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Ferreira Gullar

A cara do cara
Teríamos que ver Lula não como o estadista que pretende ser, e, sim, como um espertalhão?

DEVO ADMITIR que, de algum tempo para cá, a personalidade de


Lula tomou-se, para mim, motivo de surpresa e indagação. Trata-se, sem
dúvida, de um personagem inusitado na história política do país. Contribui,
para isso, obviamente, sua origem social, a condição de líder operário que,
embora pouco afeito aos estudos e à leitura, chegou à mais alta posição
que alguém pode alcançar no Estado brasileiro.

A trajetória que ele percorreu é, no entanto, compreensível, se se le-


vam em conta os fatores que determinaram o processo político brasileiro
durante os anos do regime militar. A repressão que a ditadura exerceu
sobre os trabalhadores organizados, alijando dos sindicatos às lideranças
surgidas do getulismo e do janguismo, propiciou o surgimento de uma
liderança sindical, desvinculada tanto do peleguismo quanto dos
comunistas que, por isso mesmo, prometia uma nova era na luta dos
trabalhadores.
A figura principal desse movimento era Luiz Inácio Lula da Silva que,
envolto nessa aura, fez renascer a esperança de velhos militantes incom-
patibilizados com o comunismo soviético, como também o entusiasmo de
uma nova geração que se inspirava na Revolução Cubana. Não por acaso,
Lula passou a usar a. mesma barba que caracterizava as figuras de Fidel e
Guevara.
Enquanto durou a ditadura militar, ele e seu partido, o PT, mantive-
ram-se na luta pela restauração da democracia, ao lado do partido de
oposição e de outras forças de esquerda. Finda a ditadura, Lula e seu
grupo começaram a mostrar sua verdadeira face: tornaram-se adversários
de todos os governos que se formaram, a partir de então. A própria
Constituição de 1988 não contou com seu apoio, pois se negou a assiná-
Ia.
De 1990 a 98, Lula fracassou em três tentativas de eleger-se presi-
dente da República. Em 2002, deu um ultimato ao PT: para perder de
novo, não se candidataria e, com isso, o partido abriu mão da postura
radical, permitindo a Lula, inclusive, adotar como vice um empresário e
comprometer-se com a política econômica de FHC, que haviam combatido
ferozmente. Eleito, Lula repeliu a aliança com o PMDB e aliou-se a
partidos menores, que seriam comprados com o mensalão. Quando o
escândalo estourou, disse que não sabia de nada e obrigou seus auxiliares
mais próximos a assumirem a culpa. Depois, os absolveu e, recentemente,
afirmou que o mensalão foi fruto de uma conspiração contra seu governo.
Não houve.
A coragem de fazer tal afirmação, quando a denúncia daquelas
falcatruas foi feita pelo procurador-geral da República e aceita pelo Su-
premo Tribunal Federal, é quase inconcebível em alguém que ocupa a
Presidência da República. Mas esse é o Lula que, após assumir o
governo, afirmou nunca ter sido de esquerda e, enquanto abre o cofre do
BNDES à grandes empresas, alia-se ao antiamericanismo de Chávez e
Ahmadinejad e abraça-se a Bush, a Fidel e Sarkozy. Dá seu apoio às
eleições corruptas do Irã e se nega a reconhecer o presidente
legitimamente eleito de Honduras.
Mas nada chocou tanto a opinião pública, dentro e fora do Brasil,
quanto sua afirmação de que é inaceitável que alguém se deixe morrer
numa greve de fome. E, como se não bastasse, comparou os prisioneiros
políticos, condenados por delito de opinião, aos criminosos comuns,
presos por roubar ou matar. O ministro Amorim tentou defendê-lo, dizendo
que Lula, por já ter feito greve de fome, estava agora fazendo uma
autocrítica. Na verdade, Lula fingiu fazer greve de fome, em 1980, pois,
como se sabe, comia escondido. Não se trata, pois, de autocrítica, mas da
tentativa de desqualificar quem demonstrou a grandeza moral que ele não
teve. Teríamos que vê-lo, não como o estadista, que pretende ser, e, sim,
como um espertalhão, capaz de qualquer coisa que sirva a seus objetivos?
Seria, talvez, simples demais afirmar que sim. No entanto, como
entender sua atitude, na visita recente ao Oriente Médio, quando se
ofereceu, publicamente, para mediar o conflito entre judeus e palestinos,
tarefa já entregue a um "quarteto" de alto nível composto' pelos EUA, a
comunidade europeia, a Rússia e a ONU? Como era de esperar, o
oferecimento foi rejeitado pelos dois lados.
Lula certamente não contava com isso, mas, esperto como é,
tampouco se julgaria capaz de resolver tão complexo problema. O que lhe
interessava era posar de estadista preocupado com as grandes questões
mundiais. É o mesmo cara que inaugura obras não concluídas e acha que
só um retardado mental faz greve de fome para valer.

Teme a era pós-Lula.

Artigo publicado no jornal Folha de São Paulo


28/03/2010

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