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PM NGOS) | a partir da mulher 222 Para estudar a histéria da mulher ou organizar algumas aulas tomando como ponto de partida a questéo-feminina, devemos lembrar que.a maior parte dessa hist6ria foi escrita sob um olhar ou sob a cen- sara mascalina. Um caso exemplar é 0 da Biblia Sagrada dos cristios. A autoria do Primeiro Livro da Biblia é atribuida a Moisés. No Génesis, a mulhervaparece como semeadora do pecado, sedutora e traidora. Assim perdurou na Antiguidadg ¢ na Idade Médial Somente no mundo con- temporineo a mulher passou a registrar sua prépria histéia de maneira mais direta, Michelle Perrot e Georges Duby confirmam essa austncia feminina ao afirmar: 4 ‘Mesmo os recenseamentos omjtem as mulheres; em Roma, 6 s30, contabilizadas se forem herdeiras seré preciso esperaro sécalo Il depois de Cristo para que Diocleciano ordene, por raz6es isa, o seu numert- ‘mento. No século XIX, 0 trebalho das sgricultoras camponesas € constantemente subestimado, dado que apenas ¢ referida a profissio do chefe de familia. A relacio entre os sexos imprime a sua marca nas fontes histérieas e condiciona sua densidade.” Na Idade Média, proliferavam os disdursos cristios masculinos sobre a mulher, transformada por vezes em bruxa. Os padres e outros homens da Igreja ndo se cansavam de produzir receituérios com reco- rriendagbes a pais e maridos sobre as mulheres, Elas deveriam se casar cedo, cuidar da case, sendo controladas por seus maridos. O historiador Jean Delumeau faz referéncia a um trecho biblico que justificava os dis- cursos religiosos: | ‘Quie as mulheres sejem submissas a seu marido como ao Senor, ‘com efeito,o marido é chef (cabega) de sua mulher, como Cristo €chefe «da Igreje, Ele €0 Salvador do-corpo. Ort, algrja se submete a Cristo; as -mulheres devem, portanto, edi mesmal maneirs, submeter-se, em tudo, ‘seus matidos,(Efésos 5: 22-4.) ‘Em outa passagem, Delumeau cita a ptegagao de Séo Bernardino de Siena sobre a mulher no século XIII: | EE preciso varrer cast Sim, — Sim, Faze-avarré-la.£ precsolavar ‘de novo as tigelas? Fone-alavi-las.E pHecso peneirar? Faze-a peneitar, faze-a entdo peneiar.. que haj a crada. Detxa fazer a ela (a esposa); nfo ppor necessidade de que sea ela que o aca, mas para dar-the exerci. Se tu no # habituas a fazer tudo, ela fe torna um bom pedacinho de 173 DUBY, Gs PERROT, M Mitr das malhre no Ocente, Prt bos, 1980, 9.7, came. Nio the deixes comodidades, eu te digo, Enquanto a yrantiveres ‘atenta, ela nfo permanecerd a janela,e nfo Ihe passaré pela cabeca ums ‘coisa, ora outa." Essa visio da mulher insere-se, para Delumeau, na histéria dos ‘medos, ou seja, na ielagdo que se estabelecia com 0 outro,com 0 diferen- te, com o que causa estranhamento, ‘Trata-se da maneira como ohomem concebia e contava a historia da mulher. Desde 0 século XIX, contudo, comegaram a existir iniciatives para resgatar a histéria das mulheres. Movimentos feministas organizados reconheceram a importancia de recontar a histéria sob outro prisma, reconstruindo a meméria ferninina ¢, consequentemente, seu papel no presente, Na Europa e em outras partes do mundo, vérias publicacées, arquivos, museus e bibliotecas comegaram a se organizar para recriar essa histéria. © estudo da histéria da mulher ¢ de um olhar feminino sobre 0 pasado comesou a ganhar espaco.no século XX coma eriagio da Escola dos Annales, na Franca, em 1929, que ampliou os temas de investigacio histérica, incluindo as préticas cotidianas e o estudo das mentalidades, Entretanto, foi nos anos 1970, com a emergéncia da chamada Nova Histéria na Europ, que a histéria das mulheres ganharia realmente ‘espago. Para o historiador herdeiro dos Annales, Jacques Le Goff, é necessério criar 0 que se denominou uma histéria total, que faria uso de outras dreas do conhecimento como a etnologia, para construir 0 ‘conhecimento histérico ou uma antropologia hist6rica. Segundo Le Goff: “A antropologia histérica busca aprender na histéria o homem por inteiro, corpo e espirito, em sua vida material, biolégica; afetiva, mental’2Nesge sentido, a historia da mulher estabelece-se como um dos elementos dessa histéria total, Elando é como uma totalidade em si ‘mesma, mas; sim parte de um contexto mais amplo, que é a histéria do préprio homem em sociedade, ‘Essa histéria da mulher citcunscreve-se também no que a Escola dos Annales,chamou de uma histéria de longa duragdo. Contio ocorre com outros aspectos da vida cultural, podemos estabelecer relacées de permanéncia‘e ruptura acerca do papel da mulher. Em que medida a ‘4 DELUMEAU, |. Hsia do mado no Cet. Sto Paulo: Compashia dai Ltrs, 1996 p. 318 a. "73 LEGOFF, J Uma vida poe a stra ConvertagSes com Mare Heurgo. So Paso: Unep 1957, pam, 223 visio medieval da mulher ainda persiste? Em que deixou de existir? Em que lugares? Em que geupos sociais? Em que medida o papel doméstico da mulher ainda se afirma como na Antiguidade greco-romana ou na Idade Média? Nao se pode deixar de considerar também a intensa presenga do ‘movimento feminista que, a partir dos anos 1960, deu forte impulso aos estudos acerca da mulher e sua hist6ria. Teve entio um sentido militante de reconstrugao da imagem da mulher. A historiadora Mary Del Priore, estudiosa do tema, propée e res- ponde uma indagacao fundamental: Para que serve a bistria dag mulheres? (..] para fazt-las exis- tis, viver e ser: Esta & afinal, uma das fungbes potenciais da Historia, Acreditamos que no interessa a0 historiador fazer a histéria das mulheres em termos de erros ou de acertos sobre 0 seu passado, contar saga de heroinas ou martes, o que seria de um tereivel anacronismo, Sua funglo maior dave ser @ de enfoci-las através da submisslo, da negociagao, das tens0es e das contradigies que se estabeleceram, em - diferentes épocas, entre elas e seu tempo; entre elas ¢ a saciedade mas ‘quiis estavam inseridas, Trata-se de desvendar as intricadas relagoes entre a mulher, & sociedade e 0 fato, mostrando como o see social que la € articula-se com o fato social que ela mesma fabrica e do qual é parte integrante. Trata-se, igualmente, de um desafio no sentida de fazer uma histérta total da nmulher, na qual se contemplem as grandes evolugdes, profundss e silenciosas, dos comportamentos, aquelas, dos sentimentos religiosos ou das mentaidades, as demogrificas e a tée- nicas. Mas historia da qual nio estejam ausentes os pequenos gestos, as priticas miiidas ¢ repetitivas do cotidieno, as furtivas formas de ccnsentimento e interiorizayao das press0es, simbdlicas ou concretas, exercidas contra as mulheres.* ‘Mary Del Priore sugere que néo nos limitemos a estudar as formas de dominacio masculina sobre @ mulher. Para ela, mais importante é fazer a “andlise das mediagées, no tempo e no espaco, através das quais qualquer dominagao se exerce, Deve-se fugir da histéria que faz da mulher uma vitima, ou seu inverso”.” Nesse sentido, a historiadora francesa Michelle Perrot, ao analisar a vida social das mulheres euro- peias urbanas do século XTX, nao as analisa somente sob o ponto de vista das proibiges masculinas. £ certo que os cargos piblicos, o trabalho 76 PRIORE, M De Misti das mulets, Vous do scl. ns PREFTAS, MC. de (Org), Hite. ogra braseira em perspective S49 Pole Comet, 200.235. 17 PRIORE,M. Del. A mulher ns tris cd Bra 2.0 Sho Ps Contents, 19, p13 bein remunerado, as alividades cientificas e filoséficas, todas esses sio territérios masculinos, A mulher caberia a familia ¢ 0 trabalho domésti- co. Destinava-se ao homem o espago paiblico ¢ & mulher a vida privada, Essa mulher que seassume como dona de casa no sécitlo XIX enro- eu se opde ao homem que sai para o trabalho e-ndo pode cuidar dos afazeres domésticos. Nesse contexto, a mulher adquire podeces préprios, ‘que niio s4o aqueles relacionados diretamente a0 controle do espaco piiblico. Conforme Perrot, elas reclamam pelo controle dos salérios dos maridos. A autora afirma que “por volta de meados do século XIX, a maioria dos operirios entrega seu pagamento as mulheres” e que [.-Jaadministeagto dos stériosé, sem divi, uma dificil conquis ts das mulheres, resultado de uma lata cheia de ciladas, onde © patro- ‘nato, dade, So Paulo: Cla, das Letras, 1997 BETTENCOURT, Citce Masia Fernandes. Ensina- de-histéri: fondamentos ¢ nétodos. Sto Paulo: Cortez, 2004, (CAURAL, Sérgio. A.MPB na trad niin, Sto Paulo: Modems, 1996, CALADO, Carlos. Tropiclce a histdeia de uma revolugio:mhusical. So: Peale; tora 34, 2000. ‘CASTRO, Ruy. 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