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Klaus Scheriibel Mallarmé, O Livro Observacées Introdutérias Com Um lance de dados, publicado em 1897, o poeta francés Stéphane Mallarmé provavelmente criou um dos mais grandiosos eventos literdrios até entao. Todavia, até sua morte, em 1898, ‘ocupou-se daquilo a que se referia como uma “obra fantdstica” que, talvez em aluséo a Biblia, denominou simplesmente Le Livre [O Livro]. Mallarmé documentou as condigées para O Livro ‘em inimeras cartas, notas e também em alguns poucos textos intitulados Quant au Livre [Quanto ao livro] e Le Livre, instrument spiritue! [O Livro, instrumento espiritual] nos quais encontramos sua famosa frase “Tudo no mundo existe para acabar em um livro” [Tout, au monde, existe pour aboutir & un livre]. Sua anotagao indica, em esséncia, uma operagao rigorosamente calculada e a aplicagao de um poder extremo de deliberagéo com capacidade de organizar esta obra em sua totalidade. Considerava a “Grand uvre” [Grande Obra], a qual se referia como a “tinica” realizagao sem limites, a soma precisa de todos 0s livros concebiveis. Acerca de O Livro, afirmava que “é tao bem elaborado e estruturado”, que no poderia “abstrair mais nada dele, nem mesmo um tinico Pensamento”. Se ainda desejasse escrever fora da “Grande Obra’, apenas produziria um “soneto banal”. O Livro deveria ser “arquitetado e bem planejado, e ndo uma colegio de inspiragSes aleatérias”. Empurraria o acaso apenas até © ponto de colapso, se a linguagem — forgando os limites de suas possibilidades mais extremas e absorvendo a substancia concreta de realidades particulares - revelasse nada menos que “todas as relagdes existentes entre tudo”. A “obra pura”, segundo Mallarmé, “implica a supressao da fala do poeta, que cede a iniciativa as palavras, as quais, através do impacto de sua desigualdade, mobilizam-se totalmente por si mesmas”. Em O Livro, ndo seria © autor que teria o dom da fala, mas a linguagem — as palavras que doravante so “elas mesmas” - em sua qualidade sensual de caracteres escritos e corpos tonais. ‘Tendo em vista que Mallarmé rejeitava a ideia de substancia, assim como de uma verdade permanente, O Livro poderia conter somente aquilo que excluisse qualquer sentido limitado, definido ou definitivo. Como o interior do pensamento e da linguagem, Livro também manteria permanentemente unida essa agitada constelagdo de palavras através de uma incalculavel rede de relagdes. Devido a sua estrutura extremamente flexivel e sua difuséio e desacordo praticamente incomensurdveis, esta “bomba” ou “esplendor do vazio", como Mallarmé o denominou, estaria constantemente unido em todas as direg5es; abandonado as mudangas temporais, aceleragdes, desaceleragdes e estagnagao fragmentéria; “acolerando aqui, recordando ali, encarando tanto 0 futuro como 0 passado”. O Livro ficaria inevitavelmente paralisado Por sua pura virtualidade e, o mais importante, vivificado por sua descontinuidade extremamente temporal. Livro anuncia uma nova era, & parte da hist6ria, fixada na linearidade, causalidade e progresso. Em consequéncia, a historia no seria mais depositada na “falsa presenca” dos livros, mas definitivamente suplantada por O Livro, ou seja, por tornar-se Permanentemente um presente absoluto. Desde 0 inicio, Mallarmé considerava O Livro a esséncia de toda literatura, mas também um livro “simplesmente” [un livre tout bonnement] - como costumava dizer. O Livro, Mallarmé declara ‘em 1867, seria composto por cinco volumes ou, conforme afirmou vinte anos mais tarde, por varias partes. No manuscrito publicado postumamente por Jacques Scherrer, em 1957, Mallarmé menciona uma obra em quatro volumes compreendendo vinte partes. Ele explica que cada parte consistiria em uma série de folhas soltas que seriam intercambiaveis durante a leitura. A sucesso das paginas deveria ser definida pelo leitor ou por aquele que Mallarmé chamava de “operador’. O Livro, portanto, seria sempre “outro” nas palavras de Maurice Blanchot, uma obra sem original, inicio ou fim. ‘© manuscrito de mais de 200 paginas no fornece quase nenhuma informagao sobre o contetido esperado da obra, mas descreve caracteristicas detalhadas sobre questdes estruturais ¢ materiais relacionadas com a publicag&o e a apresentagéo. Trata profundamente de questées como, por exemplo, a determinagao das proporgées fisicas de O Livro, com base na relagao 1/4/6, a estipulagao de uma edigéo bestseller de precisamente 480 mil cépias, 0 célculo do prego de varejo em relag&o ao prego da entrada em sessbes de leitura; 0 célculo do prego de entrada, que se relacionaria, além do mais, com o ntimero de ouvintes presentes nas sessdes de leitura e a relaco entre 0 niimero de ouvintes, ‘© nimero de volumes a serem apresentados e o ntimero de assistentes de Mallarmé nas sessdes de leitura. O.Livro que, segundo Mallarmé, deveria fundar o “verdadeiro culto da era moderna”, mas cuja realizago nunca foi além de ‘sua concepedo, no era, em sua opiniao, de maneira alguma um fracasso. “Acontece por si”, explicou em uma de suas titimas declaragées, “desde que o autor se separe da obra. O livro no personalizado também deixa de reivindicar a aproximagao do leitor”. Deste ponto em diante, O Livro se torna antincio e expectativa da obra que é. © Klaus Scheriibel

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