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Teoria do conhecimento e unidade do

homem segundo Raimundo Lúlio

Lúlio unifica as esferas da realidade pelo ato. Lúlio faz uma


lógica real. Tudo é individual, mas há realidades comuns. A
unidade do homem. Pode humanizar apenas o homem
humanizado.

A boa interculturalidade. O direito. Os costumes. A liberdade.


O diálogo inter-religioso. O respeito à consciência do outro. Os
povos. Os valores. O papel da Igreja e do Estado.

Talvez pareça estranho a alguns de vocês começarmos un congresso


sobre a interculturalidade falando da Teoria do Conhecimento. Mas, de
fato, para levar a cabo uma boa interculturalidade temos de saber o que
é a pessoa, o que é a cultura, quais são os costumes e os modos de ser
dos povos e, sobretudo, como tratamos uns aos outros, que nisto radica a
cultura.
A história nos mostra como desde a dominação mais brutal até a
indiferença mais desumana, passando pela mútua compreensão, os
homens se trataram de muitas maneiras, isto é, passamos por muitas
culturas. Fazemos isso sempre, mas todas as vezes de acordo com a idéia
que formamos dos outros (noéma).
Por outro lado, as leis que escolhemos para organizar a convivência
são expressas por palavras e proposições (lógos), de modo que, se
queremos falar de interculturalidade, não podemos fugir de tocar nos
grandes temas da significação, da possibilidade de conhecer os
indivíduos, da universalidade dos pensamentos, da verdade etc., isto é,
não podemos deixar nas mãos dos políticos e dos comerciantes o
entendimento mútuo entre os povos.

ooOOoo

Lúlio sabia disso.


Antes de definir aquelas realidades que compõem a verdadeira
interculturalidade, ― o ser humano, os povos, os seus costumes, leis,
instituições etc. ―, dediquemos alguns minutos a fazer uma rápida
revisão de como é a lógica luliana, porque Lúlio acessa a realidade
diferentemente de Aristóteles.
Quando Lúlio se propôs resolver a questão do diálogo intercultural,
a primeira coisa que fez foi unificar as três esferas da realidade: os entes
físicos (phýsis), os pensamentos (noéma) e o mundo da linguagem (lógos).
Se temos de chegar a um acordo sobre o modo de nos comportar com os
outros, estas três esferas têm de estar bem ligadas entre si. É claro que
quando pensamos sozinhos nas coisas, temos menos possibilidade de errar
do que quando queremos chegar ao que são as realidades com a ajuda do
diálogo, porque este último se baseia nos pensamentos e nas palavras, ―
nossos e alheios ―, enquanto que quando estamos sós dirigimos os nossos
pensamentos diretamente sobre as coisas. Porém, de nada serviria
organizar bem o nosso pensar se aquelas três esferas estivessem
separadas. De fato, uma mera forma de pensar não nos obriga a nenhum
comportamento determinado, e é justamente isto o que procuramos.

Lúlio unifica as esferas da realidade pelo ato

Quando Lúlio, na sua Arte, descreve os Princípios Generalíssimos,


diz que são tanto princípios do ser como do conhecer. Creio que não
percebemos de todo com a profundidade necessária o que quer dizer esta
afirmação. Lúlio diz na sua Arte que os Princípios são primeiros,
generalíssimos e universalíssimos, ativos, princípios da realidade e do
conhecimento1, isto é, princípios das formas físicas e também das formas
lógicas. Por tanto, como os princípios são sempre diferentes do que
principiam, ― dos principiados ―, Lúlio se põe ao lado de Aristóteles e
supera Platão, quando, ao defini-los deste modo, afirma que os Princípios
da Arte não são formas lógicas2.
De fato, o mundo da natureza, segundo Lúlio, não é tão-somente
um reflexo do mundo dos pensamentos, como afirmava Platão. É ser
físico. As coisas físicas da natureza são entes, isto é, exercem a atividade
de ser. Também o são os pensamentos e os nomes, por isso Lúlio pode
unificar essas três esferas. Faz isto a partir da perspectiva do ato. O que

1
Os princípios são universais entitativos, que segundo a definição aristotélica, são
aquelas entidades que têm o ser noutros e se predicam destes outros: id quod
habet esse in multis et de multis.
2
Poder-se-ia dizer ainda, a partir desta afirmação luliana, que o nosso conhecimento
depende de Deus porque Ele é o que faz tanto as coisas como os nossos
pensamentos. De fato, os Princípios, que são princípios de toda a realidade,
também o são de Deus. Não esqueçamos, porém, que quando os consideramos em
Deus são infinitos e cada um deles se identifica com o Ser de Deus. Lúlio então os
denominará Dignidades.

2
acontece é que o ato de ser diz-se de muitas maneiras e por isso nos
sairão diferentes lógicas, mas sempre as poderemos unificar.
Por outro lado, se os Princípios lulianos são princípios das formas
físicas e lógicas também serão do conhecimento prático, isto é, daquele
conhecimento que tem como finalidade a conduta. Por isso essa questão
dos Princípios tem relação também com a interculturalidade.
Não obstante, o ato das formas pensadas não é o ato das formas
físicas. Nos entes individuais do mundo físico, além das formas
determinadas que os atualizam, encontramos as indeterminadas, que
estão em potência3. Por isso esses entes estão em movimento. Além
disso, estão imersos na matéria. Ao contrário, as formas pensadas não
têm movimento nem matéria. Por isso, nunca chegaremos a acessar o
mundo da realidade física a partir dos pensamentos, porque nos
pensamentos não há nem movimento nem matéria. Por este motivo, a
articulação das formas pensadas nunca nos revelará como se estrutura a
realidade física, porque as conexões e diferenças dos entes individuais
físicos não são iguais às conexões e diferenças das formas pensadas. Isso
já vira o Estagirita, e sugeriu diferentes alternativas, mas acabou
montando todas as categorias dos entes a partir da predicação lógica4.
O universo luliano é um conjunto de atos imersos uns nos outros.
Tudo está em movimento, mas uns movimentos sustentam os outros. Uns
atos sustentam os outros e tudo fica sustentado pela atividade divina 5.
Este é o cosmos luliano6.

3
O ser das substâncias e o das formas são atos, por isso não podemos reduzir o ato
ao ser da forma. Cf. GARAY, Jesús de, [1987], p. 106: “El acto no se reduce al ser de
la forma, porque el movimiento es también – de un modo particularmente
privilegiado – acto; y el movimiento es siempre otro, mientras que la forma es
siempre la misma.” “El acto de la forma no se ha de buscar en la mismidad de la
idea ni en sus determinaciones siempre idénticas. Así pues, la forma es acto, pero
el acto no se reduce a forma, sino que también es acto el movimiento.”
4
Cf. GARAY, Jesús de, [1987], p. 10: “Así pues, la substancia es la primera de las
categorías, las cuales son en tanto que son substancias. Pero la distinción
categorial es una distinción que se establece desde el lenguaje y la estructura
predicativa: según las categorías la realidad se nos muestra agrupada y clasificada
en unos géneros.”
5
No Brasil há a capoeira, uma dança de origem africana que também é uma luta,
mas principalmente é uma dança e é dançada ao som de uma música. Aqueles que
a dançam necessitam possuir dois hábitos, o da luta e o da dança, e expressam-nos
em um único movimento. São dois hábitos, um sustentado pelo outro, mas se os
dançarinos não tivessem a preparação física da luta não a poderiam dançar. Temos
aqui um exemplo de um ato sustentado por outro.
6
Considerar a realidade como um conjunto de atos imersos em outros permite-lhe
também dar à realidade um caráter copulativo, abrindo-lhe desta maneira uma
porta para a predicação, e até pôr a realidade como fundamento da atribuição
lógica. A lógica luliana tem uma pretensão legítima de verdade sobre a realidade.

3
Lúlio constrói toda uma teoria sobre o ato que é a sua conhecida
teoria dos correlativos. Com a sua ajuda estuda tanto os entes materiais,
compostos de matéria e forma, como os espirituais, compostos de ato e
potência, sendo esta última o ato dos entes que estão em potência. Isso
lhe permite unificar os entes que são compostos de matéria e espírito,
como é o caso do ser humano. Também explica com a teoria correlativa
como os entes da natureza, que se movem, continuam sendo o que são
mesmo que não o sejam plenamente7.

Lúlio faz uma lógica real

Como nunca chegaremos a acessar o mundo da realidade física a


partir dos pensamentos, por este motivo Lúlio faz com a sua Arte uma
lógica que se poderia denominar lógica real8. Diz que é preciso acessar as
coisas a partir das próprias coisas, isto é, a partir da natureza. Como as
primeiras formas que se apresentam ao nosso conhecimento são as formas
sensíveis, Lúlio começa por elas, mas as vê sempre imersas dentro de
outra atividade mais profunda, até chegar aos Primeiros Princípios. Lúlio
vê as coisas como sendo fruto de uma múltipla atividade conexa.
Para definir as realidades, pois, buscará os seus atos, definirá cada
ente pela sua atividade própria e será a partir desta atividade que
exercitará a predicação. O ato permite-lhe passar, no mundo físico, dos
indivíduos aos grupos de indivíduos que têm uma mesma atividade, e, no
mundo lógico, dos pensamentos particulares aos universais.
De fato, Lúlio faz com a sua Arte um novo tipo de ciência, ―não
aristotélica ―, porque se baseia na atividade dos entes naturais. As
substâncias se constituem por uma atividade primitiva, também
denominada própria9. As suas definições baseiam-se no ato; a predicação

Cf. GARAY, Jesús de, [1987], p. 165.


7
Cf. LULL, Ramon, [2008] passim.
8
Cf. LULLI, Raymundi, Introductoria artis demonstrativae, MOG iii, II, i (55):
“Metaphysica enim considerat res, quae sunt extra animam, prout conveniunt in
ratione entis; logica autem considerat res secundum esse, quod habent in anima,
quia tractat de quibusdam intentionibus, quae consequuntur esse rerum
intelligibilium, scilicet de genere, specei & talibus, & de iis, quae quae consistunt
in actu rationis, scilicet de syllogismo, consequentia & talibus; sed haec Ars
tanquam suprema omnium humanarum Scienciarum indifferenter respicit ens
secundum istum modum & secundum illum; & sic patet, quod in modo considerandi
ex parte subjecti defferant.”
9
Cf. LLULL, Ramon, [1998], p. 51: “Si acció e forma se converteixen en lo subjet en
què són. E responem d[i]visén, so és que és acció primitiva (actes propis) e acció
secundària (actes apropiats). Primitiva és substancial o substantiva qui ab si
matexa e ab la sua pròpia matèria constituex substància general, constituïda de

4
também. Não há dúvida alguma de que a ciência luliana é uma nova
maneira de acessar a realidade. É preciso acessar a realidade a partir
dela mesma e não do mundo lógico do pensamento. Lúlio sabe que as
propriedades lógicas, ―universal e singular são propriedades das coisas
pensadas, isto é, são propriedades lógicas―, se baseiam em propriedades
reais, e não o contrário.
Dirá também que a maior ou menor universalidade dos conceitos se
baseia em uma propriedade real, em um ato. Segundo a maior ou menor
contração do ato que constituir a coisa, obter-se-á uma maior ou menor
universalidade do seu conceito. Por exemplo, o ato de “substantivar”,
considerado no “animal” e no “homem”, é mais comum em “animal” do
que em “homem”. O “ato de sentir”, por exemplo, encontra-se nas
substâncias, nos animais e no homem, mas é mais comum na substância,
menos no animal e ainda menos no homem, mesmo que não deixe de ser
a atividade comum que têm estes dois extremos, ―substância e homem―.
Lúlio, por este motivo, pensa que nos silogismos o ato de sentir pode ser
termo de comparação. De fato, Lúlio sempre constrói os silogismos com
termos médios que são verdadeiros meios reais entre as coisas assinaladas
pelos extremos dos silogismos. Ele diz que busca um termo natural, real,
primitivo, interno e necessário às coisas etc., e o acha no ato10.
A lógica aristotélica não funciona assim. A maior ou menor
universalidade dos termos depende da posição que o conceito tem na
proposição mental. Assim, se o termo está na posição de predicado será
sempre universal se a proposição for negativa e sempre particular se a
proposição for afirmativa, isto é, a universalidade do termo depende de
uma propriedade lógica, da posição no pensamento.
O sujeito último da predicação, em Lúlio, é, pois, a atividade de um
ente individual existente, e por isso chega ao fundamento das coisas,
porque são os atos que constituem as coisas. Por este motivo, a
predicação da lógica real luliana comporta uma maior necessidade que a
da lógica aristotélica, cuja predicação tem apenas a necessidade que têm
os sujeitos pensados.
A lógica luliana com que constrói a Arte é no fundo uma nova
maneira de argumentar a partir da realidade ativa dos entes. Como
analisa e integra os atos, isto é, os seus movimentos, pode demonstrar
que muitas das contradições que descobre nos entes não são, de fato,
isso. Por este motivo, definiu uma nova falácia, a falácia da contradição,

forma e de matèria substancial. E aytal acció és dita ésser convertida ab la sua


forma. Enperò l’acció secundària que és actus de la primera forma, en genre de
accidens posada, ab forma accidental se convertex, axí con calor que∙s convertex
ab la sua acció, so és ab la sua activitat.”
10
Cf. LLULL, Ramon, [1978], p. 251-275.

5
que emprega, junto com os silogismos contraditórios, como instrumento
para ultrapassar essas contradições aparentes. Isso lhe permitirá dizer em
muitas ocasiões, ―aos averroístas e aos infiéis―, que “não estamos em
contradição, e sim em equivocação”.

Tudo é individual, mas há realidades comuns

Na natureza encontram-se apenas entes individuais. Na Idade


Média, até 1250, duvidava-se de que existisse alguma intelecção dos
entes individuais. Depois, com Rogério Bacon e Tomás de Aquino, admite-
se una intelecção indireta. A partir de 1275, à medida que se aceita a
teoria aristotélica da abstração, começa-se a admitir a intelecção direta,
culminando essa teoria com Duns Escoto. Lúlio admite a intelecção direta
das formas individuais, mas se diferencia de Duns Escoto no fato de que
este último, se bem admite a inteligibilidade per se primo do indivíduo
material, não crê que seja possível ao ser humano no estado atual da sua
vida11. Lúlio, como se baseia no fato de que conhecemos os atos
individuais, é muito claro: Conhecemos intelectualmente os indivíduos, e
explica isso pela conjunção do ato do sentido com o ato do
entendimento12.
Descobre que entre os indivíduos há alguns que exercem a mesma
atividade e por isso podemos agrupá-los em classes. A eles corresponde,
no mundo lógico, a universalidade. Como se pode deduzir por tudo o que
se disse até agora, os universais lulianos não são idênticos aos
aristotélicos, porque têm um fundamento diferente. A universalidade
aristotélica é uma propriedade devida a um ato do entendimento, que vê
que aquilo que se pensa se pode predicar de muitos, portanto, é uma
propriedade puramente lógica, uma propriedade das coisas pensadas13. A

11
Cf. BÉRUBÉ, Camille, [1964]. p. 157, nota (2): “Ad argumenta contra intellectionem
singularium, quae fiunt super librum primum, patet quod nunc numquam
intelligitur; unde perfectissima scientia nunc nobis possibilis est de specie
specialissima, ibi status”. Das imagens podemos tirar conceitos da individualização,
mas serão sempre conceitos universais.
12
Cf. LLULL, Ramon, Liber de modo natvrali intelligendi ,[1978], p. 189: Intellectus
humanus per se habet naturam intelligendi, cum intelligere sit suus actus. Potentia
autem visiva per se habet naturam uidendi pari ratione. Et quia istae duae
potentiae sunt coniunctae, oritur naturaliter communis actus, per quem intellectus
attingit obiectum coloratum, mouendo potentiam uisiuam ad obiectum uisibilie. Et
de hoc experientiam habemus; et contra hoc non est dare instantiam.
13
De fato, a universalidade aristotélica é uma propriedade que o nosso entendimento
confere às coisas quando as pensa. Ao pensá-las, vê que o que se pensou também
se poderia predicar de muitas outras, e forma uma relação entre o pensado e
muitos outros. Isto é a universalidade aristotélica. Embora se fundamente nas

6
universalidade luliana, porém, baseia-se na comunidade de um ato
compartilhado por vários entes, é uma propriedade real, baseada em uma
primeira intenção da mente14.
Os predicáveis lulianos são reais, porque não são os aristotélicos,
que não têm uma correspondência real na realidade. Aos predicados
lulianos corresponde na realidade uma atividade comum, devida à
atividade permanente dos Primeiros Princípios, que persiste inclusive se
forem destruídos todos os indivíduos ou todas as espécies15.
Finalmente, Lúlio define os entes também pela sua atividade, pelo
ato próprio de cada substância. Se queremos definir o homem, vemos
nele o ato de sentir, o ato da vida sensitiva, mas esta é comum a todos os
animais. No homem, o ato de sentir se contrai em um sentir mais
específico, que no fundo é a sua última diferença em relação aos animais.
As últimas diferenças que definem as coisas são também atos. Qual é a do
homem? Lúlio o define como “o animal que humaniza”. O homem é um
ser que humaniza a si mesmo, o seu entorno, a sua comunidade, a sua
nação, todo o mundo16.
Já encontramos aqui o caminho luliano que nos permitirá acessar a
prática da boa interculturalidade. Uma interculturalidade que
corresponda à verdadeira definição do homem.

coisas, é uma propriedade lógica.


14
Cf. LLULL, RAMON, [1998] ROL XXIII, 16, Lín. 13-19: “Verumtamen quia logici
consideratio circa intenciones versatur secundas, quas perfecte cognoscere nequit,
primis intentionibus ignoratis. Ideo in hoc nostro compendioso et novo opere,
ponentes, deficientes et demonstrantes, in aliquibus passibus naturaliter et
philosophice procedemus, ut primarum et secundarum intentionum notitia
naturaliter et logice a scientibus hunc librum plenarie ac clarissime habeatur.”
15
Cf. LLULL, Ramon, Liber de modo natvrali intelligendi ,[1978], p. 189: Facta
hypothesi quod omnia individua essent destructa, quaeritur: Vtrum species esset
ens reale? Respondendum est, quod sic. Aliter no esset dare medium inter
superiore et inferiora. Ipsa uero species sic esset in genere, sicut planta est in
potentia in grano. Sed si quaeritur: Vtrum destructis omnibus speciebus genus sit
ens reale? Dico, quod sic. Aliter praedicta, inconuenientia, quae de specie
sequuntur, etiam sequerentur de genere. Et si quaeratur: Vbi est sustentatum
genus ipsum? Dico, quod in principis primis, quae sunt decem et octo, ut patet in
Arte generali. Quae sunt: Bonitas, magnitudo, duratio, potestas etc. secundum
quod patet ibidem. Quae principia appeterent, ut genus esset actu.
16
Cf. LLUL, Ramon, [1985], Logica nova, p. 31: “Homo est animal homificans. Et ista
definitio est magis specifica, et magis convertitur cum definito, quam ista: Homo
est animal rationale et mortale; quia de genere rationalitatis est angelus, et de
genere mortalitatis est leo et equus, etc. Hoc quidem de Deo dici potest, et de
ceteris entibus. Sicut Deus est ens deitans, et sua aeternitas aeternans, sua
infinitas infinitans; ignis est igniens, leo leonans, planta plantificans, faber homo
fabricans. Et ideo definitio magis propria est, cum sit maioris proprietatis
immediate subiecti”.

7
A unidade do homem

Agora, porém, é necessário ver como essa atividade que permite


definir o homem como um animal homificans não é uma atividade
acidental, mas constitui substancial e intrinsecamente o homem.
Lúlio explica que o ato de ser homem é um ato superior que unifica
e mantém unidas a forma comum do homem e a matéria comum do
homem17. É uma atividade sem a qual não poderiam existir os atos das
partes inferiores do ente humano. O ato de ser homem possibilita esta
atividade inferior e a eleva a uma harmonia e unidade superior. Em Lúlio,
de fato, o ato constitui o ente, e, portanto, o agir humano, o homem
concreto.
Ele é, pois, partidário de que as potências da alma são partes da sua
substância; não são somente algo acidental 18, e pensa assim porque
distingue em todos os entes dois tipos de atividade: uma primitiva ou
substancial e outra secundária ou acidental19. A primeira não passa da
potência no ato, mas é permanente e habitual 20, e converte-se com a
substância do sujeito que age; a segunda, não. Portanto, quando o
homem realiza essa atividade substancial, ― que também chama de
17
Cf. LLULL, RAMON, [1950], Llibre d’home, p. 28: “E açò mateix dels actus de l’ànima
e del cors, qui s’ajusten, e de lur conjunyiment ajustament resulta e hix home qui
passa e està en terç nombre, e és lo tot simple en nombre de home, segons sa
diffinició, e ses parts són la sua forma comuna e matèria comuna e l’actu comú que
dit havem. E en així home està en lo som”. É preciso não confundirmos essa forma
comum do homem com a alma, nem a sua matéria comum com o corpo (para uma
explicação mais ampla do ser do ente humano, cf. JAULENT, Esteve, [2004],
Antropologia lul·liana.)
18
Era uma famosa querela discutida na Idade Média, se as potências da alma fazem
parte da sua substância ou são somente potências acidentais. “Diabolica
disputatio” chamava-a Le Myésier, cf. HILLGART, J. N., [1998], p. 266.
19
Cf. LLULL, RAMON, [1951], p. 51: “Si acció e forma se convertexen en lo subjet en
què són. E responem d[i]visén, so és que és acció primitiva e acció secundària.
Primitiva és substancial o substantiva qui ab si matexa e ab la sua pròpria matèria
constitueix substància general, constituïda de forma e de matèria substancial. E
aytal acció és dita ésser convertida ab la sua forma. Enperò la acció secundària que
és actus de la primera forma, en genre de accident posada, ab forma accidental se
convertex, axí con calor que∙s convertex ab la sua acció, so és ab la sua activitat.”
20
Cf. LLULL, RAMON, [1950], Libre de Home, p. 35: “Si en la memòria no era coninu
membrar, e enteniment entendre, e en la volentat voler, les formes e les matèries
sperituals de la ànima que dites havem en lo capítol “Com és hom”, serien ocioses
e no haurien ab què∙s poguesen ajustar, e car les formes no haurien actió ni les
matèries passió sens radicals membrar, entendre e voler, l’ànima no hauria ab què
enformàs los cors, ni ab què li donàs ésser ni vida, e ab ell no∙s poria ajustar ni
conjunir. Cové, donchs, que∙ls radicals membrar, entendre e voler sien en continu
actu en aquell temps en què home és home.” Cf. Id, p. 28, nota 4.

8
“própria” ―, que nunca se interrompe e tem lugar, como diz Lúlio,
“durante todo o tempo em que o homem é homem”, cresce, ou se
intensifica, no seu ser. Esta é uma teoria muito importante no
pensamento luliano, que permite explicar também, como veremos a
seguir, que o acesso do homem à maturidade é algo que está vinculado ao
bom exercício da sua atividade.
Lúlio distingue em cada uma das substâncias os atos próprios dos
apropriados. Explica que os primeiros têm os seus objetos no interior
(dedins), enquanto os dos atos apropriados estão no exterior, mas
esclarece que sempre “os objetos exteriores são tidos nos interiores”21.
Por exemplo, a atividade intelectual externa, ― que também chama de
apropriada ―, isto é, o conhecer, querer e lembrar os outros sujeitos que
não são ele mesmo, realiza-se sob o amparo da atividade primitiva ou
substancial da alma, ― a “atividade própria” ―, e, ao mesmo tempo, tem
como finalidade essa atividade própria (dedins), ou seja, a atividade
própria se alimenta da apropriada (externa). Isto explica duas coisas: A
atividade de cada ente construir o próprio ente, e podermos definir os
entes pela sua atividade.
Ou seja, toda a atividade humana, se for bem orientada, pode ser
construtora do homem. Além disso, a unidade da alma faz o ato de
conhecer não ser um ato isolado do entendimento, mas que também
participem nele a vontade e a memória. Lúlio junta essas três atividades
de tal maneira que para conhecer adequadamente diz que é preciso amar
e lembrar o que conhecemos; de outro jeito não chegaremos a conhecer
bem.
Em Lúlio, pois, a atividade que vai aperfeiçoando a alma humana é
lembrar, conhecer e amar. O quê? A si mesmo e os entes de fora, mas
sempre a atividade de dentro amparará a de fora, sem esta última não
cresceria a de dentro.
Estas explicações servem tanto para as atividades cognoscitivas
teóricas como para as práticas, ou seja, as destinadas à ação construtiva,
social ou física, externa. Se a atividade própria se alimenta da apropriada
e os objetos externos são tidos nos internos, é óbvio que ao conhecer o
mundo externo obtemos simultaneamente um conhecimento de nós
mesmos.
Por exemplo, quando conhecemos a verdade dum ente, percebemos
ao mesmo tempo que estamos conhecendo esse ente, isto é, conhecemos
que estamos fazendo algo. Ora, quando conhecemos condutas ou
comportamentos humanos, virtuosos ou viciosos, percebemos também
como é esse nosso ato de conhecer, amar ou lembrar esse

21
Cf. LLULL, Ramon, [1950], Llibre d’ànima racional, p. 206. “Ànima ha los obgects de
fores en los obgects de dins.”

9
comportamento, e nos damos conta de que temos hábitos bons ou ruins.
Ao conhecer um roubo, exemplifica Lúlio, se o acharmos deleitoso e
gostarmos dele, percebemos que estamos desejando incorretamente algo
sensível e imaginável que é deleitável, mas que em si mesmo não é
inteligível nem amável. O nosso conhecimento, neste caso, está
despossuído, portanto, por mor de um hábito vicioso, da sua plenitude. É
assim que nos elevamos até o conhecimento dos hábitos, bons ou ruins22.
Lúlio, pois, pensa que quando fazemos o mal, percebemos que o
fazemos. Creio que isto é muito importante e já nos dá alguma
orientação para a prática da boa interculturalidade.
A unidade do homem, segundo Lúlio, é completa. É um resultado da
conexão de uma série de atos de todas as potências, sustentada pelo ato
de ser homem.
Não obstante, apenas quando essa atividade anímica e corporal se
realiza segundo a finalidade natural de cada potência, isto é, quando o
entendimento conhece a verdade, a vontade conhece o bem e a memória
lembra do bem amado e do mal repudiado, ou, com outras palavras,
quando as ações são propriamente humanas ou, segundo a sua definição
de homem, quando somos humanos, então chegaremos a conhecer
corretamente o nosso entorno e tornaremos possível a nossa engrenagem
no mundo, obtendo como um resultado, e unicamente neste caso, o
crescimento no próprio ser.

Pode humanizar apenas o homem humanizado

Conclusão: Apenas o homem humanizado, o homem que o é de


verdade, pode humanizar.
O homem experimentar a unidade com a totalidade que o envolve
será possível apenas se conhecer e amar o mundo tal como é criado.
Assim sim, realiza-se a conjunção de todos os atos humanos suportados
todos eles pela ação divina. Quando consegue fazer isso, empregando
bem a sua liberdade, então experimenta o mundo corretamente, e vai
incorporando-o. Só então se humaniza e, humanizado, poderá humanizar
tudo o que tem à sua volta.
22
Cf. LLULL, RAMON, [1978], O. 204: “Homo moralis uidit suspendi latronem. Deinde
considerat latrocinium et per consequens culpam. Tunc ascendit et considerat,
quid est causa culpae, et determinat, quod talis causa est habitus priuatiuus
intellectus, uoluntatis, et memoriae, qui obiectant indebite aliquod bonum
delectabile, sensibile et imaginabile contra bonum intelligibile et amabile. Et tunc
intellectus considerat culpam et per consequens uindictam. Et tunc transit er
obiectat iniuriam. Dum sic intellectus obiectat iniuriam, ascendit ad obiectandum
iustitiam. Et cognoscit, quod iustitia est habitus bonus, cum quo agitur recte et
iuste et bene, quoniam bonum est punire latronum, ut quilibet possideat in pace
hoc, quod suum est.”

1
Somente o homem que vive em paz poderá levar a paz às
instituições, à ação social e às relações entre os povos através das suas
produções sociais, científicas, artísticas, técnicas e estéticas.

A boa interculturalidade

Para levar a cabo uma boa interculturalidade, já temos, pois, bem


definidas um par de condições. Primeiro, a definição do homem: um
animal que humaniza. Segundo, um uso da liberdade que respeite as
finalidades das faculdades humanas e a finalidade do homem como um
todo.
Se o homem individual estiver ordenado e em paz, poderá realizar
uma ação social destinada a buscar mais o bem geral e público que o
particular e especial23. O bem comum é maior e mais necessário que o
bem especial. É claro que são as leis, quando obedecidas pelos
integrantes dum povo, que organizarão esse bem comum.

O Direito

Lúlio foi o primeiro a empregar a expressão Princípios do Direito,


referindo-se aos fundamentos do Direito. É muito original, pois faz
coincidirem os Princípios do Direito com o Direito Natural. A sua teoria do
Direito Natural também sai da observação dos atos das criaturas, que são
testemunhos da existência de um ordenamento natural que, se é bem
captado e obedecido pelo homem, ― com a ajuda das suas faculdades
espirituais ―, acessará, amando o bem e evitando o mal, ao fim por que
foi criado. Entende por Direito Natural “amar a Deus, viver honestamente
e dar a cada um o que é seu”, dando mais importância ao princípio “amar
a Deus”24. Este Direito Natural, segundo Lúlio, supera todos os
ordenamentos.

23
Cf. LLULL, Ramon, [2000], p359: “Fructus arboris imperialis est pax gentium, ut in
pace esse possint, Deu metiam recolere, intelligere et amare, honorare et ei
servire, quoniam gentes, quae sunt in guerra et inuicem in laboribus, non sunt in
dispositione, quod Deum multum possint amare, honorare et seruire, nec sibi ipsis
nec etiam aliis caritatem habere.” I p. 360: “ Idcirco fructus principis, qui talibus
qui talibus fructus habet respondere, est infirmus quando se inclinat ad specialia
contra generalia et publica, sicut princeps malus, qui plus diligit suam utilitatem
quam utilitatem sui populi; quaoniam propter infirmitatem fructus principis sunt
fructus populi infirmi.”
24
Cf. PIÑA Homs, Roman, [1984], p. 63-64.

1
(Esta comunicação não tem por objetivo resumir toda a teoria social
e política de Lúlio, ― isto é o que farão os outros congressistas à medida
que forem se desenvolvendo os três blocos do Congresso ―, e sim apenas
apresentar o vínculo que une a teoria do conhecimento luliana com as
noções originais do que seria uma boa interculturalidade. Por isso, depois
de explicar como a perspectiva do ato penetra toda a teoria do
conhecimento da Arte luliana, vimos a definição do homem e da sua
finalidade, e agora estamos vendo como também é a atividade que
explica as leis, os costumes e os valores que o homem pode adquirir
“durante o tempo que é homem”25.)

De fato, os Princípios reais da Arte, segundo o que diz Lúlio, dão-


nos acesso ao Lógos da Verdade substancial, necessária e eterna, e a
todas as outras verdades contingentes, as verdades criadas. Também
àquelas que se referem à esfera da vida pública ou social; os Princípios da
Arte são formas da justiça, e fora deles não pode existir a justiça
perfeita. O Direito será, pois, verdadeiro se se basear neles.

Os costumes

Já vimos como contemplando a pena capital aplicada a um ladrão,


Lúlio se ergue até o conhecimento dos hábitos. A seguir, ao se perguntar
como são constituídos estes hábitos, diz que são “semelhanças dos
Princípios Inatos que constituem o universo”, e “fazem a inteligência ter
um justo entender e a vontade um justo amar e a memória um justo
lembrar, a fim de tenderem ao fim para o qual são feitas, e poderem
justamente regular as potências inferiores”26. O mesmo podemos dizer
dos costumes.
Os costumes não são para Lúlio modos de agir estabelecidos por um
longo uso ou pela repetição de atos semelhantes, e sim tão-somente pela
sua racionalidade 27. Supera Aristóteles com esta afirmação, e toda a alta
Idade Média, que legitimava o Direito segundo a sua antiguidade. Para
Lúlio os costumes também são fontes do Direito, como as leis e,
sobretudo, os Princípios do Direito, que, como vimos, identifica com o

25
Vegeu la nota 15.
26
Cf. LLULL, Ramon, Liber de modo natvrali intelligendi, p. 204: “Dum sic considerat
intellectus, ascendit et quaerit: De quo est habitus iustitiae? E considerat, quod est
de similitudinibus principiorum innatorum, ex quibus uniuersum ests contitutum, ut
puta bonitas, magnitudo, duratio, potestas etc. collectis ab istis principiis per
intellectum, uoluntatem et memoriam, ut intellectus habeat iustum intelligere et
uoluntas amare et memória recordare, ut tendant ad finem, ad quem sunt, et iuste
regulare potentias inferiores possint.”
27
Llull, Ramon,[1986], p. 182.

1
Direito Natural. Por mais antigos que sejam, os maus costumes, isto é, os
que vão contra a justiça e a liberdade de fazer o bem e evitar o mal, têm
de ser combatidos. O povo que os admite age contra si mesmo28.

A liberdade

Gostaria de dedicar algumas linhas à questão da liberdade de fazer


o bem e evitar o mal, porque poderemos tirar conclusões muito
importantes para a interculturalidade.
Lúlio diz que a liberdade é uma forma intelectual dada ao homem a
fim de livremente fazer o bem e evitar o mal, e isto é assim porque o
bem é algo tão nobre que a sua nobreza exige que se faça livremente e
não por coação. Assim como o vício e o pecado são tão ruins e
desprezíveis que não os devemos odiar por constrangimento. Por isso
Deus nos fez livres29.
Conseguir que aqueles que estão errados entrem por caminhos de
verdade é um grande bem, certamente o bem mais necessário para
acessar a maturidade humana. Mas isto, por maior que seja o bem, não
pode ser feito por coação, induzidos pela violência. À verdade tem acesso
cada um, livremente, ao perceber que estava no erro30.

O diálogo inter-religioso

Esta questão tem a sua mais importante aplicação na


interculturalidade, quando se aplica à conversão religiosa, isto é, trocar a
própria religião por outra. Como a religião é um dos principais elementos
das culturas, o que mais principalmente causa a unidade do povo,
devemos examinar o papel do diálogo inter-religioso na
interculturalidade, e sobretudo devemos examinar da perspectiva da
filosofia luliana.
28
Cf. Llull, Ramon, [2000], p.349: “quia ille populus facit contra semetipsum, qui uult
quod in ciuitate sint aliquae antiquae consuetudines, quae sunt contra iustitiam et
libertatem bene faciendi et malum euitandi.”
29
Cf. LLULL, Ramon, [2000], p. 348: “Libertas est forma intellectualis data homini, ut
libere bonum faciat et libere malum euitet. Quoniam bonum est ita nobile, quod de
eius nobilitate est quod libere fiat et non coacte. Et uitium et peccatum tantum est
malum et uile, quod sibi non conuenit quod coacte sit deamatum. Et ideo est data
libertas uoluntati hominum ad faciendum bonum et ad uitandum malum.”
30
Lúlio dedica toda a distinção XXX do Livro de Contemplação à consciência. São sete
capítulos que demonstram como temos consciência das nossas falhas cometidas pelos
sentidos corporais e espirituais, das falhas que cometemos com as três virtudes da
alma, quando falamos ou quando nos calamos, ao dar e ao tirar etc.

1
Gostaria de lembrar aqui um pequeno trabalho escrito por Lúlio em
1309, em que, comentando a harmonia que deve existir entre a fé e a
razão, diz que “não se deve querer renunciar a uma fé em favor de outra,
mas é possível sim renunciar a uma fé por uma melhor compreensão” 31,
isto é, não devemos abandonar a fé que vivemos, a não ser que estejamos
convencidos da maior verdade de outra fé. Lúlio estava convencido desta
posição que quando pregava nas sinagogas e nas mesquitas começava o
diálogo dizendo que se o conseguissem convencer da verdade do judaísmo
e do islamismo com muito gosto se converteria a estas religiões. Não
eram as suas palavras um procedimento retórico ou uma tática para
persuadir, mas se originavam exclusivamente da sua adesão ao Lógos.
Vemos aqui, bem explicada, a finalidade que, segundo Lúlio, tem o
diálogo inter-religioso: Acessar a possibilidade de mudar de religião.
Para realizar essa mudança é fundamental, já vimos isso antes, a
capacidade que o homem tem de perceber os seus hábitos, afirmada por
Lúlio constantemente32. Também de perceber que se encontra no erro.
No começo da sua carreira de escritor, no ano de 1274, Lúlio explicava ao
seu filho isso mesmo com estas palavras: “Muitos judeus e sarracenos
estão sob a senhoria dos cristãos e não têm nenhum conhecimento da fé
católica. Os cristãos deveriam permitir que se mostrasse, mesmo com
ajuda da força, essa fé a alguns filhos dos infiéis, para que assim tivessem
conhecimento dela, e por este conhecimento tivessem consciência de se
acharem no erro, pela qual consciência seria possível a sua conversão e a
conversão de outros”33.
Temos aqui um compêndio que explica a verdadeira postura de
Lúlio diante do problema: Muitos judeus e maometanos, que não tinham
nenhuma notícia da fé cristã, estavam cativos nas terras reconquistadas
pelos cristãos. Lúlio, constatando este fato, diz que se pode obrigá-los a
ouvirem explicações sobre a doutrina cristã a fim de perceberem que se
acham no erro, isto é, admite a força tão-somente para propiciar o
ensino, o diálogo, não para vencer as mentes com violência. Diz isso
claramente: Tendo ganho a consciência de que se acham no erro, é
possível converterem-se, e mesmo converterem eles mesmos a outros.
Notem a expressão que usa: “é possível converterem-se”.
Em resumo, é falso que no final da sua vida Lúlio tenha optado pela
força para converter os maometanos ao cristianismo. O que queria era
que as pessoas livremente se convertessem, mas aqui já tocamos noutra

31
Cf. LLULL, Ramon, [1721], vol. 4, XII, p. 2: “quia nolunt dimittere credere pro
credere, sed credere pro intelligere”.
32
Ver a nota nº. 26.
33
Cf. LLULL, Ramon, [1274], p. 154.

1
questão muito importante, que é a do respeito que Lúlio tinha pela
consciência das pessoas.

O respeito à consciência do outro

Em perfeita continuidade com aquilo que ensinava ao seu filho, em


1292 Lúlio escreve o Tractatus de modo convertendi infideles, deixando-
nos um testemunho do seu modo de pensar: “Igualmente dizemos dos
sarracenos cativos entre os cristãos. Que se ordene ensinar a nossa fé a
alguns deles melhor bem preparados e que se lhes mostre os nossos
argumentos que destroem o seu sectarismo. Se não quiserem deixar-se
convencer, que se discuta por algum tempo um pouco mais com eles e,
em seguida, seja-lhes permitido retornar livremente às suas terras,
pagando com cortesia as suas despesas. Eles explicarão aos demais
sarracenos como é a nossa fé, as provas e o modo de crer que nós temos,
o que espalhará a dúvida entre eles e preparará o caminho da sua
conversão”34.
Como podemos ver, Lúlio, mesmo aceitando a força que colocou
alguns maometanos em cativeiro, não quer de modo algum impor-lhes
com violência a fé cristã, porque a verdade, como sempre diz, apenas
pode se impor pela sua própria força. O único caminho que admite é o do
convencimento. Caso não se convençerem, recomenda que os deixem
retornar aos seus países pagando-lhes as despesas do retorno.
Considero que esta é a melhor demonstração de respeito à
consciência dos outros. Hoje em dia entende-se que este respeito
constitui o fundamento da liberdade religiosa. Temos a liberdade de
mudar de religião se chegarmos à conclusão de que estávamos
equivocados, mas a esta conclusão devemos chegar pelas nossas forças,
nunca por uma violência imposta de fora. Lúlio respeita a consciência dos
demais grupos religiosos, porque sabe que a favor duma fé é possível
apenas apresentar a quem não a tem argumentos racionais, porque a fé é
um dom de Deus. Se Deus dá esse dom, então a adesão pode ser feita por
um ato livre da pessoa no templo da sua consciência.

Os povos

Lúlio percebeu que o papel histórico do império estava nas últimas,


e preconizou que se salvasse a unidade da cristandade no contexto novo

34
Cf. LLULL, Ramon, [1954], p. 104-105.

1
de uma sociedade de nações35, mas viu também a necessidade de que
houvesse um poder que garantisse a paz. O papa teria na nova sociedade
de nações esse poder supremo de arbitragem, mas teria de permanecer à
margem das questões que afetassem a estrutura do poder civil.
A arbitragem do papado se realizaria da seguinte maneira (no
Blanquerna): “Uma vez ao ano, o papa reuniria todas as potestades em
algum lugar determinado, e, em forma de capítulo, tratar-se-ia da
amizade e corrigir-se-iam uns aos outros”. “Todas as potestades” quer
dizer as supremas autoridades de todas as nações, sem distinção de
religião. Com isso, diferencia-se totalmente de Pierre Dubois, que queria
que se reunissem apenas as autoridades eclesiásticas cristãs. Com a sua
fórmula, Lúlio não quer substituir o poder imperial pelo pontifício, e sim
chegar a um entendimento universal com uma estrutura mínima.
Admite que cada nação pode ter os seus costumes e que o melhor
seria as pessoas os conhecerem todos e escolhessem os melhores. Na
Doutrina Pueril recomenda ao seu filho: “Mais sábio mercador serias tu,
filho, se andasses por várias terras e elegesses os melhores costumes que
encontrasses”36. Reconhece, pois, que cada povo tem os seus bons
costumes, que deveriam ser conhecidos por todos a fim de facilitar a
escolha dos melhores, “porque todos os homens são livres para eleger os
bons costumes”, diz ao seu filho37.
Quando livremente trocamos um costume por outro melhor,
fazemos um bem, mas ganhamos também o mérito que nos dá a liberdade
bem empregada, de tal jeito que o bem que alcançamos é maior que o
bem que nos proporciona o novo costume adquirido38.
Esta é a filosofia luliana. Sem dúvida alguma, expressa uma cultura.
Com essa mudança de costumes, Lúlio quer nos dizer que as tradições
filosóficas das várias culturas são expressões complementares da mente
humana e expressam atitudes e modos de pensar que podem se permutar.
Somos, pois, capazes de moldar e transformar o que recebemos do
exterior, e se as escolhas forem bem feitas podem persistir até os dias de
hoje. Assim umas culturas ajudariam as outras, e por isso as culturas
deveriam se levar em conta em qualquer diálogo a nível mundial.

35
Cf. PIÑA HOMS, Roman, [1984, p. 71].
36
Cf. LLULL, Ramon, [1986], p. 182.
37
Cf. LLULL, Ramon, [1986], p. 181.
38
Cf. LLULL, Ramon, [2000], p. 348: “Et quoniam homo libertatem habet ad faciendum
bonum et euitandum malum, si bonum faciat et malum euitet, habet meritum,
ratione cuius maius bonum assequitur, quam bonum quod fecit. Et si faciat malum et
euitet bonum, habet culpam, ratione cuius consequitur maius malum et perdit maius
bonum, quam bonum quod facere noluit.”

1
Os valores

Lúlio foi o primeiro que falou de valores.


Os entes têm diferente valor segundo os lugares e os tempos em que
os consideramos. Explica isso na Arte quando nos fala das espécies
terceira e quarta da regra C. O que é uma coisa em outra? E, sobretudo, o
que tem uma coisa em outra?
Quando pomos uma coisa em relação com outra e quando esta
segunda é uma pessoa, a coisa manifesta um determinado valor para
quem a pensa ou a deseja. Quanto vale um copo d’água para um príncipe
perdido em uma floresta e que está morrendo de sede? Todas as suas
terras, todo o seu patrimônio daria por esse copo d’água. Pois bem,
quando relacionamos todas as coisas, todas as ações que realizam os
homens, com Cristo, a pessoa que realiza de modo mais perfeito a
humanização do universo, obtemos então o seu verdadeiro valor.
Nem sempre as pessoas se comportam dessa maneira, e por esse
motivo chegam a construir uma escala de valor imperfeita, que apesar de
não coincidir com a escola ontológica, natural, da realidade ordenada 39, é
a que revela a sua disposição atual: O que lhes parece bom e o que lhes
parece ruim. Ora, como a Arte luliana tem a finalidade de nos facilitar o
acesso à verdade, deverá também ser capaz de nos mostrar tanto a
verdade quanto o erro dos nossos argumentos, e por este motivo Lúlio não
teve outra saída senão introduzir no seu mecanismo os vícios e as virtudes
do artista.
De fato, a Arte permite que quem a utilize identifique a qualidade
moral das suas adesões intelectuais, isto é, tem em suas mãos a
possibilidade de comparar a verdade de uma proposição que resulte das
suas atuais disposições morais, com a verdade que realmente exigem as
razões necessárias que a combinação dos Princípios Universalíssimos
mostra. Com efeito, as verdades universais que são obtidas com os
princípios e regras da Arte são sempre verdades ontológicas, que não
podem contrariar a ordem do universo.
A Arte luliana é, pois, um bom instrumento para construir a
interculturalidade, porque nos manifesta a verdadeira qualidade dos
valores que são apreciados em cada cultura.

39
Apenas o ordenamento de valores que constrói a pessoa virtuosa coincidirá com o
ordenamento ontológico e natural do cosmos, como dizem Aristóteles e Lúlio. Este
último o experimentara também na sua própria carne. Para este tema, cf. “Ars
Generalis ultima” de Ramon Llull: Presupuestos metafísicos y éticos, JAULENT, Esteve,
Pesquisa apresentada no XII Congresso Internacional de Filosofia Medieval, organizado
pela SIEPM - Société Internationale pour l’Étude de la Philosophie Mediévale, em
Palermo, nos dias 17 a 22 de setembro de 2007. Está no prelo.

1
O papel da Igreja e do Estado

Finalmente, acabaremos este trabalho com algumas palavras sobre


o papel da Igreja e do Estado na ordenação temporal da sociedade.
Lúlio reconhece que todo poder tem a sua origem em Deus, mas
também que toda eleição provém do povo, e já vimos que deseja que o
papa fique à margem das questões que afetam a estrutura do poder civil.
Concede, porém, ao papado uma força moral tão grande que lhe permita
frear as injustiças dos reis. Diz no Blanquerna: “O papa e os cardeais
ordenaram algo também muito necessário, a saber, que por todo o mundo
houvessem procuradores que lhes fizessem saber, por cartas ou por
mensagens, o estado das nações, por se algo estranho ou alguma
mudança fosse necessária, ou se de melhora havia mister, que
continentes pudessem tratar o que fosse para o bem e melhora daquelas
terras”40. Ou seja, o papa tem de conhecer tudo o que acontece no
mundo, o que está bem e o que está mal, a fim de tratar de melhorá-lo.
Mas tratar de como melhorar as coisas não quer dizer
necessariamente que se tem o direito de intervir na ordenação direta do
poder civil. O caminho que encontra é aquele, explicado mais acima, de
reunir uma vez ao ano todas as potestades, civis e religiosas, e sem fazer
nenhuma distinção entre as religiões, discutir como se pode chegar a um
acordo sobre a paz e a concórdia.
Quando Lúlio fala de “ordenar” refere-se sempre ao fato de que
tudo tem de ser um resultado dos Princípios da Arte. De fato, ele crê que
se todo mundo vivesse bem o seu cristianismo, tanto o povo como os
príncipes, as leis e as instituições seguiriam a ordem natural querida por
Deus, e teríamos mais paz. O mundo estaria ordenado, mas isto não quer
dizer que tem de ser o poder eclesiástico a ordenar a sociedade civil.
Embora critique os maus costumes dos homens da Igreja da sua
época, avisa-lhes da sua responsabilidade e até mesmo lembra-lhes que
“como o mundo está em tão grande discórdia e desordem, é de se temer
ser papa, e tornar-se-ia culpado se não usasse de seu poder em ordenar o
mundo. Seja, portanto, a sua vontade usar todo o poder que Deus lhe deu
para ordenar o mundo”41. Disso não resulta, porém, serem os eclesiásticos
quem têm de baixar as leis que organizem a sociedade.
Lúlio sempre pensou assim. No começo da sua carreira, por volta de
1274, já vimos 42 que escrevia para o seu filho, na Doutrina Pueril que “Os
cristãos deveriam permitir que se mostrasse, mesmo com ajuda da força,
a fé cristã a alguns filhos dos infiéis, para que assim tivessem
40
Livre d’Evast e Blanquerna, lib. IV, cap. LXXIX. Ed. Barcelona 1947, vol.II, p.
41
Livre d’Evast e Blanquerna, lib. IV, cap. LXXVIII, p. 135.
42
Veja nota n. 33.

1
conhecimento dela, e por este conhecimento tivessem consciência de se
acharem no erro, pela qual consciência seria possível a sua conversão e a
conversão de outros”. E continua: “Dai que os prelados ou os príncipes
que não gostam desse procedimento por medo de que os judeus e os
sarracenos fujam para outras terras, ama mais os bens deste mundo que a
honra de Deus e a salvação do seu próximo” 43, ou seja, recrimina aqueles
príncipes e prelados que não tentam converter os infiéis por medo de,
uma vez convertidos, se acharem livres e voltem às suas terras.
Lembremos aqui que tanto os judeus quanto os maometanos eram
frequentemente bastante úteis aos cristãos. O desejo que Lúlio tinha de
facilitar aos outros a possibilidade da conversão fazia que sugerisse
procedimentos contrários à legislação vigente sobre os prisioneiros.
Vimos também a mesma mania, quase vinte anos depois, ao
tratarmos do tema do respeito à consciência do outro. No Tractatus de
modo convertendi infideles sugere que se dê a liberdade aos prisioneiros
que não querem se converter. Lúlio não só criticava a pândega e os vícios
das autoridades eclesiásticas e civis, mas também, repetimos, continuava
sugerindo procedimentos que iam contra a ordenação civil, militar e
eclesiástica da sua época. Apenas as suas “razões necessárias”, resultado
dos Princípios da sua Arte, quando forem implantados em todas as
pessoas e em todos os níveis da sociedade poderão ordenar em paz a
convivência entre os homens.

Esteve Jaulent
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
“Raimundo Lúlio” (Ramon Llull)

43
LLULL, Ramon, [1986], p. 154-5.

1
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