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1 INTRODUCAO: COSTUME E CULTURA Todos os estudos reunidos neste livro estio ligados, por caminhos diferen- 25,9 tema do costume, assim como ele se manifestou na cultura dos trabalha- Sores no século xvmte parte do xix. Defendo a tese de que a consciéncia e os us0s costumeiros eram particularmente fortes no século xvi, Na verdade, al- zuns desses “costumes” eram de criacio recente e representavam as teivindica- Oe de novos “direitos”. B clara nos historiadores que se ocupam dos séculos xv1e xvila tendéncia de ver 0 século xvni como uma época em que esses costu- mies se encontravam em deelinio, juntamente com a magia, a feiticaria e supers- ces semelhantes. O povo estava sujeito a presses para “reformat” sua cultu- ra segundo normas vindas de cima, a alfabetizacio suplantava a transmissio oral, ¢ o esclarecimenio escorria dos estratos superiores aos inferiores — pelo menos, era 0 que se supunha. Mas as presses em favor da “reforma’’ sofriam uma resisténcia teimosa; ¢ © século xvi viu abrir-se um hiato profundo, uma profunda alienagdo entre a cultura patricia e a da plebe. No seu esclarecedor estudo Cultura popular na Idade Moderna, originalmente publicado em 1978, Peter Burke sugere que isso ocorreu em toda a Europa, ¢ que uma das consequéncias foi o surgimento do folclore, a medida que observadores sensiveis (e os pouco senstveis) nas cama- das superiores da sociedade promoviam a investigagao da “Pequena Tradi¢ao” plebeia, registrando seus estranhos habitos ritos. Quando surgiu o estudo do folclore, esses costumes j4 comecavam a ser vistos como “antiguidades”, rest- duos do passado, ¢ John Brand, o grande pioneiro dos estudos folcléricos, achou necessério incluir no preficio de seu livro Observations on popular antiqui- ties [Observagdes sobre antiguidades populares] um pedido de desculpas por hes dar atengdo: [...] nada relacionado com o mais infimo do que & vulgar pode ser estranho & nossa investigagio,e menos ainda escapar & nossa atengdo; nada que diga respeito Aque- 13 les que ocupam o Ingar mais humilde, embora de modo algum 0 menos importan- te na distribuigdo politica dos seres humanos.! Assim, desde a sua origem, 0 estudo do folclore teve este sentido de distan- cia implicando superioridade, de subordinagio (Brand observou que o orgulho e as necessidades da organizagio politica da sociedade tinham “dividido 0 género humano em (... ] uma variedade de espécies diferentes e subordinadas”), vendo 0s costumes como remanescentes do passado. Durante século e meio, o métado preferido dos colecionadores foi reunir esses residuos como “costumes de alma- naque”, que encontravam seu tiltimo refigio na provincia mais remota. Como declarou um folciorista no fim do século xvin, seu objetivo era descrever “os antigos costumes que ainda subsistem nos recantos obscures do nosso pais, ou que sobreviveram A marcha do progresso na nossa agitada existéncia urbana”? Devemos a esses colecionadores descrigdes cuidadosas de well-dressings [costume religioso em que os pocos de agua eram decorados com arranjos florais para agradecer o suprimento abundante de égua pura], rush-bearings [cerimd- nia anual em que se levava junco para a igreja a fim de espalhar pelo chéio ou decorar as paredes] ou harvest homes (festa do final da colheita], bem como exemplos recentes de skimmington ridings [procissao para ridicularizar um esposo ou esposa infiel]. Mas o que se perdeu, a0 considerar os costumes (plu- rais) como discretas sobrevivéncias, foi o sentido intenso do costume no sin- gular (embora com variadas formas de expressiio) — 0 costume néo como posterior a algo, mas como sui generis: ambiéncia, mentalité, um vocabulério completo de discurso, de legitimacao ¢ de expectativa. Nos séculos precedentes, o termo “costume” foi empregado para denotar boa parte do que hoje esta implicado na palavra “cultura”. O costume era a “segunda natureza” do homem. Francis Bacon escreveu sobre 0 costume como a conduta inercial, habitual e induzida: “Os homens professam, protestam, comprometem- -s¢, pronunciam grandes palavras, para depois fazer o que sempre fizeram. Como se fossem imagens mortas, instramentos movidos exclusivamente pelas rodas do costume”. Para Bacon, portanto, o problema consistia em induzir melhores habitos 9 mais cedo possivel: “Como o costume € a principal diretriz da vida humana, que os homens procurem ter bons costumes [...] O costume é mais perfeito quando tem origem nos primeiros anos de vida: & 0 que chamamos de educagiio, que, com efeito, ndo passa de um costume cedo adquirido”. Bacon nio estava pensando na classe trabalhadora, mas cem anos depois Bernard Mandeville, tio convencido quanto Bacon da “tirania dos costumes que prevalece sobre nds”? estava muito menos inclinado a aceitar a educaciio universal. Era necessdério que “toda uma multidao [...] habituasse seu corpo ao trabalho”, tanto cm seu préprio beneficio como para sustentar o lazer, o conforto ¢ os prazeres dos mais afortunados. i4 lade seja feliz e o povo tranquilo nas circunstancias mais adver- sas, € necessério que grande parte dele seja ignorante e pobre. O conhecimento ndo s6 amplia como multiplica nossos desejos [...] Portanta, o bem-estar e a feli- cidade de tado Estado ou Reino requerem que 0 conhecimento dos trabalhadores pobres fique confinado dentro dos limites de suas ocupacdes ¢ jamais se estenda (em relacdo Bs coisas visiveis) além daquilo que se relaciona com sua missao. Quanto mais um pastor, um arador ou qualquer outro camponés souber sobre 0 mundo ¢ sobre o que ¢ alheio ao seu trabalho ¢ emprego, menos capaz, seré de suportar as fadigas e as dificuldades de sua vida com alegria contentamento. Por isso, para Mandeville, 0 aprendizado da leitura, da escrita ¢ da aritmética “é muito pernicioso aos pobres”* Se a muitos desses “pobres” se negava 0 acesso A educacdo, a0 que mais eles podiam recorrer senio 4 transmissio oral, com sua pesada carga de “costumes”. Se o folclore do século xvii, ao separar os residuos culturais do seu contexto, perden o sentido do costume como contexto e mentalité, deixou igualmente de perceber a fungao racional de muitos costumes, nas rotinas do trabalho didrio e semanal. Muitos costumes eram endossados ¢ frequentemente reforcados pela pressio ¢ protesto populares. Nao hé ditvida de que no século xvi “costume” era uma “boa” palavra: a Inglaterra hd muito se vangloriava de ser Antiga e Boa E era também um termo operacional. Se, de um Jado, 0 “costume” incorporava muitos dos sentidos que atribufmos hoje & “cultura”, de outro, apresentava muitas afinidades com 0 direito consuetudindrio. Esse derivava dos costumes, dos usos habituais do pais: usos que podiam ser reduzidos a regras e precedentes, que em certas circunstincias eram codificados ¢ podiam ter forga de lei. Era o que acontecia, sobretudo, com a lex loci, os costumes do dominio senhorial. As vezes eles $6 estavam registrados na memoria dos idosos, mas ti- nham efeito legal quando nao contradiziam a lei estatutaria,’ 0 que € discutido mais amplamente no capitulo 3. Para alguns trabalhadores industriais, o costume tinha a mesma forga legal ~~ os mineradores de estanho da Comualha, com sua Stannary Court, os mineiros independentes da floresta de Dean, com seu “Livro de Dennis”? Os direitos reivindicados pelos mineiros de Dean talvez tivessem suas origens no século xt, mas as “Leis ¢ costumes dos mineiros” foram codifi- cadas numa investigaciio de 1610, quando 48 mineiros independentes registra- ram seus costumes (publicada originalmente em 1687). Com frequéncia, a invo- cago do “costume” com respeito a um oficio ou ocupaciio refletia uma pratica to antiga que adquiria a cor de um privilégio ov direitos Em 1718, por exemplo, quando os fabricantes do Sudoeste tentaram ampliar em meia jarda cada pega de pano, os teceldes se queixaram de que isso contrariava “a Iei, 0s usos ¢ os costu- mes de tempos imemoriais”. E em 1805, os gréficos de Londres reclamaram que seus empregados abusavam da ignorfincia dos trabalhadores diaristas “rejeitan- IS do ou discutindo 0 que constitufa um costume, ¢ se recusando a reconhecer os precedentes, que até o momento tém sido a tnica referéncia existente”? Muitas das disputas classicas do infcio da Revolugdo Industrial diziam respeito tanto aos costumes como 40s salairios e condicdes de trabalho. Em sua maioria, esses costumes podiam ser descritos como “visiveis": es- tavam codificados de alguma forma, ou podiam ser justificados com exatidao, Mas & medida que a cultura plebeia se tormava mais opaca & inspe¢do por parte da gentry." outros costumes passavam a ser menos visiveis. As cerimOnias ¢ as procissdes dos offcios, que no passado faziam parte do calendério corporativo sob 0 pairocinio do bispo Blaize, no caso dos cardadores de 1a; de siio Clemente, com respeito aos ferreiros; ¢ de so Crispim, com relacio aos sapateiros —, no século xvim ainda podiam ser celebradas em ocasides especiais, como coroacdes © aniversdrios. No século xrx, porém, perderam 0 endosso consensual dos res- pectivos “oficios”; cram temidas pelos empregadores e pelas corporagées, por propiciarem explosdes de alegria e distiirbios, o que realmente as vezes aconte- cia."” Sio Clemente niio era cultuado nas ruas, mas nos clubes de oficio ou nas reunides das sociedades de socorro miituo que se reuniam nas tavernas." Isso € sintomético da dissociago entre as culturas plebeia e patricia no século xvi e no inicio do x1x."" E dificil no ver essa divisdo em termos de classe. Um folclorista perspicaz, G. L. Gomme, via 0 folclore como um conjunto de costumes, ritos e crengas do povo: Muitas vezes em antagonisma claro com relago aos costumes aceitos, os ritos © as crengas do Estado ou da nago a que pertenciam 0 povo ou certos grupos populares. Esses costumes, ritos e crengas siio mantidos pela tradigao [...] Devem sua preservago em parte ao fato de que grandes massas populares nio participa da civilizacdo que se ergue acima deles ¢ que nunca é criago sua.” No século xvi, 0 costume constituia a ret6rica de legitimagdo de quase todo uso, prética ou direito reclamado. Por isso, 0 costume nao codificado —e até mesmo 0 codificado ~--estava em fluxo continuo. Longe de exibir a perma- néncia sugerida pela palavra “tradiga0”, 0 costume era um campo pata a mu- (0) E possivet encontrar o termo gentry traducido como pequena nobreza ou fidalguia, Porém, ‘optamos por mant8-lo no original. Embora a gentry, pela sua riqueza e in‘luéneia politien, pudesse aspirar ¢, eventualmente, obter titulos nobiliérguicos, no contexto do século xvi inglés era um grupo social distinto da nobreza, Dona de cerca da metade das terras do pais, a gentry determinava 08 padres de poder local como juizes de paz.e responsdveis pelas milfcins (ver A. Briggs, A sacial history of England, Londres, Penguin, 1991, pp. 169, 170, 200). Ademais, © préprio Thompson a define como sendo constitufda por “vigorosos capitalistas agrarios”, uma peculiaridade inglesa “seniéo tinica, excepcional” {ver E. P. Thompson, As peculiaridades dus ingleses e outros artigos, Campinas, IFCH-Unieamp, 1995, col. Textos Didaticos, pp. $1, $7).(N.R.) 16 danga e a disputa, uma arena na qual interesses opostos apresentavam reivindi- cages conflitantes. Essa é uma raziio pela qual precisamos ter cuidado quanto a generalizagdes como “cultura popular”. Esta pode sugerir, numa inflexio antro- pol6gica‘influente no ambito dos historiadores sociais, uma perspectiva ultra- consensual dessa cultura, entendida como “sistema de atitudes, valores e signi- ficados compartilhados, e as formas simbdlicas (desempenhos e artefatos) em que se acham incorporados”.* Mas uma cultura é também um conjunto de dife- rentes recursos, em que hd sempre uma troca entre o escrito e 0 oral, o dominan- tee o subordinado, a aldeia ¢ a metropole; é uma arena de elementos conflitives, que somente sob uma presso intperiosa — por exemplo, o nacionalismo, a consciéncia de classe ou a ortodoxia religiosa predominante — assume a forma de um “sistema”, E na verdade 0 proprio termo “cultura”, com sua invocagao confortével de um consenso, pode distrair nossa atengiio das contradigées so- ciais e culturais, das fraturas e oposigdes existentes dentro do conjunto. Nesse ponto, as generalizacdes dos universais da “cultura popular” se esva- ‘iam, a nfio ser que sejam colocadas firmemente dentro de contextos histéricos espe- cificos. A cultura plebeia, que se reveste da retérica do “costume” ¢ que corresponde ao tema central deste livro, néo se autodefinia, nem era independente de influéncias extemas. Assumira sua forma defensivamente, em oposigao aos limites ¢ controles impostos pelos governantes patricios. Os confrontos ¢ negociagGes entre os patricios € aplebe so explorados no capitulo 2, com a apresentaggo de alguns casos de con- fiito entre mentalités costameiras e inovadoras (baseadas no “mercado”). No estudo desses casos, espero que a cultura plebeia tenha se tomado um conceito mais concre- to e utilizivel, naio mais situado no ambiente dos “significados, atitudes, valores”, mas localizado dentro de um equilibrio particular de relagdes sociais, um ambiente de trabalho de exploragdo e resisténcia & exploragiio, de relagdes de poder mascara- das pelos ritos do paternalismo e da deferéncia. Desse modo, assim espero, a “cultu- ra popular” ¢ situada no lugar material que Ihe corresponde. Vamos retomar os tragos caracteristicos da cultura plebeia no século xvimi. Como é natural, ela mosira certas caracteristicas atribuidas comumente as cultu- ras “tradicionais”. Na sociedade rural, mas também nas 4reas manufatureiras e mineiras densamente povoadas (as regi6es produtoras de tecido do Oeste da In- glaterra, o territrio dos mineradores de estanho da Cornualha, o Black Coun- try). encontramos uma heranga importante de definigdes ¢ expectativas marca- das pelo costume. O aprendizado, como iniciag&o em habilitagdes dos adultos, no se restringe A sua expressio formal na manufatura, mas também serve como niecanismo de transmissio entre geracdes, A crianga faz seu aprendizado das (ui) Distrito industrial minefro nas Midlands. (N. R.) i7 tarefas caseiras primeiro junto & mie ou av6, mais tarde (frequentemente) na condic&o de empregado doméstico ou agricola. No que diz respeito aos misté- tios da criagao dos filhos, a jovem mée cumpre seu aprendizado junto as matro- nas da comunidade. O mesmo acontece com 0s oficios que nao tém um aprendi- zado formal. Com a transmissio dessas técnicas particulares, d-se igualmente a transmissiio de experiéncias sociais ou da sabedoria comum da coletividade. Embora a vida social esteja em permanente mudanga e a mobilidade seja consi- derdvel, essas mudangas ainda nao atingiram o ponto em que se admite que cada geragdo sucessiva ter um horizonte diferente. E a educagao formal, esse motor da aceleragio (e do distanciamento) cultural, ainda ndo se interp6s de forma significativa nesse processo de transmissiio de geracéo para geragio."* |AS priticas as normas se reproduzem ao longo das geragées na atmosfe- ra lentamente diversificada dos costumes. As tradigGes se perpetuam em gran- de parte mediante a transmissio oral, com seu repertstio de anedotas ¢ narra- tivas exemplares. Sempre que tradigdo oral ¢ suplementada pela alfabetizagzo crescente, os produtos impressos de maior circulacdio — brochuras com bala- das populares, almanaques, panfleios, coletaneas de “tltimas palavras” e rela- tos anedéticos de crimes — tendem a se sujeitar a expectativas da cultura oral, em vez de desafid-las com novas opgdes. Essa cultura transmite com vigor — e possivelmente também gera — desempenhos ritualisticos ou estilizados, na recreagdo ou em formas de pro- testo. E até possivel que a mobilidade geogrifica, juntamente com a crescen- te alfabetizagao, tenha ampliado a gama dessas formas e as tenha distribuido mais amplamente. A “fixagdo do prego”, a aco central dos distirbios rela- cionados com a venda de alimentos, se difunde por quase todo o pais (ver capitulo 4); 0 divércio ritual conbecido como “venda da esposa” parece ter se difundido a partir de um ponto de origem desconhecido (ver capitulo 7). © testemunho da rough music (ver capitulo 8) sugere que nas comunidades mais tradicionais (nem todas rurais) operavam forgas muito poderosas de controle social e moral produzidas pela propria sociedade, Essa evidéncia pode demonstrat que, embora os desvios de conduta fossem tolerdveis até certo ponto, além desse limite a comunidade impunha aos transgressores suas expectativas herdadas com respeito ao papel dos conjuges ¢ & conduta sexual. Mesmo nesses casos. contudo, precisamos avangar com cuidado: néio se trata apenas de “uma cultura tradicional”. As normas defendidas nao eram as mesmas proclamadas pela Igreja ou pelas autoridades; eram definidas dentro da propria cultura plebeia, e os mesmos rituais de desonra usados contra um notério transgressor das regras de conduta sexual podiam ser apli- cados contra o fura-greve, contra 0 proprietério rural € seus couteiros, o ins- petor de tributos, o juiz de paz Is Portanto, essa era uma cultura de formas conservadoras, que recottia aos costumes tradicionais e procurava reforeé-los. As formas sio também nao racio- nais; nfio apelam para a “razio” por meio do panfleto, do sermao ou do palanque do orador. Ela’ impéem uma variedade de sangGes pela forca, 0 ridiculo, a ver- nha, a intimidagdo, Mas o contetido ou os significados dessa cultura no po- dem ser qualificados facilmente de conservadores, porque na realidade social 0 trabalho se libera cada vez mais, década apds década, dos controles senhoriais, paternais, da pardquia e da corporagdo, distanciando-se da dependéncia direta em que ficavam a prinefpio os clientes da gentry. Em consequéncia, temos uma cultura costumeira que no est sujeita, em seu funcionamento cotidiano, ao dominio ideolégico dos governantes. A hegemonia suprema da gentry pode de- finir os limites dentro dos quais a cultura plebeia tem Hberdade para atuar e crescer; mas como essa hegemonia € laica, e no religiosa ou magica, pouco pode fazer para determinar o cariter dessa cultura plebeia. Os instrumentos e imagens de controle de que se utiliza no so os da Igreja ou do carisma monér- quico, mas aqueles proporcionados pela lei. Todavia a lei nao cria irmandades pias nas cidades nem extrai confissio dos pecadores, seus stiditos nao precisam desfiar rosdrios nem fazer peregrinagio a santudrios. Em vez disso, eles lem volantes ¢ tagarelam nas tavernas; e pelo menos algumas das vitimas do sistema legal nao so vistas com horror, mas com uma admirago ambégua. A lei pode estabelecer os limites tolerados pelos governantes; porém. na Inglaterra do sécu- Jo xyut, ela no penetra nos lares rurais, ndio aparece nas preces das vitivas, no decora as paredes com cones, nem dé forma a perspectiva de vida de cada um, ‘Temos assim um paradoxo caracteristico daquele século: uma cultura tradi- cional que é, a0 mesmo tempo, rebelde. A cultura conservadora da plebe quase sempre resiste, em nome do costume, as racionalizagGes e inovacdes da econo- mia (tais como os cercamentos, a disciplina de trabalho, os “livres” mercados ndo regulamentados de cereais) que os governantes, os comerciantes ou os em- pregadores querem impor. A inovagao é mais evidente na camada superior da sociedade, mas como ela néio é um proceso tecnolégico/social neutro e sem normas (“modernizagio”, “racionalizaciio"), mas sim a inovaciio do processo capitalista, é quase sempre experimentada pela plebe como uma exploracio, 2 expropriaco de direitos de uso costumeiros, ou a destruigdo violenta de padrées valorizados de trabalho e lazer (ver capitulo 6). Por isso a cultura popular é re- belde, mas o é em defesa dos costumes. Esses pertencem ao povo, e alguns deles se baseiam realmente em reivindicagdes muito recentes. Contudo, quando pro- cura legitimar seus protestos, o povo retorna frequentemente as regras paterna- listas de uma sociedade mais autoritaria, selecionando as que melhor defendam seus interesses atuais, Assim, 0S que participam dos motins da fome voltam a apelar para o Book of orders ¢ para a legislagao contritia aos forestallers [fazen- 19 deiros gne faziam compras antecipadas dos gréios para fins de especulacio], ¢ os artesiios a recorrer a certas partes do eédigo de trabalho da era Tudor —- por exemplo, a que diz respeito a regulamentagiio do aprendizado. ‘A identidade social de muitos trabalhadores mostra também uma certa ambiguidade. E possivel perceber no mesmo individuo identidades que se slternam, uma deferente, a outra rebelde.’ Adotando outros termos, esse Foi tum problema que preocupou Gramsci. Ele observou o contraste entre a“mo- ralidade popular” da tradigio do folclore ¢ a “moralidade oficial”. Seu “ho- memi-inassa” podia ter “duas consciéncias teéricas (ou uma consciéncia con- traditoria)”: a da praxis e a “herdada do passado ¢ absorvida acriticamente”, ‘Ao discutir a idcologia nos seus cadernos da prisflo, Gramsci a vé fundamen- tada na “filosofia espontinea comum a todas as pessoas”. Uma filosofia — conclui — que detiva de trés fontes: a primeira é “a propria linguagem, que Gum conjunto de determinadas nogdes e conceitos, e néio apenas de palavras desprovidas gramaticalmente de contetido”; a segunda € 0 “senso comum”; ea terceira, 0 folclore ¢ a religido popular.”” Das trés, hoje a maioria dos in- felectuais do Ocidente no hesitaria em conceder primazia tedrica & primeira (a linguagem), no si por ser 0 vefculo, mas a influéncia constitutiva sobre a conscigneia. Com efeito, embora a linguagem real — por exemplo, 0 dialeto — tenha sido pouco estudada,'* entrou na moda presumir que a plebe era em certo sentido determinada pela sua heranga linguistica, considerada, por sua vez, uma verdadeira bricolage de ideias dispares, derivadas de muitas fon- tes, mas mantidas no seu lugar pelas categorias patricias. Os plebeus chegam a ser vistos Como prisioneiros da linguagem, compelidos, até mesmo em seus momentos de rebeldia, a mover-se dentro dos parametros do constitu- cionalismo, da Velha Inglaterra, da deferéncia devida aos lideres do patricia- do e do patriarcado. £ um argumento que podemos acompanhar até certo ponto, embora deixe de Ievar em conta as oulras fontes da “filosofia esponténea” citadas por Grams- ci.e em particular o “senso comum” ou a prixis. Pois Gramsci também insistia que essa flosofia nfo era apenas @ apropriagdo de um individuo, mas provinha de experiéncias compartilhadas no trabalho ¢ nas relagies sociais, estando “im- plicita na sua atividade e na realidade, unindo-o a todos os companheiros de trabalho na transformagao pritica do mundo real [...J". Assim, as “duas cons- ciéncias teéricas” podem ser vistas como derivadas de dois aspectos da mesma realidade: de um lado, a conformidade com 0 status quo, nevessaria para a Sobrevivencia, a necessidade de seguir a ordenagio do mundo ¢ de jogar de acordo com as regras impostas pelos empregadores, 08 fiseais dos pobres ete.” De outro lado, 0 “senso comum”, derivado da experiéncia de exploragao. difi- culdades e represso compartilada com os companheiros de trabalho ¢ 0s vizi- 20 nhos, que expée continuamente o texto do teatro paternalista a critica irdnica e, com menos frequéncia, A revolta. Outro aspecto dessa cultura pelo qual tenho interesse especial & a priorida- de concedida, em certas dreas, ao “nfo econémico”, em detrimento das sangGes, trocas ¢ motivagdes monetirias diretas. Esse aspecto é hoje estudado ampla- mente sob a designagiio de “economia moral”, tema dos capitulos 4 ¢ 5 deste livro. Ao examinarmos 0 comportamento das classes trabalhadoras no século Xvi, sentimos que € necessario “decodificé-lo” e decodificar suas formas de expresso simbélica, revelando as regras invisiveis, distintas daquelas que os historiadores dos movimentos operditios subsequentes se habituaram a esperar. Quando atentamos para o simbolismo do protesto, ou quando decodificamos a rough music ou a venda de esposas, compartithamos de algumas das preocupa- ges de certos historiadores dos séculos xvi e xvi que tinham orientacdo antro- poldgica. Em outro sentido, os problemas sio diferentes, ¢ possivelmente mais agudos, porque o processo do capitalismo e a conduta no econémica baseada nos costumes esto em conflito, um conflito consciente ¢ ativo, como que numa resisténcia aos novos padrées de consumo (“necessidades”), as inovagdes técni- cas ou & racionalizagdo do trabalho que ameacam desintegrar os costumes e, algumas vezes, também a organizacio familiar dos papéis produtivos 80, podemos entender boa parte da hist6ria social do século xviit como uma série de confrontos entre uma economia de mercado inovadora e a economia moral da plebe, baseada no costume. Nesses confrontos, € possivel perceber o delineamento das subsequentes formagées de classe, bem como da consciéncia de classe: ¢ os fragmentos resi- duais das antigas estruturas so revividos e reintegrados no ambito dessa cons- ciéncia de classe emergente, Em um certo sentido, a cultura plebeia é do povo: uma defesa contra as intrusies da gentry e do clero; consolida aqueles costumes que servem aos interesses do povo; as tavernas séio suas, as feiras sfio suas, a rough music esta entre seus meios de autorregulaciio. Nao estamos diante de qualquer cultura tradicional, mas de uma cultura bastante peculiar, Por: ‘exemplo, cla no é fatalista, oferecendo consolo e defesas ao longo de uma vida comple- tamente determinada ¢ restrita. E, sim, picaresca, e ndo s6 no sentido mais 6bvio de que um ntimero maior de pessoas se movimentam, vZo a0 mar, siio levadas para as guerras, experimentam os azares ¢ as aventuras da estrada! Em ambien- tes mais estaveis, como nas areas em expansao da manufatura e do trabalho “li- vre”, a vida continua seguindo um ramo cujos azares e acasos no podem ser prescritos ou evitados pelo planejamento. As fiutuacdes da mortalidade, dos pre- gos, do desemprego, so experimentadas como acasos extemnos, fora de qualquer controle. De modo geral, a populaciio trabalhadora tem pouca possibilidade de prever o futuro: essas pessoas nao planejam sua “carreira", nem sua familia; no ge ‘yeem sua vida como uma forma definida diante de si, nfio economizam os altos ganhos de algumas semanas para fazer poupanga, nao planejam a compra de uma choupana, e nunca tiram férias. (Sabendo 0 que os espera, alguns jovens saem de casa e,uma vez na Vida, ganham a estrada para “ver o mundo”.) Assim, as oportunidades so aproveitadas & medida que surgem, com pouca reflexdo sobre as conseguéncias, assim como a multidio impde seu poder nos momentos de insurreigdo direta, sabendo que o seu triunfo nao vai durar mais do gue uma semana ou um dia. Critiquei antes o termo “cultura”, por tender a nos empurrar no sentido de uma nogao holfstica ou ultraconsensual. Contudo, fui levado a retomar uma descrigao da “cultura plebeia” que pode estar sujeita As mesmas criticas. O que nio tera grande importincia, se usarmos a palayra “cultura” como um termo descritivo vago. Afinal de contas, ha outros termos descritivos que séio moeda comum, tais como “sociedade”, “politica” e “economia”. Nao ha divida de que eles merecem um escrutinio minucioso de tempos em tempos, mas, se tivésse- mos que fazer um exereicio rigoroso de definigao cada vez que quiséssemos usé-los, o discurso do conhecimento se tornaria bastante complicado. Mesmo assim, niio podemos esquecer que “cultura” é um termo emaranha- do, que, a0 reunir tantas atividades e atributos em um s6 feixe, pode na verdade confundir ou ocultar distingdes que precisam ser feitas. Seri necessério desfazer 0 feixe ¢ examinar com mais cuidado os seus componentes: ritos, modos simbé- licos, os atributos culturais da hegemonia, a transmissiio do costume de geracio para geragtio ¢ 0 desenvolvimento do costume sob formas historicamente espe- cfficas das relagSes sociais e de trabalho. Como demonstrou o antropstogo Ge- rald Sider, em um conjunto de estudos bastante sagazes sobre as vilas de pesca- dores da Terra Nova: Os costumes realizam algo-niio sfio formulagdes abstratas dos significados nem a busca de significados, embora possam transmitir um significado. Os costumes esto claramente associados e arraigados as realidades materiais e sociais da vi- da € do trabalho, embora niio derivem simplesmente dessas realidades, nem 0s reexpressem. Os costumes podem fornecer 0 contexto em que as pessoas talvez facam o que seria mais dificil de fazer de modo direto {...], eles podem preservar a necessidade da aco coletiva, do ajuste coletivo de interesses, da expressiio coletiva de sentimentos e emogGes dentro do terreno & dominio dos que deles co- participam, servindo como uma fronteira para excluir os forasteitos.” Se fosse discriminar os componentes constitutivos da “cultura popular” que mais requerem a nossa atengao nos dias de hoje, citaria.as “necessidades” ¢ as “cxpectativas”. A Revolugio Industrial e a concomitante revolugdo demogré- fica foram o pano de fundo da maior transformagio da hist6ria, a0 revolucionar as “necessidades” ¢ destruir a autoridade das expectativas baseadas nos costu- 22 mes. B isso sobretudo o que estabelece a distingZo entre o “pré-industrial” ou “tradicional” e 0 mundo modemo. As gerages sucessivas jé nao se colocam em posigfo de aprendizes umas das outras, Se precisamos de uma apologia utilitéria para nossa investigacdo histérica sobre os costumes (penso que niio é 0 caso), cla pode ser cncontrada no fato de que essa transformaco, essa remodelagem da “necessidade” e essa elevacdo do limiar das expectativas materiais (junta- mente com a desvalorizacio das satisfagdes culturais tradicionais), prossegue hoje com pressio irresistivel, acelerada em toda parte pelos meios de comunica- ¢4o universalmente disponiveis. PressGes que sio hoje sentidas entre 1 bilhaio de chineses, assim como por incontéveis milhGes em aldeias africanas e asidticas. Nao é simples discutir esses problemas a partir de nossa confortdvel pers- pectiva do “Norte” na divisao do globo. Qualquer historiador do trabalho conhe- ce bem os interesses egoistas ¢ as desculpas de classe que sempre podem encon- trar razdes para que os pobres continuem a ser pobres. Para citar mais uma vez Bemard Mandevill E impossivel que uma sociedade possa subsistir por muito tempo tolerando que muitos de seus membros vivam no écio e gozern de todos os confortos e prazeres ue possam inventar sem que, ao mesmo tempo, haja multiddes que, para esse fim, concordem em viver da maneira totalmente oposta, acostumando seus corpos pelo uso e pela paciéncia a trabalhar para os outras além de para si mesmos:* Fssas palavras ainda nao perderam sua forca: é o texto oculto do didlogo entre 0 Norte ¢ 0 Sul. No entanto, sabemos também que as expectativas globais estiio se avolumando como o diltivio biblico, e que a presteza da espécie humana em definir suas necessidades e satisfacbes materiais de mercado ~— despejando to- dos os recursos da Terra no mercado - — pode ameagar a prspria espécie (no Sul como no Norte) com uma catéstrofe ecoldgica. O responsdvel por essa catastro- fe seri o homem econémico, seja na sua forma classica do capitalista avaro, seja na forma do homem econdmico rebelde da tradigdio marxista ortodoxa. Como 0 capitalismo (ou seja, o “mercado”) recriou a natureza humana e as necessidades humanas. a economia politica e seu antagonista revoluciontio passaram a supor que esse homem econdmico fosse eterno. Vivemos 0 fim de um século em que essa ideia precisa ser posta em diivida. Nunca retornaremos natureza humana pré-capitalista; mas lembrar como eram seus c6digos, expec- tativas ¢ necessidades alternativas pode renovar nossa percepgdo da gama de possibilidades implicita no ser humano. Isso no poderia até nos preparar para uma €poca em que se dissolvessem as necessidades e expectativas do capitalis- mo e do comunismo estatal, permitindo que a natureza humana fosse recons- truida sob uma nova forma? E possivel que eu esteja querendo demais. Seria invocar a possibilidade da redescoberta, sob novas formas, de um novo tipo de 23 “consciéncia costumeira”, quando mais uma vez. as geracdes sucessivas apren- dessem umas com as outras; quando as satisfagées materiais permanecessem estaveis (se distribuidas de modo mais igualitdrio), e s6 as satisfagdes culturais se ampliasseni; quando as expectativas atingissem uma situacao de equilfbrio permanente dos costumes. Nao ereio que isso va acontecer, mas tenho a espe- ranga de que 0s estudos deste livro possam iluminar 0 processo de formagiio dos costumes ¢ a complexidade de seu funcionamento, 24

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