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@ cienciaavida A RENATO JANINE RIBEIRO ete MU uc Ontos eer ea oe esa Reson ac Cece ae oc Oe A PLATAO ae. band a 7 leas Umareleitura.dd Sy Wilicekel SSN 7laat- golle "i feelatelieCite cls A QUEBRA NO PROCESSO DE CRIAGAO Alegitimidade da produc¢ao artistica como, fruto de uma xe lel Bails REFLEXAO E PRATICA: A construgdo do pensamento no Brasi A espetacular histéria das origens dos Dez Mandamentos Ricamente ilustrada, esta obra apresenta a epopeia de Moisés e do povo hebreu no caminho da Terra Prometida a ee Py eek con aoa TEXTO ORIGINAL Acesse www.escala.com.br e aproveite! EpioRy FF /editoraescalaoficial éscdla EDITORIAL Olho por olho... midia tem um grande trabalho com a exposicao de casos de crimes de violentos de diversas natu- rezas. O Ibobe de programas de trégicos, com casos de_assassinalos, roubos, estupros crescem ¢ deixam a populagio perplexa e em pinico, numa expécie cde masoquismo inconsciente, Por outro lado, esses progra- ‘mas estimulam em quem assiste a uma raiva e sentimentoy de vinganca, O que coloca em pauta mais uma vez a pena de morte, tao invocada para casos violentos pela popula- (@o geral, que tende a vociferar por uma vinganca cega e, muitas vezes, inconsequente. Mas o questionamento &: serd que a morte do agressor apaga o crime original? Dentre outras, essa é uma questo levantada pelo artigo de capa dessa edicio. Um assunto que merece ser sempre revisto, dscutido e refletido & exaustao. ‘A pena de morte para crimes civis foi aplicada pela ltima vez no Brasil em 1876 e nao é utilzada oficialmente desde a Proclamacdo da Repablica (1889), mas a nossa Constituicao Federal ainda prevé esse tipo de unico em caso de crimes cometidos em tempos de guerra, O inciso 47 do artigo quinto da Constituigéo diz que “nio havers ppenas de morte, salvo em caso de guerra declarada’” Por outto lado, a pena de morte nao instituciona- lizada & aplicada todos os dias no Brasil contra, prin- ipalmente, jovens negros e pobres das periferias de grandes centros urbanos. Esses niimeros tém base no Mapa da Violéncia, realizado desde 1998 pelo socislo- 0 Julio Jacobo Waiselfisz a partir de dados oficiais do Sistema de Informacoes de Mortalidade do Ministério da Satide: O dltimo Mapa é de 2014 e contabiliza 05 homicidios de 2012: cerca de 30 mil jovens de 15 a (sera: tpn datas gplisDATASUSndex ptr O2058V0)= rsa ars robin eesmfeniht0) 29 anos so assassinados por ano no Brasil, e 77% sao rnegros (soma de pretos e pardos)? ‘A pena de morte, seja ela institucionalizada ou nao, consiste em uma politica piblica destrutiva dissonante dos valores universalmente aceitos. Promove uma respos- ta simplista em relacdo a problemas humanos complexos acaba por evitar que sejam tomadas medidas eficazes contra a criminalidade. Boa leitura e reflexao a todos. Paula Felix Palma refer: pln Bs com portgeesfbras 6461295 wum:portalcienciaevda.com.br + Filosofia citacntsin = 3 SUMARIO ENTREVISTA 5 Rogério Seas vera sobre 0 vazio ético cada vez mais presente na sociedade em que vivemos. Comenta ainda sobre as contribuic6es de Hannah Arendt, Michel Foucault € Hans Jonas para 0 cotidiano da nossa existencia CAPA Qrn de morte: uma forma de punigso arbitréria que viola o direito / a vida ou uma medida eficaz contra a criminalidade? FILOSOFIA DA MENTE D 2 Futurologia do presente: muitas das previséies do ut6pico Admiravel mundo rnovo de Aldous Huxley estao se concretizando PARAREFLETIR oy As filésofo francés Francis Wolff falou a revista FILOSOFIA sobre a amizade, tema da conferéncia de abertura do evento Ciclo ‘Mutacoes 2016: Entre Dois Mundos ~ 30 Anos de Experiéncia do Pensamento CINEMA 32 ane ela eee Ga enc ane Aquarius sob perspectiva da filosofia de Deleuze e 0 conceito de “devir” 2 ESTETICA 52 eae limitrofe € fissura como condigao \4@ | fundamental para a elaboragao do pensamento € para a criacéo artistica sone UE NS M ti SOCIEDADE 6: ) resec di sofa. eee organizacional: 0 papel do lider no universo corporativo analisado a partir de uma releitura do Mito da Caverna de Platéo erica 7 ) joralismo impresso e televisivo e sua tendéncia atual depreciativa de criminalizacao dos agentes que constituem © ensino pablico no Ps FILOSOFIA CLINICA 7 Z { O que vivencia um terapeuta ao entrar ‘em contato com uma pessoa pode determinar 05 caminhos da clinica, ainda que nao necessariamente, pois muitas estradas sao construidas na prépria caminhada MESOLOGIA 76' lg codeternaie eve otlogia etnologia abre novos e inesperados problemas, problemas estes rigorosamente filosdticos OLHO GREGO narrativa, embora no sejam sindnimos, so métodos similares utilizados para analisar e compreender © mundo e as relagies entre os individuos L ENTREVISTA Rogério Seixas Valores eticos em crise Se hd critica da auséncia de conduta ética por parte de nossos governantes, todos deveriamos fazer uma analise mais ampla da caréncia ética nas outras dimensées sociais Por Fabio Antonio Gabriel ogério Luis da Rocha Seixas € professor da pés-graduacao lato senso em Filosofia da Universidade de Barra Mansa (UBM). Doutor em Filosofia pelo PPGF/UFR), mestre em Filosofia pela Universidade Esta- dual do Rio de Janeiro (UER)) e bacharel em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFR). Suas principais contribuigdes so nas Areas da Filo- sofia Politica, da Etica, da Filosofia Contemporanea, da Filosofia da Educagio e da Filosofia Brasileira afro- -amerindia, £ pesquisador no Grupo Bildung do Insti- tuto Federal do Parand-IFPR (CNPq) e no Grupo de Filosofia Africana em Perspectiva da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRR}) (FAPER). Nesta entrevista, Seixas afirma que a crise dos valores éticos nao € algo recente. Mas é sentida prin- cipalmente quando estamos em meio aos efeitos de crises econémicas e politicas, que por sua vez influen- ciam nas relagbes humanas, pois tem-se a sensacio de uma perda cada vez mais intensa de paradigmas éticos para as nossas condutas. Nos defrontamos, ndo necessariamente com uma “nadificacao da ética’, mas experimentamos um “vacuo ético” que, para- doxalmente, apresenta um aspecto bastante positive por aventar a necessidade de uma transformacdo e ampliagdo do campo de atuagao da ética, forcan- do-a a efetivar uma revisio, inclusive de aspectos inéditos, tais como a responsabilidade para com as consequéncias de nossa préxis técnica para as geragGes futuras e para com todo o fendmeno da Vida, proposta pela reflexao ética de Hans Jonas, por exemplo. Porém, deve haver uma reflexdo, segun- do Seixas, e partir do ponto de que nao podemos contar com a efetividade de propostas éticas univer- sais ou globais, como a do imperativo categ6rico de Immanuel Kant, ou mesmo de uma moral discutsi- va de Jurgen Habermas. As cosmovisbes de mundo necessitam que sejam tracadas avaliagdes mais, perspectivistas dos principios éticos, esclarecen- do que ndo se deve confundir este perspectivismo ético com relativismo moral. Fibio Antonio Gabriel & dautorando em Fducaco pela UEPG, Tabioantonigabie com vm portaienciaevid.combr « filosofia cassia 5 ENTREVISTA Rogério Seixas © papel desienado pelo fésofo francés Michel Foucault para a Filosofia e sua relagdo com a fica © com a Politica demonstia uma attude flssfica camo forma de resistanca a0 exercicio do poder 6 + Filosofia citnciatvida FILOSOFIA * Poderia nos falar sobre as contri- buigées de Hannah Arendt e Michel Foucault para se pensar as questdes éticas na atualidade? Serxas * Sem duvida alguma, Arendt e Foucault sdo essenciais para se pensar a atualidade e, mais especificamente, a conflituosa relacdo entre Filo- sofia e Politica. Hannah Arendt testemunhou e refletiu sobre o evento do totalitarismo a corro- sio do sentido da politica que abre espaco para a violencia e eventual destruicao da esfera publica A fildsofa alema advertiu que, mesmo no interior das democracias liberais, as praticas ¢ posturas totalitérias ainda se mantiveram presentes. Fato que no podemos deixar de negar em nossa reali- dade politica. Michel Foucault, por sua vez, rejeitando a interpretacdo tradicional da Filosofia Politica ¢ Juridica, desenvolveu uma reflexao referente a0 que ele denomina de “relacdes de poder”, desta- cando as praticas, técnicas e estratégias entre praticas de liberdade e de poder. Destaco que a problematizagao da governamentalidade 6 atua- lissima, Essa nogao de governamentalidade deter- mina uma forte énfase no eixo politico de como governar os outros, assim como para 0 eixo ético da arte de governar a si mesmo. Cada um ao seu modo, estes dois pensadores, nos permitem diagnosticar uma atualidade pol tica convulsionada pelas crises nas democracias representativas, os extremismos e a ameaca cada vez mais intensa da perda de espacos de liberda- de em nome de maiores e intensos aparatos de seguranca e controle. FILOSOFIA * Poderia nos falar sobre a temati ca de seu doutorado cujo titulo foi: A questo do governo: qual a relacdo entre éthos critico éthos parthesiastico no dltimo Foucault. Quais sao as principais ideias trabalhadas por voce ao longo da sua tese? Stxas * Em minha tese, a tematica que norteou a pesquisa concentrou-se nas seguintes questie: qual a relagio entre o éthos critico com 0 éthos parrhesiéstico? Qual a importancia desta relagao como expresso das praticas de liberdade e como formas de resisténcia, a0 governamento abusive? Estas questdes fizeram-me perceber que ha um Opn jeto ético proposto por Jonas visa ajustar eticarmen te a praxis tecnocientifica humana, que segundo este autor, encontra- se cada vez mais dominada por uma hybris do sut sentido de acao politica que passa pela recusa de como somos governados e a ultrapassar 0 que nos 6 determinado a ser, instituindo novas formas de subjetividade. Abordamos, de forma mais direta e incisiva, aspectos da sequéncia cronol6gica dos anos 1970 para o inicio da década de 1980 das reflexdes de Foucault. Retomamos as suas teari- zagbes envolvendo a atticulacao entre o sujeito, o poder e a verdade, com o objetivo de demonstrar a problematizacao da racionalidade politica atual, a partir da andlise sobre a governamentalidade e sua relagao com o poder pastoral. Esta nogao, segundo a nossa perspectiva na época da tese e assim permanece até o momento, determina tanto uma forte énfase no eixo politico de como gover- nar 0s outros, quanto também para o que se pode denominar como 0 eixo ético da arte de governar a si mesmo. Nessa oportunidade, visei destacar como 0 que denominei de “praticas de liberda- de’, tanto a atitude critica, enquanto o exercfcio do éthos critico enquanto contra conduta, como as praticas do cuidado de si conectadas & parrhe- sia, comuns & moral da Antiguidade grega e greco -romana que suscitam a nocao de governo de si. Acentuamos a importancia da parrhesia como essencial, enquanto pratica de liberdade politi- ca, principalmente a partir da leitura da parrhe- sia cinica, com relagao ao afrontamento 20 poder politico e aos regimes de verdade que sustentam suas praticas de governamento. Tal temética nos aparenta intensamente atual em nossa realidade politica nacional e mundial FILOSOFIA + Como vocé entende a atual crise 6tica que vivenciamos na politica na sociedade em que estamos inseridos? Seixas * Quanto a situacao politica atual, obser- vamos um fato grave em nossas instituicbes: sua utilizagao por parte dos dois lados antagonicos, com 0 objetivo Gnico manter 0 poder 2 todo 0 custo € toma-lo a todo o custo. Um lado venceu, 0 técnic mas nao 6 reconhecida como legitima a sua vit6- ria, Sendo inclusive classificada como um golpe. Seja como for: golpe ou impeachment, nesta situa- 40, 0 quadro de conilito e instabilidade s6 agrava a crise que nos rodeia, sendo muito mais politi- cae ética do que necessariamente econdmica, embora esteja inserida neste contexto, Claro que 05 discursos e clichés contra a corrupgio, representaram 0 arsenal utilizado pelos que se opunham ao governo e ao mesmo tempo, 0 governo também se colocou como defensor da honestidade e transparéncia, dizendo-se assim como vitima de uma conspiracdo. E a relagio ética e politica nesta situacdo? Infelizmente no podemos negar os discursos vazios que apenas incitam os antagonistas. FILOSOFIA * Poderia nos falar sobre a Bioética € suas contribuigées para se pensar os limites éticos que a pesquisa cientifica deve respeitar? ‘w.prialcencaevida.combr + filosofa cinctvida* 7 ENTREVISTA Rogério Seixas Inicialmente, a Bioétca foi descrita como uma “ponte” entre 0 conhecimento biotecnocientifico © cultura humanisica-moral Seixas * Com a Bioética busca-se propor uma ética aplicada que possa responder de forma rpida, eficiente e urgente as questdes inéditas € concretas, inseridas pelo enorme avanco do potencial tecnocientifico humano. Outro ponto importante a ser destacado é que a Bioética, enquanto surge e se configura como um paradig- ma moral de carter inédito, também reintroduz 05 prinefpios éticos da tradigéo para assim repen- silos e redirecioné-los, para que possam ser aplicados da forma mais satisfatéria possfvel aos novos problemas. Partindo desta condicao, nao devemos encarar 0 paradigma da Bioética como uma nova ética, mas como um ramo recente da ética aplicada que itiliza os principios da “velha ética’, Também merece destaque o carater multi- isciplinar e interdisciplinar da reflexao bioética, agregando diferentes campos de conhecimento que estejam envolvidos, na resolugao das ques- tes éticas, ligadas as aplicacdes de todo 0 nosso potencial biotecnocientifico. FILOSOFIA * Poderia nos falar sobre as conti Ges de Hans Jonas para se pensar um pri ético valido para as sociedades tecnocientificas? 8 + Filosofia citncatvids Seas * Hans Jonas, sem davida alguma, foi o primeiro filésofo que buscou formular um prin- cipio ético ou, como é mais conhecido, o princi- pio responsabilidade, voltado nao apenas para a dimensdo das relacdes humanas, mas agora para a relagao entre © homem e a natureza. Significa dizer que com Jonas, o Ser Natureza tornou-se passivel de preocupacao e acdo moral. O que se descreve como Natureza, ganha a dimensao de ser objeto de responsabilidade moral. H4 uma tentativa de retirar um excessivo antropocentris- mo da praxis ética, voltando-a também para os seres nao humanos. Ressaltemos que este projeto ético proposto por Jonas visa ajustar eticamente a praxis tecnocienti- fica humana, que segundo este autor, encontra-se cada vez mais dominada por uma hybris do sucesso técnico, isto é, uma atitude de desmedida quanto as consequéncias do uso de nosso potencial tecno- cientifico, acarretando assim uma desresponsabili- zaco da geracio humana atual perante a natureza. Em nossa atualidade, nao podlemos dizer que esta preocupacao seja sem sentido. Dessa forma, outro fator inédito presente na reflexao ética de Jonas ito na compree ) aprofundam 1x0! atuagao de ar, direcionada a uma educagao emnancipatoria, é fundamental nas dis ereflexdes relativas a formagao de docentes 6 a preocupacdo com os efeitos nocivos da préxis tecnocientifica na atualidade, _configurando-se como real ameaca as condigGes de existéncia das geracées futuras. As nossas acbes irresponsiveis que agridem 0 meio ambiente, termo que prefiro ao de Natureza, pois este me parece guardar apenas um resquicio de romantismo e saudosismo, corrobora a importancia da reflexao de Hans Jonas com a nossa desmesura com relagao a utilizagao dos recursos ambientais. Esta desmesura pode ser_ilustrada recentemente no assim denominado “acidente de Mariana’. Notemos que uma atitude comum de desresponsabilizagao, tanto por parte da empre- sa envolvida quanto pelos 6rgdos governamentais, em todas as dimensdes de poder, demonstrou que ‘outs interesses séo colocados em primeiro plano, ‘em detrimento da manutencao e cuidado com a vida em seu todo. Temas nao s6 uma questo ética ‘como também politica com referéncia ao cuidar da preservacao e conservagao das condigées de existéncia de todo o “ser vida hoje” no planeta, para a possibilidade de continuidade do “ser vida que vird amanha”. A preocupacio ética e politica de Hans Jonas quanto manutengao das condigoes mais vitals para as geracGes futuras pode ser bem retratada nessa situacdo. Posso ressaltar também que a contribuigao da reflexao ética de Jonas ainda se demonstra essencial para as questées tratadas no campo da Biostica. FILOSOFIA + Poderia nos falar sobre as contri- buicdes de Michel Foucault para diversos cam- pos do saber incluindo 0 campo filoséfico? Seas * A contribuicgo de Foucault é muito ampla, nao se limitando ao campo da Filosofia. Por sinal, Foucault filosofa a partir de areas diversas: Histéria, Literatura, Psicandlise, Medicina, Educacao. Possivel mente, 0 uso do pensamento foucaultiano é utilizado de forma exagerada, mas penso que o autor previu tal situacdo. Esta amplitude pode caracterizar a sua reflexaa filosdfica como nao sistematica. E importante CCimperativa ce, propose por Hans Jonas identifica se como um principio ético subjacent a eilacao tecnolegjca que se forma www.portalcienciaevida.com.br + Filasofia ciénciasvida * 9 ENTREVISTA Rogério Seixas destacar que, diferentemente de Friedrich Nietzsche, por exemplo, seus escritos no ganham a forma de aforismos. Para Foucault, o exercicio da Filosofia € a forma mais rigorose para se deixar de pensar, e por consequéncia, agir sempre do mesmo modo. Deve- se mudar 0 modo de pensar, ¢ logo, 0 proprio estilo de existéncia. Dessa forma, Foucault desenvolve uma historia critica do pensamento, voltada igualmente para uma atividade de problematizagao da subjetiva- Go, naquilo em que um sujeito se constitui, tanto em relacao a si mesmo quanto em sua relacao ao mundo. Podemos perceber que esse exercicio da Filosofia, enquanto uma critica do pensamento, apresenta 0 contorno de uma atividade de diagnéstico critico, quando se trata de problematizar 0 que nés somos na atualidade, que experimentamos ou © que esta- mos fazendo de nés mesmos hoje. Nao se trata de uma problematizacao epistemoldgica. A atividade de diagnosticar em que nos constituimos no momento presente traz 0 desafio de deixarmos de ser 0 que somos para buscar criar outros modos de ser. Essa 10 + Filosofia ciéncinswids problematizagao envolve o ultrapassamento dos limi tes aos quals nos encontramos assujeitados e que hos tomnam presos as identidadles que nos mantém menores. Tal atividade de diagnéstico da atualidade, partindo da perspectiva foucaultiana, ganha contor 10s éticos e politicos importantes. FILOSOFIA + Como vocé percebe a atual con- juntura politica sobre a valorizacao dos profes- sores? E muito deficitéria ainda a politica de formacdo de docentes no Pais? ‘Seas * Infelizmente, a desvalorizacao intensificou- -se e nao sei se poderemos aguardar algum tipo de melhora. O investimento na Educacao ja € precirio e, Por sua vez, investir no docente também se precari- zou. O grande deficit que inegavelmente se estabele- ce 56 causa mais desvalorizagao, e por consequénci acarreta em uma formagio docente muito falha. A identificagéo do professor com 0 conhecimento & basica, fundamental, pois facilita esta mesma identi cacao também do aluno, com o processo de produ- cio do conhecimento, possibilitando assim a sua autonomia, a sua independéncia no contexto de suas experiéncias formativas, constituindo-se em uma real formagao cultural, que sé tem condicées de existir com individuos auténomos e criticos. O aprofundamento na compreensao dos nexos da atuaco de ensinar, direcionada a uma educa- ¢40 emancipatéria 6 fundamental nas discussdes € reflexes relativas a formacao de docentes, pois, pelo que vem se delineando atualmente, o docente, entre outras coisas, se converteu em um. mero reprodutor e vendedor de um conhecimento deficiente. Além disso, em muitas situages, a atua- ao docente encontra-se apartada de qualquer atitude de fundo critico e facilitadora de autono- mia dos discentes e até sufocada em seu exercicio. FILOSOFIA + Em sua opiniao, o processo de im- peachment da presidente Dilma Rousseff serve para 0 crescimento democratic no Pais ou é um retrocesso das instituigdes democraticas? Sars * Creio que devemos inicialmente esclarecer que a democracia em geral encontra-se em crise nna maiotia das sociedades. Nossa democracia, mais especificamente, ainda é bastante complexa, pois experimentamos priticas que usurpam 0 espaco Enquanto pratica educativa, a Filosofia se torna formativa, na met dida em que ela permite ao jovem dar-s e conta do lugar que ocupa‘na realidade historica do seu mundo piblico para a satisfacdo de interesses privados, As instituigGes demonstram deficiéncias preocupantes para a ampliacao e consolidacao do ambiente demo- cratico. Carecemos, neste momento, de credibilidade dos nossos ditos representantes. Na atual situacio de ‘crise’, a tese do impeachment ou do golpe expres- sam 0 antigo antagonismo entre os movimentos de esquerda, que buscam se reestruturar, ea direita, que busca se consolidar cada vez mais no poder. O mais Brave é o desinteresse e o crescimento do precon- ceito contra a politica, pois se confunde a acao poltica com a politica partidéria, Esta € importante para 0 processo democritico, mas infelizmente nos reduzimos a entregar as decis6es de interesse piblico 205 politicos profissionais e aos partidos. E sem dGvi- da, a queda de Dilma, as acusacbes de corupcao, comum a praticamente todos os partidos, compro- mete a acto de cidadania, essencial para a demo- cracia participativa e fortalecimento da democracia representativa. O senso comum compreende politica como 0 émbito da falsidadle, mentira, da corrupcao e do abuso de poder. A desvaloizagdo do professor diminuiy 0 interes Retrocessos se fazem e fardo presentes. Afinal, temos uma fragéo parlamentar mais conservadora apoiada por aqueles que querem se manter no poder. Principalmente quanto aos direitos conqui tados pelas ditas minorias. Talvez, 0 que possa ser apontado como positivo € a necessidade urgente de fazer politica mais livre clas insttuig6es, Mais independente dos partidos ou, pelo menos, cobrando-se mais dos parlamentares. Os movimentos sociais serao obrigados a inventar novas estratégias de luta e criar espacos de liberdade para serem ouvidos e realizarem seus objetivos. Esta situ- ago no é inédita e pode se intensificar. Enfim, fica dificil uma resposta definitiva. Temos que aguardar 0 que esté por vi, mas nao passivamente, esim, na acao. FILOSOFIA + Como filésofo e pesquisador da Bioética, como voce avalia a questi do abor- to na sociedade em que vivemos? A legalizacao do aborto seria importante para evitar tantos atendimentos clandestinos que levam a morte de intimeras mulheres? ww:portalcienciaevida.com.br + FlOSOfIa ciéncatvida © 11 ___ENTREVISTA Rogério Seixas (0 desafo pedagogic da Filosofia & demonstrar aos jovensdicentes 0 sentido de sun existncia concreta a sala ce aula Sexss + © aborto configura-se como uma das ques- ‘t6es cruciais para a reflexao bioética. Esta tematica envolve principios importantissimos para a discuss40. ética. A vulnerabilidade do feto, por exemplo, toma-se uma tese defendida pelos que sao contratios & prética do aborto, Temos também a vulnerabilidade do corpo feminino, que devido as restricbes referentes ao aborto, muitas vezes sao submetidas a intervengbes crimino- as, iresponsdveis e inabeis, trazendo riscos de morte. Afalta de formagao educacicnal em nosso Pais influen- da nesta questo do aborto, interpretado como uma pratica anticoncepcional ou de controle de natalidade, FILOSOFIA © A Filosofia retornou ao ensino mé- dio no curticulo brasileiro. Como vocé avalia a relevancia da Filosofia para os adolescentes? Vocé acredita que as futuras geracées terao no- vos modos de enxergar a realidade a partir da experiéncia de ter aulas de Filosofia? Serus + £ deste modo que. Filosofia se torna formativa, ra medida em que ela permite ao jovem dar-se conta do lugar que ocupa na realidad historica do seu mundo. ‘Como elese situa em sua real existencia, Cabe a Filosofia, pois, audar o discente a compreender o sentido de sua propria experiéncia existencial, o situando em relacio 0 sentido da existéncia humana em geal 12 + Filosofia citnciaavids Se pensarmos mais em uma filosofia enquanto um ato de filosofar e nao como mais uma disciplina, que apenas acumula conhecimento, o papel peda- .g6gico da Filosofia passa 2 ser o de subsidiar o jovem discente a ler 0 seu mundo € ase ler em como se encontra nele. Desta forma, 0 ato de filosofar em sala de aula visa estimular a reflexao do aluno sobre sua. prdpria existéncia, trabalhando conjuntamente com outras disciplinas. A postura interdisciplinar é essencial para articular o dilogo e os diversos olha- res sobre @ realidade. Deve-se pressupor sempre que a Filosofia tenha no curriculo o status de disci- plina auténoma. Nao se colocando como “dona da verdade", isolando-se de outras disciplinas ou “instrumento de doutrinagao” que néo contribui de modo algum para a formacao critica e auténo- ma dos discentes. Nestas condig6es, relacionando as dimens6es mais abstratas da Filosofia, necessarias & compreenso do sentido de sua existéncia, com (8 aspectos empiricos de sua insergao na realidade, levantados pelas Ciéncias, essa forma de trabalho pode dlespertar maior atencao por parte dos adoles- Centes, facilitando sua compreensao dos problemas abordados. Talvez assim seja possivel a formagio de individuos com novos olhares, mais amplos e criti cos sobre a realidad te A MORTE como punigao A aplicagao da pena de morte, quando pune o homicidio, comete 0 erro de tentar estabelecer justiga mediante o grave crime cometido pelo acusado, como se a execucao dessa pessoa anulasse o seu erro original ‘smeios de comunicagio de massa noticiam, a cada dia, a ocorréncia de crimes terriveis que sio capares de chocar mes mo as consciéncias mais embotadas, que de alguma forma jé naturalizam em suas vidas a experiéncia do horror. A impres sdo generalizada & que se-vive em uma selva de pedra desprovida de leis, de or- dem, de seguranga, de qualquer possibil- dade de estabelecimento de um modo de vida tranguilo, Asameacasespreitam por todos 0s lados. Nunca taivez a filosoia politica de Thomas Hobbes (1588-1679) tenha se apresentado tao atual. Dentro dessa conjuntura social su- focante hiperbolizada pelos grandes aparatos midiaticos, um dos temas mais recorrentes em nossa agenda social con- siste nos projetos de aplicagio da pena de ‘morte para a puniglo de crimes hedion- dos (dentro de um amplo espectro de possibilidades, pois conforme a interpre- tagio muitos crimes podem receber tal imputaga0). Seus defensores, inflamados Por uma agitacdo nervosa, suspendem ‘momentaneamente a razio critica em prol do afloramento das disposicées mais rudimentares de sua conscifnci ator ‘mentada, no compreendendo que, se porventura a pena capital fosse efetivada em nosso Pais, apenas os sujetos despro- vidos de condigdes financeiras mais ra zodveis para contratar um étimo aparato juridico sofferiam na carne a punigio extrema, Talvez apenas a idiossincratica China aplique punigoes capitals para os cidadaos de tal quilate que atentem eco: nomicamente contra a coisa publica. Podemos afirmar que a pena de morte nada mais é do que o assassinato legalizado pelo Estado, cumprindo nao apenas 0 propésito de punir exemplar- ‘mente o criminoso para que outrem nao cometa ages similares ¢ vivencie assim © mesmo destino fatal, mantendo-se en- ‘Ao 0 tecido social coeso sob um rigido controle moral, mas também atuando como uma vinganga judicidria do poder Renato Noes: Birteycourr Friosorta PE. DPGF UFR). Proresson DA FACC-UFR). Eat: sirtexcoueT@® ‘wow:portalcienciaevida.com.br * Filosofia cierciasvida * 15, CAPA A cruiicacao, pena capital muito utitaada ‘durante 0 Império Romana, € um poceraso simbolo de terror e intimidacso 16 + Filosofia cisnsssite QUEM POSSUI CAPACIDADE PARA DECIDIR SOBRE A VIDA E A MORTE DO OUTRO? EM CASO DE DUVIDA, £ SENSATO QUE SE MANTENHA UMA POSIGAO MODERADA ACERCA DOS JULGAMENTOS estabelecido contra a pessoa. Os otimistas defendem que grande parte das penas ca- pitais atualmente aplicadas so assépticas € distintas dos horriveis suplicios infa- ‘antes de tempos passados;contudo, toda execugdo é uma violacao da dignidade hu- ‘mana, ndo importa sob qual método. Em alguns paises, a punigo capital se converte em um negécio altamente lucrative, Traficantes de Srgios pros- peram consideravelmente em negécios escusos com governos criminosos que realizam e39es empreendimentos clan. destinos, Hé casos controversos de paises ‘que apresentam elevado indice de execu- ‘Goes anuais para fomentar esse negdcio altamente lucrativo para esses governos corruptos, movimentando uma sérdida rede empresarial que prospera mediante a anulagdo existéncia de uma massa de miserdveis que nao devem mais viver em prol da salvacéo das vidas de uma elite capaz de pagar altas taxas pela aquisi¢ao de um coragio, de um figado, de um rim. A despeito do arrogante sentimento de ‘onipoténcia de muitos magistrados, 0 po- der judiciario brasileiro, além de plutocra- tico e burocritico, éfalho, nao apenas por ‘questdes morais, mas também por fatores epistemologicos, em decorréncia da incer~ teza latente e dos erros que acometem os juizos humanos, obscurecéndo a precisio das suas decisdes. Em caso de diivida, & sempre mais sensato que se mantenha uma posigio moderada acerca dos jul- gamentos, Por conseguinte, sera que um ser humano possti capacidades razoaveis para decidir sobre a vida e a morte de ou- tra pessoa? Levando em consideracao essa ‘questio, o jurista Pietro Verri (1728-1797) apontara que “mais valeria perdoar vinte cculpados do que sacrificar um inocente”» Ao longo da histéria da humanidade, diversas pessoas inocentes foram executa- das a partir de indicios imprecisos de cul- pabilidade, muitas vezes sendo reconheci- das como inocentes pelos todo-poderosos magistrados, que mantiveram a sentenga capital como forma de se proclamar a pre- tensamente infalivel autoridade absolu- ta do sistema penal. Quantos homicidios travestidos como execugies legais praticadas pelo Estado detentor do ‘monopélio.legtimo da violencia (¢ da morte) no ocorreram contra [pessoas inocentes, sem que houvesse ‘em tempo habil revisio de pena, de modo a se evitar a efetivacao dessa barbirie legalizada contra a vida do condenado? O renomadissimo juris- ta Cesare Beccaria (1738-1794) consi- derava absurdo que “as leis, que si0 a expressio da vontade publica, que abominam e punem o homicidio, 0 cometam elas mesmas e que, para dissuadir 0 cidadéo do assassinio, ordenem um assassinio puiblico™. aplicar essa pena apenas em decor- réncia de uma sentenca transitada «em julgado e proferida por tribunal competente”, PARTE III, ARTIGO 6,parégrafo 4: “Qualquer condena: do A morte teré o direito de pedir indulto ou comutagao da pena. A anistia, 0 indulto ou a comutacio da pena poderd ser concedido em todos os casos.” Em nome de sua pretensa soberania constitucional, ‘© governo indonésio cometew cti- mes contra a humanidade, deven- do, portanto, ser responsabilizado juridicamente poriisso. A entdo pre- sidenta Dima Rousseff, nas pretro- A exccuo a guafoirmt uiada ms ‘A caca as bruxas ndo ocorren—tempas da nqucseso gativas legais de seu cargo, fez 0 seu apenas em regides contagiadas pela papel diplomatico de interceder pela onda histérica de luta contra.o Dia Dilma Rousseffsolicitar comutagio _conservagio da vida de cidadaos bo, mas também se manifesta nade pena ao presidente indonésio _brasileiros submetidos a um pro- conjuntura social da reptiblicalaica, __Joko Widodo em prol de Marco Ar- . _cesso juridico prenhe de, violagies laica apenas na teoria, pois na priti- _ chere de Rodrigo Gularte,condena-_juridicas, tal como diversos outros caimpera 0 espirito supersticioso e dos a pena capital por narcotréfico _governantes de grandes naydes 0 reativo dohomem deressentimento em 2015, evidenciando’ mais uma __fizeram em relagao a seus cidadios que deseja impor sua visio de mun- vez sua tacanha falta de conheci- que sofriam de mesma sorte. do doentia sobre todos os divergen- mento juridico acerca do Direito In- Na pior das hipéteses, somente tes, Para essa massa raivosa, a pas- _ternacional, mais precisamente, do umanacio que possuisse uma cons. sagem dos seus desejos homicidas _contetido Pacto Internacional sobre _tituigo impecivel e cuja casta po- para o ato 36 € bloqueada por uma _Direitos Civis e Politicos, adotado _itica apresentasse plena probidade ténue linha divis6ria, sejao medo pela XXI_Sessio. da Assembleia~ _administrativa na gestio piblica po- da punigdo legal ou talvez 0 temor —_-Geral das Nagies Unidas, em 16 de _deria talvez conquistarlegitimidade perante @ punigo divina, Contu- _ dezembro de 1966, ratificado inclusi-__ moral se porventuraaplicasse a pena do, esses “cidadios de bem” nao vepelo governo indonésiodeentéo. _capital aos seus condenados, 0 que sio verdadeiros homens religiosos, Vejamos os itens que nos inte- no € 0 caso da Indonésia. Um pais mas pessoas pobres de expirito que ressam em nossa argumentagio: que calcou sua histéria moderna chafurdam afetivamente na miséria__ PARTE Ill, ARTIGO 6, parigra- através de governos tirdnicos e que interior e querem colorir 0 mundo fo 2: “Nos paises em que a pena _exerceu politicas imperialistas sobre com suas tintas tenebrosas, para as- de morte no tenha sido abolida, seus vizinhos geogrificos néo possui sim esconder suas escérias. esta poderé ser imposta apenas qualquer legitimidade moral. para nos casos de crimes mais graves, _aplicar a pena capital sob quaisquer EXECUCAO NA em conformidade com legislacio _circunstancias. Cabe lembrar que INDONESIA vigente na época em que o crime entre 1975 1999, durante o contro- ‘A opiniéo pablica brasileira, foi cometido e que nao esteja em verso regime do ditador Suharto, a contologicamente reacionéria, tripu- _conflito comaas disposices do pre-__Indonésia espoliou politicamente 0 diou 0 fato de a presidenta deposta sente Pacto, nem comaConvengZo Timor-Leste, massacrando milhares sobra a Prevencio ea Punicio do de vidas em um regime de terror, > BECCARIA 205.100 Crime de Genocidio. Poder-se-4 destruigao da qual até hoje esse pais semepordcencanddacomir « filosofia stds 17 CAPA Muras das volentasagies centres urbanes S80 tpos no DEACORBO ‘com o argumento de Italo Mereu (1921-2009), admitira pena de morte significa tomar o lugar de Deus, ¢ antecipar tum jufzo de condenacdo que no se sabe se Serd:confirmado ois conta ovens oriundos das peniferias de grandes titcionalzados de pena de morte no se recuperou, sem receber qualquer tipo de indenizacao significativa para a reconsteugao nacional. Quando ocorreu tsunami de 2004, que atrasou o territério indonésio, sous governantes nao hesitaram em solicitar e aceitar ajuda humanitéria internacional, e a comogio mundial pelo esastre fez que a opinia6 publica se esque- ‘esse desse passado sombrio indonésio, O espitito de solidariedade da sociedade mi- diatizada escamoteia os delitos politicos de outrora. As leis trabalhistas indonésias se submetem piamente ao crivo neoliberal e permite que seus trabalhadores sejam explorados até iltima gota de sangue por multinacionais consagradas pelo mercado consumidor, que recebe 0 produto final adornado por seus encantos fetichistas que escondem sua trajetoria brutal. No mo- dus operandi juridico indonésio, estupros sio crimes que recebem mais condes- cendéncia legal do que os delitos do nar- cotrifico, circunstancia que evidencia os preconceitos patriarcalistas do pais e suas incoeréncias morais. INEFICACIA DA PENA CAPITAL A aplicagao da pena de morte suprime toda possibilidade de aprimoramento mo- ral do condenado mediante arrependimen- to dos seus delitos, interrompendo brus- camente esse process de transformagéo pessoal. Nos paises democriticos, em que ainda se aplica a pena capital, 0 prisioneiro pode esperar por décadas para a efetivagio da execugio, que perde assim todo sentido ‘moral, pois,apdstantos anos, 0 feito docri- ‘me, mesmo que talvez ainda ocasione pro- blemas para o tecido social atingido e para s familiares da vitima, jé sofreu desgastes, em sua intensidade. E dificil esquecermos um delito terrivel, masa tnica possibilidade de nos libertarmos dos effitos corrosivos do ressentimento através da concessio ‘magninima do perdio ao criminoso que vivencia essa mudanga radical no seu modo de ser. Se porventura 0 condenado viven- cia um processo positivo de transformacio interior, no faz mais qualquer sentido exe- cuté-lo, mesmo que nao seja a fungio do Estado moralizar o cidadio, mas apenas Pena de morte ndo institucionalizada Usualmente se repete o discurso de que jf temos uma pena de-morte informal em nossa estrutora social, intrin- secamente necr6fila. As forcas policiais, axiologicamente associadas a0 espirito fascista, matam diariamente pes- soas desprovidas de dignidade humana em decorréncia de sua condigio social e fazem desse exercicio de bruta- lidade uma ceriménia de autoglorificacio dos seus atos Ivide os brasbes de armas dessas corporagbes), encon- 18 + Filosofia cienciosvias trando na massa social o apoto moral para essas morte. Fficigneia policial nia significa aumento na indice de letalidade contra os marginals sociais, mas sim a capa- cidade de prevenir os delitos associada a uma politica piblica efetivamente democrética que garanta a eman Cipacao social dos sujeitos alheados da cidadania plena dando-hes empoderamento e autonomia na construgio das suas historias de vida. impedi-lo de atentar novamente contra a cordem piblica, Nessa logica, a execugio suméria de um condenado &, horresco re- {ferens, absurdamente mais cocrente, pois 0 poder executor nio visa obter qualquer re- ‘paracio moral da pessoa, apenas lhe exercer ‘peso da justica-vinganga oficial do sistema jridico pelos danos cometidos contra o Es- tado ¢ seus cidadios, Em casos que a gravi- dace do crime seja tao intensa e chocante, a prisio perpétua seria a melhor alternativa para manter 0 condenado isolado do com ‘vo social, e se porventura houvesse efetiva mudanga de comportamento do crimino- 0, 0 mesmo, apés um periodo extenso de confinamento penitencigtio, poderia vir a ser analisado por uma comissio de diversos profissionaisem prol de sua possvel liberta- «fo, sendo assim reintegrado ao seio social de modo a desenvolver novamente sua ca- pacidade humana de relacionamento com as demais pessoas. Um Estado realmente forte nio neces ta apelar para aaplicagio de pena de morte em determinados crimes, ¢ se porventura recorre a tal expediente, é porque ele nao encontra capacidade suficiente para esta- belecer os preceitos civilizacionais em sua jurisdigio territorial € promover a qua- lidade de vida plena para todos os se membros, evidenciando sua decadéncia politica, pois seu poder se consolida me- diante 0s corpos profanados dos mortos assassinados por suas mios frias. Friedrich Nietasche (1844-1900) apresenta uma va- liosa reflexao sobre esse problema: “O que faz com que toda execugio nos ofenda mais que um assassinato? E a frieva dos jnizes, a penosa preparacio, a percepgio de que um homem él utilizado como um = meio para amedrontar outros, pois a culpa nio € punida, mesmo que houvesse uma; cesta se acha nos educadores, nos pais, no ambiente, em nds ~ nfo no assassino ~ re- firo-meas circunstincias determinantes” NIETZSCHE, 2008, 9.63 Em um sistema juridico regido pelo espirito burocritico, esperarmos pelo per- dio & uma disposigdo talvez utdpica, mas 1 cleméneia ¢ a maior prova de poder de ‘um Estado, representando a sua capaci dade de, mesmo nas ocasides em que suas instituigbes sio atingidas pela ago da vio- Jencia individual, permanecer incélume, Conforme 0 argumento de Jean-Marie Guyau (1854-1888), “O que esté feito, est feito; © mal moral permanece, apesar de todo mal fisico que se pode acrescentar a dle, [..] é irracional buscar a punigio ou a compensagao do crime”. A estupidez reaciondria que clama pela aplicagao da pena de morteemnome - so florescimento? Como fazer para se tomar um ser hu- ‘mano completo?”. Nossas virtudes, nessa problemtica, chamamsse coragem, resolucio, moderacao, dominio de si, prudéncia etc. Elas sao centradas em nds mesmos, sAo autocentradas. O que permanece problemiitico, na ética antiga, € a relago ao outro, Nessa ética antiga, 0 que ven 28 + Filosofia ciencistvide a sera moral no sentido em que entendemos hoje, a rela- ‘gao com 08 outros? Ela se acha concentrada em duas vie tudes particulares essenciais, as quats Aristoteles reserva suas explanagies mais longas ¢ elaboradas: a justica (vo V da Etica a Nicdmaco) € a amizade (livros Vill e IX). Sa0 Virtudes no sentido de que nao se poderia ser um homem completo sem ser equitaivo e sem amigos. FILOSOFIA: O que define esse valor na Filosofia antiga? Wolff: Alguns tragos. Trata-se de uma relacio eletiva. A amizade 6 uma relacao singular escolhida. Mas ela se dis- tingue também das relagbes singulares nao escolhidas. A vida social nos obriga a ter relacbes ocasionais com mui- tas pessoas que nao escolhemos, Pata garantit a paz so- cial, convém que essas relacdes nao sejam ruins. Ha casos: também em que somos forcados a ter relagdes regulares com as mesmas pessoas, que tampouico escolhemos: 0 colega de classe, 0 colega de trabalho, vizinho do mes mo andar ete. A fim de garantir a serenidade da coletivi- dade, da empresa ou da vizinhanga, convém que essas relagdes sejam boas. Mas isso no € amizade. O amigo nao é qualquer um, eu 0 escolhi, nds nos escolhemos. E uma ‘outra metade”, ou “outro eu”, Iss0 nao significa fem absoluto alguém que se assemelha a mim, como se acredita com frequéncia. © amigo 6, antes, aquele que sme ajuda a mostrar-me como sou. Sem amigo a quem contar o que sinto. Sem amigo, eu nao poderia saber luci- damente 0 que penso, nao poderia me distanciar do que {faco, nem compreender plenamente o que vivo. O amigo me permite nao ficar imediatamente ‘colado” em meus atos, mas tomar consciéncia de por que ajo, ao tentar explicar-the. Vivo uma segunda vez 05 melhores momen- tos de minha vida contando-os a ele, desembaraco-me dos maus pensamentos ou dle minhas piores lembrancas confiando-as a ele. A palavra ao amigo so as mediacSes reflexivas entre mim e mim mesmo. O amigo &, pots, um espelho pelo qual compreendo 0 que sou a me ver sob seu olhar. Tal & portanto, o trago essencial da amizade: € uma relacdo tinica e escolhida com um outro eu-mesmo. FILOSOFIA: De Aristételes a Epicuro, a relacdo en- tre amizade e felicidade foi amplamente debatida. Em sua opinido, por que existe essa relacio intrinse- ca entre de € felicidade? E correto afirmar que uma depende da outra? “Wolff: £ dbvio que a amizace € um componente essencial da felicidade, Sem amigos, um homem seria o mais infeliz dos homens. Portanto, © homem feliz tem amigos e, $e pos- sivel, numerosos € fiis. No entanto, essa ideia contraia a representacao que os gregos faziam da felicidacle mais ele- vada. £ onde encontramos um paradoxo, ou melhor, urna série de contradigBes engendradas pelas relacdes estranhas da amizade ¢ da felicidade. Ser perfeitamente feliz, para os Antigos e, particularmente, para Aristételes, & ser completo, E ser como um sibio que nao tem necessidade de nada, Qu melhor, & ser como um deus que nao precisa de ninguém, Logo, se um homem fosse realmente feliz, ele ndo teria ne- cessidacle de nada nem de ninguém, portanto nao teria ami- gs, se bastaria. Que insatisfacao o anima a nao ficar sozi- nha? Se um homem fosse feliz, perfeitamente feliz, ele seria autossuficinte, completo, sem depender dos outros. Essa é a definicio necessiria do homer fez. Eis, portanto, 0 pa- radoxo: por um lado, ndo se pode ser feliz sem amigos; por outro, um homem perfeitamente feliz nao precisa de ami- 0s. Ha. um meio evidente de sai da difculdade. Poderia se dizer que o homem feliz tem amigos ¢ & precisamente por isso que ele 6 feliz; homem rio pode ser feliz sem amigos, ‘como tampouico poderia sé-lo se fosse doente ou miserdvel Isso prova que a amizade é um componente da felicidade, rnem mais nem menos que a satide ou a riqueza. © homem feliz se sente bem, vive na abastanga € tem muitos amigos. ‘S20 05 chamacos “bens exteriores”indispensévels & felicida- de. O homem feliz 6 completado, justamente, por seus ami- 08. Assim, a coniradicdo se resoheria, pois 0 homem feliz tem amigos, mas ndo & porque & feliz que ele tem amigos, mas, sim, porque tem amigos que ele 6 feliz. Acontece que a primeira contradicdo engendra outra. Se o amigo 6, como a Fiqueza ou a sate, um dos “bens exteriores" necessétios ‘a0 homem feliz, ndo sera nossos amigos apenas seres que nos so sites? FILOSOFIA: Voce € um ardoroso defensor da democracia. © cenario atual indica que algumas amizades estao ter- ‘minando em funcio de pensamentos politicos diferentes. Esse fato 6 um indicador da fragilidade democratica tual? Wolf: Nao ha humanidade sem uma comunidade de tro ‘cas reciprocas, que pode ser de diferentes espécies. Hé, primeiro, a realidade da comunidade politica (a Cidade) ~que deveria ligara “fratemidade dos concidadaos” e que cleveria ser ligada peta ideia de justica. A justica € a vitude 5 propria & comunidade politica. Exste a justica “comutati- va", que restabelece a ordem rompida por quem infinge a les civ, e a justica “dstrbutva’, que comparthe os beens sociais entre os membros da comunidad. Iso no significa que toda comunidade politica & justa! Sinica apenas que a jstica & 0 bem pr6prio que toda comunida- + de politica deveria visar. a virtude poltica por exceléncia, ‘Mas essa. comunidade est encerrada entre outras dus: ‘uma comunidade maximal e uma comunidade minima ‘A maximal 6 a humanidade mesma, e deveria ser ligada pela idea universalizavel segundo a qual todo ser hummano ‘deve poder ser, para qualquer outro ser hurmano, um se- melhante. Ou seja, a “caridade” ou a *simpatia universal” Isso no significa que todos os homens se sintam ligados entre si por esse amor ao proximo. Significa que ele define © bem propriamente moral, aquele que deverfamos visar em todas as nossas relacdes humanas. € a virtude ética por exceléncia. A comunidade politica também é limitada por tuma comunidacle minimal, a que redne dois seres que se cescolheram réciprocamente, sem desejo e sem paixio. E a amizade. Ela € a relacéo eletiva entre aqules que so um para outro, nio concidadaos na Cidade idealmente usta, nem semelhantes na comunidad humana, mas um “outro eu" que permite a cada um ser plenamente ele mesmo. Ea virtude que lhe corresponde a lealdade. Das tr relagies sociais propriamente humanas, a amizade € a menor e a mais perfeita. © que fragiiza a comunidade poltica é que a justiga permanece um ideal sempre visado e raramente atingido, porcue nao ha realdadle potica qe subsista sem a forca de um poder. Ora, 0 poder polttico & por hipStese, nao reciproco e, portanto, diiclmente estd a servigo da justica. © poder é, com frequéncia, corrompidlo pela busca de proveitos pessouis, ¢, quandlo hé preocupaggo com 0 ‘outro, ndo é por justca, mas por amizade, a dos “peque- nos arranjos entre amigos’, a chamada “corrupcio" ‘werwportaicienciaevida.com.br + Filosofia cienciasvida + 29 ' PARA REFLETIR Para uma eficiéncia no comunicar-se (Instituto Palas Athena tem uma grande tradigéo em cursos que apr moram os relacionamentos ou au- xiliam na resolucao de conflitos por meio da promocio do autoconheci- mento, Um desses cursos, que mere: cem 0 nosso destaque aqui, versou sobre a necessidade do dislogo eo que ha por trés de uma comunicagéo néo eficiente, usando como base os estudos da Comunicacéo. Nao-Vio- lenta (CNV), de Marshall Rosenberg. Intiulado Desvendando conftes, ue Tu, um didlogo a quatro vores, © curso foi ministrado pela terapeu- ta familiar Maria Femanda Bemardes Dias que mostrou que observacio, sentimento, necessidade e pedido sio preceitos que podem levar a uma co- municagdo eficiente: “Para que pos- samos nos aproximar e observar esses momentos & preciso que estejamos atentos a cada passo do processo. A partir do cultivo de uma escuta cuida- dosa e ativa, paderemos perceber as vazes que se fazem presentes. Vozes ue expressam raiva; vazes que em desespero gritam, vozes que julgam, vozes que silenciam neglgencianco Pedidos. Vozes, todas elas, que bus- ‘cam ser ouvidas, mas se perdem em tum emaranhado sem sentido". Ela abordou também que confli- to € qualquer encontro com 0 outro, ‘mas que podemos tirar coisas muito Positivas deles, mesmo que sejam com 0 extremamente diferente. Mas que sentimentos como itrtacées, a: va ou depressio so representacées daquilo que nao trabalhamos dentro Conversando com escritores da gente “Esses sentimentos vao ten- do falas prOprias por nao estamos nos atendendo, cuidando de nossas feridas’. Entdo, para que a CNV seja efetiva, ela precisa ser feita dentro de nds mesmes primei. Veja outros cursos sobre © tema em httpiivwwepalasathena.org br. Um dos principais escritores brasileiros, Lu's Fernando Verissimo, foi o protagonista da abertura da série Encontro com os Escritores, que teve a promogio da Universidade do Livro, de So Paulo. © evento pode ser traduzido como um ciclo de conversas com autores renomados nos mais diversos segmentos, como romnancis- tas, poetas, quadrinistas, bidgrafos e divulgadores cientificos. © cencontro com Verisimo foi realizado sob a forma de um bate-papo informal, com 0 comando da jor nalista mineira Paula. A proposta do projeto € que seja explorada a historia criativa e editorial do convidado, abordando questdes como sua formacao como leitor, inluéncias intelectuais presentes em sua trajetéria, seu processo de ctiagao e escrita, sua avaliaco do panorama editorial e liveiro contemporineo, suas sugestbes nessa area, além de outros temas de acordo com a propria dinamica da apresentacio. 30 + Filosofia ciénciaavida Filme Noir VIDEO ‘Algumas colunas ats, falei sobre trés cescolas_cinematogréficas: Construtivismo russo, Surealismo francés € 0 Impressio~ nigmo, também fancés. Estas trés escolas surgem no inicio do cinema, ele ainda com poucn mais de 20 anos de exsténcia, For volta do inicio dos anos de 1940 e meades dos anos de 1950, surge o que foi cdencminadlo fime Noir (preto, em francés ‘Como destaca Prcila Salomio: “Foram os franceses os seuscriadore, endo os america ros. Coa ops guerra, Pivados de cinema hollywoodlano, os fancesesvirame-se dian- te de uma nova leva de filmes, que inca Reliuia macabra (John Huston, 1941), Laura (Cito Preminger, 1944}, Até a vita, queria (Ehward Dmytryk, 1943), Pacto de sangue Gilly Wilder, 1944) € Un retrato de mulher (Fritz Lang, 1944) € logo depois outra,com- posta por Alma tortura (Frank Tule, 1942), ‘Assassnos (Robert Siodmak, 1946), A dama do lago (Robert Montgomery, 1947), Gilda (Chatles Vidor, 1946) e A beira do abimo (Howard Hawks, 1946. Entdo, em 1946, 0 ‘too Nino Frank cunhou © rétulo noir, em alusB0. Série Noire —colegioecitada naFran- ‘@, contendo obras da literatura hard-boiled (ieratura poicial americana sobre detetives durdes, base para a maioria desses filmes” (Os chamados filmes. Noir tém como caracteristcas, segundo a Enciclopéelia de Ginema. Katz: “filmes Hollywoocianos da dlécadla de 40 e comego da de 50, nos quais cram retratados o submundlrescuro e som- brio do crime e da corrupcao. Filmes cujos herds, bem como os viles, eram cinicos, desiudidos e, ftequentemenie, soltrios e insegures, fortemente ligados ao passado indiferentes quanto ao futuro, Em termos de estilo € técnica, o filme noir caracterstica- ‘mente abusa de cenas noturas finteenas © externas), com censtios que sugerem reais ‘mo e com uma iluminagdo que enfatiza as sombras €acentua 0 lima de fatalidade’ Um flime que iré marcar essa esco- la é Reiguia Macabra (The Maltese Fal- con), da obra de Dashiell Hammett £ situado na cidade de Sao Francisco, nna. Calfémia. Sam Space (Hum- phrey Bogart) & um detetive parti- cular contratado por Brigid O'Shaughnessy (Mary Astor), uma mulher misteriosa e fatal, ‘que quer localizar sua irma desaparecida, CO que parece ser um caso de fécilsolucao ccomeca a tomar rumos inesperados. Spa~ de ervia seu sécio Miles Archer Jerome Cowan) para fazer as investigaciese, no cia seguinte, Archer aparece morto. Spade se ¥é envolto em um turbilhao de violéncia, ppromovida por ladies e assassinos que es- tao em busca de uma estatueta de falcao ue esconde, sob a camada de uma cober- tura metalica a figura da Ave de Ouro, cia- da pelos Cavaleiros Templatios DICA: As tr@s imagens foram desenha- das por Fernando Piva para ilustrar as colunas referentes as escolas cinemato- graficas. O gabinete do Doutor Caligari (Impressionismo alemao), Sergei Eisens- tein (diretor responsavel pelo Constru- tivismo russo no cinemal; Releitura da obra de Alexander Rodchenko (Constru- tivismo russo) € John Huston (diretor de Reliquia Macabra) Mincio Jos ANDRADE DA Sutva (MJ.AS) & Masta EM FILOSOFIA PELA FRY, TESCREVE SOBRE Tul: original The Maltese Falcon Diregdo: John Huston Ano de produgéo: 1941 (EUA) Duragéo: 101 min, -MARCIOJOSEFC@GMAIL.COM vm portakienciaevidecombr = Filosofia dindaavia * 31 | | | | | | | | } CINEMA por victor costa ene Corpo-Cidade © Festival de Cannes des- te ano, parte do elenco de Aquarius, contando Sonia Braga e 0 proprio Kleber Mendonca, de- cidiram fazer um protesto contra © processo de impeachment pelo qual ppassou a presidenta Dilma Rousseff Cannes, evidentemente, afetou os nimos ideol6gicos, © filme entrou ‘no imbrégio politico, Pessoas contra © goveo provisério © 0 processo de impeachment alinharam-se ao fi- ‘me; pessoas que queriam ver Dilma destituida, no se alinharam 20 filme. Depois veio a polémica classifcacao etéria dada pelo Minstério da Justica: ‘Aquarius impréprio para menorés de 18 anos. A produgao do filme consi- derou a classfcacao excessiva(cass- ficagdo para maiorescificuita bastante a distribuico de um filme no merca- do), Um dia antes de estrear nas salas do Brasil, uma nova classificacao eté- ‘a foi dada ao flme: 16 anos. Aqua ‘ius estreou um dla depois do impea- cchment de Diima e, em algumas salas, pelo menes aqui na cidade do Rio de Janeiro, no final das sessbes se ouvia ‘em unissono: Fora Temes, Fora Temer. 32 + Filosofia cenciaavide Houve ainda a controvérsia sobre um integrante da comissio do Ministério dda Cultura encarregado de escolher 0 BLANCHOT, 205, p.53 modo que a personagem kafkiana & objeto de admiragao por parte do povo dos camundongos ~ os aquais sentem precisar de sua voz ppara se reunir, mas ndo compreen- dem o que em tal voz é tdo especial, nem a0 menos se € especial, posto ‘que o canto mais parece um gemi- do ~ também Blanchot é objeto de admiragao e parece servir de inspi- racdoaa diversosartistas e pensado- res franceses da segunda metade do século XX. Podemos observar o abalo que a leitura sedutora blan- chotiana de autores como Friedri- ch Holderlin (1770-1843), Marques de Sade (1740-1814), Conde de Lautréamont (1846-1870), Friedri- ch Nietzsche (1844-1900) e Artaud provoca em pensadores como Michel Foucault (1926-1984), cujo livro A histéria da loucura, nas iiltimas paginas, evoca exata- mente 0s mesmos autores para ilustrar 0 pensamento do Fora e o espaco rarefeito no qual o sujei- to esté ausente e que caracteriza tanto o espaco literario, quanto 0 Iugar da loucura (0s poemas de Antonin Artaud esto dretamente ligados 3 eoasa de seu pensamento 20 que ele charma de impossible de pensar ww.portalcienciaevida.com.br + Filosofia ciéncintsids * 55. ESTETICA Ss SS ARTAUD NAO renega seus poemas, nem mesmo os mancos, porque eles sao as cages que conduzem aquele ponto no qual pensar nao poder mais pensar; isso atravessa 0 corpo e causa um buraco feito bala de grosso calibre 56 + Filosofia cénciaavida AESCRITA NAO E A EXPRESSAO DE UM EU SOLIDO, BLINDADO, MAS DE UMA SUBJETIVIDADE TRINCADA, POROSA, PELA QUAL A MORTE, EXPRESSAO MAIOR DA AUSENCIA DE EU, ENCONTRA PASSAGEM E, se encontramos ressonancias. do pensamento blanchotiano em um teérico como Foucault, que dizer entio do seguin- te comentério da escritora Marguerite Duras, a respeito de aescrita ser este possi- vel que brota do impossivel, este processo pelo qual, por meio do vazio, da auséncia de ser ou do desmoronamento, brota a palavra,o outro de todos os mundost “Bscrever. Nao posso. ‘Ninguém pode, E preciso dizer: nio se pode e se escreve™. Da mesma forma que, para Artaud, 0 pensamento brota da impossibilidade de pensar, para Marguerite Duras, aescrita se faza partir daimpossibilidade de escrever; do puro desespero de olhar a pagina e ter deenfrentaro caos; apagando, aos poucos, palavras de ordem, lugares-comuns, restos de dlassicos... Em Légica do sentido, Deleuze reto- ma o tema da fissura em dois momen- tos. Primeiro, na vigésima segunda série Porcelana e vulcdo, na qual trata da fissura_ nos. escritores Malcolm Lowry ¢, principalmente, Scott Fitz gerald; em seguida, no apéndice, onde aborda 0 tema da fissura na obra de Emile Zola (1840-1902). FITZGERALD E A FENDA Na década de 1930 do século passa- do, @ situagio do escritor norte-ameri- cano F, Scott Fitzgerald era cadtica. Sua esposa Zelda estava internada em uma “DURAS 1994, p.47 instituigéo psiquidtrica em virtude de intensos e continuos surtos esquizofie cos. Fitzgerald, por seu turno, afundava em problemas financeiros ¢ se entregava sem amarras ao alcoolismo, Uma déca- da antes, 0 jovem Fitzgerald despontava como um escritor de primeiro escalio, porta-vor de uma geragdo;a pena de uma era de excessos:a era do jazz. E nesta situacao de profundo desespe- +o que Fitzgerald enfrenta os tltimos anos de sua vida. E € também sob o signo de tal desespero que ele escreve seu melhor trabalho, 0 Crack-up, no qual esté enta- hada célebre e trégica sentenca que fascinou tanto a Deleuze quanto a Emil Gioran (1911-1995): “E claro que toda vida € um processo de demolicéo. O que mais chamou a atengio de Deleuze foi a firme- 7a afitmativa impressa a frase por meio do vocdbulo “claro”. A sentenga de Fitzgerald nao tem um tom melancélico, muito menos ressentido, antes opera uma constatacao:"E claro que toda vida éum processo de demo- ligdo.” H4 aqui um sim, sim trigico, nietas- chiano, que nao se lamenta, nfo nega, mas caminha decidido para a demolicéo, aman- do seu destino. Segundo Deleuze: “Poucas frases ressoam tanto em nossa cabega com este ruido de martelo. Poucos textos tém este cariter irremediével de obra-prima deimpor silencio, de forgar uma aquiescén- cia atemorizada, tanto como a curta novela de Fitzgerald. Toda a obra de Fitzgerald & © desenvolvimento tinico desta. proposi- fo ¢, sobretudo, de seu ‘obviamente™. O obviamente e 0 € claro si0 0 mesmo, mas = FITZGERALD, 207, p.72 “ DELEUZE,2013,9.157, a palavra passa por um processo de ‘mutagio durante as tradugbes. O of course, de Fitzgerald passa para bi entendu em frane’s, dai a0 portu- _gués como obviamente. Fitzgerald, € claro, sabe do que esta falando. Ele sentiu na vida, no corpo, 0 acontecimento da fissura, Ele ouviu 0 ruido, 0 crack que o partiu feito porcela- za. Curiosamente, a partir deste desmoronamento que 0 autor mais importante da era do jazz produz sua obra mais importan- te, Por um lado, escreve 0 estudo autobiografico intitulado Crack -up; por outro, redige aquela que alguns criticos consideram sua obra ficcional mais bem acabada: Suave é a noite. possivel, por meio da fissu- ra, brota do impossivel. Volta a ressoar em nossos ouvidos, com uma insisténcia de martelo, as estacas de Marguerite Duras: “Bscrever. Nio posso. Ninguém pode. E preciso dizer, nao se pode e se escreve™ Voltemos a Fitzgerald. ano de 1935 talvez tenha sido o pior de toda a vida do autor de O gran- de Gatsby. Ele se sentia solitirio, Goente, bebia demais,tinha despe- sas e dividas imensas, era ator- ‘mentado pela insénia e 0 pior: nao conseguia mais escrever. Como afirmou em Crack-up, “a cartola do magico estava vazia" Segundo Sheilah_ Graham (1904-1988), amante de Fitzge- rald, nos iltimos tempos, Arnold Gringrich (1903-1976), redator chefe da revista Esquire, para a *DURAS, 1994 9.47 A escita& um fo que atravessa a vida © vida 6 um fo que aravessa aescrita qual Fitzgerald escrevia, contou a ela, certa vez, como os textos que compdem 0 Crack-up foram escri- tos: [Arnold disse a ele] “Scott, ew preciso receber_ um manuscrito seu, pois nossos auditores estao no meu pé, querendo saber © motivo pelo qual eu 0 pago. Mesmo que vocé faga como Gertrude Stein, mesmo que voc® preencha uma dizia de paginas dizendo ‘Eu no posso escrever, endo posso escrever, eu no posso escrever, por umas quinhentas vezes, pelo ‘menos, eu poderei dizer que em tal data um manuscrito chegou de F Scott Fitzgerald. Eu terei algu- ‘ma coisa em meus arquivos para provar que vocé esté trabalhando para nés. Caso contrério, terci de parar de enviar dinheiro a voce” Fitzgerald prometeu que tentaria, “Tudo bem,” Ele disse. “Eu vou escre- ver alguma coisa, Eu posso escrever sobre 0 fato de nao poder escrever” © resultado foram os esbogos do Crack up e, mais tarde, a série Tarde com um autor, que Arnold publicou nna Esquire como ficgio™. Como podemos observar, pres- sionado por seu editor,a quem havia * GRAHAM FRANK 1980. p.157 ‘muito tempo no enviava texto algum, Scott finalmente decide escrever sobre 0 fato de nao poder escrever. Uma das caracteristicas a fissura € que ela se instaura a partir de um vazio, de um desmo- ronamento; de um tal esgotamento que tornaoo pensamento impossivel. Noentanto, éeste mesmo desmoro- amento, este esgotamento fisico € espiritual, que torna possivel a escri- ta, aquela escrita que nao é a expres- sfo de um ego, mas da passagem por um lugar sombrio. DELEUZE E A FISSURA Em Deleuze, a fissura se faz acontecimento. Isto quer dizer, em Ligica do sentido, que ela afssura, tem dois polos: um ligado & super ficle metafisica, outro ligado & profundidade dos corpos; um liga- do ao virtual, outro ligado ao atuals tum ligado ao tempo designado ion, outro ligado a chronos. Assim, a fissura tem sempre um duplo aspecto. Por um lado é silenci sa, sub-repticia, sorrateira; faz seu trabalho na penumbra, tem a ver ‘com a superficie € os incorporais. Por outro lado, a fissura é rufdo, & 0 ‘rack, tema ver com o acidente, com estado de coisas, com a profundi- dade dos corpos. E interessante notar que ocorre em Légica do sentido uma inversa0 em relacio a Diferenca e repeticio. Grosso modo, em Diferenga e repe- tiga, a profundidade esta ligada a0 virtual, enquanto que a superficie esta ligada ao atual. Em Légica do sentido, ocorre o contrério, a super- ficie conecta-se a0 virtual, as incor porais; enquanto que profundidede ‘conecta-se ao atual, a0s corpos. Em Crack-up, Fitzgerald também nos fala de dois tipos de golpes que worn: portalcienciaevidacombr + Filosofia incase * 57 ESTETICA UMA DAS CARACTERISTICAS DA FISSURA E QUE ELA SE INSTAURA A PARTIR DE UM VAZIO, DE UM DESMORONAMENTO, DE UM TAL ESGOTAMENTO QUE TORNA O PENSAMENTO PRATICAMENTE IMPOSSIVEL ‘nos quebram. Um de origem interna © ‘outro de origem externa. Por um lado ha “0s golpes que realizam o lado dramético dessa obra de decomposicio, os grandes golpes repentinos que surgem ow pare- ccem surgir do exterior, aqueles dos quais xnos Jembtamos € aos quais culpamos por tudo e que, em momentos de fraqueza, contamas a nossos amigos, no mostram seu feito logo de cara”. Por outro lado: “Ha uma outra espécie de golpe que vem de dentro, que ndo sentimos até ser tarde demais para fazer qualquer coisa, até perce- ‘bermos de alguma forma decisiva que, em alguns aspectos, nunca mais seremos os ‘mesmos”, Segundo Fitzgerald, hé uma diferenga de natureza entre os dois tipos de rruptura. A primeira espécie ‘parece aconte- cer rapidamente; a segunda acontece quase sem notarmos, mas é com certeza percebi- dade sibito”", Fitzgerald parece distinguir dois tipos de fissura, Deleuze, entretanto, enxer- {8 08 dois processos como dois lados da ‘mesma fissura. Nem interior, nem exte- rion, mas incorporal ¢ corporal: “Quando + FITZGERALD, 207, p.72 Ider dom, 9.72 "Ede, 9.72 Fitzgerald ou Lowry falam desta fissu- 1a metafisica incorporal, quando nesta encontram, a0 mesmo tempo, o lugar e 0 obsticulo de seu pensamento, a fonte ¢ 0 estancamento de seu pensamento, 0 senti- do e 0 ndo-sentido, é com todos os litros de élcool que eles beberam, que efetuaram a fissura no corpo. Quando Artaud fala da erosio do pensamento como de alguma coisa essencial ¢ de acidental ao mesmo tempo, radical impoténcia ¢, entretanto, autopoder, jd 0 faz partindo do fundo da esquizofrenia. Cada qual arriscava algu- ‘ma coisa, foi o mais longe neste risco e tira daf um direito imprescritivel”™. O artista € um ser disposto a arriscar tudo, 0 juizo, a satide, a juventude, a vida Deve ser por isso que nem todo mundo & artista, embora todos gostem da festa ¢ da grana, Poucos estéo dispostos a correr tamanho risco, No entanto, sem este risco nao ha Arte, mas show de celebridade, revista de fofoca, prémios literdrios, gale- tias de arte, a indistria do livro. E contra tudo isto, contra esta imitagio de ferida ¢ fissura que Artaud se volta por meio de seu Teatro da Crueldade, Como afirmou = DELEUZE, 2011p. 160, Toda escrita 6 porcaria “Todos aqueles que saem de um lugar qualquer, para ten- tar explicar seja lé 0 que thes passa no pensamento, 530 porcos. Toda gente lterdria é porca, especialmente essa do ‘nosso tempo. Tados 0s que possuem pontos de referéncia ‘no espirito, quero dizer, de um lado certo da cabeca, so- bre lugares bem demarcadios do cérebro; todos aqueles que ‘so mestres da lingua; todos aqueles para quem as palavras 58 + Filosofia ciéncissvida téim sentido; todos aqueles para quem existem elevacdes da alma e cortentes do pensamento, aqueles que si0 0 espitito dda sua época e que nomeiam essas correntes do pensamen- tos; penso nas suas mesquinhas atividades precisas e nesse ranger de autématos vomitado para todos os lados por seu espirito; — $40 porcos." "ARTAUD, 2014, p209 Deleuze acertadamente, cada qual foi o mais Jonge no risco € acabou portirar dai um direito imprescrti- velo direito de dizer. No texto Zola e a fissura, Deleu- ze diz claramente que a fissura é a prépria morte. E, assim, como bem descreveu Blanchot, a morte tem sempre um duplo aspecto, Por um lado, € a morte incorporal, aquela ‘que nos acompanha desde 0 nasci- mento € qual nunca chegamos, pois, uma ver. que ela se atualiza, 1nbs nao estamos. Por outro lado, & também a morte ligada aos corpos, a bala de revélver, uma veia que Deleuze responde que a fissura & qual se tem de passar, ela ndo & 36 estoura no cérebto, 0 escorregio _necessiriaporquenés nunca pensa-_destruigao, embora envalva 0 risco nna casca de banana ~ a cabeca no mos a nio ser por ela e sobre suas de morte, de loucura, de aniquila- meio fio, Segundo Deleuze: “O que _bordase“tudooquefoibomegran- go total. Como Lowry escreve em a fissura designa ou antes o que ela _de-na humanidade entra ¢ sai por A. sombra do vulcio: “E espanto- este vazio,éa morte, o instinto de _ela, em pessoas prontasa sedestruir so, quando se pense nisso, como o morte, Os instintos podem muito asi mesmae que éantesa morte do _espirito humano parece florescer, na bem falar, fazer barulho, agitar-se, que satide quesenos propdem”._sombra do matadouro” no podem é recobrir este silencio AA fissura constitui o perigo de Como entéo permitir que a mais profundo, nem esconder aqui- se espatifar, como Fitzgerald, ou de _criagdo, que algo de novo ¢ bom, lode quesaem eno qual entram de tornar-se_ completamente inerte, _surjasombra da morte? A sombra novo: 0 instinto de morte, que no. amorfo, feito 0 Nietzsche final. do. matadouro? De que maneira € um instinto entre outros, mas a__Deleuze afirma que a fissura é 0 _podemos ter contato com a fissu- fissura em pessoa, em torno da qual _préprioinstintode morte.Entretan- ra sem nos destruirmos totalmen- todos os instintos formigam”™, to, em toda filosofia deleuziana nfo te? De que modo podemos criar ‘Uma questao, que pode ser divi- _encontramos glorificagao do nillis- uma contra-efetuacao & fissura? dida em duas partes, coloca-se a mo, exaltago da morte pela morte. Como no nos aniquilarmos, mas partir de tal afirmagio: 1) Porque a Sea fissura se resumisse a um caso driblarmos a morte e criarmos em fissura é enti necesséria? Porque a de desmoronamento, no interes-. nds mesmos uma nova poténcia? satide nfo é 0 bastante? 2) Deleuze aria a Deleuze, como interessa a Como esta fissura, longe de signifi jamais fez apologia da morte pela Cioran, um pensador mais desespe-_car simplesmente a morte, pode ser morte, como entio ter contato com —_rado. A fissura é interessante porque _o inicio de uma outta coisa? a fissura sem, entretanto, falecer de permite pensar como uma impos- ‘A todas estas questies, Delen- fato? Seria possivel manter a insis- siblidade se tora possibilidade: ze ndo responde de forma petemp- téncia da fissura incorporal evitan- Fitzgerald escreve o Crack-upsobreo _toria, O filésofo nao dé conselhos, do, a0 mesmo tempo, encarné-lana __fato de ndo poder mais escrever. Ela, nem oferece_caminhos unicos, profuundidade do corpo? a fissura ¢0 meio pelo qual aaniqui- _ massugere prudéncia. Além disso, Quanto & primeira parte da lagio e o esgotamento se tornam deve haver um modo de chegar questio: por que a fssura é neces criaclo. A fissura é assim uma 0s mesmos efeitos que as drogas siriat Por que a satide nao basta? _exigéncia de transformaga0 pela ou 0 Aleool podem proporcionar © DELFUZE 2011. 336 dem. id 9.164 * LOWRY, 247.94 vw portalcenciaevidacombr + filosofla cénatvite» 59 ESTETICA or caminhos naturais. Foi o que © beatle George Harrison (1943- 2001), por exemplo, buscou na cultura oriental. Em Légica do sentido, tal busca érelacionada a uma esperanga e se coloca nos seguintes termos: “Nio podemos renunciar & esperanca de que os efeitos da droga ou do alcool (suas “revelagdes") poderso ser revividos e recuperados por si ‘mesmos na superficie do mundo, independentemente do uso das substncias, se as técnicas de alie- nnagdo social que o determinam sio convertidas em meios de explo- Tagio revoluciondrios. Burroughs escreve sobre este ponto estranhas paginas que dao testemunho desta ‘grande Saide, nossa maneira de ser piedosos: imaginai que tudo o que se pode atingir por vias quimicas é acessivel por outros caminhos... Metralhamento da superficie para ‘ransmutar 0 apunhalamento dos corpos, 6 psicodelia®, Buscar os efeitos sem 0 abuso das substincias. Poder embriagar- se com um copo de agua, com as cores do ctepiisculo, Embriagar- se de vinho, virtude ou poesia, mas ir até 0 fundo, correr 0 risco, experimentar: encontrar a terceira ‘margem de si mesmo. PARA ALEM DAS PALAVRAS Se neste trabalho nos propu- semos a abordar a obra de escrito- es € tedricos que, de certo modo, correram 0 iso € 0 risco de sua ‘escrita € porque percebemos que 0 ‘espeticulo, que sempre fez parte de tudo o que se refere arte, cada vez ganha mais relevancia, deixando o DELEUZE, 2011, pp. 164165 60 + Filosofia cienciasvida Deleuze afrma, indubitavelmente, que a fssua &0 proprio instmto de morte texto, a topologia, a arte, o 1 da passagem por um lugar perigoso, em segundo plano. Se escrevemos tum livro e nas dao dinheiro por isto, 4 bom, todos temos de sobreviver. ‘Agora, se escrevemos um livro para ganhat dinheito, isto 6 nefasto. E, quando abrimos 0s jonas ou revis- tas para ler alguma resenha, 0 que ‘vemos retratado € 0 pseudo-espeté- ceulo de uma vida pseudo-perigosa: do escritor que supostamente usava drogas, da autora que fazia progra- ‘mas, do rapaz que lavava pratos em Londres... E nada disso tem chei- 10 de sinceridade, nada disso tem cheiro de ferida: as palavras nio + sangram, € s6 entretenimento, O ue tentamos fazer foi resgatar vidas ‘eescritas pulsantes. Gente que escre ‘yeu com uma sinceridade absurda e que pagou um prego por irem até onde foram. Que pode escrever alguém que nem sequer chegow a viver? Que bebe café descafeinado? Que nunca indagou seu nome eter- no? Que nunca correu risco algum? Palavras, apenas, palavras pequenas € a Literatura esta sempre muito além das palavras. Um brinde a Fitz- gerald, Artaud, LowryeDuras. io. REFERENCIAS ARTALD, Antonin Linguagem e vida. So Paulo: Pespecva, 195, O teatro e seu dup. Sio aul Mx mona. 1987 BLANCHOT, Maurice. A conversa infrita. ‘ia Joso Moura J. So Pal: uta, 2010, Oltvto por vi. Trad, Leyla = Parone Mois. Sto Paul: Marine Fontes, 2005 DELEUZT, Giles Diferenga e repetiio, Td, Lule Orland e Roberto ‘Machada Sao Paulo: Graal, 1988, gia do sentido, rad i Reber Salinas Forte. So Paul Popova, 207, DDELEUCE, Gls PARNET, Clr. Didlogos. iad. fs Arajo Ribeiro Sh Palo: Ect, 1998, DELEUZE, Giles e GUATARR,, Félix Kalla: por ura iteratura menor Fad. Gina Viera da Sha. Belo Horizont: Fetra Auta, 2014 _. Mil Plats ~ volume 2. fa Ana Licia de Oliveira eLicia lau Leo. Sio Paul: Edivora 34, 20a, © ant-éipo: aptsmo.e esquzfrenia, Tad. ale BL. Ona Sto Paul: Etna 34,2011 DURAS, Manguerte,Escrever. rad, Rubens Figuored. Rio de Jini Rocco, 1994 © amante da China do Nore ad. Denise Rargé Bare, Rio de Jano: Nova Front, 2012, FITZGERALD, £$. Afternoon ofan ‘Author. London: The Badley Head, 1958, Tender isthe night. London engin, 1937 The Collected short Stories OFF. Scot Ftegrald. London: Penguin, 1906. Crackup. Tad. 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Robert Shelton teve acesso exclusivo aos familiares e amigos bem préximos de Dylan, algo que nenhum if NO DIRECTION HomE STON HOME t AVIDAEA MUSICA DE | _ BOB i > i. 5 > 1 i 0 5 g « p , yi My, Livro: No direction home - gene Avidia ea miisica de Bob Dylan NOBEL Namero de paginas: 788 ee Editora: Lafonte outro jornalista conseguiu. Finalmente, depois de 20 anos de muita pesquisa, No Direction Home foi publicado pela primeira vez em 1986 c aclamado como biografia essencial desse gé- nio de temperamento dificil, mas apaixonante. A editora Lafonte relanga essa biografia num momento em que Bob Dylan ganha o Prémio Nobel de Literatura 2016, “por ter criado uma nova expressio poética dentro da grande tradigio norte-americana da cangio”, segundo a secretiria permanente da Academia Sueca, responsivel pela premiacio do Nobel, Sara Danius, Se a Academia suxpreendeu a0 conceder 0 Prémio Nobel a um compositor, aqueles que conhecem a obra de Dylan sabem © quanto de poesia e literatura ela carrega. “O reconhecimento do Nobel & sua misica, entendida como um organismo vivo no qual as letras sio © corpo sobre 0 qual se apoia o resto, é portanto algo hist6rico”, escreveu Fer- nando Navarro, no E/ Pais. Desfrute desta biografia. “Ei, eu recusei todos os pedidos. E estou lhe dando todo o apoio. Eu estou confiando em vocé para trilhar este ca~ minko comigo.” Bob Dylan Avenda naslivrarias (i Saraiva Veja outras informagées no site: www.editoralafonte.com.br SOCIEDADE i FILOSOFIA organizacional O Mito da Caverna, apresentado como a representacao da teoria do conhecimento por meio da reminiscéncia, pode ser utilizado para compreender 0 mundo das organizagGes, com énfase na figura do lider famoso e reconhecido Mito da Caverna, do filosofo Platéo (428. 347 aC), representa, em finhas gerais, a libertagio do individuo das amar- zas que © prende em um mundo de sombras, um mundo que simplesmente representa a cOpia de um mundo ideal, repleto de formas perfeitas e ideais. ‘Nao deixando de lado a importincia filoséfica da alegoria da caverna, mas promovendo uma releitura da obra, no se pode dizer que ela represen- ta, no mundo das organizagées, uma realidade cada vez mais presente e real? Ao mesmo tempo que represen: ta, em nosso cotidiano, as mazelas da sociedade presa & ideologia imposta pelo poder do Estado, além da promo- 40 da alienagio, como uma realida- de comum e indissocidvel do homem ‘moderno? Acreditamos que sim! Com isso, sera apresentada uma releitura do Mito da Caverna dentro do viés das ‘organizagées, da gestéo corporativa, mostrando, de um lado, a figura do lider ¢, por outro, a representatividade daquele que nao se prende ao comum e alienante, mas, a0 contrario, busca sair da zona de conforto, aproveitan- do outras oportunidades € mostrando novas perspectivas, ‘A atualidade das corporacdes © organizagées representa a_antago- nia entre o mundo dos negécios € 0 mundo particular, do individuo. & comum observar a representatividade dos individuos presos a seus cargos fe fungdes dentro das empresas, sem, muitas vezes, sair de seu espago e gabi- nete de trabalho, executando sempre as ‘mesmas tarefas rotineiras, aguardando tempo que separa a entrada e a saida de um dia de trabalho. © Ambito empresarial permite uma reflexio sobre a posigéo dos indivi- duos dentro do fluxo do trabalho, a vwvnportalencaevidacom nr = filosof¥a cendasnda = 6 Marcio Tabsu Ginornt EDOUTOREM FILOSOFTA pea UFSCaR. Masta, EGRADUADO EM Fuxosomta vata UNESP, Docextez Dineron DAFaccinapene Trcwotoata, Ciencias: EEDUCAGAO (FATECE) AUTOR DA o8RA KANT E ‘ISTONARIO (IDELAS & Lernas, 2019. cinorn MrcgoManL.cont SOCIEDADE E POSSIVEL PROPOR UMA RELEITURA DO MITO DA CAVERNA DENTRO DO VIES DA GESTAO CORPORATIVA, MOSTRANDO A REPRESENTATIVIDADE DAQUELE QUE NAO SE PRENDE AO COMUM ‘operacionalidade do humano em meio de um dislogo que envolve vista de sua fancdo, e a espiri- ‘como personagens Glauco e Sécra- tualidade do individuo em vista tes, explicando como 0 mundo que de seus desejos ¢ paixdes, muitas conhecemos é dividido em sensivel vezes agrilhoado em seu mundo einteligivel, um mundo desombras de contemplagao sem participa- © um mundo ideal. Consonante a (0 efetiva do ser que pode e deve isso, no diflogo Fédon, Platao apre- refletir sobre o seu mundo, critica- senta a teoria da reminiscéncia, ‘mente e humanamente. ‘mostrando como se configura 0 A filosofia platOnica, em varios proceso do conhecimento. aspectos, se faz presente e atual, Dessa forma, a ideia platénica seja no viés pedagégico, psicold- afirma que 0 mundo inteligivel & ico, sociolégico, antropolégico, onde se encontram as ideias, as filoséfico ¢ também, no organi- _Federos enconterensinamentos da formas perfeitas ¢ imutaveis das zacional. B possivel interpretar (pitied aon inbiedegstio, cosas que conhecemos, €a alma, (© Mito da Caverna de diferentes que por simesma, sem estaratrela- formas, e aqui iremos dar énfase vida. Tss0 sem Ievar em conta 0 daao corpo, é perfeita; e © mundo a interpretagdo que considera a aspect alienante sobre o qual a sensivel, € 0 mundo de sombras, figura do lider dentro das empre-_sociedade é construfda, na qualo onde se encontram as cépias das sas como 0 individuo que nao individuo se perde em si mesmo, _ideias, a c6pia do mundo ideal. deve prendet-se ao seu ambito quando nao se reconhece como Nesse sentido, tudo 0 que operacional, mas sim aventurar- um ser, mas se identifica como _observamos em nosso mundo -se em outro mundo, ou ainda, mais uma pega que compée a sio cOpias das ideias existentes vislumbrar novas oportunidades, engrenagem do grande siste- no mundo ideal (inteligive). Mas saindo da zona de conforto assu- ma econémico e administrativo, como isso é possivel? Platao afir- ‘mindo outras responsabilidades que mantém a maquina do Esta. ma que a alma humana reside na condugao do grupo. do funcionando e garantindo a no mundo ideal e contempla as © grande problema ao inter- _ manutencio da ordem. formas perfeitas, e quando esta pretar 0 mundo moderno com alma passa a ocupar um corpo, vistas as organizacies esti no © MITO DA no mundo sensivel, esquece tudo fato de que o individuo vive em | CAVERNA: ASPECTOS 0 que um dia contemplou no uma sociedade organizada e geri FILOSOFICOS. ‘mundo ideal. Por sua ver, atrelada f da dentro do ambito ideol6gico, A filosofia platonica apresenta ao corpo, a alma passa a visuali- seja como imposic¢éo de ideias e uma teoria do conhecimento que —_zar 0 mundo pelos olhos do corpo conduta - imposicao dominada mostra, pela corrente de pensa- _¢, a0 observar um objeto, a alma pelo poder do Estado e da classe mento racionalista, a teoria do relembra a forma deste objeto, a dominante -, seja pelo conjunto conhecimento por meio da remi-__ideia, a forma perfeita que um dia deideias que um individuo decide _niscéncia, ou rememoragio. Na contemplou no mundo das ideias. porsi mesmo seguir e contemplar obra A Reptiblica, Livro VIL, Platao Com isso, 0 que a alma vé, no para a condugao de sua propria apresenta o Mito da Caverna, por mundo sensivel, 6 a copia imper- 64 + Filosofia citnciatvida 5 feita, a sombra da ideia perfeita, que esta ‘no mundo ideal. Por exemplo: uma cadei- ra que contemplamos em nosso mundo sensivel, nada mais é do que uma cépia da cadeira ideal, que est no mundo das ideias, A ideia de cadeira ou 0 concei- to de cadeira representa, de modo geral, tum objeto que possui assento, encosto € quatro “pernas’. Quando contempla- ‘mos este objeto no mundo sensivel, a nossa alma, que havi esquecido da ideia perfeita de cadeira, relembra o que um dia contemplou no mundo ideal, a alma teme mora 0 “conceito” de cadeira, e assim, ppassamos a ter o conhecimento de cadei- ra, Mas conhecemos somente a cépia. Uma vez livre do corpo, a alma volta 20 mundo ideal, ¢ mais uma vez, esquece tudo o que um dia contemplou no mundo sensivel, e passa novamente a contemplar ‘um mundo de formas perfeitas. [Até aqui, 0 mito aponta para a teoria do conhecimento de Platdo, a reminiscén- cia, a teoria da rememoragdo, por sua vez apresentada de forma bem fundamentada no dislogo Fédon. Mais do que isso, Plato mostra que o individuo, enquanto preso ao mundo sensivel, conhece somente a sombra do mundo ideal. Com a morte do corpo, a alma retorna ao mundo ideal, que habitava antes de se atrelar 20 corpo, com a negativa de que se esquece de todoo conhe- cimento falso adquirido enquanto estava presa a0 corpo. Tanto de um lado quanto de outro, a alma fica no esquecimento, € passa conhecer as formas perfitas (leias) quando habita 0 mundo inteligivel (idea), ou quando passa a rememorar as formas perfeitas, quando habita o mundo sensivel (como cépia do mundo ideal). No Mito da Caverna, Platio adverte para o fato de que, entre os individuos presos na caverna, hé um individuo que se solta, e sobe até a entrada, ¢ cego pela luz do mundo real, passa a contemplar a verdade das coisas, as formas perfeitas, ¢ compreende que, estando preso na caver na, por tanto tempo observou somente a sombra deste mundo. Vislmbrado pela descoberta, ele retorna & caverna ¢ conta a novidade para os demais que ali esto, porém, estes 0 tomam como um louco, descabido, relapso, que no consegue enxergar que 0 mundo da caverna é 0 ‘mundo verdadeiro, real O individuo que se solta contempla ‘© mundo ideal, No contexto platénico, esse individuo que se solta éa alma, que, presa ao grilhdes do corpo, nao consegue enxergar 0 mundo das formas perfeitas Esse carter filoséfico do mito repre- senta 0 conhecimento por vias da razio, ‘um conhecimento racional, entenden- do que ha um mundo de contemplagio, sensivel, e um mundo ideal, repleto de formas perfeitas e imutavels. E por meio da reminiscéncia conhecemos 0 mundo ‘que se apresenta a nés, um mundo de sombras, uma c6pia do mundo ideal, que somente teremos acesso quando nosso corpo perecer ea alma se soltar das amar- ras do corpo e voitar a0 mundo ideal. Interpretandoomito, emuma eleitura a obra, o individu que se solta represen- ta muito mais do que a alma desprendi- da do corpo. Este individuo representa, no viés corporativo e organizacional, @ figura de um lider, aquele que vislumbra ‘outras perspectivas e busca conduzir 0 grupo, a equipe, a outros caminhos. Ele que nao se prende a um mundo rotineiro de sombras da realidade ws pofalcienciaevdacom.br + Filosofia cincatids* 65 Na caverna, os Indviduos eto pesos 40 mundo de sombras SOCIEDADE ‘AS EMPRESAS que nao se abrem para novas perspectivas tendem a permanecerem como os individuos presos nna caverna, nao percebem a abrangencia que envolve suas atribuigdes, nao se langam ao novo, nao saem da zona de conforto ‘Com vistas a iss0, vamos tentar enten- der esse aspecto do mito tomando a alego- ria apresentada por Platio dentro de um contexto atual no ambito das organizagbes. LIDERANCA: UMA. RELEITURA DO MITO Atualmente, a figura do lider nao se ‘mostra mais como um individuo que se destaca © assume uma posigio de lide- ranga. Mais do que se destacar, 0 lider é aquele que possui uma visio sistémica € integral do seu Ambito de atuacéo em concomitincia com o ambiente empresa rial. O lider, mais do que liderar, pr conhecer sua equipe, conhecerarotina da empresa, a filosofia da empresa, o merca- do em que atua e, principalmente, nao se prender a sua zona de conforto. Nesse contexto, a releitura do Mito da Caverna pode nos mostrar a figura do lider como aquele individuo que, preso as amarras da sua funglo, busca se soltar da visio restrita a0 seu ambito de atuacio, vislumbrando novas oportunidades para ‘a construgao de novos caminhos eestraté- gias, que levem o grupo a stuar com novas ferramentas, novos objetivos, atingindo resultados pretendidos, bem como novos resultados que podem aparecer diante do sucesso da empreitada estabelecida ‘A posicao de lideranga, confundida como hierirquica, vertical e dominadora, € uma vertente tradicional, que se perde diante da dinimica do mercado atual, ‘que necessita de profissionais dinamicos, proativos, responsiveis, corajosos e auda- ciosos, que conseguem enxergar além dos limites de sua fungao se arriscando no mar das incertezas, investindo em perspectivas que podem algar novas conquistas. Esse €0 lider moderno, que além de liderar, empreende uma gestio horizontal, que permite 20 grupo desenvolver o trabalho, 40 mesmo tempo que permite 0 engendra- ‘mento de novas estratégias e novas ideias, recuando quando percebe que a tomada de decisio, enquanto lider, ultrapassou a hori- zontalidade, e pereceu na proposta, reer- ‘guendo as estruturas, considerando que 0 ‘grupo é mais forte do que uma funcao de hierarquia depositada no lider. Dentro desta perspectiva organiza- ional que tem o lider como referén: © individuo que se soltava das amarras da caverna e contemplava 0 mundo das coisas perfeitas, voltando para a caverna para resgatar ¢ soltar os individuos que ali estavam, pode ser representado como um lider. Pois, percebendo que aquele mundo onde estava pteso nio condi- ia com a realidade que se apresentava, Platao e a alegoria da caverna A apresentacao do Mito da Caverna de Platdo se da por meio da representacao de uma caverna, com individuos que estao presos, de costas para a entrada, observando projegdes de sombras que se mostram na parede da c: vverna, sombras estas que se projetam a partir de obje- tos que estdo fora da caverna iluminados pela sol, o bem maior: “[..1 © antro subterraneo € @ mundo visivel. O. fogo que 0 ilumina ¢ a luz do sol. O cativo que sobe a regigo superior e a contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligivel. Ou, antes, jd que o queres saber, & este, pelo menos, 0 meu modo de pensar, que sé Deus 66 + Filosofia cionciaswida sabe se € verdadeiro. Quanto a mim, a coisa € como pas- 0 a dizer-te, Nos extremos limites do mundo inteligivel lest4 a ideia do bem, a qual s6 com muito esforso se pode cconhecer, mas que, conhecida, se impae & razi0 como. ‘causa universal de tudo © que é belo © bom, criadora da isfvel, autora da inteligéncia e da verdade no mundo invisivel, e sobre a qual, por isso mes- mo, cumpre ter os olhos fixos para agir com sabedoria nos negocios particulares e publicos” luz ¢ do sol no mundo SPLATAO, 1955 9.291 buscou sair do fato dado, conhecendo novos ambientes, e procurou trazer 0 grupo consigo, enfrentando resistEncias, ‘mas néo perdendo o foco em mostrar a real oportunidade que se apresentava, em vista de construir novos caminhos. Aquele que permanece preso a reali- dade iluséria do mundo que o cerca, sem escutar aquele que vislumbra e conhece ‘outras formas, permanece na escuridao da caverna, enquanto aqueles que, junto 0 lider, buscam compreender a novi- dade e se arriscam no desconhecido, ‘enxergam a possibilidade da inovagao ¢ empreendem a construcio do novo, ou, ‘no minimo, adquirem 0 conhecimento do que antes nao conseguiam enxergar. Dentro desta interpretacéo, Lidiane Griitzmann (2014), em sua obra Funda- ‘mentos filosdficos da administragao, apresenta uma proposta que, interpre- tando 0 mito, se aproxima da nossa releitura. Para a autora, 0 individuo que se solta dos grilhées que o prende nna caverna representa aquele que nao se contenta com a situacao dada, e procura sair da sua zona de conforto em busca de outros conhecimentos ¢ experiéncias: “No contexto empresarial, as correntes representam. a estagnacao que muitos setores enfrentam, especialmente em ‘momentos em que se exige uma visio ‘mais abrangente do mercado, da socie- dade ¢ da realidade [..]. De modo geral, podemos entender que as correntes sio como 0s costumes adquiridos em nossa vvivéncia cultural, nossos habitos, a inter- pretacdo (fixa) que temos do mundo e a estrutura do pensamento comum ao grupo no qual estamos inseridos desde {0 nascimento, A mesma coisa acontece quando uma empresa fecha-se em seus 3 proprios objetivos metas ¢ nao quer 4} percebera cadeira causal que geraa cada 3 decisio que toma”. OROTZMANN, 2014 p.22 Navertente empresarial, uma empre- sa que se prende aos sens principios, rio enxerga o avango do mundo econd- mico atrelado a novas tecnologias, fica estagnada, tende ao declinio, perma- necendo na ignorincia e na falta de novos conhecimentos. © mesmo ocorre com 0 individuo que nao se desfax de suas crengas, nao busca 0 novo, este ira permanecer na ignorancia sem se desen- volver por completo. A maior representatividade do mito, ‘no contexto empresarial, & mostrar a tomada de consciéncia do individuo, que encara a realidade com os olhos volta- dos para 0 novo, para as oportunidades, vislimbrando novos caminhos e pers- pectivas, levando o restante do grupo a sair da zona de conforto, aventurando-se ‘em novas estratégias e novas metas, atin- sgindo novos resultados, © individuo que permanece preso nna caverna ficara imerso na ignordncia, preso aos hébitos comuns e rotineiros da ‘ida cotidiana, influenciado pela cultura que 0 cerca, cabendo a ele a decisio de permanecer agrilhoado em um mundo de sombras, ou liberto a0 mundo da luz, adquirindo conhecimento, promovendo um melhor reconhecimento da realidade ede sua prépria fun¢io, no se colocando somente como uma pesado sistema, ‘Com essa perspectiva, podemos confir- ‘mar aatualidade do Mito da Caverna ecom wo poraiencaevida.combr « lOsofia tna 67 A flosota oganizacional reflete os ibeais que os lempresiios desejam trans da sua ovganzagéo SOCIEDADE AQUELE QUE PERMANECE PRESO A REALIDADE ILUSORIA DO MUNDO, SEM ESCUTAR O. QUE VISLUMBRA E CONHECE OUTRAS FORMAS, PERMANECE NA ESCURIDAO DA CAVERNA eleperceberquehiumespagoocultoocupa- do pela flosofia dentro das organizagées, {que aqui intitulamos e conceituamos como “ilosofia organizacional”. FILOSOFIA ORGANIZACIONAL Em nosso cotidiano écomum tomar ‘mos decisdes, com ou sem reflexo, que 1ngs leva sempre a ponderar ou nao sobre uuma situagao dada, um problema, ou ‘uma simples opinio, ‘Nao nos atentamos para o fato de que, sempre que ponderamos sobre uma sitwagao, estamos fazendo filosofia, uma filosofia mitigada, comum, ou seja, pelo simples fato de pensar ¢ ponderar, refle- tir, estamos fazendo filosofia, uma filo- sofia do cotidiano. Quando pensamos, ‘estamos refletindo e isso, em certo senti- do, 6 representatividade da filosofia em As empresas que no promovem 0 desenvolvimento dos seus funcionstios € Besos, permanecem presas 2s sombras de suas realidadesinspientes 68 - Filosofia ciencistvida 1n0380 dia a dia, algo que fazemos sem nos atentar, isto é, nao temos a consciéncia de ue pelo simples fato de pensar, estamos fazendo filosofia. Agora, essa filosofia do cotidia- no € uma filosofia do senso comum, ndo é catedrética ou académica, é uma forma do pensar sem reflexao profunda, presa a opinides simples e muitas vezes oriundas de conhecimentos transmi- tidos de geragio a gerecto. O proprio Mito da Caverna pode nos mostrar isso, segundo a opinido de Grittzmann: “Na descricio da alegoria da caverna, Platio descreve os homens acorrentados como sujeitos que acreditam que as sombras constituem 0 todo da realidade. Eles creem nas sombras, nas ilusdes coma se fossem verdades absolutas. Em nossos dias, 05 aprisionados sio aqueles que se deixam levar pelas opinides simples € nao refletidas, muitas vezes oriundas de preconceito e do que € estabelecido vulgarmente pelos meios de comunica- ‘sdo em massa. A essa forma de pensar, sem autonomia e sem reflexio, damos 0 nome de senso comum”?. Atrelado a isso, costuma-se ouvir pessoas que relatam tomadas de decisio, ou aceite de crengas e ideologias justifi- cando sua conduta como “filosofia de vida’, Isso significa que os sujeitos esco- Them certa forma de viver e consideram {sso como sua filosofia, 0 seu modo de ver ‘0 mundo e conduzir a sua vida. A filosofia de vida esté ligada a prati cas cotidianas, um simples pensar ¢ 2 GROTZMANN, 2016p. 2, rife do autor A filosofa oganizaconal abrange o universo gerencial e de lideranca ds insitigoes refletir sobre pequenos aspectos da vida comum, tendo a filosofia como auxiliadora no processo de escolha e tomada de decisio, bem como para a resolugdo de peque- nos problemas do dia a dia, que ‘exigem pensamento e reflexao. ‘Essa mesma pritica est presen- ‘te também no ambiente empresa rial, quando a corporagao descreve sua missdo, objetivos e metas como a “filosofia da empresa’, no mesmo sentido de mostrar qual é0 ideal da empresa, qual & sta ideologia, suas crengas e como qualquer funcioné- rio que @ ela se junte deve conduzir stas agbes dentro da empresa, Bastante comum & encontrar executivos que justificam as aces, da empresa perante ao adégio: “a filosofia da empresa prega qq ‘ou ainda, “nossa filosofia est atre- Jada 2°; quando muito, “tomamos essa decisdo diante do que repre- senta a nossa filosofia empresarial”. ‘Como se pode perceber, a filo- sofia clissica, académica, parece ser banalizada quando ligada a0 senso comum, mas, pelo contra tio, esta possivel banalizacio, na verdade, representa a presenca enraizada da Filosofia em nosso cotidiano que, quase sempre, passa despercebida, mas mostra- -se importante ¢ titi sempre que a ela recorremos, mesmo que inconscientemente. Afilosofia que se propdeauxilia- dora, em ambientes empresariais, a0 lado da sociologia organizacio- nal ¢ da psicologia organizacio- nal, que esto ligadas a setores de recursos humanos, ganha forma como uma filosofia organizacio- nal, presente nos momentos que exigem ponderagio, reflexdo critica, quando € preciso uma anélise mais aprofundada do fato «que se apresenta, para que se passa tomar a decisio mais acertada ou mesmo tragar estratégias condi- zentes com a meta a ser atingida, Ou ainda, quando é preciso orga- nizar as corporagdes, com a mente aberta a novas perspectivas, o que, parannés, é propria representativi: dade atual do Mito da Caverna de Platéo, algo que, na interpretacdo de Griitzmann, condiz.coma nossa proposta: “a Alegoria da Caverna é a representasio do papel da filoso- fia na vida dos sujeitos ¢ & perfeita- ‘mente adaptavel & compreensdo do sentido da vida empresarial”. 2» GROTZMANN, 2014923 Saar SOCIEDADE ‘A atualidade da filosofia se far presente no s6 no ambito académico, sendo uima disciplina recorrentes nos cursos de ensino superior, mas também no cotidia- no da sociedade e das empresas, nosso objeto de estudo. © Mito da Caverna representa uma forma de conhecer e inter- pretar 0 mundo, ao mesmo tempo gue mostra 0 rompimento. com © comum, o tradicional, o habito enraizado na cultura, permitindo 0 alcancedenovasoportunidades, que se abrem para novas perspectivas. ‘Uma releitura do Mito da Caver- nna, nos dias atuais, transpassa 0 Ambito empresarial, —pedagégico, socioligico ¢ antropoligico, pois representa também a insergdo. do hhomem na ideologia “ideologizante’, a qual se permanece preso quando no se consegue retirar a cortina que esconde a soviedade ideoldgica, ou simplesmente, quando nao consegui- ‘mos nos desprender da alienage que prevalecedentro dasrelagdesdetraba- Tho, bem como nas relagbes sociais. 0 pensamento de Platio, configurado neste mito, representa que o indivi- dao deve se soltar das amarras que © prende a sua zona decontforto, deven- do este se aventurar em um mundo ainda desconhecido, mas que, na verdade, jd era o seu mundo, conheci- do por meio de sambras. No ambito empresarial, o Mito da Caverna destaca, por uma relei- tura, a figura do lider, que possui uma visio sistémica, ampla e desvinculada dos grilhées que aprisionam o individuo em opini- Bes fracas ¢ sem fundamento, desvinculando-se da ignorancia, atingido um saber mais funda- ‘mentado, que permite a constru- G40 de novos caminhos. Esse lider 70 + Filosofia cienciatwida (Os gestoes esto sempre atentos a quaisguer rufdes dle comunicacio que possam acahar incerfrindo na funcionalidade do proceso organizaconal deve trazer consigo o grupo, deve ‘mostrar para os individuos que hi outras formas, outras perspecti- vas e, com isso, poderé, de forma horizontal, conduzir as ages para atingir os resultados pretendidos. Atualmente, as empresas que permanecem na sombra da caver- na tendem ao declinio, € se nao consideram a existéncia do indi- viduo que enxerga para além dos limites da caverna, deixaré de evoluir € adquirir conhecimentos refletidos ¢ vilidos para engendrar novas possibilidades, Ao mesmo tempo, as empresas os ind duos que ainda estio amarrados ‘em seu mundo de sombras, nao ‘conseguem se desvincular da ideo- logia que os governam ¢ impdem valores, permanecendo individu- 68 alienados e sem consciéncia da existéncia desta prépria ideologia. A filosofia organizacional, como luma nova. proposta que permite enraizara filosofia dentro do ambito empresarial, representada pela relei- ‘ura do Mito da Caverna, nos mostra ‘a atualidade e a importincia da filo sofia na formagao do individu, bem como a relevancia deste conhecimento para elevar o grau de desenvolvimento ‘do indivi- duo em concomiténcia com 0 sucesso. empresarial na busca por resultados efetivos, quando se percebe que hé um mundo muito ‘maior para além dos muros e limites do edificio empresarial, io PLATAO. Féon. in Dialogos. So Paul: Abn Cults, 1972. Colegio (OsPorsadores tl) A republica de Platio. 6c a Paulo: Edtora Aten, 1956, GOLDSCHMIDT, VA relighio de Plato. So Paulo: Diusso Europea do REFERENCIAS wo, 1983 CGRUTZMANN, |. Fundamentos flosfics da administra. Curb: Intersaberes, 2014, LUMA, FM. de, Reminisncia e mote no Fédon de Patio. Pimelrosescritos: boltim de pesquisa na graduaczo em flexi, Sia Paul, n 4, p. 4145, 2000-2001 ROUGE, C. Compreender Plato. Ptrepoli: Vazes, 2005. GIRO ESCALA | www.portalcienciaevida.com.br Deesfazendo estigmas Psique — Edicdo 128 [Durante muitos anos, as criangas que eram chamadas de superdotadas, 4 em alguma area do conhecimento, eram estigmatizadas ou, até mesmo por falta de informagio por parte de pais e professores, se sentiam inadequa- das, Aras habilidades ou superdotagao é a denominacao mais recen- 7 te utiizada pelas Leis de Diretrizes e Bases da Educacio Nacional, de 1996, alterada em 2013, para se referirjustamente a alunos com potencial acima da média. Essa alteracao trouxe a ratificacao de que allinos com essa especificidade sao considerados ptblico-alvo da Edu- cacao Especial, com todos os direitos aos servicos especializados [Desse modo, 540 considerados alunos com altas habilidades ou super dotacao aqueles que demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes éreas,isoladas ou combinadas: intelectual, académica, lideranga, psicomotricidade e artes. Também apresentam elevada criatividade, gran- | de envolvimento na aprendizagem e realizacio de tarefas em éreas de seu interesse, de acordo com a Politica Nacional | de Educagao Especial na Perspectiva da Educacao Indusiva, de 2008. Essa Poltica Nacional estabeleceu a inclusio escolar de | pessoas com altas hablidades dentro da modalidade da Educacao Especial, apontanclo que esses alunos deveriam receber | atencimento especialzado, de forma articulada ao ensino comum, @ em todos os niveis de ensino. Nesse momento, levantam-se quest6es: Os alunos que se destacam por suas capacidades elevadas sdo contemplados pela legislacso educacional? Eles tém sido reconhecidos e atendidos? Saiba as respostas na edicao 128 da revista Psique. O fantasma da tortura Sociologia — Edicao 66 Apesar de 0 Brasil possuir uma lei especifca para o combate 3 tortura — Lei n® 9.455, de 7 de abril de 1997 -, analistas e pesquisadores atestam {que essa legislagao nao tem sido aplicada de forma adequada, principal- mente porque so poucos os casos de tortura processados criminalmente. Um dos motivos apontados & que o debate sobre a tortura no Brasil ficou | limitado a criaco e promulgacdo da le. Além disso, outra razdo residiia, no fato de que ha toleréncia da populagao em geral as prticas de tortura Nesse sentido, € necesSério problematizar os caminhos percortidos até a formulagao da conhecida Lei de Tortura, bem como seus efeitos na formulagao de politieas pablicas de combate a tortura. Demandas ae reivindicatéras para a caracterizagio da tortura como crime emergem sstisiar ‘com mais clareza no momento de transicéo politica no pais, no bojo de ‘outras discussbes politics e sociais. A pauta dos direitos humanos adqui- re importancia naquele momento do debate, em virtude da exposicdo das violéncias perpetradas pelo regime

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