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BRASILIA: 0 DILEMA ENTRE SER CIDADE IDEAL OU CIDADE REAL. Gunter Kohisdort * Introdugao As cidades sao (assento e) assentamento de aspiragdes sociais globais quando planejadas, produzidas e usadas considerando 0s diversos interesses de todos os agentes envolvides. Assim respondem a expectativas funcionais (organizacao de atvidades), biocimaticas (conforto higrotérmico, actistco, luminoso ‘ede qualidade do ar), topaceptivas (orientagao e identilicacdo dos lugares), co-presenciais (possibilidades de encontros ocasionais), simbélico-expressivas (aspectos afetivos € significativos) e econémicas (custos de formagao, manutencao e substituigao). Particularmente quando instrumiento de possessao territorial, as cidades novas tém sido concebidas como objetos acabados, racionalmente configurados e simbolicamente expressivos, que se impdem a partir de conceitos de autoridade, conquista e epopéias triunfais, Foi assim com as cidades gregas da colonizagao do Mediterraneo (Mileto, Priene, nos séculos Ve IV a.C,), com as cidades-bastide cistercienses na dade Média (séculos XIl a XIV), com as cidades espanholas da colonizagao latino-americana (Montevidéu, Buenos Aires, Santiago, Quito, Guadalajara, no século XVII), com as novas capitais de paises em ascen¢ao capitalsta (Washington, Nova Delhi, Canberra, nos séculos XVIII, XIX e XX). Nesses casos, a l6gica imediatista da conquista do territério com cidades novas acabadas desdenha, em maior ou menor grau, aspiragdes funcionais, bioclimaticas, topoceptivas @ co-presenciais para se concentrar nas de érdem simbélico-expressivas e econémicas. Tal atitude ‘expée uma dicotomia potencial entre as diversas expectativas em jogo na cidade, com enormes dificuldades em equacioné-las simultaneamente. Brasilia nao escapou desse dilema. Sua histéria mostra como, oscilando entre simbolismo e desenvolvimento econémico, Brastlia ainda nao encontrou um modelo satisfatério de crescimento. No momento inicial, pioneiro e ingénuo, Lucio Costa especulou com um Piano Piloio acabado e cidades satélites relativamente auténomas organizando-se concentricamente no terrterio circundante. Em momento intermediério, balisado nos pianos de ordenamento territorial do Distrito Federal entre 1978 e 1992, ha tentativas de equacionar sua ocupagaio urbana como uma estrutura bipolar, como Plano Plioto em um extrema e, no outro, o pélo Taguatinga/Ceilndia/Samambaia, No ‘momento atual, a proposta do Plano Diretor de Ordenamento Teritorial/PDOT redireciona geopoliticamente 0 Crescimento urbano de Brasilia, assumindo um modelo hibrido que a coloca diante do dilema do que priorizar, para onde e como crescer . | moldura tedrica ‘Sobre uma pos: Desenvolver uma série de consideragdes em tomo de Brasilia enfrentando o dilema entre ser cidade ideal ou cidade real envolve e pressupée trabalhar, tanto na esfera taxionémica quanto metodolégica e teérica, com uma série de conceltos que, formalizados de maneira consistente e abrangente, sejam representativos da globalidade e totalidade da arquitetura enquanto area disciplinar. ‘Os conceitos a serem apresentados a seguir foram desenvolvidos no ambito da pesquisa integrada “Dimensées Morfoldgicas do Proceso de Urbanizagao’ (1), financiada pela FINEP e pelo CNPq entre 1985e 1994, contando com a patticipagao dos colegas protessores Marcio Villas Boas, Paulo Marcos de Oliveira, Maria Elaine Kohisdorf e Frederico de Holanda, responsdveis pelas diferentes “dimensdes morfolégicas’, assimo como definidas nos paragrafos subsequentes. Alguns coneeitos bisicos ‘A pesquisa mencionada introduziu e operacionalizou 0 conceit de dimenséio morfaldgica, entendido como “todo plano, grau, nivel ou alrego no qual se possa efetuar uma investigagao, uma pesquisa, ou onde se possa realizar uma ago ou relacionar pesquisa e a¢éo. Fala-se assim em “dimenséo de um certo fato” para designar os graus ou planos nos quais ele se apresenta, ou as diregdes ou formas em que ele pode manitestar-se ou se manifesta; ou Prot Aju da Facutada ie Argue Utarame, Uaversicade de Basta IW-SEMINARIO DE HISTORIA OA CIDADE E 00 UROANSHO or ainda da “dimensao de uma pesquisa’ para designar os varios planos ou nfvels nos quais ela pode ser conduzida. A dimensao seleciona do todo certas fracdes, parcelas ou segmentos (quo, anivel do pensamento ou da a¢ao, considera-se provisoriamente com relativa autonomia ou independéncia. No caso particular das dimensGes no universo da arquitetura, a dimensio baliza 0 Ambito de investigacao e/ou aco provisoriamente separada do todo e correlaciona as caracteristicas das formas dos espagos constituintes dos lugares(porisso as dimensoes a serem escolhidas so morfoldgicas) , com as correspandentes expectativas das sociedades humanas, ou maneiras como estas se manifestam."* No &mbito da referida pesquisa foram balizadas 06 (seis) dimensGes consideradas basicas que, ‘sem querer ser exclusivas nem excludentes, abrangeriam pressupostamente a totaidade do universo axiomatico reterido & arquitetura. Sao elas: a) A dimensao funcional 0 ambito de investigagao e/ou ago que correlaciona expectativas de adequacao e eficléncia dos espagos urbanos as atividades pragmaticas que as sociedades humanas deservolver ou pretendem desenvolverneles. ‘A vertente funcional possul um sentido basicamento operativo © vincula-se a finalidades essencialmente utiitérias, Preocupa-se com caracteristicas dos lugares relevantes para as atividades relacionadas, tradicionalmente, aos processos econdmicos de producdo, distribuigdo e consumo e que nos fornecem os cldssicos conceitos de trabalhar, morar, circular, descansar, abastecer-se, divertir-se, etc. Trata-se, portanto, de realizar uma leitura dos espacos da cidade que selecione seus atributos de area disponivel para cada atividade e distancias entre essas diversas Areas. A apreciacao da adequabllidade funcional dos espagos da cidade significa avaliar o melhor ou pior cumprimento destas operagées com estes objetivos, ocorrendo nos referidos lugares. Porisso, passam a sor relevantes subdimensbes diretamente relacionadas & quantidade de espaco disponivel, a atributos configurativos dos lugares ( proporc6es entre comprimentos, larguras e alturas, forma das superficies delimitadoras, bem como suas relagdes geométricas ) e @ maneira como diversos lugares se interrelacionam estabelecendo, decorrentemente, os tipos de vinculo entre atividades( complementagao, segregacao, continuidade, Incompatibiidade, etc.) 'b) A dimensao bioclimatica E 0 ambito de investigacao e /ou agao que corretaciona expectativas de contort fisico das sociedades humanas com as caracteristicas climaticas.do meio no qual estas se encontram, @ onde a forma dos lugares tem condi¢des de acentuar, potencializar, consolidar, amainar, minorar etc. as correspondentes sensagbes fisiol6gicas e mentais. ‘A dimensdo bioclimatica ocupa-se do bem estar do corpo humano em cantato com 0 meio ambiente e, para tal apreciagdo, s40 relevantes os sistemias sensoriais dos individuos como instancias de realizacao do contorto fisico. Assim, os atributos dos espagos da cidade selecionados pela leitura dessa dimensao sao incidentes, direta ou indiretamente, nos sentidos do tato (via epiderme e pleura), lem fungo do contorto higrotérmico e da boa qualidade que o ar possa proporcionar; da visao, em fungao do conforto luminoso que o meio ambiente possa proporcionar; da audi¢ao, em fungao do conforto acustico possibilitado pelo meio ambiente; e, com menor relevancia, pelos sentidos do lfato ¢ do gosto, Decorrentemente importa, para avaliagao do comportamento higrotérmico de certo lugar, a Quantidade de superticie editicada exposta as trocas térmicas por radiagao, por exemplo, e espacos cuja configuragao é mais ou menos rugosa e porosa gerardo diferentes condigdes de contorto térmico e de umidade relativa do ar, em fungao das maiores ou menores possiblidades de ventilagao e de trocas térmicas por convexao. Analogamente, o desempenno lurinoso dos lugares dependerd de atributos de sua forma ( proporg6es, cor e brilho das superficies, etc.), ¢ 0 aciistico, também de certos predicados mortolégicos. ¢)Adimensao topoceptiva. E 0 campo de investigagdo @ a¢8o propositiva que relaciona a forma tisica dos espagos a cexpectativas sociais por orientagdo nos lugares, e identificagdo dos mesmos. ‘A dimensio topoceptiva dedica-se & satistagao de necessidades localizadas no Ambito emocional, ‘na medida em que a nogao de lugar é um pré-requisito da seguranca psicol6gica. Localizar-se 6 uma acaoque pode ocorrer por meio de diversos instrumentos ( como mapas ou informagdes verbais) que requerem conhecimento, pelo indviduo, dos simbolos utlizados; nesse sentido, a linguagem falada pelo espaco possul © cédigo mais abrangente, podendo informar tanto moradores quanto forasteiros dos lugares. A leitura do IW'SeMNARIO OF FISTORIA OA CIDADE EDO URBANISMO 662 ‘espago realizada por esta dimensdio seleciona certos atributos captados pela percepcdo dos individuos ( onde sobressai a componente visual ) que sao diretamente responsaveis pelas nocdes topoceptivas basicas : a topolégica ( de situagao do corpo do observador no espago, a partir de suas vizinhangas e distanciamentos 05 limites do mesmo ) ea perspectiva (de composi¢ao da cena contida nos campos visuais do observader), Para esses dois conceltos, allados a idéia de desdobramento no espago, convergem diversas caracteristicas ‘mortolégicas dos lugares, interpretadas pela geometria euclidiana (pontos, inhas e superticies configurando proporgdes dos espacos ). Ao comportamento topoceptivo dos lugares importa o nivel de informagao visual fomecido por tais composi¢bes, que deve atingir certos parametros aceitéveis de articulacdo entre repetigoes variagdes de elementos e relagdes morfolégicas. d) A dimensdo da co-presenca E 0 Ambito de investigagéo @/ou aco que abietiva o estudo das relagdes entre configuragdes ‘espaciais e sistemas de interacéo entre pessoas. © principal axioma dessa dimensdo é que a organizago do espago é fungao da forma de solidariedade social, esta uiima sob conotagao muito especttica : ndo se trata de “apoioou“empatia” mutuos, mas de um conceito referente a maneiras de organizagao de grupas em sociedade, em termos de seu tamanho, a intensidade de como se realizam no tempo, 0s tipos de atividades que levam a sua manifestagao como ‘9Tupo, 0s tipos de lugares nos quais se materializam, as formas de encontro, as maneiras em que Se trocam inforracées, etc. Nessa dimensao procura-se relacionar a forma do espaco arquitetonico a essas maneiras de organizago grupal, eparaisto necessitamos realizar uma leitura espesifca, tanto dos espagos quanto da sociedade, onde a arquitetura é vista como sistema de barreiras @ permeabilidades ao movimento das pessoas ea Sociedade como sistemas de encontros interpessoais. A maior ou menor promogao desses encontros dependerd de uma série de caracteristicas do espaco piiblico, como por exemplo o seu grau de constituigéio (forma como 0 espaco piiblico e o privado se relacionam tisicamente ), a sua estrutura de convexidades (forma fisica dos espacos puiblicos), a sua axialidade ( forma imediata ou mediata como os espagos publicos se relacionam fisicamente entre si), etc. ‘e) A gimensao expressivo-simbdtica (ou dimensao “artistica”) Eo ambito de investigacdo e/ou ago que objetiva o estudo das relagdes entre formas espaciais € expectativas sociais em torno do prazer ou bem estar emocional, em termos de afirmagao, nesta érea, do individuo enquanto ser humano, ‘Adimensao expressivo-simbdlica lida com dois sentidos das possibilidades que os lugares tem de afetarem emocionalmente as pessoas : estabelecendo um vinculo afetivo e construindo um significado, No primeiro caso, as especulag6es cabem @ uma “teoria dos afetos” , que se preocupa em considerar julzos que formuiamos em termos de que certo espago ¢ aconchegante, triste, hospitaleiro, alegre, excitante, monétono, ete. No segundo caso, as “teorias dos signos” ( semidtica e semiologia) abordam 08 lugares como um sistema de sinais que adquirem certos significados quando interpretados pelos observadores ou usuarios. Em ambos, comparece a aspiracdo, supostamente fundamental, de que as sociedades humanas se reconhegam e encontrem suas marcas nos lugares que constréem, orguinando- se de ter poder e capacidade exclusivos de imprimirnos mesmos o cardter antropomérfico, restrito ao fazer humano, om contraposizao aos processos realizados pela natureza (0 outro agente produtor de espagos ) ‘Assim, esta dimensao realiza uma leitura da configuracgo dos lugares selecionando os atributos relevantes ‘Aformacdo de vinculos afetivos e representagao simbélica: S40 caracteristicas morfologicas diretamente incidentes na percepgao humana, envolvendo todos os sentidos mas filtradas por caracteristicas culturais, do desenvolvimento da inteligencia e que tornam as avaliagdes, nesta dmensdo, com abrangéncia menos universal do que nas demais. ‘A dimensio econdmico-financeira ‘0 Ambito de investigagdo e/ou aco que tem por objeto o estudo do consumo de recursos ( materiais e energéticos) quantificados em moeda e portanto representativos de custos, necessarios materiaizago ( produgao e manutengo) de bens e servicos, relativizados em relagao ao niimero de pessoas ‘envolvidas e ao tempo dispendido para tal. ‘Avertente econémico-financeira tem um enfoque efetivamente pragmético, preocupando-se com beneficios gerados por determinados investimentos; neste sentido, ¢ fundamental a definigdo dos sujeitos beneficiados direta ou indiretamente, bem como daquoles sobre os quais recaem nus. Preocupa-se com atrioutos dos lugares incidentes em custos de sua construgao ( apreciados preferencialmente mais no estagio de sua produgo e menos no estagio da avaliagdo de desempenho do objeto construfdo) tanto quanto, e principalmente, ‘em custos de sua manutengao e reforma /substituiga0, 0s quais, via de regra, seguem rumos dferenciados @ até 663 antagénicos. Logo, a leitura do espago da cidade realizada por esta cimenséo seleciona caracteristicas distintas, de organizagao morfolégica dos lugares, em termos de sua implantago, implementagdo, conservagéo & ‘substituigdo. Por outro lado, hd predicados configurativos que relacionarn-se apenas indiretamente com os Custos de urbanizagiio, como é 0 caso das taxas de ocupagao e dos indices de aproveitamiento do solo: baixos coeficientes de utiizagao da terra nas cidades encarecem as redes, altas concentragdes baixam os mesmos custos. ma entre ser cid: ! E dbvio que nas sociedades estratificadas a partir de relagdes de poder, de dorninagao, as expectativas desenvolvidas pelas diferentes classes sociais, em relagao as diversas dimensbes, so diferentes, até radicalmente diferentes, mesmo antagonicas. ‘As expectativas ndo so apenas diferentes; na verdade, as dimensdes podem ser ponderadas de forma muito diversa, dependendo da maior ou menor importéncla que elas podem adquirir em relagao aos interesses envolvidos. Quando tais iteresses se estruturam em tomo da consolidagao e/ou potencializagao das relagdes de poder ou dominagao -¢ al a possessao de territério através da ocupagao com assentamentos urbanos adquire um papel fundamental - somos da opiniao, que aqui formalizamos como tese, de que as diversas dimensées contribuem de forma diferenciada a tais objetivos. E historicamente observavel, e acreditamos que uma pesquisa mais aprofundada o confirmaria, que nestes casos a ldgica imediatista da conquista territorial e exercicio do poder coloca em segundo plano aspiragées ou expectativas de ordem funcional, bioclimatica, topoceptiva e co-presencial para se concentrar nas de ordem simbdlico-expressivas e econdmicas, consideradas, neste sentido, mais relevantes e de eteito imediato e impactante. Nao que as primeiras no o sejam. Pelo que foi rapidamente esbocado, é indiscutivel que a preocupaggo co-presencial é fundamental em relagao a especulagao com relagées de dominagao. Por ‘exemplo, nao ¢ interessante, para quem detém 0 poder, o encontro espontaneo das pessoas @ a correspondente troca, sem controle, de informagdes. Decorrentemente, nao ¢ interessante a existéncia de espagos com ‘caracteristicas que promovam essa situaco. Muito pelo contrario, ¢ interessante a existéncia de espacos com caracteristicas opostas. Nao € por acaso que 0 urbanismo modemista adota morfologias de nao Cconstituigao do espago publico ( relagdes entre espago privado e publico mediatizadas, intermediadas), de predominancia dos vazios em relagao aos cheios, e de segregagao espacial. Com isso dificulta-se 0 encontto fisico @ ocasional entre pessoas e se incentiva a modalidade transespacial de encontros, os quais s40 promovidos de diversas maneiras através de intertones, videotones, video-conteréncias , sistemas internet, ete. que a correspondente tecnologia, compenetrada com 0 “progresso” , coloca disposigao das sociedades humanas. ‘Argumentagbes semelhantes podem ser desdobradas a partir dos conceitos de identiicabilidade, da dimensao topoceptiva, e outros, Mas 0 fato pragmatico é que os grupos dominantes encontram nas dimensées de ordem simbélico-expressivas e econémicas variaveis mais explicitamente manipuldveis em relagéo a seus objetivos mais imediatos. No entanto, elas tampouco se comportam necessariamente de forma convergente. Nesse sentido, a argumentagao apresentada, mostrando que diferentes classes socials. desenvolvem expectativas diversas o até antagonicas, também vale para as proprias classes dominantes, desde que consideradas como caldeirao dos mais diversos interesses. Estas ultimas n&o so to monoliticas (a ndo ser quando se trata de sua sobrevivéncia como classes dominantes) a ponto de assumir homogénea e hegem6nicamente seus interesses, ‘Se tomarmos como divisor de aguas entre classes sociais 0 classico principio que diferencia aqueles que fazem daqueles que pensam °, com os segundos dominando histérica e despoticamente os primeiros, teremos, vinculados ao poder, grupos socials tio diversos quanto os intelectuais, filésofos, artistas, militares, sacerdotes, comerciantes, capitalistas, etc. Os intelectuais, militares e sacerdotes sempre apostaram mais na dimenséo simbélica ( 0 simbolismo das idéias, dos monumentos militares, das igrejas, etc.) para materializar e expressar a relagéo de possessdo em relagao ao territério e populagdes disputantes, enquanto que comerciantes e capitalistas apostariam na forea do poder econdmico (¢ seus “monumentos") para atingir objetivos semeihantes, Quando estas expresses tiverem condigdes de co-existir, podem até somar seus efeitos. A maioria das vezes, porém, elas equacionam uma dicotomia potenciaimente confltante. W'SEIINARIO DE HISTORIA OA CIDADE E DO URBANISNO, Goa Entre os intelectuais, 6 historicamente verificével como filésofos, religiosos e arquitetos acreditam 1a forga dos efeitos e significados da cidade ideal, desde que assim implementada. Nesse sentido, a especulagao com cidades ideais ¢ resultado de uma pratica econdmica, mas de uma pratica religiosa tambér?. Todas as tentativas de desennar a cidade a partir de um modelo ideal, absoluto, encostam na imagem do artefato perteito, feito & imagem e semelhanga dos deuses e, portanto inexoravelmente betos. Nao é por ‘acaso que, quando os espanhis e portugueses desembarcam e colonizam a América, o fazem instalando a Ccruz/o cruzeiro e tomando posse da terra em nome de Deus. No caso de Brasilia, orfamos todas as condigdes de fazer reteréncia as profecias de Dom Bosco. O préprioL. Costa, no Relatério ( do. concurso) do Piano Piloto de Brasilia, nicia a sua argumentacao nos seguintes termos “.. Dito isto, velamos como nasceu, se definiu e resolveu a presente solueao Ela nasceu do gesto primério de quem assinala um lugar ou dele toma posse : dois eixos cruzando-se em angulo reto, ou seja, 0 préprio sinal da cruz. “? No mesmo sentido especula Plato, que formaliza seu "pensamento urbanistico’no Timeo e no Critias de sua obra “A Republica”*. Nas entrelinhas de sua descri¢ao da Atlantida, uma cidade ideal para artesdos, agricultores e guerreros, ele faz a associagao dela com o novo paralso. A cidade aparece em Platao ‘como a oportunidad de recriar 0 paraiso: s40 os deuses que esto por trés da criagdo ( do paraiso e ) da cidade e, nesse sentido, dé-se a grande chance para, na cidade, adorar e endeusar 0 seu criador. O proprio L. Costa, mais uma vez, escreve no seu Relatorio: “... Nao pretendia competir e, na verdade, néo concorro, - apenas me desvencilho de uma Solugdio possivel, que ndo foi procurada, mas surgiu, por assim dizer, jé pronta .. L. Costa se “desvencilha'da idéia do Plano Piloto, como se nao fosse dele, mas inspirada por orcas misticas, contra as quais ele nada pode fazer ..? Em outro momento histérico, Vitrivio * ressaltou os 05 (cinco) elementos que ele considera ‘essencials a construgao e perfeigtio das cidades: + aordenagi - a disposigao; ~a proporgao ( ou euritmia /simetria) ; sa conveniéncia, & +a distribuigéo. 'Na especulacao com estes elementos fica muito claro que a relag&o perfeita das partes como todo, a reuniéo harm®nica das partes, a submissdo das partes ao todo, a proporeao entre o didmetro das colunas, sua altura, o espacamento enire elas, etc. e assim por diante, até a proporeao global do prédio, ¢ dos prédios com os espagos circundantes, exige a concepeao global do objeto e a proibicao de sua modificagao posterior, uma vez implementado ! E isso, sem duvida, contraria muitas vezes expectativas econdmicas de ‘expansdo ou reformas urbanas, tao necessérias & potencializagao da dominag&o financeira. No Renascimento, a obra de Platdo ofereceu um universo a ser redescoberto e explorado. Assim ‘em Florenga, por exemplo, Marcio Ficino, um dos principais pensadores do periodo, junto com Pico della Mirandola, A. Polciano e L.. Puli, tunda uma academia neo-platénica (trequentada pelo proprio Albert), que passa a exercer um papel muitipicador desta forma de pensar *.. © aspecto mais caracteristico e notével do neo-platonismo florentino consistia no sou espiritualismo difuso, condensado na filosofia da beleza. Todo 0 belo é uma manifestacao do Divino. Assim sendo, a sua exaltacdo, 0 cultivo e a criagao do belo, consistem no mais elevado exercicio de virude @ no gesto mais profundo de adoragao a Deus. A produeao do belo através da arte e da arquitetura é o ato mais sublime de que é capaz 0 homem. Mas @ arto e a arquitetura ndo so a mera imitagao da natureza e sim sua superagao no sentido da erfeicaio absoluta. Uma tal superagao da natureza s6 seria possivel por um conhecimento ‘ais ngoroso de suas leis e propriedades, que permitisse transpo-la com a maxima harmonia nas obras de arte ¢ de arquitetura através de elaborages matematicas precisas... © classicismo renascentista passa a oxistir enquanto concelto para descrever a postura que atribui aos modelos abstratos a possibilidade do ideal de perfeigao imune ao passar do tempo. Omundoa set W'semnanio DE HISTOR Da CIDADE DO URBAWSMO 665 “cultivado” é o mundo das idéias, ¢ os valores da vida nao esto no mundo material mas na abstragdo que se faz dele. O fundamental ¢ a idéia, potencialmente perfeita, e nao necessariamente a sua materializagao, ‘seguramente imperfeita. Com isto fica consagrada a separacao entre a concep¢ao e a materializacao e, ‘obviamente, as vitudes humanas ficam concentradas na primeira, na concepgao. A materializagao do concebido passa a ser um ato meramente executivo, mecanicista,idiotizante, passivel de ser executado por qualquer um. A concepedo nao ¢ para qualquer um, mas para um grupo seleto. Alberti é 0 representante nato desta postura. O seu texto bsico, De Re Aediticatoria, de 1485" 6 dedicado ao desenho, tanto grético (exercicios ‘geométricos) quanto projetual. Muitas de suas argumentagdes giram em tomo da figura da autoridade(a Da Re Aedificatéria ¢ dedicada a Lorenzo de Médici, 0 “condottier” ), como nica insténcia garantidora da imutabilidade das realidades concebidas a partir dos principios da perteicao. Em Albert, 0 instrumento fundamental do desenho geométrico e matemitico é o desenho perspectivo. A propria perspectiva cénica ( criada por Brunelleschi a partir de sua técnica do “olho fixo") teorizada e aperteigoada nos seus aspecios processuais e operativos por Alberti. Correspondentemente, sio valorizados 0s efeitos perspectives das propostas urbanas. Um outro principio ao qual Alberti dedica partes do texto é o principio da simetria. Quanto mais simétrico 0 objeto, mais facil 0 controle de seu ordenamento, menor o espaco para a diversidade, para a surpresa. Muitas das idéias de Alberti sdo reassumidas e reinterpretadas por Le Corbusier, e chegam até nossos dias, até Brasilia, através do ideatio do urbanismo modemista, O caso de Brasilia ‘Tem persistido ao longo dos anos a idéia de que em Brasilia tudo seria diferente. O fato de grande parte das terras estarem nas mAos do Governo do Distrito Federal gerou a expectativa de que 0 poder publico participaria do processo de ocupagao do territério no como um mero drbitro, mas como forte e decisivo agente do mercado imobitiério, determinando a velocidade, a direcao, o sentido e a qualidade de seu crescimento e que teria todas as condigdes de monitorar 0 seu desempenho equilibrado: nas diversas dimensées, tal como apresentadas. Ahistéria do desenvolvimento urbano do Distrito Federal mostrou que essa crenga no encontraria apoio na realidade. A idéia de que no Distrito Federal, em fungdo das particularidades inicialmente anotadas, existiriam condigdes de * suspender’ , ou pelo menos controlar, as expresses acirradas das forgas de mercado mostrou-se utépica, como revelam os desvios e deseconomias apresentados nna estrutura pré-metropolitana hoje implantada e em parte muito semelhantes aos observados no resto, do Pais, Poder-se-ia indagar se teria faltado vontade politica e competéncia técnica para propor novas maneiras de cessao do uso do solo, para ampliar na medida das necessidades a oferta de espaco para o crescimento da Capital, segundo planos de desenvolvimento fisico-espacial consistentes com ocontexto do Distrito Federal e com a demanda da populagdo. Desse ponto de vista, @ apesar de todos os discursos e esforgos em contrario, Brasilia ndo escaparia de ser funil de ressonancia dos processos a nivel nacional e espelho da histéria da formacao das cidades, desde os seus primérdios. © momento inicial primeiro "plano de ocupagao" do espaco do Distrito Federal, decorrente do concurso para © Plano Piloto de Brasilia langado pela NOVAGAP, teve seu resultado homologado em 16 de margo de 1957. Nele, Brasfia estava concebida inicialmente como um “edificio maior”, que acolheria uma populagao determinada (500.000 habitantes), se completando através de um processo com principio, meioe fim. Segundo 4 apreciagao do juiri do Concurso do Plano Piloto da Nova Capital, teriamos, em determinado momento, a cidade “pronta. Sé apés ¢ que se poderia pensar em criar as cidades satélites, para conduzir uma ocupagio planejada da regio. Inexistem consideragdes mais concretas de como isto teritorialmente, poderia acontecer. Manitestagdes esparsas em conversas informais, entrevistas gravadas em video ( Série BEMTEVIPr6-Momdria WV SEMINARIO DE HISTORIA DA CIDADE © DO URBANSHO. 686 11985), participagées em seminarios ( Seminario de Estudos dos Probiemas Urbanos de Brasilia, Senado Federal, 1974) ¢ textos esparsos ( O urbanista defende a sua cidade, in Lucio Costa : Registro de uma Vivéncia, Sao Paulo, 1995) ® deixam transparecer a idéia de que, uma vez ocupado o Plano Piloto, na sua totalidade, poderia especular-se com um cordao de assentamentos fortemente embricados no meio rural, tendo como referéncia de centralidade 0 Plano Piloto, mas com caracteristicas extremamente ténues ‘ocasionais, para uso excepcional de equipamentos culturais, de satide, etc. Um cinturao verde, delimitado pela EPCT (Estrada Parque de Contorno ), que coincide com o divisor de aguas da bacia do Lago Parano4,

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