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Economia B11

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O ESTADO DE S. PAULO DOMINGO, 23 DE MAIO DE 2010

Sarkozy,sobamiradeumrevólver,deci- Por outro lado, mesmo que revol-


GILLES diu-se por medidas de rigor. Estupida-
mente, ele não quer que essa palavra,
tasviolentassejamevitadas,umaaus-
teridade exagerada terá esse efeito

LAPOUGE “rigor” seja pronunciada, mas enfim,


quando reduzimos o número de funcio-
nários, deixamos que os hospitais fun-
detestável: vai curar o país doente,
mas ele ficará aniquilado.
O país entrará em recessão, os im-

✽ gilles.lapouge@wanadoo.fr
cionem à mercê dos ventos, que a idade postos vão baixar, o desemprego au-
da aposentadoria sejaaumentada, o que mentará vertiginosamente e a crise
é isso? Deleite ou rigor? Recusar o em- será ainda pior.
prego dessa palavra mostra uma grande Um exemplo disso: nos países do

O euro e o bem-estar social fraqueza.


Nicolas Sarkozy é como esses “novos
convertidos”.Ele,quevinhaatirandodi-
Báltico, a cura de austeridade come-
çou bem antes. O FMI concedeu um
empréstimo de € 7,7 bilhões à Letô-
nheiro pela janela há três anos, surge nia, sob a condição de o país se sub-
KOSTAS TSIRONIS/REUTERS
agora como um sujeito avarento, um meter a um plano assustador de aus-

O
euro, a única grande reali- Shylock (o mercador de Veneza). Esta teridade econômica. Como resulta-
zação da União Europeia, semanaainda, decidiu queaFrança eco- do, o PIB da Letônia em 2009 caiu
eoseuorgulho,quasemor- nomizará € 100 bilhões em três anos: 18%, o desemprego aumentou para
reu há alguns dias, exata- uma promessa impossível de ser cum- 22,8%. Uma pergunta: como estará o
mente no dia 7 de maio, uma sexta- prida.Surrealista.Tudoo queéexagera- PIB grego quando o país aplicar to-
feira. Uma sexta-feira negra. do é insignificante. dasasdrásticasmedidasimpostaspe-
Aolongo detodo aqueledia,amoe- Assim, por todo a parte o rigor está lo FMI e pela União Europeia? Nada.
da única europeia titubeava à beira presente. Por quê? Para saldar dívidas Não haverá mais PIB. Terá afundado
do abismo. Os especuladores se lan- monstruosas acumuladas em todos os no “triângulo das Bermudas!”
çaram impiedosamente contra os países europeus pelo “Estado Prove- Nãoéesseoúnicoperigodaspolíti-
três elos fracos da cadeia: Grécia, Es- dor”. E o que é esse chamado “Estado cas de austeridades repentinas, ado-
panha e Portugal.O euro estava pres- Provedor?” tadas num momento de pânico e mal
tes a explodir. Os “atiradores de eli- Ele nasceu no século 12, quando o rei planejadasqueagora estão sendoim-
te” explodiam de felicidade. São Luís, da França, um homem muito plementadas.A primeira consequên-
Bruscamente, os governos saíram piedoso, criou um hospital em Paris pa- cia será o ódio dos “salvadores”.
do seu longo sono dogmático. Entra- ra receber os soldados que voltaram ce- Ódio do FMI, o que não é grave,
ram em pânico, saíram aos gritos. Os gos das Cruzadas. Esse hospital conti- pois o rancor já é antigo e indelével.
e-mails e telefonemas teceram uma nua em atividade e no mesmo local. Mas ódio também da União Euro-
rede apertada de angústias, vilanias, Aliás,foiláquefiz umaoperaçãodecata- peia e do euro.
maquinações entre todas as capitais rata. Mas correu tudo bem. E depois de Esses programas de rigor excessi-
europeias. oito séculos! Por isso, mesmo com- vo já conseguiram fragmentar, ra-
NicolasSarkozyfaloumaldeAnge- preendendo que o hospital tem graves char a União Europeia e o euro. Há
la Merkel e ela fez o mesmo com rela- falhas, acho que, mesmo assim, ele pos- oito dias, como num naufrágio, cada
çãoaele.AtéBarackObama,nosEsta- sui algumas virtudes. um só pensa em si mesmo. Não co-
dos Unidos, se inquietou. O Fundo nhece mais o amigo de ontem. O que
Monetário Internacional (FMI), O Estado Provedor precisa se quer é salvar a pele. O resto do
mais ainda. No dia 9 de maio, os diri- mundo é ignorado. O que é procura é
gentes europeus entraram emação: e
mudar, mas aboli-lo de um uma chalupa.
derrubaram sobre a Europa, com as- golpe só é lançar o caos social União,Europa,solidariedade,cola-
sistênciadoFMI,umasomagigantes- boração, todas essas palavras hoje
ca: € 750 bilhões. Naépocamoderna,naAlemanha,des- são acolhidas pelas populações com
A moeda única estava salva. de 1810 o “código prussiano” obriga os sarcasmoecólera. Mesmoosdirigen-
No entanto, já no dia seguinte, empregadores a garantirem auxílio- tes cedem a esse movimento centrí-
quandoo campo debatalha foiinspe- doença para alguns. E Bismarck, em peto. A Alemanha, que foi sempre de-
cionado, todos constaram que o so- 1883, que aliás não era um homem mui- fensora da ideia europeia, começa a
corro custaria muito mais. to terno, instituiu um seguro-doença, pensar em “se retirar do negócio”.
Esse dinheiro teria de ser pago: e um seguro contra acidentes e um segu- E isso é grave: o que quase morreu
de fato, de Atenas a Madri, de Lon- ro para a velhice. É por isso que existe o em 7 de maio foi o euro. O que corre o
dres a Paris, os governos anunciaram modelo europeu chamado “modelo re- risco de desaparecer no futuro, é a
planos de rigor ou de austeridade. nano” em oposição ao modelo liberal paixão europeia.
Grandes cortes nos gastos da previ- “anglo-saxão”. Isso não significa que devemos
dência social, da assistência social, Mais tarde o sistema se ampliou. Na conservar esse Estado Provedor da
da cooperação, da proteção social, França, em 1920 as prestações sociais maneira como funciona hoje: irres-
etc. Planos ferozes. Remédios de ca- representavam 0,1% do Produto Inter- ponsável, incoerente, estúpido. Mas
valo, ou melhor, para matar cavalo. no Bruto (PIB). Em 1980 elas significa- abolir todos os seus dispositivos de
Verificamos que, se o euro foi tira- vam 25% do PIB. E hoje? O jornalista um só golpe será lançar os Estados
do “in extremis” do caixão, em com- Thomas Friedman, do jornal The New num caos social e humano pior do
pensação, um grande ferido jazia no York Times, utiliza uma bela imagem que o atual.
campo de ruínas: o “Estado Prove- para retratar esse Estado que provê o E não quer dizer conservar uma
dor”, ou seja, esse Estado que dispõe bem-estarsocial.Eleocomparaao“rati- UniãoEuropeiaquefogedassuasres-
detoda uma bateria de botões, quoti- nho” (no Brasil, a fadinha) que os pais, ponsabilidades, distribuindo de
zações e próteses para garantir o quando a criança perde um dente de lei- olhos fechados, para tudo e para to-
bem-estar dos cidadãos, dos traba- te, o colocam sob o travesseiro e, à noi- dos, subvenções gigantescas, injusti-
lhadores, dos executivos e dos de- te, o “ratinho” vem buscar, colocando ficadas, indiscriminadas, nulas e sem
sempregados.Paraamorteceroscho- no seu lugar uma moeda de um dólar ou nenhum resultado.
ques provocados pela miséria, pela de um euro. Não podemos, como fazem a
má prestação de serviços de saúde, “O ratinho”, diz Friedman, permitiu UniãoEuropeiaouosdiferentesEsta-
pela pobreza e pelo desemprego. aos conservadores baixarem os impos- dos europeus, procurar curar as feri-
Sim, é de se temer, em 7 de maio tos sem reduzir os serviços públicos e das distribuindo bilhões de euros,
esse Estado Provedor ficou grave- aosprogressistasampliarosserviçospú- que aliás nem possuímos, que jamais
mente ferido e precisa ser atendido blicossemaumentarosimpostos.O“ra- serão reembolsados pelos países be-
comurgência, numa unidadedetera- tinho” só conseguiu isso rodando a má- neficiados como a Grécia. O retorno
pia intensiva. quina de fazer dinheiro, maquiando os à política de rigor, às medidas de en-
Não é possível retomar a lista das custos. Depois de 65 anos em que a polí- xugamento e à austeridade são indis-
amputações que todos os Estados se tica,noOcidente,seresumiuempresen- pensáveis. Mas é preciso que tudo se-
comprometeram a fazer numa única tearos eleitores,éprecisoagora recupe- jabemorientadoedosadocomcuida-
semana. A Grécia, desde o dia 2 de rar esses presentes. do de modo que esses remédios não
maio vem adotando medidas draco- Nas ruas. Manifestantes gregos protestam contra medidas de austeridade Adeus política do “ratinho”. Bom dia, matem, em vez de curar.
nianas: congelamento dos salários política do “dentista”. Assoluçõessãocomplexas.Nãova-
por três anos. Supressão dos 13.º e milequinhentosanos,notempodePéri- anunciou um choque fiscal. Friedman teria de ter explicado que o mos nos expor ao ridículo de querer
14.º salários. Aumento de impostos. cles, a “democracia”, mais tarde fez Cancelamento das obras de uma no- “ratinho” não era somente esse Estado esboçá-las. Seria necessária a inteli-
O tempo de contribuição para a apo- uma outra descoberta, a “cleptocracia”. va ponte sobre o Tejo, e do novo aero- Provedor. A União Europeia e o euro gência de um Einstein, Karl Marx,
sentadoriapassou de37para 40anos. Ninguém paga impostos na Grécia. portodeLisboa.Aprovada uma duratri- também funcionaram como “rati- Freud, Aristóteles e Sarkozy, reuni-
Mesmos os monges ortodoxos, e Portanto, o novo aumento de tributos butação sobre os lucros das empresas. nhos”, penetrando sem parar sob o tra- dos, para conseguir isso.
até os anacoretas do Monte Athos, não vai preocupar muita gente. Esta- Aumento do imposto sobre valor agre- vesseiro da Grécia, de Portugal, e tam- Mas podemos dizer o que não deve
que aliás são muito ricos, terão de mos na presença de uma economia que gado. bém da França, da Polônia, dos euros. ser feito: nem manter esse Estado
pagar imposto – o que constitui uma nãosóéparalela,mas claramente“dissi- O mesmo se verifica na Espanha. E a Essefoio pecadocapitaldaEuropa: pro- Provedor como é hoje, nem suprimi-
verdadeira heresia aos seus olhos. mulada”. Mas, desta vez, o rigor é tal Irlanda, que ontem mesmo era o “tigre” vocar a irresponsabilidade dos Estados. lo brutalmente. É preciso reduzi-lo.
Mas será um imposto pequeno, pro- que podemos temer o pior. da Europa, está arruinada. Os salários Masentão,bastaenxugá-lopararesta- Reformá-lo.Esobretudo,teriavali-
meteu Atenas. A revolta chega à rua e a rua grega é dos funcionários serão reduzidos de belecer o equilíbrio perdido? do a pena não esperar que o “incên-
É preciso dizer que a Grécia, mes- perigosa. “Asfixia”, foi a manchete do 10% a25%. E cortes profundos serão fei- Certamente, não. E por muitas ra- dio chegasse à casa” para impor a es-
mo que, estranhamente, faça parte jornal To Etnos e segundo um outro, o tos nos orçamentos sociais. zões: em primeiro lugar, não podemos seEstadoumacura de emagrecimen-
do euro, é um caso especial. Eleftherotypia, serão “Quatro anos sem A Inglaterra, onde os conservadores retirar de uma sociedade todos os pila- to e também de inteligência. /
Há dois séculos esse pequeno país respirar”. Nas ruas, cartazes são vistos sucederam os trabalhistas, entrou tam- res sobre os quais ela se apoia, senão ela TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
é insolvente e interrompe os paga- com os dizeres “Queimem esse bordel bémnumregime derigor.Mesmoo che- vai despencar. E, nesse momento, as
mentos. A corrupção é tamanha que de Parlamento”. fe de Estado mais esbanjador, mais “ca- pessoas se defendem, se revoltam, que- ✽
a Grécia, depois de inventar, há dois Mas não é apenas a Grécia. Portugal beçano ar” docontinente, que éNicolas bram tudo. CORRESPONDENTE EM PARIS

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