Você está na página 1de 17

MARCELO MORAES CAETANO

Valsa Mefisto

Peça em 2 quadros
Valsa Mefisto.

I Quadro.

O pano sobe lentamente e, sem música, um cenário muito mal iluminado vai
tornando-se definível aos espectadores , cuja visão, sempre turva, costuma ir aceitando de
forma compassada a mentira que se dará no palco. Esse mesmo e exato tempo é , pois , o
em que deve ir sendo clareado o cenário, subindo a luz , morosamente , a fim de dar-se
tempo à platéia de , repetindo , habituar a visão e a mente aos mitos do teatro mentiroso.
Casa velha , porém limpa e , na pobreza , organizada.Uma lareira de porte
razoavelmente pequeno equilibra o palco , tendo , à margem oposta à sua,
um caldeirão com as mesmas proporções , mais ou menos.O vulto de uma ave empalhada
parece sair do interior do caldeirão , junto às fumaças parcas e cinzentas que deste
emanam.Entre a lareira e o caldeirão  por conseguinte , no centro preciso do cenário , um
orifício de quatro centímetros de diâmetro , donde sai um facho de luz azul dirigido ao alto
da casa , como que a iluminar-lhe o teto. Na parede , em volta da cavidade azul , tão-
somente , um conjunto de objetos de magia , alquímicos , fantásticos , um gancho com uma
ramagem de folhas secas pendurada , escumadeiras , colheres de pau , crivos . Ora , o
cenário , bem iluminado (e paradoxalmente escuro) , deixa inequívoca a sensação de tratar-
se da cabana erma de uma bruxa , provavelmente no meio da mata.

ATAULFO:
É esta?

MEFISTÓFELES:
Já deve estar chegando.

ATAULFO:
(Indo embora)Vamos voltar mais tarde , então...

MEFISTÓFELES:
(Puxando Ataulfo pelo braço) Agora que estamos aqui?

ATAULFO:
Eu desisto.

MORDOMO:
(Entrando ; com a voz fria e distante)Se os senhores quiserem , podem sentar-se.(Aponta o
chão)Eu mesmo o limpei! ... Ela vai atendê-los.(Sai).
MEFISTÓFELES:
(A Ataulfo) Agora é tarde (sempre é tarde!).

ATAULFO:
(Falando consigo mesmo) Maldita a hora em que optamos por rejuvenescer , maldita a hora
em que nos vemos velhos e podres...

MEFISTÓFELES:
(Sarcástico) Maldita a hora em que envelhecemos?Agora é tarde.

ATAULFO:
Para mim?

MEFISTÓFELES:
Claro.

ATAULFO:
Quem decide isso sou eu.

MEFISTÓFELES:
(Irônico) Ou será que é o tempo?

GUMERCINDA:
(Entra calmamente e senta-se no chão , ao lado da lareira) Boa tarde.

ATAULFO:
(A Mefistófeles) Quem é?

MEFISTÓFELES:
(Sem tirar os olhos de Gumercinda) Uma velha conhecida ...(À Gumercinda) Boa tarde ...
tarde mesmo...

GUMERCINDA:
(A Mefistófeles) Você ... você ... você não é...?

MEFISTÓFELES:
(Interrompendo-a) Sempre a seu dispor .

GUMERCINDA:
(Subitamente assustada ; faz menção de levantar-se) O que está fazendo aqui?

MEFISTÓFELES:
(Irônico) Adivinhe ...

ATAULFO:
Vocês se conheciam?
GUMERCINDA:
Sim.(A Mefistófeles) Você disse que nunca mais nos veríamos ...

MEFISTÓFELES:
São os doces dissabores da vida ...

GUMERCINDA:
(Levantando-se)Vou embora.

ATAULFO:
Por nossa causa?!

(Gumercinda pega a bolsa no chão e vai embora , injuriada)

ATAULFO:
Vocês tiveram um caso?

MEFISTÓFELES:
Exatamente igual a este que nós dois estamos tendo agora , doutor.

ATAULFO:
Quer dizer que ... (Pára uns segundos ; a luz baixa sutilmente) ... ela fez plástica?

MEFISTÓFELES:
Melhor dizermos que a plástica fez ela...

ATAULFO:
(Tapando o rosto como se estivesse envergonhado de si mesmo)Que vergonha , meu Deus ,
que vergonha...

MEFISTÓFELES;
(Lento e profético) Constrangimentos...

BAIANA:
(Entra com um tabuleiro forrado e , sob este , um suporte de quatro pernas ; apóia-o e inicia
o pregão , abanando o tabuleiro com uma ventarola) Ó o vatapá , beiju , o acarajé e o abará.

ATAULFO:
(À Baiana) Quanto está o sorvete?

BAIANA:
Chegou ainda não. (Pára , reconhecendo-o ; sorri) Doutor Ataulfo!...que surpresa!

MEFISTÓFELES:
(À Baiana) É o tempo ...

BAIANA:
Pois não é?(Continua o pregão) Ó o vatapá , beiju , o acarajé e o abará.

(O Mordomo entra , trazendo , consigo , dona Fraternolina).

BAIANA:
(À d. Fraternolina) Vai um acarajé aí , minha tia?

MEFISTÓFELES:
(Olhando d. Fraternolina)Longa é a arte (Ergue a sobrancelha).

(D. Fraternolina senta-se com grande dificuldade no chão , contorcendo-se de dores por
todo o corpo).

MEFISTÓFELES:
Breve é a vida...

MORDOMO:
Alguém quer alguma coisa?(Todos ficam em silêncio)Então vou sair.(Sai).

(D. Fraternolina se ajeita no chão , soltando um longo suspiro  misto de dor e tédio).

MEFISTÓFELES:
(Sentando-se) Sentemo-nos também , meu caro , que um minuto de trabalho vale um dia de
descanso...

(Os dois , sentando-se , não tiram os olhos de d. Fraternolina , temendo ficarem, ao que
tudo indica , iguais a ela um dia).

D. FRATERNOLINA:
(Suspirando)É ...

BAIANA:
(Falando consigo mesma) Carece é dum médico de velho , esta aí ...

ATAULFO:
(Intrometendo-se no que não fora chamado , à Baiana)Ledo engano seu , minha doce
Baiana , ledo e tolo : nesta vida , se a gente tem juventude , querendo , arranja mulher ,
marido ... se quiser até as duas coisas juntas ... mas se tem saúde , só saúde ...

MEFISTÓFELES:
(Sorrindo)Muito bem , doutor , é assim mesmo , esta vida.

ATAULFO:
(Continuando)Ao passo que o dinheiro , sozinho , não serve para nada , nada ; só presta
para comprarmos beleza , jovialidade , para nada mais.
MEFISTÓFELES:
(Orgulhoso do pupilo , dá um tapinha nas costas de Ataulfo)Muito bem!

(Súbita  mas lentamente , a luz vai desvanecendo , deixando o cenário a dois confortável
e amedrontador . A sombra do pássaro emplumado que parecia evaporar do caldeirão junto
à fumaça deste , está , agora , mexendo-se , descomunalmente maior , qual se tivesse , por
uma razão não aventada , ganho vida , recebido o sopro anímico de Deus. O cenário fica
quase completamente apagado. A luz azul , a verter do orifício do centro da parede , esta
em nenhum instante chega a empalidecer ; muito pelo contrário , a impressão que se tem é
de que , a cada diminuída das luzes do palco , aqueloutra robustece sobremaneira o próprio
foco  mas sempre direcionada , estaticamente , ao mesmo lugar. Ataulfo e Mefistófeles
levantam-se : apreensivo , aquele ; debochado , este).

FEITICEIRA:
(Apenas a voz é ouvida , como se surgisse da luz azul ; o demais mobiliário , como se falou
algures , está escuro e indefinível) O próximo , faça-me o favor de entrar ...

(Ouve-se uma algazarra tremenda , um estardalhaço , como se um tropel viesse cavalgando


sobre ferraduras de lata ; junto a isso , gritos , gritos cortando a barulheira , uma palraria
atordoante , gritos de um corvo alucinado , que entra , dançando e crocitando , em uma
valsa infernal. Mas não há música ; a iluminação ainda é fraca).

CORVO:
Crááááá ... Quem é a próxima vítima da vaidade humana?

(Em seguida , uma múmia  enfaixada dos pés à cabeça  , vem cambaleante)

MEFISTÓFELES:
(Zombeteiro)Boa , esta feiticeira.

(A múmia sai pelo lado oposto ao que entrou).

CORVO:
(Dirigindo-se a Mefistófeles mas referindo-se a Ataulfo) O calhorda ali , quem é?

(Mefistófeles abre a boca para explicar ; o corvo , iracundo , voa sobre Ataulfo)

CORVO:
Matá-lo-ei , pulha da peste (Avança sobre Ataulfo com as mãos erguidas , como prestes a
desferir-lhe um golpe) Matá-lo-ei!

ATAULFO:
(A Mefistófeles) Ajudai-me , cúmplice !
MEFISTÓFELES:
(Que em nenhum momento chegou a alterar-se com o ataque) Calma...

CORVO:
(Sobre Ataulfo , que , embora de pé , encolhe-se de pavor ante a iminência de um golpe)
Crááááá ... Vou embora.

MEFISTÓFELES:
Viu?

(O corvo sai , ruflando as asas , pelo mesmo lado donde viera . Qual a razão por que os
demais pacientes , sentados na ante-sala ... por que eles não se alvoroçaram diante da cena
anterior? De mais a mais , ratifico que a iluminação, opaca e convalescendo , ainda não
voltou de todo ao normal , muito embora se vá , quase imperceptivelmente , fortalecendo).

MORDOMO:
(Entrando)Alguém me chamou?(Ninguém responde)Então vou sair.(Sai).

FRATERNOLINA:
(Suspira profundamente , levanta-se com a expressão sempre apática e desanimada)Vou
embora para minha casa.

BAIANA:
Oxente , que esse povo é estranho.

ATAULFO:
Sorvete?

BAIANA:
Inda não.

(Gumercinda , voltando , com ares humildes , senta-se no chão , sem encarar nenhum dos
presentes.Um silêncio furiosamente necessário toma conta da cena por algum tempo 
tempo considerável  , após o qual , envolta em fumaças engrossadas e fortalecidas vindas
do caldeirão , surge um fantasma)

FANTASMA:
Eis-me aqui ao vosso lado , criaturas execráveis.

MEFISTÓFELES:
(Pela primeira vez com uma expressão de estranheza no semblante)Quem sois?
Donde viestes?
FANTASMA:
Não me conheceis , ó ente dos rincões inferiores , porque a estes eu não pertenço e nem
pertencerei jamais : morto , não tive o que indenizar a Deus , Nosso Senhor , senão somente
umas poucas e breves faltas menores...

CORO DE ANJOS:
(Cujas vozes se escutam , com pouca clareza , oriundas dos quatro cantos do palco) Deixai-
o , Mefistófeles , deixai-o , que ele a vós não vos pertence!

BAIANA:
Vixe! Êparrei meu pai do céu...

(De chofre , o palco fica extrememente iluminado ; uma música altíssima espécie de ópera
do Romantismo alemão , espécie de alegoria heróica  assenhora-se do ambiente.
Mefistófeles regateia e dá um passo para trás , recuando , com uma feição tendendo à de
Pânico Absoluto , movendo-se ao Pavor , por assim dizer . A Música Alegórica desenrola-
se ; não esmorece).

ATAULFO:
(Ironicamente , a Mefistófeles) O medo é máscara que vos não assenta bem na face ,
Mefisto...

MEFISTÓFELES:
(Acuado)Que é isso , afinal ?! Em que palpos venenosos me colocais? Estou vítima de um
conluio , de uma trama?(Gritando) Que quereis de mim , fantasma das Entranháveis
Virtudes do Senhor?espectro de vulto mesquinho?

CORO DE ANJOS:
A obra não é dele , ser inominável , senão , sim , uma graça dos céus aos homens.

(Baiana deixa o tabuleiro e corre à lareira , saindo de cena).

FANTASMA:
Vinde!

MEFISTÓFELES:
(A Ataulfo)E vós , meu companheiro? vós não fazeis nada em meu socorro?

ATAULFO E CORO DOS ANJOS:


Nada se pode fazer.

(Da mesma fumaça do caldeirão donde sai Fantasma , aparece , tímida e recolhida ,
Chapeuzinho Vermelho , escondendo a face rósea , repleta de amabilidade e rubor).
MEFISTÓFELES:
(Gritando)Não!(Ajoelha-se)Imploro , rogo , suplico que me salvais , ó vós todos do
Banquete de Deus!

ATAULFO E FANTASMA:
Nada se pode fazer.

(Gumercinda , sentada no mesmo lugar de antes , sem arredar pé ou incomodar-se com a


cena , lê uma revista . Chapeuzinho Vermelho aproxima-se de Mefistófeles ajoelhado . As
luzes todas se apagam num susto ; a música , nem aumentando nem diminuindo o volume ,
continua sendo tocada).

MEFISTÓFELES:
(Gritando)Não!

ATAULFO , FANTASMA E CORO DOS ANJOS:


Nada se pode fazer.

II Quadro.

Sem música . A luz , do escuro ao parcimonioso , lentamente . Em cena , em frente


a seu tabuleiro , Baiana ; além dela, Gumercinda  na mesma posição , com a mesma
revista , Ataulfo em pé e , ao seu lado , Mefistófeles , com um sorriso confiante e mordaz
no canto da boca. (E não há , em palco , estaticidade , apatia e parvoíce maiores do que as
fomentadas por frases nominais , por enunciações de todo em todo despidas de verbos 
esses processos de dinâmica virtude).

MEFISTÓFELES:
(Rindo , à Baiana)Eu sou a vergonha , a vergonha! ... E a vergonha sempre vence!

BAIANA:
Ó o acarajé , beiju , o vatapá e o abará.(Benzendo-se)Te esconjuro ... Arre, bicho ruim ,
arreda pé de mim , êparrei ...

ATAULFO:
(A Mefistófeles)Tua presença é-me um punhal rombudo no peito : vós me subjugais.
MEFISTÓFELES:
Ora , ora , ora , douto senhor , não fosse pela minha presença rombuda , não teríeis vindo
aqui ...

ATAULFO:
Ainda por cima enlouqueceste , Mefisto? (abaixando a cabeça e a voz)Pois vós não sois a
vergonha que me envenena e trucida?

MEFISTÓFELES:
Por isso , então!

BAIANA:
Explica esse negócio aí , faz favor , faz.

MEFISTÓFELES:
Posso fazê-lo em consideração à minha atual vítima , e não a ti , criatura menor.

(Enquanto ele falava , a luz ia abaixando , a potencializar , novamente , a azul que jorra da
fenda da parede . A voz cavernosa da feiticeira é ouvida).

FEITICEIRA:
O que se passa aí? Por que o próximo paciente ainda não entrou? Já se faz tarde ...

GUMERCINDA:
(Como que acordando repentinamente de um sono , larga a revista , despertada pela deixa
da Feiticeira) Tarde?! Tarde?! Sou eu ... a próxima sou eu ... (Entra às pressas pelo lado do
caldeirão , sumindo da cena).

MEFISTÓFELES:
(A Ataulfo)Viste por quê?

ATAULFO:
Tu és a vergonha a me afogar...

MEFISTÓFELES:
Por isso mesmo vos digo que por minhas santas mãos chegastes aqui ... (caminha ao centro
do palco , tapa com uma mão o orifício por onde saía a luz azul). Doutor Ataulfo , se sois
um ser que tem vergonha de si mesmo , que quer modificar-se a si onde pode e onde não
deve , ora , doutor Ataulfo , queríeis livrar-vos desta mesma vergonha justo aqui?...ou em
qualquer outro lugar? Tens vergonha de ti mesmo , doutorzinho , morres de vergonha do
que pensem na rua a teu respeito , do como possam avaliar-te : não fosse eu , a vergonha ,
não terias vindo aqui  sê forte agora , doutorzinho , e agüentai , qual cavaleiro destemido
que sois , a pequenez da vergonha que vos impele a grandes atos e por estes mesmos te
humilha , ó vós , que vos julgais eterno(e que és tão efêmero)...
ATAULFO:
(Acena a cabeça , concordando) Vós sois a vergonha que aqui me trouxe.

(Sentam-se , ele e Mefistófeles.O corvo entra em cena aos berros , dançando , sozinho , e
batendo as asas).

CORVO:
Atenderei à campainha que me chama.(Vai em direção à lareira , pára , e , voltando a
dançar, sai de cena por este lado . Imediatamente após sua saída , volta com uma nova
pessoa junto a si , uma mulher deslumbrantemente virginal , casta , perfeita  Vênus).

VÊNUS:
(Entrando , sem ter ainda visto ninguém . Ao corvo) Obrigada.

CORVO:
Tu já és de casa , casa , tu já és de casa.(Sai).

VÊNUS:
(Vendo Ataulfo , seu marido. Espantadíssima)Ataulfo?!

ATAULFO:
(Constrangido e agastado , a Mefistófeles) Podias ao menos ter-me livrado desta...

BAIANA:
(A Vênus) Acarajé aí , minha dona?

VÊNUS:
Ah , eu quero : compra um para mim , Ataulfo?

BAIANA:
(Avaliando Vênus de cima a baixo , como tendo gostado e muito  do que tivesse visto ,
arregala os olhos e sorri)Carece de dinheiro não , filha , que pr’ocê é cortesia da casa.(Pega
o alimento demandado , envolve-o em guardanapos e o entrega a Vênus).

MEFISTÓFELES:
(Sempre com um esgar na cara)O cerco está fechado.

CORVO:
(Voltando à cena , dá um grito)Pelópidas! Come here , man!

MORDOMO:
(Entrando com a tranqüilidade e a frieza de sempre) O quê .
CORVO:
(Apontando para Ataulfo)Este cavalheiro está estorvando a nossa querida e dada Vênus.

VÊNUS:
Não , corvo , não é isso ; ele é meu marido.

CORVO:
(Aproxima-se de Ataulfo e , olhando-o por baixo , perto do rosto , pergunta a Vênus) É este
aqui?

VÊNUS:
É.

(O Mordomo não sai de cena , fica estático num canto qualquer a esta).

CORVO:
(A Ataulfo) E quem és tu? ó imberbe cavalheiro?

MEFISTÓFELES:
(A Ataulfo , sem guardar segredo) Fizestes a barba?

ATAULFO:
Não.

MEFISTÓFELES:
Sois imberbe.

CORVO:
És glabro.

VÊNUS:
Mas é assim que eu gosto dele ... (Autoritária porém aflita) Ataulfo , meu bem, vamos
voltar para casa , vamos embora logo , ande , que eu não quero você por aí se mudando
não.(Abaixa levemente a voz , dir-se-ia estar encabulada)Você não sabe que foi assim que
eu me apaixonei por você?

ATAULFO:
(Vacilante , coloca os dedos no próprio nariz , erguendo-o um pouco) Amor , eu só queria...

MEFISTÓFELES:
(Interrompendo)Dar uma geral , fazer barba (isto você nem tem) , cabelo e bigode , mudar
o look , jogar a carcaça velha fora etc. etc. etc.
BAIANA:
(Que não parara um segundo de revezar os olhares ora para Vênus , ora para Ataulfo ,
inconformada com aquele despautério)Como é que pode , meu Deus?

CORVO:
(Gritando) Chega! (A Ataulfo) Vosmecê vai entrar ou não vai?

VÊNUS:
(Medrosa)Não , corvo , ele não entra não...

MEFISTÓFELES:
(Como se estivesse falando com o Corvo , mas , falando , na verdade , para Ataulfo)Ele fica
aqui fora mesmo , com esse nariz medonho , essa boca caída , essa cara de velho...

(Neste momento , Gumercinda volta à cena , sorrindo com muita franqueza e trazendo , nas
mãos , uma folha de papel).

GUMERCINDA:
Até logo , pessoal...

MEFISTÓFELES:
Até muito breve , querida...

ATAULFO:
Vênus , meu anjo ...

(Subitamente , ao término do proferimento , por Ataulfo , da palavra “anjo”, o palco fica


iluminadíssimo e aquela ópera volta a tocar , desta vez , contudo , muito
parcimoniosamente no que tange à altura).

CORO DOS ANJOS:


Alguém nos chamou?(Ninguém responde nada)Então vamos embora.(O palco volta à
penumbra de antes , e a música , apesar de permanecer apenas de fundo, não cessa , desta
vez não se extingue).

ATAULFO:
Retomando : Vênus , meu amor , eu só vou mudar um pouquinho , nada que me atinja o
visual.

MEFISTÓFELES:
(Azedo)Se for assim , melhor nem fazer nada...

(A luz abaixa sensivelmente , deixando mais visível a azul da cavidade da parede)

MEFISTÓFELES:
Ai , que saco!
FEITICEIRA:
O próximo.

CORVO:
Quem é? Quem é? Quem é?

(Pára a música e todos em cena se paralisam , congelados , qual estátuas de mármore).

...

ATAULFO:
(No momento exato em que fala , a música volta a tocar , baixa) Sou eu , o próximo .(E
olha para Vênus).

VÊNUS:
E daqui direto para o cartório : eu quero divórcio!

MEFISTÓFELES:
Ai , que intransigência.

VÊNUS:
(Cheia de amor para dar) Ataulfo , eu me apaixonei por você exatamente assim como você
é , não entende isso?

MEFISTÓFELES:
(Tendo estranhado a súbita declaração de Vênus , com cara de descaso) Não , não dá para
entender , sinceramente.

MORDOMO:
Suicidar-me-ei.(Sai).

CORVO:
Ides tarde , meu querido , mui e assaz tarde.

ATAULFO:
(Num súbito desespero)Tarde?! Sou eu , Vênus , sou eu agora a entrar , depois, em casa ,
em outro lugar , a gente se entende melhor , melhor assim...

MEFISTÓFELES:
Dá-lhe , Ataulfo , o covardão.

(Cessa , definitivamente a música. O teatro inteiro se ilumina , desde a platéia até os


banheiros).
BAIANA:
Vixe.

(Entrando em cena , a Feiticeira , uma figura típica de bruxa medieval  pronto! isto já
dispensa maiores perdas de tempo quanto a descrever-lhe a indumentária  ; excetua-se
deste âmbito , contudo , uma saia curta e paramentada de flores secas ; o mais são roupas
que trazem à mente a figura a que se aludiu acima. Fora tudo isso , a Feiticeira chacoalha
um ramo de folhas de capim , sacolejando-as como o guizo de uma cobra . Sua figura ,
contudo , não traz consigo qualquer sombra de mistério , tampouco a acompanham as
brumas envolventes e frias que , porventura , estivessem sendo esperadas pelos
espectadores , acostumados ao óbvio. Por fim  porém de importância igualmente vital ao
enredo  , exponhamos a identidade da Feiticeira ...  o Inocêncio).

FEITICEIRA-INOCÊNCIO:
(Já em cena)Por que a demora?

VÊNUS:
(Metendo-se na frente do marido , como a defendê-lo de um pelotão de fuzilamento) Ele
não vai!

CORVO:
Vai!

BAIANA:
Não vai!

MORDOMO:
(Apenas sua voz é ouvida : seja atento , leitor , o Mordomo já saíra de cena há muito tempo
para suicidar-se. Das cochias , gritando efusivamente) Vai!

(Ouve-se o estampido de um tiro).

CORVO:
Não vai!

MEFISTÓFELES:
(Agarrando Ataulfo pelo braço) Ah , mas vai sim , mas vai mesmo.

FEITICEIRA-INOCÊNCIO:
É sempre assim , sempre assim : o infeliz me chega aqui por causa da vergonha de ser
quem é , e , por causa da vergonha , não quer entrar , fica pelejando , regateando , trocando
os pés pelas mãos...(Pára por uns pouquíssimos  tipo dois ou três  segundos , dirigindo-se
grosseira e secamente a Ataulfo).Se queres entrar , entra logo.
BAIANA:
(À Feiticeira)Mas , doutor , e eu?

FEITICEIRA-INOCÊNCIO:
Você , você ... qual é o seu caso mesmo?

BAIANA:
(Sem nenhum constrangimento aparente ou mesmo interno) Eu vou virar homem , doutor ,
com agá maiúsculo , com ó maiúsculo , com tudo maiúsculo , tudinho , bem maiúsculo
(Olha para Vênus).

MEFISTÓFELES:
(À Baiana) Mas só depois do meu cliente...

BAIANA:
(A Mefistófeles) Sai pra lá , bicho estranho , que eu não preciso me debater com você não :
eu sou é muito da bem resolvida : sai fora , sai saindo , vergoinha besta ...

ATAULFO:
(Abraça Vênus)Você me ama assim mesmo , meu amor?assim como eu sou?

VÊNUS:
De todo o coração!
(O casal abraça-se e beija-se melosamente)

MEFISTÓFELES:
Tolo! Arrepender-vos-á desta pilhéria em que caístes ... Tu és um tolo! Vós sois um nobre
aristocrata , doutor Ataulfo , um ser em cuja preeminência de valores não viverá sequer
uma geração a vos celebrar...és demônio...sois anjo...

(Após a palavra “anjo”, o palco ganha aquela luz ofuscante ; a platéia , só agora , apaga-se.
A ópera volta a  não aos berros  inundar o palco , e a platéia , e os banheiros , e a rua ...
dependendo da acústica do teatro).

CORO DE ANJOS:
Quem nos chama?

BAIANA:
(Apontando para Mefistófeles) Ele.

(O Fantasma surge ao lado do caldeirão).

FANTASMA:
Vinde!
MEFISTÓFELES:
(Humilhado , no chão) Não , tende misericórdia ... (Hesitante , a Fantasma) Vós sois ... Tu
és o seu Nhonhô da Matasqueira?

FANTASMA:
Sem carne e sem osso.

(Neste calor , entra Chapeuzinho Vermelho : Mefistófeles , voltando a enterrar a cara no


chão , entrega-se a súplicas)

MEFISTÓFELES:
Vá embora , vá embora...

FEITICEIRA-INOCÊNCIO:
(À Baiana , em referência a Chapeuzinho Vermelho) Esta aí é outra , minha filha : já foi
homem , já foi uma vetusta vovó , já foi até lobo fisiculturista , e resolveu , agora , ser uma
menininha ... Ah! Os milagres da plástica ...

CHAPEUZINHO VERMELHO:
(Abaixando-se ao lado de Mefistófeles ; sua voz é inequivocamente masculina e
inexorável) Meu irmão , levanta agora e cala a boca!

CORO DOS ANJOS:


Ide , rapazinho , ide para vosso melhor proveito...

MEFISTÓFELES:
(Levantando-se aos prantos) Traição!... Traição!...

(Os dois deixam a cena ; ela segura a capa a ele ; este , co’a cara entre as mãos, a cobrirem-
na , ironicamente , de vergonha  da mesma pretensa vergonha por si ministrada  , ouve a
música que não pára ; e abandona inteiramente o palco em cujo pano emaranham-se a
violência e o ímpeto de um cair , de certa forma, paulatino ,  porém necessariamente irado
e incisivo).

Você também pode gostar