 que fiz.
Quando senti abrir a porta do quintal,alcancei com 0 sa-
cho a prancha dos balatstres, finquei os pés no pilar e num
instante achei-me na varanda, e com 0 luar que fazia, era
caga apanhada. Eh,Eh, isto rapazes!- va contando, e depois
...Depois quando a manhan,ia rompendo, e como 0 quintal
estava guardado, sai do outro lado, por onde hoje entrei.
Eu bem ouvi 0 ferrolho, seu brejeiro- Ora muito me conta!
Entao quando é que comega a tratar dos papeis? Amanhan
mesmo,é claro-Pois nao se descuide, ja por ai se rosna, e eu
nao gosto de que gente minha, ande nas bocas do mundo.
Tem razio.
Parecia outro, o Anténio Pimenta. Na opiniao dos noivos, o
mais delicioso e opipero banquete, nao valeria aquela ceia
frugal, adubada da mais expansiva e afectuosa alegria.
Mais que o vinho da cAntara, embriagavam Manuel Jodo e
os olhos de Genoveva, radiantes, himidos, amorosos.Para os dois, era talvez o primeiro dia de uma completa
felicidade, o alvorecer e 0 antegoso de uma inegavel bem
aventuranga. Era ja noite velha, quando Manuel Joao se
recolheu 4 Ribeira. No resto da noite, dormiu pouco e so
nhou muito, e j4 0 sol ia alto, quando despertado, daquele
torpor, almogou a pressa, dois barbos fritos e pés-se a ca-
minho da Lageosa, cujo abade havia de passar-lhe certidio
de uns assentos de baptismo, e de casamento. O Abade esta
va porém, assistindo a umas exéquias em Silgueiros e sé re-
gressou a tarde, passando entao as certidées.
Manuel Joao partiu da Lageosa, pela Ponte Pedrinha, para
a residéncia do Vigario Martins,de Lobao,que na qualida-
de de paroco dos nubentes, era quem celebraria 0
casamento.
A noite, j4 estava no Pago do Casal, em casa do Vigdrio, e
s6 quando saiu,é que se lembrou que ainda no tinha janta
do.Como a Ribeira era longe, quase meia légua das antigas
ea casa do seu avé cirurgifo,ficava a dois passos, aprovei-
tou o ensejo para participar ao velho, a proximidade da
boda, e tomar algum alimento, que ja 0 est6mago Ihe dava
horas. A saida da residéncia, passava com 0 seu rebanho,
0 ovelheiro da Ribeira. Dize 14 em casa que, se eu me demo
rar 4 noite, nao esperem. Vou cear com 0 ayé, e talvez
durma em casa dele.
*
Antonio Pimenta reunindo-se aos trés homens que, escondi
dos, haviam escutado na véspera, as confissées do Manuel
Joo, seguiu com eles a Estrada do Quinto, dirigiu-se a
Ermida de San Simao, atravessou o Pinhal do Edrimo, e 4s
oito horas, estava em casa do Juiz de Fora, na cabeca da
Comarca, em Tondela. O Pimenta ia fazer a participagao
de varios crimes, cometidos por Manuel Joao, e requerer
devassa, para 0 que apresentava trés testemunhas,idéneas.
O requerimento foi deferido,lavrou-se o auto de inquiri¢ioe ficou demonstrado: que Manuel Joao de Figueiredo,
solteiro, lavrador e proprietario, residente na Pévoa da
Ribeira, freguesia de Lobio, na Comarca de Tondela, esca
lara de noite o muro do quintal do queixoso, que na mesma
noite entrara,furtivamente na casa,em que 0 queixoso habi
ta,com o fim de atentar contra a honra de Genoveva Pimen
ta, filha do dono da casa, e menor de vinte cinco anos. Que
de facto entrara no quarto da dita Genoveva, fechando-se
com ela, durante muitas horas, até romper a madrugada.
e que as ofensas a propriedade,e 4 honra,obrigam a prisio
e degredo.Nesse mesmo dia, 4 noite,um trocgo de meirinhos
e cabos de seguranga, dirigia-se, sob as indicacgées de Anté
nio Pimenta, pelos Carvalhais e outros sitios ermos, a casa
da Ribeira, e cercava-a, aguardando a manhan, para reali
zar a captura do criminoso.
O Francisco José de Figueiredo, o dono da casa, deu conta
daquele aparato de justigas, e sem poder explicar tudo, en
treviu que dele nada quereriam, e que o irmo, se nao tives
se cometido algumas rapaziadas que pusesse as justi¢as em
movimento, era procurado, segundo os costumes do tempo,
para ir reforgar algum Regimento de D.Miguel.
Em todo o caso, era preciso empenhar, algum esforgo para
o salvar.
Felizmente que Manuel Joao nao estava em casa, ficara
com 0 avé do Casal. A dificuldade seria avisd-lo. Um emis-
sdrio que safsse Aquela hora da Casa da Ribeira, levantaria
suspeitas e seria talvez detido.
Francisco de Figueiredo, pensou e resolveu pér em pratica
um recurso. Como o curral dos bois ficava, a quarenta ou
cinquenta varas da casa de habitagao, e como é natural dis
tribuir-se 4 noite, a racio da palha ou de erva aos bois, 0
Francisco da Ribeira, desceu ao alpendre da casa, sobra-
gou um feixe de erva e duas faixas de palha, abriu a portado pateo, como que ignorando o cerco da casa, deu dois
passos e parou, fingindo surpresa com a presen¢a das
justicas. Nao é esse, disse alguém, entre os meirinhos,
embucado em largo capote. Tem que fazer fora de casa?
Perguntou contudo um meirinho ao Figueiredo.Nao tenho,
vou apenas levar a raco aos bois,ali ao curral.Entio passe
passou, entrou no curral, subiu 4 mangedoira, destelhou 0
tecto, partiu uma ripa,que ligava dois caibros,e saindo pela
abertura do telhado, desceu atras do curral, e desapareceu
nos carvalhedos da encosta. Quando chegou esbaforido a
casa do avé, o irm4o dormia tranquilamente.Despertando-
0, disse-Ihe 0 Francisco:
Foge que te procuram as justi¢as de Tondela.
Manuel Joao, surpreendido e contrariado, viu que nao era
tempo para conjecturas e discussdes. Recebeu do irmio e
do avé alguns “pintos”, fez abundante farnel e, antes que
alvorecesse a manhan, tomou o caminho das Cabecinhas,
e foi andando para os lados do Caramulo.
*
Em Vila Jusan, e em toda a freguesia, correu logo voz de
que o Manuel da Ribeira, andava a monte, e de que contra
ele corria uma devassa. Nao constava porém 0 motivo da
devassa. Em alguns soalheiros, presumia-se que fosse
questao de recrutamento,noutros, aventava-se que embora
Manuel Jodo fosse realista, haveria intriga politica, para
Ihe sequestrarem os bens, que valiam alguns mil cruzados.
e ninguém sabia do seu paradeiro.Manuel Joao fora escon
der-se na Abadia do Guardado, que fica a meia encosta do
Caramulo. O Abade, bom homen, era parente, ainda que
afastado, da familia da Ribeira, e recebera carinhosamente
o fugitivo.Repugnava-lhe o recrutamento a cordel, e supo
nha que o parente, nao teria outro crime, além de fugir ao
servico militar. A presenga, porém, do Manuel da Ribeira
no passou inteiramente despercebida dos vizinhos doabade e este comegou a intimidar-se, com 0 acolhimento
que dera ao foragido. Significou-lhe os seus receios, e
resolveu que Manuel Joao, fugisse para fora da Comarca.
Para isso porém, eram precisos recursos bastantes a um
Homisio indefinido. Mas, Manuel Jodo, nao se arriscava a
ir 4 Ribeira, cujas vizinhangas, deveriam estar vigiadas,
nem tinha emissario de absoluta confianga.
Quiz 0 acaso, que passasse pelo Guard4o, e descansasse em
casa do abade, um vizinho e antigo amigo de sua casa, José
de Oliveira, de Vila Jusan.Vinha-se de Agueda,onde proce-
dera a investigagdes, para denunciar uns malhados, em
Tondela. Vivia destas dentincias, mas gozava de confianca
das familias realistas, e os da Ribeira eram realistas.
Manuel Jodo apareceu-lhe, e confessou-lhe 0 aperto da sua
situa¢io.Precisava de pelo menos 40 moedas, com urgéncia
e como 0 irmio no as teria em casa, antes das colheitas, e
nem convinha que ele erguesse suspeic6es,andando a con-
trair empréstimos, que nao se podiam justificar.
Julgava preferivel encarregar-se disso um estranho, mas
amigo, que mediante a devida retribuigdo, obtivesse em
qualquer parte, com todas as garantias possiveis, o emprés
timo de quarenta moedas. Pela suas relagdes e conhecimen
tos, José de Oliveira, devia estar nesse caso.
O Oliveira aceitou,combinando-se as condigdes e garantias
bem como 0 local, em ele deveria fazer a entrega do dinhei
roa Manuel Joao.
Na impossibilidade de fazer escritura ou documento auten
ticado, escreveu numa folha de papel ordinario, a seguinte
declaragio que consta:
AO SCMNOL............ceceeeeeevee Sete ramis
Confesso eu, Manuel Joao de Figueiredo, solteiro, de maior
idade, proprietario em LobAo, que sou devedor da quantia
de quarenta moedas, que ele me emprestou em metalcorrente,ao juro de cinco por cento, e que pagarei logo que
retome a administragao dos meus bens.Para melhor segu-
ranga, e garantia desta divida, o meu credor, desde o proxi
mo San Miguel em diante, pode administrar os meus bens,
como proprios, cobrando o respectivo juro, e reservando
as contas finais, para quando eu, em pleno gozo dos meus
direitos, possa liquidd-los e desempenhar-me da presente
obrigagao.
Como testemunhas, assinaram o documento, as pessoas
presentes, que eram o abade do Guardio e José Oliveira.
Este recebeu o documento, declarou que, pela sua urgéncia
aceitava, apenas duas moedas e, no caso de obter 0 emprés
timo, como esperava, obrigava-se a entregar o dinheiro ao
mutuario, no dia da Feira do Campo, 4 beira da charneca
que se estendia para os lados de San Tiago de Besteiros.
*
Senhor daquele precioso documento, José Oliveira, curou
de o fazer render, em proveito proprio.
Procurou alguns usurarios, conhecidos como tais, todos
eles achavam 0 documento ilegal,por falta de autenticidade
e por no ter escritura publica. José de Oliveira nao
descoro¢goou. Ocorreu-lhe que Anténio Pimenta, talvez nao
desprezasse o ensejo de ferir os da Ribeira, entrando-lhe
na administra¢do de alguns bens.
Efectivamente o Pimenta nao recebeu mal a proposta. O
Oliveira, pretendia gratificagéo, avultada e imediata, cinco
moedas pelo menos. Neste ponto, Anténio Pimenta oferecia
algumas duvidas, e disse ao Oliveira que ia pensar e daria
a resposta.
O Pimenta pensou e respondeu: que em vez de 5 moedas,
o Oliveira teria 10!,mas que em troca do documento, leva
ria ao Manuel Joao, nao as quarenta moedas do contrato,
mas alguns Agentes da Justica de Tondela. O Manuel Joao
nao viria depois pedir contas ao Oliveira, e quando aspedisse, era facil declinar responsabilidades, alegando que
foi espiado, e nao Ihe deixaram fazer a entrega do dinheiro
O aranzel seduziu o Oliveira, homem ambicioso de de cons
ciéncia facil.O documento passou para as m4os do Pimenta
que tratou de informar a justiga, sobre os meios de captu-
rar 0 fugitivo. No dia da Feira do Campo, José de Oliveira,
junto 4 charneca de San Tiago, esperava ao cair da noite
que Manuel Joao aparecesse, para simular a entrega das
quarenta moedas.De facto o fugitivo nfo se demorou.
Impaciente por haver as mos os recursos que esperava,
abeirou-se do Oliveira, que o recebeu prazenteiro.
-Ca temos a continha! Mas sente-se um pouco, descance...
Ha por 14 muitas novidade na Terra, e vocemessé deve
querer sabé-las. Manuel Joao ia sentar-se no cairel de um
Covao, quando da charneca, irromperam dez Cabos de
Seguranga e um meirinho, que desarmam Manuel Joao,
dando-lhe voz de preso. Oliveira fingindo surpresa e medo,
desapareceu. Os Cabos de Seguran¢a algemaram Manuel
Joao, e conduziram-no 4 cadeia de Tondela.
Poucas semanas depois, Manuel Joao de Figueiredo era jul
gado e condenado a degredo, para a Africa Ocidental.
Parece que morreu em Mocambique, antes de cumprir a
pena. E certo que, na sua Terra, ninguém mais teve noti-
cias dele.
Anténio Pimenta, na qualidade de credor,entrou na ad-
ministracao dos bens do degredado.
Francisco de Figueiredo, irmio do condenado e, homem de
uma extraordinaria timidez e indoléncia, nao opés a menor
dificuldade ao intruso, cujos herdeiros prosseguiram pacifi
camente, na posse daqueles bens.
Em 1864, um sobrinho do degredado e pai do autor destas
Linhas, tentou ainda uma accao de revindicaca4o.Era tarde
de mais. A prescri¢io aproveitara aos possuidores.O actual representante de Anténio Pimenta, que vive em
Vila Jusan, e que nao obstante as tradigées da familia, é
um homem de bem.
Sirva-lhe esta confissio espontinea, de lenitivo, ao pesar
de ver o nome do seu ascendente envolvido num drama
escuro, em que prevalece a perseguicao odiosa, a cobardia
ea infamia.
RRKKKKKKKERKEKKKKRKKEKK KAKA KKK KEE
*
Nota do autor deste tomo:
Incluo esta “Crénica Narrativa”, neste livro sobre
Lobao da Beira, apenas e sé, pelo facto de conter a descri-
cao duma zona da freguesia, que ainda hoje existe.A cena
passa se na insua, Ermida de Nossa Senhora do Crasto,
Fonte da Vinha, Vila Jusa, e até a casa muito bem descrita,
ainda existe.Os factos histéricos e a situacgéo no tempo, tam
bém justificam a inclusdo. Por outro lado, a obra cujo mé
rito é todo do nosso conterraneo, Candido de Figueiredo,
é quase desconhecida na freguesia, e por esse motivo,
precisa ser divulgada.
Fala em nomes, como o Pimenta, que julgo nao haver
actualmente ninguém com este apelido.
Fala num Antunes que diz ser, descendente.
Fala num Manuel Joaquim de Carvalho, que casou com
uma mulher nova (Ana Cortideira), de Vila Jusa, e que a
ser verdade o que conta Candido de Figueiredo...foi pai
aos noventa anos! Sendo assim o campedio da poténcia...
(fdegouveia)