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O raivoso racional

Eu estava determinado e nada mudaria minha resolução: eu e ele tínhamos


que brigar. Fui caminhando por aquelas ruas frias com o endereço que
consegui através de manipulação. E aí está o prédio. Bem à moda antiga,
mas mesmo assim de finíssima qualidade. Ele de fato tem condições
financeiras favoráveis. Esperei por 5 minutos de um ponto estratégico onde
me escondi, e assim que um morador saiu do prédio eu entrei e fui direto ao
quinto andar, onde ficava o apartamento dele e lá bati na porta.

- Quem é?
Disse uma voz de mulher de idade.
- Sou Roberto, estou procurando Reginaldo para discutirmos assuntos
particulares de extrema importância.
- Reginaldo, tem um tal de Roberto aqui querendo falar com você. Ele está
falando difícil.

Depois de uns instantes apareceu diante de mim meu mortal inimigo, que
era da minha altura mais com a musculatura bem mais bem exercitada.
Tinha um olhar tranqüilo, e parecia curioso.

- Preciso conversar com o senhor em particular


- Eu te conheço de algum lugar?
- É pouco provável, mas o assunto é relevante, e envolve sua vida pessoal.
- Então entre, vamos ao meu quarto.

O apartamento não era dele, certamente, pois a decoração tinha a essência


de uma mulher. O sujeito morava com a mãe, talvez daí que tenha tirado
sua covardia: como um homem adulto que já passou dos trinta anos ainda
mora com a mãe?

- Então, amigo, o que você quer comigo?


- Já estou aqui dentro e, portanto, agora só posso dar avisos para tornar
tudo justo.
- Tudo justo? Até parece que eu e você vamos competir por alguma coisa.
- Vamos competir pela consciência, eu vou te atacar fisicamente e só vou
parar se você ou eu estiver incapacitado para continuar o conflito, e meu
objetivo é te deixar inconsciente.
- Isso é algum tipo de pegadinha?
- Não é, e sugiro que você indique um lugar deserto, pois senão podemos
destruir os móveis da sua mãe, que nada tem a ver com isso.
- Porque você quer brigar comigo?
- Você ofendeu minha amiga. E a única forma de um homem me ofender é
essa. Assim sendo, me sinto ofendido e raivoso, e pretendo deixar a
violência tomar conta dessa situação.
- Não é possível, só pode ser pegadinha. O que é isso, alguma festa
surpresa? Você quer que eu te leve no terreno baldio ali do fim da rua, que
é o lugar mais isolado, porque lá você tem uma surpresa?
- Se lá é o lugar mais isolado, então é para lá que vamos. Ande na frente
para eu ter certeza de que você não vai fugir, e não leve qualquer objeto
que possa ser quebrado.
- Tenho que reconhecer, você é um ator e tanto. Interpreta um louco como
ninguém.
- Não estou interpretando e não sou louco, tudo o que estou fazendo tem
perfeito sentido.
- Mãe, vou ali com o Roberto e já volto.
- Que gírias novas são essas, meu filho? Nunca que eu ouvi esse negócio de
um chegar educadamente na casa do outro avisando que vai bater.
- A conversa era particular, sabia?
- Me enganei, não é lá tão educado.

Saímos como eu planejei, ele andando na frente e meio risonho, tentando


adivinhar o que eu estava tramando. Não conseguia entender meu intuito,
apesar de ele ser perfeitamente racional. Eu avaliei de forma perfeita, de
acordo com experiências dos outros e examinando o que eu sentia. Dizem
que quando a ofensa é pequena nós devemos deixar passar, mas que
quando é grande devemos tirar satisfações. E o padrão entre homens é
conflito físico. Ele me ofendeu profundamente, pois ofendeu minha amiga, e
essa é a primeira vez que alguém me ofende então a ofensa naturalmente é
sentida de forma mais intensa. Afinal, quem vive no calor não suporta frio, e
quem vive no frio não suporta sol quente. Da mesma forma eu, que vivo
sem em ofender com nada, quando sou ofendido senti esse desejo
incontrolável de agredir o sujeito com todas as minhas forças. Não entendo
como ele não entende a racionalidade do meu intuito.

- Pronto, chegamos. Já que não tem ninguém eu presumo que há uma


câmera escondida.
- Se há uma câmera escondida então é melhor brigarmos em outro lugar,
pois nesse seremos vistos.
- Eu não sei de nenhuma câmera, se você também não sabe não há
câmeras.

Agora é a hora, comecei meu alongamento para facilitar o exercício físico.

- Comece seu alongamento também, pois ele facilita o exercício, e você vai
precisar e bastante mobilidade para se esquivar de meus ataques.
- Você é louco de verdade?
- Não sou louco, tudo o que estou fazendo tem perfeito sentido. Você
ofendeu minha amiga e eu tenho que te agredir fisicamente.

O homem não parava de rir, e eu não consigo entender bem porque, mas
isso me deixou com muita raiva. Será que ele está rindo porque me
considera fisicamente inapto para agredi-lo, ou será que está rindo do fato
de ter ofendido minha amiga? Somente a possibilidade de a segunda
hipótese ser verdadeira me deixou muito raivoso, e a primeira, que era
irrelevante, não me acalmou. Corri com toda a minha raiva na direção dele,
que se esquivou facilmente dos meus primeiros golpes. Eu estava
executando golpes repetitivos, e ele começou a repetir os movimentos de
esquiva. Quando criei o hábito de esquiva nele completamente eu mudei os
movimentos abruptamente e o acertei. Sim, uma bela de uma cotovelada
no queixo como nunca havia dado em ninguém antes. O homem, depois de
ser atingido, me atacou, e, antes de ser nocauteado, ainda consegui acertar
dois socos no olho dele. Ele saiu irritado e apressado.

- Não acredito que perdi todo esse tempo com um louco. Eu tenho coisas
muito urgentes para tratar, amigo.

Coisas urgentes como ofender minha amiga, talvez. Talvez eu tenha


cometido um erro e deixado ela vulnerável a ofensas sem poder consolá-la.
Acho que foi mesmo um erro, então preciso me recuperar em um hospital
para poder oferecer meu apoio psicológico a ela. Uma ambulância chegou, e
pessoas me rodearam.

- Era um homem forte e do tamanho dele, policial. O estava chutando


enquanto ele sofria no chão.
- Como era a aparência do elemento?
- Era branco, e tinha aparência até bonita, com olhos claros e cabelo preto e
curto.

Nesse momento eu estava entrando na ambulância e o policial me abordou.

- O que foi que aconteceu aqui, senhor? Quem foi que te agrediu?
- Na verdade eu que ataquei o homem, senhor policiai, e ele só estava se
defendendo da minha fúria.
- Vou te dar um tempo para pensar melhor no assunto, rapaz. Sabe, quando
não damos queixa dessas coisas elas podem se repetir, e acontecer de
forma mais violenta.
- Te asseguro que não se repetirá, pois eu já não sinto raiva dele, e perdoei
a ofensa que ele fez à minha amiga.
- ele está delirando, leve-o ao hospital.

Tentei argumentar, mas minha boca doía e meu pulmão mal se enchia de
tanta dor que eu sentia na barriga e nas costelas, apesar de eu ter certeza
de que não havia quebrado nenhum osso. A ambulância me levou, e me
identificaram pela identidade.

- Você tem o telefone de algum parente ou amigo com você?


- Não tenho anotado, pois esta no meu celular, que deixei guardado para
não ser danificado na briga.
- Sabe pela memória?
- Sei, mas não vou falar.
- E porque não?
- Porque não há necessidade de um amigo vir aqui, já que os médicos já
estão tomando conta da minha saúde e meu documento de identidade, bem
como minha carteira de plano de saúde estão comigo no meu bolso da
frente direito, que não posso alcançar.
- E essa sua amiga, pela qual você lutava?
- Ela é orgulhosa, e se sabe que lutei por ela se ofende comigo. Se ela se
ofender comigo eu me ofendo comigo mesmo, e tenho que me agredir.
Assim, por efeito de conservação, não posso chamá-la.
- Qual é seu nome.
- Roberto Carmo da Silva,
- Certo, anuncie na rádio que um louco chamado Roberto Carmo da Silva foi
encontrado espancado na rua. Os familiares dele devem estar preocupados
com o paradeiro dele.
- Você não ouviu o que eu falei? Preciso me preservar, e para isso é
fundamental que eu não ofenda ela!
- Descanse um pouco, sua amiga já já está aqui.

Eu não podia argumentar com aquele homem, pois percebi que ele não
queria me ouvir, e por mais que tudo fizesse perfeito sentido, ele
simplesmente negaria e me chamaria de louco. Além disso, eu estava com a
boca doendo, e queria mesmo descansar.

- Roberto, o que houve com você?


- Fui espancado por um homem.
- Quem te espancou?

Reginaldo estava bem atrás dela, e olhei para ele, que estava com um olhar
preocupado.

- Você bateu no Roberto, Reginaldo?


- Eu só estava me defendendo, ele que me agrediu primeiro.
- Ele que te agrediu e ele que está na cama de hospital? Você quer que eu
acredite nisso?
- Primeiro você me vem com essa estória mirabolante de que sue pai
morreu e de que por isso você sumiu, me deixando sozinha, preocupada e
atarefada sem avisar nada até agora porque de onde você estava não havia
telefone ou internet, e agora você espanca meu melhor amigo e diz que ele
que começou?
-Ângela, minha amiga, em relação ao fato de eu começar ele tem toda a
razão. Infelizmente tenho que te contar a verdade que me será prejudicial, e
faço isso por amor a verdade.
- Que verdade?
- Ao saber que seu noivo te abandonou assim sem mais nem menos, e ver
que você estava ofendida e magoada coma atitude dele, eu senti raiva.
Como eu ainda não tinha um protocolo para isso, pensei que a opinião de
um homem da rua fosse a mais acertada a respeito disso, pois ele parecia
muito agressivo, e se ofendia facilmente. Quem se ofende facilmente, se
ofende sempre, e por isso eu presumi que devia ouvir a experiência dele em
matéria de ofensas. Perguntei a ele o que ele faria se um homem o deixasse
muito raivoso e em me disse que arrebentava o sujeito.
- E me deixa adivinhar o resto. Seguindo a voz da experiência você foi atrás
do Reginaldo para agredi-lo.
- Sim, foi o que fiz, e peço que você não fique ofendida comigo, pois se ficar
vou ter que me agredir a mim mesmo.
- Não estou ofendida com você, mas estou decepcionada com sua falta de
lógica.
- Minha falta de lógica?
- Sim, você não agiu logicamente porque se baseou na opinião de apenas
um homem, e não na de pelo menos 50 que estabelecemos como mínimo
para uma pesquisa rápida de opinião.
- Mas eu não tinha tempo para isso, já que você daria pela minha falta e
poderia me achar no meio da pesquisa. Além disso, a minha raiva passaria
ao final dela, e eu não poderia verificar as coisas por minha própria conta.
- E como você se sente agora?
- Agora eu me sinto renovado. Esse negócio de agressão física realmente
parece ser a melhor forma de aliviar a raiva. Tanto é que depois de dar uns
dois ou três golpes nele eu já estava calmo a ponto de dar um abraço nele,
mas tive que entender que ele se sentir raivoso sem julgá-lo, pois, pela
explicação dele, eu senti raiva dele injustamente. Assim que ele foi embora
eu o ouvi nitidamente dizer que tinha algo urgente para tratar, que,
evidentemente, foi conversar com você e se explicar.

O sujeito olhava para mim e para ela estupefato. Percebi que ele havia
entendido tudo o que dissemos, e que demonstrava certa admiração por
Angela por ela argumentar comigo ao invés de me chamar de louco como
os outros.

- Parece que você conseguiu encontrar, finalmente uma pessoa que te


entende, Roberto.
- Dizendo isso você me obriga a te agredir fisicamente.
- O que? Deixe de ser louco!
- É esse mesmo o ponto. Se você diz que eu sou louco e que ela pode me
entender, então diz que ela é louca, e assim me ofende, pois está
ofendendo a ela. Se estou ofendido, ao que tudo indica, tenho que te
agredir.
- Você entendeu tudo errado, Roberto. Não foi agredi-lo que te fez se sentir
assim tão leve, mas perdoá-lo. Na verdade foi sua intenção de resolver o
problema, mesmo que de forma errada, que resolveu o problema dentro de
você.
- Consigo conceber essa idéia para a situação presente, mas não para
aplicar em situações futuras.
- Funciona assim. Você deve dialogar com as pessoas que te ofendem. Se
elas não estiverem abertas ao diálogo é porque são ignorantes e não são
dignas da sua dedicação.
- Certo. Então vamos dialogar.
- Você propôs o dialogo, então comece a falar.
- Certo, então vou usar o método do discurso corrido. Tendo por base o
método científico, eu estou criando uma forma de estabelecer um diálogo
de reconciliação. Assim sendo, com eu já identifiquei sua ofensa, preciso
perdoá-la. O que se espera desse perdão, que é aceitar sua ofensa como
algo que não faz mal, é que ele remova de mim a raiva, e,
conseqüentemente, evite o conflito físico. Assim, como eu não devo gastar
minha energia com uma pessoa ignorante o bastante para me ofender,
parece mesmo ter sentido perdoar.

O sujeito ficou me olhando com uma cara de riso. Como a maioria das
pessoas que ri do que não entende e não conhece para evitar que o ridículo
delas próprias venha à tona. Apesar disso o experimento foi um sucesso.
E era verdade. Perdoei o sujeito e me sinto leve. Mas uma questão ainda me
intriga. Porque eu só consegui encontrar uma pessoa nesse mundo que não
é insensata e vê o mundo de forma lógica?
Será que a insensatez é um fator determinante na sociedade atual?
Queria escrever sobre isso, mas essa camisa estranha que vestiram em
mim me impede de escrever...

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