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Yi-Fu Tuan Kspaco e@ Lugar A Perspectiva da Experiéncia Tradugao de Livia de Oliveira (Professora-Adjunta do Departamento de Geografia do Instituto de Geociéncias e Ciéncias Exatas da UNESP — Campus de Rio Claro) mo] DIFEL Ditvebo Eta SA s BAS BC/BIBLIVI ELA UE uitwuia c seunyivoin ; * 3S Lrvpapia € O1STRIBUIDORA CURITIBA LTDA BS ors 4,080.00 “SF Terma No.801/93 Registro:212, 901 04/10/33 BN 000 2 1364? ‘Titulo Original: - Space and Place: The Perspective of Experience fiw Copyright © 1977 by the University of Minnesota 23 Capa: Natanael L. de Oliveira CIP-Brasil. Catalogagao-na-Publicagao CAmara Brasileira do Livro, SP Tuan, Yi-Fu, 1930- ‘Te20 Espago ¢ lugar : a perspectiva da experi tradugao de Livia de Oliveira. — Si Paulo: 1, Espago — Percepyao 2. Percepgdo geogrifica |. CDD-153.752 83-0697 -155.96 Indices para catélogo sistematico: 1. Espaco : Influéncias : Psicologia 155.96 2. Bspago : Percepyao humana ; Psicologia 153.752 3. Homem : Percepgto do espago : Psicologia 153.752 4, Lugares : Imagens mnentais : Psicologia 155.96 5. Percepeo geogrifica : Psicologia 155.96 1983 Direitos de tradugo reservados para o Brasil por: 5) DIFEL Sede: Av. Vieira de Carvajho, 40 — 5? andar CEP 01210 — Sao Paulo — SP Telex: 32294 DFEL-BR Tels.; 223-6923 ¢ 223-4619 Vendas: Rua Doze de Setembro, 1.305 — V. Guilherme CEP 02052 — Sao Paulo — SP Tel.: 267-0331 JRRUSNESSSENENNN NEEM Prefacio vida: um livro se origina de outro assim como, na esfera do compromisso politico, uma aco conduz a outra. Escrevi um livro intitulado Topofilia premido pela necessidade de separar e ordenar de alguma maneira a ampla variedade de atitudes e valores relacionados com o meio ambiente fisico do homem. Embora apreciasse observar a riqueza ¢ a amplitude da experiéncia | do homem.com-o-meiouinbienté, nao pude nessa época encontrar um tema ou conceito abrangente com o qual estruturar 0 A vida das idéias é uma est6ria continua, como a propria u heterogéneo material; e, portanto, mui- rer a categorias convenientes e conven- cionais (como subiirbio, vila, cidade, ou tratar separada- mente os sentidos humanos) em vez de usar categorias que evoluissem logicamente de um tema central. Neste livro pro- curo alcangar uma posigéo mais coerente. Para tanto re- duzi meu enfoque para “espaco” e “lugar” enquanio ele- mentos do meio ambiente, intimamente relacionados. Ainda mais importante, procurei desenvolver_meu_ material-detma unica perspectiva ==-a_da_experiéncia. A_complexa_natu- réza da experiéncia humana, que varia do sentimento prim4- tio até a concep¢ao explicita, orienta o contetido e os temas deste livro. Pe 4 OAM ee VO Ce ee eve 2 G. an a ees ~<—wvevveve Prefacio Freqiicntemente, tem-me sido dificil o devido reconheci- mento das obrigacdes intelectuais. Uma raz4o é que devo tanto a tantos. Um problema ainda maior é que posso deixar de agradecer as pessoas a quem devo mais. Eu as “‘devorci’’! Suas idéias se transformaram em meus pensamentos mais profundos. Os meus mentores andnimos sao os estudantes e colegas da Universidade de Minnesota. Confio que eles sejam indulgentes com qualquer apropriag4o inconsciente de seus insights, e todos os professores sabem que esta é a forma mais sincera de reconhecimento, Tenho, também, agradecimentos especificos e 6 com pra- zer que os fago. Sou profundamente grato a J. B. Jackson ¢ P. W. Porter por terem encorajado meus esfor¢os iniciais; a Su-chang Wang, Sandra Haas ¢ Patricia Burwell pelos dia- gramas que atingiram a elegfncia formal que em meu texto ficou apenas no nivel da inten¢io; e a Dorian Kottler da University Press pelo meticuloso trabalho.de revisio. Desejo, também, agradecer As seguintes instituigdes pelos recursos que me permitiram trabalhar no Espago e Lugar, com peque- nas interrupgdcs, nos dois tltimos anos: 4 Universidade de Minnesota, por conceder-me a licenca para viagem de estu- dos, seguida de mais um ano de afastamento; A Universidade do Havai, onde pela primeira vez explorci os temas deste livro, com um pequeno grupo de estudantes de pés-graduagao, inte- ressados no assunto; A Fundac&o Educacional Australiano- Americana (Programa Fulbright-Hays), por me ter possibili- tado uma visita A Australia; ao Departamento de Geografia Humana, da Universidade Nacional da Australia, por ter me propiciado um anibiente agradavel e estimulaute para pensar e escrever; e A Universidade da Calif6rnia, em Davis, por um ano de sol e calor, tanto humano como climatico. Yi-Fu Tuan Ano Novo Chinés, 1977. Sumario Preficio V Hlustragdes IX 1 Introdugao 3 2. PerspectivaExperiencial 9 6° Espaco, LugareaCrianga 22 4 Corpo, Relacées Pessoais e Valores Espaciais 39 5 6 7 8 ‘5 Espaciosidade e Apinhamento 58 4 ; Habilidade Espacial, Conhecimento ¢ Lugar 76 ; ) Espago Mitico e Ligar 96 8 Espaco Arquiteténico e Conhecimento 113 9 ‘Tempo no Espaco Experiencial 132 * Experiéncias Intimas com Lugar 151 Afeigdo pela Patria 165 Visibilidade: A Criagto de Lugar 179 13 Tempo e Lugar 198 14 Epilogo 220 Notas 227 en PN ORS It. 17. 18. 19, ILUSTRACOES . Espago definido como localizagao relativa e como espaco demarcado. Mapas do mundo dos Aivilik. . A estrutura do corpo humano, espago e tempo. “Centro” sugere “elevacio” e vice-versa: 0 exemplo de Pequim. Organizagoes egocéntricas ¢ etnocéntricas do espago. De espago a lugar: a aprendizagem de um labirinto. Distorgdes nos labirintos desenhados. Etak — navegagao celeste microné: Concepcao do espaco como Iugar-repleto (oceano Paci- fico) de Tupai . Espacos mitico-conceituais. 10. Cosmos ptolomaico. Casas com patios internos: 0 grande contraste entre o “interior” e 0 “exterior”. . Oyurt mongole o pantedio de Adriano: o-domo simbélico e suas expressdes arquitet6nicas. . A casa como cosmos ¢ mundo social: 0 exemplo da casa dos Atoni no Timor indonésio. . Acampamento pigmeu: a separagio do espaco social e sagrado. . Espago e tempo dos Hopi: os reinos subjetivo e objetivo. . Mito cosmogdnico e espaco orientado: viagens mitol6- gicas dos herdis ancestrais dos Walbiri na Australia cen- tral. Espaco sagrado simétrico (Ming T’ang) e Cidade do Ho- mem assimétrica. O lugar como um simbolo piiblico nitidamente visivel: as places royales de Paris, segundo o plano de M. Patte. Lugares duradouros: rochedo de Ayers e Stonehenge. ‘ oe ae eee & Ge Oe ECRMABEEAELECEES \ vey ~+-+eevvrvevyey 20. 21. 22. Aldeias, cidades comerciais ¢ areas comerciais: lugares visiveis e “‘invisiveis”. Movimento, tempo e lugar: a. caminhos e lugares linea- res; b. caminhos e lugares ciclicos/pendulares. Os anéis de crescimento (tempo) das muralhas de Paris. Espago e Lugar A Perspectiva da Experiéncia 1 Introducao Ge 6 spaco" e ‘‘lugar'’ so termos familiares que indi- FE: cam experiéncias comuns. Vivemos no espaco. Nao ha lugar para outro edificio no lote. As Grandes Planicies do a sensaco de espaciosidade. O lugar é seguranga eo espaco é liberdade: estamos ligados ao _primeiro-e_deseja- mos 0 outro, Nao hé lugar como o lar. O que é lar? fia velha isa, Ovelho bairro, avelha cidade ou a patria .Os gebgrafos luda os fugares. Os planejadores gostam de evocar “um sen- tido de lugar”. Estas so expresses comuns. Tempo e lugar siio componentes bAsicos do mundo. vivo,.nés_os ad: Quando, no entanto, pensamos sobre eles, po- dem assumir significados inesperados e levantam questdes que nao nos ocorreria indagar. Que é espago? Vejamos um episédio, da vida do tedlogo Paul Tillich que serviré de enfoque A questao sobre o signi- ficado do espago na experiéncia. Tillich nasceu e cresceu em uma pequena cidade da Alemanha Oriental em fins do século passado. A cidade tinha caracteristicas medievais, Circun- dada por uma muralha e administrada do edificio da prefei- tura municipal construido na Idade Média, dava a impressio de um pequeno mundo, protegido e auto-suficiente. A uma crianga imaginativa, a cidade pareceria estreita e limitadora. 3 wu ~~~ veervvrvvv Fey Introdugao Todos os anos, no entanto, o jovem Tillich podia escapar com sua familia para o mar Baltico. A viagem para 0 litoral — 0 espaco aberto e o horizonte sem limites — era um grande acontecimento, Mais tarde Tillich elegeu um lugar no oceano Atlantico para viver apés a aposentadoria, deciséo esta que sem dtvida deve muito as experiéncias da juventude. Quando crianga, Tillich também péde escapar as limitagdes da vida de uma cidade pequena fazendo viagens a Berlim. As visitas 4 grande cidade curiosamente Ihe'lembravam o mar. Berlim, também, deu a Tillich a sensacdo de amplidao, de infinito, de espaco sem limitagdes.' Experiéncias deste tipo nos levam noyamente a refletir sobre o significado de uma palavra como “espago” ou “espaciosidade”, que pensamos conhecer bem. Que é um lugar? O que da identidade ¢ aura a um lugar? Estas perguntas ocorreram aos fisicos Niels Bohr e Werner Heisenberg quando visitaram o castelo de Kronberg na Dina- marca. Bohr disse a Heisenberg: Nao & interessante como este castelo muda to logo a gente imagina que Hamlet viveu aqui? Como cientistas, acreditamos que um castelo consiste s6 em pedras, ¢ admiramos a forma como o arquiteto as ordeneu. As pedras, © teto verde com a piitina, os entalhes de madeira na igteja constituem o castelo todo. Nada disto deveria mudar pelo fato de que Hamlet morou aqui ¢, no entanto, muda completamente. De repente os muros ¢ os baluartes falam uma linguagem bem diferente. O proprio patio se transforma em um mundo, um canto escuro nos lembra a escuridao da alma humana, e escu- tamos Hamlet: "Ser ou nfo ser”, No entanto tudo o que realmente sabemos sobre Hamlet 6 que seu nome aparece em uma crénica do século XIII. Ninguém poder provar que ele realmente existiu, e menos ainda que aqui viveu. Mas todo mundo conhece as questdes que Shakespeare o fez, per- guntar, a profundeza humana que foi seu destino trazer A luz; assim, teve também que encontrar para si um lugar na Terra, aqui em Kronberg. Uma ver. que sabemos disto, Kronberg se forna, para nés, um eastelo bem dif rente.’ Estudos etolégicos recentes mostram que animais nao humanos também tém um sentido de territério e lugar. Os espacos sao demarcados e defendidos contra os invasores. Os lugares sao centros aos quais atribuimos valor e onde s&o satisfeitas as necessidades biolégicas de comida, Agua, des- canso e procriagdo. Os homens compartilham com outros ani- Introdugao mais certos padrdes de comportamento, mas como indicam as reflexdes de Tillich e Bohr, as pessoas também respandem_ao ago € ao lugar de maneiras. _complicadas, que.ndo.se.conce- bem no reino ‘animal, Como é possivel que tanto o mar Baltico como Berlim évoqiiem uma sensagAo de vastidao e infinito? Como é possivel que uma simples lenda assombre 0 castelo de Kronberg e transmita uma sensac¢do que permeia as mentes de dois cientistas famosos? Se ha seriedade em nossa preocu- pagdo com a natureza e qualidade do meio ambiente humano, estas s4o, certamente, perguntas basicas. Entretanto, poucas vezes clas tém sido levantadas. Ao contrdrio, estudamos ani- mais, como, por exemplo, ratos ¢ lobos, e dizemos que o comportamento humano e os seus valores so bem parecidos com os deles. Ou medimos_¢ mapeamos 0 espago e lugar, € adquirimos leis espaciais e inven’ ‘Arios de OSSOS~ eSfOTKO: Estas sio abor dagens | precisam ser_complenientad: 5s Somos, humanos. Temos 0 privilégio de acesso a ¢ dos de espirito, pensamentos € sentimentos. Temos a visio do interior dos fatos humanos, uma asserg’o que n&o podemos fazer a respeito de outros tipos de fatos. As pessoas as vezes se comportam como animais encur- ralados e desconfiados. Outras vezes também podem agir como cientistas frios dedicados a tarefa de formular leis e mapear recursos. Nenhuma das duas atitudes dura muito. As pessoas sao seres complexos. Os dotes humanos incluem 6r- gios sensoriais semelhantes aos de outros primatas, mas so coroados por uma capacidade excepcionalmente refinada para a criag&o de simbolos. Saber como o ser humano, que est4 ao mesmo tempo no plano do animal, da fantasia e do calculo, experiencia e entende o mundo é 0 tema central deste livro. Considerando os dotes humanos, de que maneira as pes- soas_atribuem significado e organizam 0 espago e 0 lugar? Quando se faz esta pergunta, o cientista social tentado a ver acultura como um fator explicativo. A cultura 6 desenvolvida unicamente pelos seres humanos. Ela influencia intensamente Introdugao 0 comportamento e os valores humanos. A sensa¢Ho de espaco e lugar dos esquimés é bem diferente aa dos americanos. Esta abordagem é valida, mas nao leva em conta o problema dos tragos comuns, que transcendem as particularidades culturais €, port t ¢fo_humana. Na observacio dos anto, refletem “universais”, ‘a comportamental provavelmente se volta para o comportamento andlogo do primata. Neste tra- balho, reconhecemos nossa heranca animal, bem como a im- portancia desempenhada pela cultura. A cultura é inevitavel, sendo explorada em todos os capitulos. Mas o propésito deste ensaio no é escrever um manual sobre a influéncia das cul- turas nas atitudes humanas em relagio a espaco e lugar. B antes um prélogo & cultura em sua infinita diversidade; e eintrelagaiin: 38 bidlégicos. As criangas tém apenas nogées muito grosseiras sobre espaco e lugar. Com o tempo adqui- rem sofisticagio. Quais so os estégios da aprendizagem? O corpo humano ou esta deitado, ou ereto. Em posigio ereta tem alto e baixo, frente e costas, direita e esquerda. Como estas posturas corporais, divisdes e valores sao extrapolados para o espago circundante? 2) As relagdes de espago e lugar. Na experiéncia, o signi- ficado de espago freqiientemente se funde com o de lugar. “Bspago” € mais abstrato do que “lugar”. O que comega como espaco indiferenciado transforma-se.em_lugar A medida que.o.conhecemos melhor ¢ 0 dotamos.de.yalor. Os arquitetos falam sobre as qualidades espaciais do lugar; podem igual- mente falar das qualidades locacionais do espago. As idéias de “espago” e “lugar” nfo podem ser definidas uma sem a outra. A partir da seguranga e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidao, da liberdade e da ameaga do espago, e vice- versa. Além disso, se pensamos no espaco como algo que permite movimento, entdo lugar é pausa; cada pausa no movi- mento torna possivel que localizagio se transforme em lugar. 3) A amplitude da experiéncia ou conhecimento. A expe- riéncia pode ser direta e intima, ou pode ser indireta e con- 7 Introdugéio ! ceitual, mediada por simbolos. Conhecemos nossa casa inti- mamente; podemos apenas conhecer algo sobre 0 nosso pais se ele é muito grande. Um antigo habitante da cidade de Minneapolis conhece a cidade, um chofer de taxi aprende a andar por ela, um gedgrafo estuda Minneapolis e a conhece conceitualmente. Estas so trés formas de experienciar. Uma pessoa pode conhecer um lugar tanto de modo intimo como” a iildadé de ex- pressar 0 que conhece através dos sentidos do tato, paladar, olfato, audigAo, e até pela visio. As pessoas tendem a eliminar aquilo que nao podem expressar. Se uma experiéncia oferece resisténcia a uma Silo comunicagio raépida, a resposta comum entre os praticos “fazedores”’) é consider4-la particular — se nao idiossinera- tica — e portanto sem importancia. Na_extensa_literatura sobre qualidade ambiental, .relativamente poucas-obras-ten- tam compreender-o que as pessoas.sentem. sobre.espago ¢€ lugar, considerar.as diferentes-maneiras.de experienciar-(sen- sorio-motora, tétil, visual, conceitual) e interpretar.espago-e lugar como imagens de sentimentos.complexos — muitas vezes ambivalentes. Os planejadores profissionais, com sua necessidade urgente de agir, apressam demais a produgao de modelos e inventdrios. Por sua vez, 0 leigo aceita sem muita hesitagio, dos planejadores carismaticos e, dos propagan- distas,. slogans sobre 0 meio ambiente que tenha recebido através da midia, esquecendo-se facilmente a rica informagao derivada da experiéncia, da qual dependem estas abstracées. » No entanto, é possivel articular sutis experiéncias humanas, tarefa a que os artistas vém se dedicando — freqiientemente com éxito, Em obras literarias, bem como em obras de psico- logia humanistica, filosofia, antropologia e geografia, est4o registrados intrincados mundos de experiéncias humanas. Este livro chama a atengiio para as questdes formuladas pelos humanistas sobre espago e lugar? Procura sistematizar os insights humanisticos, exp6-los em sistemas conceituais (aqui organizados na forma de capitulos), de modo que sua importancia seja evidente para nds, nado somente como seres pensantes interessados em saber mais sobre a nossa prépria weweve eee EE ee ee eee 8 Introdugao natureza — nossa potencialidade para experimentar — mas também como arrendatérios da Terra, preocupados na pra- tica com 0 projeto de um habitat mais humano. A abordagem é descritiva, visando mais freqiientemente a sugerir do que concluir. Em uma Area de estudo que é em grande parte experimental, talvez cada colocagio devesse terminar por um ponto de interrogacao ou ir acompanhada de oragdes adje- tivas. Pede-se ao leitor que as supra. Um trabalho exploraté- tio como este deve ter a virtude da clareza, mesmo que para isso seja necessdrio sacrificar 0 detalhe erudito e a qualifi- cago, Um termo-chave neste livro é “experiéncia”. Qual ¢ a natureza da experiéncia e da perspectiva experiencial? 2 Perspectiva Experiencial xperiéncia é um termo que abrange as diferentes ma- E neiras através das quais uma pessoa conhece e constréi a realidade. Estas maneiras variam desde os sentidos 7 mais diretos e passivos como o olfato, paladar e tato, até 2 j H percep¢ao visual ativa e a mancira indireta de simbolizagao.* Experiéncia sensacio, percep¢ao, concepgio ie EMOCAO_ emogio a pensamento PENSAMENTO As emogdes dao colorido a toda experiéncia humana, incluindo os niveis mais altos do pensamento. Os matema- ticos, por exemplo, afirmam que a expressio de seus teoremas é orientada por critérios est¢ticos — nogdes de elegancia ¢ simplicidade que respondem a uma necessidade humana. O pensamento da colorido a toda experiéncia humana, incluindo as sensacdes primérias de calor e frio, prazer e dor. A sen- sacdo é rapidamente qualificada pelo pensamento em um tipo 9 Perspectiva Experiencial especial. O calor é sufocante ou ardente; a dor, aguda ou fraca; uma provocagio irritante, ou uma forga brutal. A experiéncia est voltada para o mundo exterior..Ver e pensar claramente_yao além, do.eu. O sentimento é mais ambiguo, Segundo Paul Ricoeur, “O sentimento é (...) sem diivida intencional: é um sentimento por ‘alguma coisa’ — © amordvel, 6 odioso, (por exemplo]. Mas é uma estranha intencionalidade: por um lado indica qualidades sentidas quanto as coisas, quanto as pessoas, quanto ao mundo, e por outro manifesta e revela a maneira pela qual o eu € afetado intimamente”. No sentimento, “uma intengio e uma afeigao coincidem em uma mesma experiéncia”.? A experiéncia tem uma conotagio de passividade; a pa- homém ow mulher exper iente é éaquem tém acontecido muitas coisas. No entanto, nao f: das plantas Feferindo imais inferiores, a palavra “experiéncia” parece inapropriada. Porém existe um con- traste entre um cachorrinho e um experiente mastim; e os seres humanos so maduros ou imaturos dependendo de terem ou nao tirado vantagens dos acontecimentos. Assim, _a_expe- x iéncia implica a capacidade _de aprender a partir da propria vivéncia? Experienciar é aprender; significa atuar.sobre. 0 dado e criar a a partir dele. O dado no, pode ser conhecido em ima.criagdo de-sentimento e pensamento. Comiovafirmow Susanne Langer: “O mundo da fisica é essencialmente o mundo real interpretado pelas abs- tragdes matematicas, e o raundo do sentido é o mundo real interpretado pelas abstragdes imediatamente fornecidas pelos Srgiios dos sentidos.””4 Experienciar é vencer os perigos. A palavra “‘experiéncia”’ provém da mesma raiz latina (per) de ‘‘experimento”, “‘ex- perto” e “perigoso”.> Para experienciar no sentido ativo, é necessdrio aventurar-se no desconhecido e experimentar o ilu- s6rio e o incerto. Para se tornar um experto, cumpre arris- car-se a enfrentar os perigos do novo. Por que alguém se arrisca? O individuo é compelido a isso. Esta apaixonado, Perspectiva Experiencial e a paixdo é um simbolo de forca mental. O repertério emo- cional de um molusco é muito restrito quando comparado com o de um cachorrinho; e a vida afetiva do chimpanzé é quase tao variada e intensa quanto a do homem. Uma crianga nos primeiros anos de vida se distingue de outros filhotes de mamiferos tanto por seu desamparo como pelas suas bruscas reagdes de medo. Sua amplitude emocional, do sorriso ao acesso, insinua a extensio de seu potencial intelectual. A experiéncia é constituida de sentimento e pensamento. O sentimento humaro nao € uma su “de sensagdes dis- tintas; mais precisamente a meméria e a intuigdo sdio capazes de produzir impactos sensoriais no cambiante fluxo da expe- riéncia, de modo que poderiamos falar de uma vida do senti- mento como falamos de uma vida do pensamento. B.uma.ten- déncia comum referir-se ao sentimento e pensamento_como opostos, um Tegistrando estados subjetivos, 0 outro repor- tando-se A réalidade objetiva. De fato, estio proximos as du a maneiras de conhecer. us e pensar so processos..intimamente_relacionados. HA muito tempo, imples registro do que ja nao se considera a.visio apenas um estimulo da luz; ela 6 um processo seletiyo e.criativo em que os estimulos ambientais sao organizados em estruturas fluentes sinais significativos ao dr; o Orgio apropriado, Os sentidos do olfato € do tato sao educados mentalmente? Ten- demos a negligenciar 0 poder cognitivo desses sentidos. No entanto, 0 verbo francés savoir (“‘saber”) esta intimamente relacionado com 0 inglés savour. O paladar, 0 olfato e o tato podem atingir um extraordindrio refinamento. Eles discrimi- nam em meio A riqueza de sensagdes e articulam os mundos gustativo, olfativo e textural. A inteligéncia é necessdria 4 estruturagio dos mundos. Do mesmo modo que os atos intelectuais de ver e ouvir, os sentidos do olfato e tato podem ser melhorados com a prtica até chegarem a discernir mundos significantes. Os adultos podem desenvolver uma extraordindria sensibilidade para uma ampla variedade de fragrancias florais.’ Apesar de ser 0 ~~ ee voer vv vc oe Ve Tee 12 Perspectiva Experiencial nariz humano muito menos agugado que o nariz dos cies para detetar certos odores de baixa intensidade, as pessoas podem ser sensiveis a uma gama maior de odores do que os cies. Cachorros e criangas no apreciam o perfume das flores da mesma forma que os adultos. As criangas preferem 0 cheiro das frutas ao das flores.’ As frutas so boas para comer, assim a preferéncia.é compreensivel. Mas qual é 0 valor, para a sobrevivéncia, da sensibilidade aos dleos quimicos langados pelas flores? Esta sensibilidade nao serve a um propésito bioldgico definido. Pareceria que o nosso nariz, tanto quanto nossos olhos, procura ampliar e compreender o mundo. Alguns odores tém um poderoso significado biolégico. Por exemplo, os odores do corpo podem estimular a atividade sexual, Por outro lado, por que muitos adultos acham repul- sivo 0 cheiro de putrefagéo? Mamiferos, com narizes muito mais agucados que 0 do homem, toleram e até apreciam cheiros de carne putrefata, que desagradariam ao homem. As criangas pequenas, também, parecem ser indiferentes aos cheiros fétidos. Langer sugere que os odorés de putrefacaio sao memento mori* para os adultos, mas que n4o tém essa cono- taco para os animais c as criancas.* O tato articula outra classe de mundo complexo. A m&o humana € incomparavel em sua forga, agilidade e sensibilidade. Os primatas, in- cluindo o homem, usam as mios para conhecer e confortar os membros de sua propria espécie, mas 0 homem também usa as nos para explorar o meio ambiente fisico, diferenciando-o cuidadosamente pelo tato da casca e da pedra Os homens adultos nao gostam de ter sobre a pele substdncias pegajosas, talvez porque elas destruain a capacidade de discernimento da pele. Tais substdncias entorpecem, como éculos embagados, afaculdade de exploragao. O meio ambiente arquiteténico moderno pode agradar aos olhos, mas freqiientémente carece da personalidade esti- (©) Expressio latina que se traduz por: “Lembra-te que iris morrer”. Designa particularmente um objeto simbélico que sirva ao homem como adverténcia de sua condigfo mortal (N, da E.). 13 Perspectiva Experiencial mulante que pode ser proporcionada pelos odores variados agradaveis. Eles imprimem carter aos objetos e lugares, tor- nando-os distintos, faceis de identificar e lembrar. Os odores sao importantes para os seres humanos. Fizemos referéncia a um mundo olfativo, mas podem as fragrancias e perfumes constituir um mundo? “Mundo” sugere estrutura espacial; um mundo olfativo seria aquele em que os odores estado espa- cialmente arranjados, e no simplesmente aquele onde apa- recam em sucessao acidental ou como misturas rudimentares. Podem outros sentidos, além da vis&o e do tato, proporcionar um mundo espacialmente organizado? E possivel argumentar que o paladar, o odor e mesmo a audi¢%o no nos dao, por si mesmos, a sensago de espago-” A quest&o € muito acadé- mica, porque a maioria das pessoas fazem uso dos cinco sen: tidos, que se reforgam mtitua e constantemente para fornecer o mundo em que vivemos, intrincadamente ordenado e carre- gado de emogdes. O paladar, por exemplo, envolve quase invariavelmente 0 tato e o olfato: a lingua rola ao redor da bala, explorando sua forma enquanto o olfato registra o aroma de caramelo. Se podemos ouvir e cheirar algo, pode- mos muitas vezes também vé-lo, Quais so os érgios sensoriais ¢ experiéncias que per- mitem aos seres humanos fer sentimentos intensos pelo espago visio € POS © as pernas. Bag bdsicos para que tomemos consciéncia do espaco. éxpéiiéiciado quando hé fugar para se mover. Ainda ae mudando de um lugar para outro, a pessoa adquire um.sentido de diregZo. Para frente, para tras e para os lados s&o diferenciados pela experiéncia, isto é, conheci dos subconscientemente-no ato de movimentar-se. O espaco assume uma organizacao coordenada rudimentar céntrada no eu, que se move e se direciona. Os olhos humanos, por terem superposi¢do bifocal e capacidade e estereoscépica, proporcio- nam as pessoas um espaco vivido, .em_trés.dimensdes. A expe- riéncia, contudo, é necesséria. Uma crianga ou um adulto cegos de nascimento mas que tenham recentemente recupe- rado a visio, precisam de tempo e pratica para perceber que 0 14 Perspectiva Experiencial mundo se constitui de objetos tridimensionais estaveis e dis- postos no espaco, em vez de padroes mutaveis e cores. Tocar e manipular coisas com a mio produz.x de objetos — Avangar até as coisas e brincar com elas revela a Sua descon- tinuidade e a sua distancia relativa. O movimento _intencional ga percepcao, tanto. visual. como haptica,, dao 0s. seres hu- O lugar é uma classe esp: valor, emibora Ao seja uma coisa.valiosa,.que.possa.ser. GAL ménte ‘manipulada © ou leyada. de um.lado.para. objeio no, qual se_pode morar. O espago, como ja mencio- namos, é dado pela capacidade de mover-se. Os movimentos freqiientemente sio dirigidos para, ou repelidos por, objetos & lugares. Por isso 0 espaco pode ser_experienciado de varia: maneiras: como a localizagao relativa de objetos ou lugares, como as dist&ncias e extensées que separam ou.ligam. 0s_ Ju- gares, e — mais fabetrataments — como a 4rea definida por O paladar, o olfato, a sensibilidade da pele e a audigao nao podem individualmente (nem sequer talvez juntos) nos tornar cientes de um mundo exterior habitado por objetos. No entanto, em combinagao com as faculdades “‘espacializantes” da visdo e do tato, estes sentidos essencialmente nio distan- ciadores enriquecem muito nossa apreensio do carater espa- ‘cial e geométrico do mundo. Em inglés, por exemplo, quali- ficam-se alguns sabores como sharp, e outros como flat.* O significado destes termos geométricos é realgado pelo uso metaf6rico no reino do paladar. O odor é capaz de sugerir massa e volume. Alguns cheiros, como de almiscar ou de angélica, s4o “fortes”, ao passo que outros sao “delicados”” “finos”, ou “‘leves’’. Os carnivoros dependem do sentido agu- (*) Os adjetivos sharp e flat significam neste contexto, respectiva- mente, “picante” e-“‘insipido”. Quando se referem, porém, a formas, sto outros os termos correspondentes em nosso idioma. Sharp equivaleria a “em dngulo agudo”; e flat, a “plano”, “liso” (N. da E.). 15 ‘spectiva Experiencial A. Espaco definido pela localizacao relativa dos entrepostos (mulher Aivilik) esquimé Alvilik 0 do cacador * Groeatindia Porto Hacrison Cc “Suglok + Cabo Dorset “Wala Frobisher Enseada Ponds - Forte Ross oat, Hnseada dos Ledes at, Ensenda« Bathurst, + Repulsa *Enseada Ponds Ree * ©lltha Southampton (sede) ‘atalik "Ponto Esquim6 Mle Mérinore “tha das Morsas A\Reputsa Brandon oe AOAROMAHAMAARA Ae @ “Terra do Homem Branco * Mais HomensBrancos & son 8 & Figura 1, O espago como localizagio relativa ¢ como espaco demarcado. te O espago da mulher esquimé (Aivilik) 6 definido essencialmente pela loca- a lizagito e pela distancia de pontos significantes, na maioria entrepostos (A), como percebidos do ponto de vista da sede na ilha de Southampton, ao GQ passo que a idéia de limite (a linha da costa) € importante para o sentido de - espaco do homem esquimé (B). Edmund Carpenter, Frederick Varley e o Robert Flaherty, Eskimo. Toronto, University of Toronto Press, 1959, p. 6. 8 Reimpresso com permissio da University of Toronto Press. o eG cado do olfato para seguir e capturar a presa, e pode ser que 6 seu nariz seja capaz de articular um mundo espacialmente * é estruturado — pelo menos aquele que se diferencia pela dire- cio e distancia. O nariz do homem é um érgio bastante atro- + fiado. Dependemos da vista para localizar as fontes de perigo & e de atrago, mas, com o auxilio de um mundo visual anterior, . o nariz do homem também pode discernir direcao e calcular a distancia relativa através da intensidade de um cheiro. Uma pessoa que manipula um objeto, sente nio apenas sua textura mas suas propriedades geométricas de tamanho e forma. Prescindindo da manipulagao, a sensibilidade da pele, 16 Perspectiva Experiencial por si s6, contribui para a experiéncia espacial do homem? Ela contribui, embora de forma limitada. A pele registra sensagdes. Informa sobre sua propria condigéo e ao mesmo tempo sobre a condigdo do objeto que a esta pressionando. Porém a pele nao sente a distancia. Neste aspecto a percepgao tatil est4 no extremo oposto da visual. A pele é capaz de transmitir certas idéias espaciais e pode fazé-lo sem 0 apoio dos outros sentidos, dependendo somente da estrutura do corpo ¢ da capacidade de movimento. O comprimento rela- tivo, por exemplo, é registrado quando diferentes partes do corpo sto tocadas ao mesmo tempo. A pele pode transmitir uma sensagio de volume e massa. Ninguém duvida de que “entrar em uma banheira com 4gua morna d& a nossa pele uma sensagio mais macica do que uma alfinetada”.” A pele, quando entra em contato com objetos achatados, pode avaliar aproximadamente a sua forma e tamanho. Em pequeno nivel, a aspereza e suavidade s&o propriedades geométricas que a pele reconhece facilmente. Os objetos também sfo duros ou moles. A percepgio tatil diferencia estas caracteristicas na evidéncia espacio-geométrica. Assim, um objeto duro, sob pressdo, retém a sua forma, enquanto um objeto mole nfo a retém.” O sentido de distancia e de espago se origina da capaci- dade auditiva? O mundo do som parece estar espacialmente estruturado, embora sem a agudeza do mundo visual. E possi- vel que 0 cego que pode ouvir, mas nao tem mios € apenas pode mover-se, carega de sentido de espago; talvez para tais pessoas todos os sons sejam sensagdes corporais e nao indi- cagdes sobre o carater de um meio ambiente. Poucas pessoas tém deficiéncias tio sérias. Tendo visio e possibilidade de. mover-se e de usar as mios, os sons enriquecem muito o sentimento humano em relagéo ao espaco. As orelhas do homem nio so flexiveis, por isso estéo menos aparelhadas para discernir direcdo do que, por exemplo, as orelhas de um lobo. Mas, virando a cabeca, uma pessoa pode aproximada- mente dizer a direcio dos sons. As pessoas identificam sub- conscientemente as fontes de rufdo, e a partir dessa infor- magio constroem 0 espaco auditivo. 5 HL Perspectiva Experiencial Os sons, embora vagamente localizados, podem transmi- tir um acentuado sentido de tamanho (volume) e de distancia. Por exemplo, numa catedral vazia, o ruido de passos res soando claramente no chao de pedra cria a impressio de uma vastidao cavernosa. A respeito do poder do som em evocar distancia, Albert Camus escreveu: “A noite, na Algéria, po- demos ouvir os latidos dos cées a uma distAncia dez vezes maior do que na Europa. Assim, o ruido assume uma nos- talgia desconhecida em nossos paises confinados.”” Os cegos desenvolvem uma aguda sensibilidade para os sons; sio capa- zes de usa-los € a suas ressonancias para avaliar 0 carater espacial do meio ambiente. As pessoas que podem ver siio menos sensiveis aos indicadores auditivos porque nao depen- dem tanto deles. Todos os seres humanos aprendem a relacio- nar som e distncia ao falar. Alleramos 0 tom da nossa voz, de baixo para alto, de intimo para publico, de acordo com a distancia social e fisica percebida entre nés e os outros. O volume e a express&o da nossa voz, tanto como o que procu- ramos dizer, sao lembretes permanentes de proximidade e de distancia. O proprio som pode evocar impressdes espaciais. Os es- trondos do troviio so volumosos; 0 estridulo do giz no quadro negro € “‘comprimido” e fino, Os tons musicais baixos sao volumosos, enquanto os agudos parecem finos ¢ penetrantes. Os musicélogos falam de “espago musical”. Em misica criam-se ilusdes espaciais completamente independentes do fendmeno de volume ¢ do fato de 0 movimento logicamente implicar espago.'> Com freqiiéncia se diz que a miisica tem forma. A forma musical pode dar vez a uma confirmagio do sentido de orientagio, Para o musicdlogo Roberto Gerhard, “forma na miisica significa saber exatamente, a cada ins- tante, onde se esta. A consciéncia da forma é realmente uma sensacao de orientacio” Os diversos espagos sensoriais parecem-se muito pouco entre si. O espago visual, com a sua nitidez e tamanho, difere profundamente dos difusos espacos auditivo e tatil-sensorio- motor. Um homem cego cujo conhecimento do espacgo deriva de indicadores auditivos ¢ tateis no pode, por algum tempo, Perspectiva Experiencial apreciar o mundo visual quando recupera a visdo. O interior abobadado de uma catedral e a sensagao de entrar em uma banheira com 4gua morna significam volume ou espaciosi- dade, apesar de serem as experiéncias dificilmente compa raveis. Da mesma forma, 0 significado de distancia é tao va- riado quanto as maneiras de experiencid-la: adquirimos o _ sentido de-distancia, pelo esforco de mover-nos de um lugar para outro, pela necessidade de projetar nossa voz, por ouvir 0 latido dos cies a noite, e pelo reconhecimento dos indicadores ambientais da perspectiva visual. , A dependéncia visual do homem para organizar 0 espago nao tem igual. Os outros sentidos ampliam e enriquecem 0 espago visual. Assim, 0 som aumenta a nossa consciéncia, incluindo Areas que estdo atrds de nossa cabega e nao podem ser vistas. E 0 que é mais importante: o som dramatiza a experiéncia espacial. Um espaco silencioso parece calmo e sem vida nao obstante a sua visivel atividade, quando obser- vamos, por exemplo, acontecimentos através de bin6culos ou na tela da televisio com o som desligado, ou em uma cidade abafada por um manto de neve fresca."” ye Os espacos do homem refletem a qualidade dos seus sen- #tidos e sua mentalidade. A mente freqiientemente extrapola além da evidéncia sensorial. Considere-se a nogao de vastidao. A vastidao de um oceano nao é percebida diretamente. “Pen- samos no oceano como um todo”, diz William James, “multi- plicando mentalmente a impress%o que temos a qualquer ins- tante em que estamos em alto mar.’ Um continente separa Nova York de Sao Francisco. Uma distancia desta magnitude é compreendida através de simbolos numéricos ou verbais calculados, por exemplo, em dias de viagem. “Porém 0 sim- bolo freqiientemente nos dard 0 efeito emocional da percep- ¢40. Expressdes como a abismal abéboda celeste, a vastidéo infinda do oceano, etc., resumem muitos cAlculos da imagi- nagio, e do a sensagao de horizonte imenso.” Alguém com a imaginac4o matematica de Blaise Pascal olhara para o céu e se sentir consternado pela sua infinita vastidao. Os cegos sao capazes de conhecer o significado de um horizonte distante. Eles podem extrapolar de sua experiéncia de espaco audilivo e 19 Perspectiva Experiencial da liberdade de movimento para contemplar com os olhos da mente vistas panordmicas e 0 espaco infinito. Um cego contou a William James que “ele acreditava que poucas pessoas que véem poderiam desfrutar, mais do que ele, o cenario do cume de uma montanha.”” A mente discrimina desenhos geométricos e principios de organizacao espacial no meio ambiente. Por exemplo, os in- dios Dakota acham em quase todas as partes da natureza a evidéncia de formas circulares, desde a forma dos ninhos dos passaros até o trajeto das estrelas. Ao contrario, os indios Pueblo, do Sudoeste do Estados Unidos, tendem a ver espa- cos de geometria retangular. Estes so exemplos do espago interpretado, que depende do poder da mente de extrapolar muito além dos dados percebidos, Tais espagos est4o no ex- tremo conceitual do continuum experiencial. Existem trés tipos principais, com grandes 4reas de superposi¢éo — o mi- tico, o pragmatico, e o abstrato ou teérico. O espaco mitico & um esquema conceitual, mas também é espago pragmatico no sentido de que dentro do esquema é ordenado um grande niimero de atividades praticas, como o plantio e a colheita. Uma diferenga entre 0 espaco mitico e o pragmatico é que este é definido por um conjunto mais limitado de atividades eco- némicas. O reconhecimento de um espaco pragmatico, como cinturdes de solo pobre e rico, é sem diivida um feito inte- lectual. Quando uma pessoa habilidosa procura descrever cartograficamente o padrao do solo, usando simbolos, ocorre um progresso conceitual. No mundo ocidental, os sistemas geométricos, isto é, espacos altamente abstratos, foram cria- dos a partir de experiéncias espaciais primordiais. Conse- qiientemente, as experiéncias sens6rio-motoras e tAteis pare- cem estar na origem dos teoremas de Euclides concernentes 4 congruéncia de forma e o paralelismo de linhas distantes; e a percepcio visual é a base da geometria projetiva. Os homens n&o apenas discriminam padrées geométricos na natureza e criam espagos abstratos na mente, como tam- bém procuram materializar seus sentimentos, imagens e pen- samentos. O resultado é 0 espago escultural e arquitetural e, em grande escala, a cidade planejada. Aqui 0 progresso vai POH FEHHHAE DOO ABAAHHAMHAOR OH MAA AMAMRAMRAAE 20 Perspectiva Experiencial desde sentimentos rudimentares pelo espago e fugazes discer- nimentos na natureza até a sua concretizagao material e pii- blica. O lugar é um tipo de objeto. Lugares e objetos definem 0 espaco, dando-lhe uma personalidade geométrica. Nem a crianga recém-nascida, nem 0 cego que recupera a visio, apds uma vida de cegueira, podem reconhecer de imediato uma forma geométrica como o triangulo. A principio, o triangulo é “espaco”, uma imagem embagada. Para reconhecer o trian- gulo é preciso identificar previamente os fngulos — isto é, lugares. Para 0 novo morador, o bairro é a principio uma confuséo de imagens; ‘‘l4 fora” & um espago embacado. Aprender a conhecer 0 bairro exige a identificacdo de locais significantes, como esquinas e referenciais arquiteténicos, dentro do espago do bairro. Objetos ¢ lugares s4o nticleos de valor. Atraem ou repelem em graus variados de nuangas. Preocupar-se com eles mesmo momentaneamente é reconhe- cer a sua realidade e valor. O mundo do bebé carece de objetos permanentes e est dominado por impressdes fugazes. Como as impressdes, recebidas através dos sentidos, adqui- rem a estabilidade de objetos ¢ lugares? A inteligéncia se manifesta em diferentes tipos de reali- zacho. Uma é a capacidade de reconhecer e sentir profunda- mente o particular. A diferenga entre os mundos esquema- ticos dos animais ¢ os dos homens é que os destes estao densa- mente povoados com coisas pessoais ¢ coisas permanentes. As coisas pessoais que valorizamos podem receber nomes: um jogo de cha é Wedgewood e uma cadeira 6 Chippendale. As pessoas tém nome préprio. Elas sto coisas especiais que po- dein ser os primciros objetos permanentes no mundo do bebé, de impressdes instaveis. Um objeto como um precioso vaso de cristal é reconhecido por sua forma inigualavel, seu desenho decorativo e seu tilintar quando batido levemente. Uma ci- dade como Sao Francisco é reconhecida pelo ceniério sem par, topografia, skyline, odores e ruidos das ruas.” Um objeto ou lugar atinge realidade concreta quando nossa experiéncia com ele é total, isto é, através de todos os sentidos, como também com a mente ativa e reflexiva. Quando residimos por muito 21 Perspectiva Experiencial tempo em determinado lugar, podemos conhecé-lo intima- mente, porém a sua imagem pode nao ser nitida, a menos que possamos também vé-lo de fora e pensemos em nossa expe- riéucia. A outro lugar pode faltar o peso da realidade porque o conhecemos apenas de fora — através dos olhos de turistas e da leitura de um guia turistico. E uma caracteristica da espé- cic humana, produtora de simbolos, que seus membros pos- sam apegar-se apaixonadamente a lugares de grande tama- nho, como a nagio-estado, dos quais eles sé podem ter uma experiéncia dircta limitada. 3 Espaco, Lugar : ea Crianga mentos ¢ idéias relacionados com espago e lugar. Ori- ginam-se das experiéncias singulares e comuns. No entanto cada pessoa comeca como uma crianca. Com o tempo, do confuso e pequeno mundo infantil, surge a visio do mundo do adulto, subliminarmente também confusa, mas sustentada pelas estruturas da experiéncia e do conhecimento conceitual. Apesar de estarem as criangas, logo apés o nascimento, sob influéncias culturais, os imperativos biol6gicos do crescimento impdem curvas crescentes de aprendizagem e compreensio que s4o semelhantes e podem, portanto, transcender a énfase especifica da cultura. Como uma crianga pequena percebe e entende o seu meio ambiente? Existem respostas bastante satisfat6rias. O equi- pamento biolégico da crianga, por exemplo, fornece indicios dos limites de seus poderes. Ainda mais, podemos observar como se comporta a crianga em situagdes controladas ou de vida real. Podemos também nos perguntar qual é a qualidade do sentimento do mundo da criancga? Qual é a natureza de suas afeigdes pelas pessoas e pelos lugares? Estas questdes so mais dificeis de responder. Um retorno introspectivo 4 nossa propria infancia é freqiientemente decepcionante, porque ten- WN o homem adulto sao extremamente complexos os senti- 22 Sar a A AR 23 Espago, Lugar ea Crianga dem a desaparecer as paisagens luminosas e sombrias de nossos primeiros anos, e perduram apenas alguns aconteci- mentos importantes, como aniversdrios e 0 primeiro dia de escola. Esta capacidade da maioria das pessoas de recapturar o clima do seu mundo infantil sugere até onde os esquemas do adulto, aparelhados principalmente para as exigéncias prati- cas da vida, diferem daqueles da crianca! Porém a crianga é0 pai do homem, e as categorias perceptivas do adulto sao de vez em quando impregnadas de emog&es que procedem das primeiras experiéncias. Estes momentos do passado, carre- gados de emogio, as vezes sio captados pelos poetas. Como instantaneos naturais extraidos do 4lbum de familia, as suas palavras nos lembram uma inocéncia e um temor perdidos, uma proximidade de experiéncia que ainda nao sofreu (ou se beneficiou) do distanciamento do pensamento reflexivo. A biologia condiciona nosso mundo perceptivo. Quando oser humano nasce, seu c6rtex cerebral tem apenas 10 a 20% do complemento normal de células nervosas de um cérebro maduro; além disso, muitas das células nervosas existentes nao estado conectadas umas 4s outras.? A crianga ndo tem (mundo. Ela nao é capaz de distinguir entre o eu e 0 meio / ambiente externo, Ela sente, mas suas sensagdes nio estéo \ localizadas no espaco. A dor esta ai simplesmente, e ela Ihe | responde chorando; n&io parece que ela a localiza em uma | parte especifica de seu corpo. Apenas por um curto tempo, os | homens, quando criangas, conheceram como é viver em um | mundo nao dualista. Durante as primeiras semanas de vida, os olhos do recém-nascido nao focalizam adequadamente. Ao final do primeiro més, 0 bebé é capaz de fixar o olhar em um objeto que esteja em sua visada, e ao final do segundo més comega a aparecer a fixagdo binocular com convergéncia3 No entanto, ainda no quarto més, a crianga mostra pouco interesse em explorar visualmente o mundo além de um raio de um metro.* A crianga nao se locomove e somente pode fazer pequenos movimentos com a cabecga e os membros. Mover o corpo seguindo. uma linha mais ou menos reta é essencial para a construg&o do espaco experiencial mediante as coordenadas weer ere Se ere vuvveveos weee a 24 Espago, Lugar ea Crianga basicas de frente, atrés e lados. A maioria dos mamiferos, logo apés o nascimento, adquire um sentido de orientag’o, dando alguns passos seguindo a mae. A crianca deve adquirir esta habilidade mais gradualmente devido a sua lenta matu- ragdo. Que acontecimentos e atividades podem dar a crianga a sensago de espaco? Um bebé, no mundo ocidental, passa grande parte de seu tempo deitado. De vez em quando é carregado para arrotar, brincar e fazer agrado. A partir desses acontecimentos pode advir a distingio experimental entre horizontal e vertical. No nivel de atividade, uma crianga co- nhece 0 espago porque pode mover seus membros: chutar o cobertor que a incomoda é uma amostra da liberdade que, no adulto, est associada com a idéia de ter espago. Uma crianga explora 0 meio ambiente com sua boca.> A boca se ajusta ao contorno do seio da mae. Mamar é uma atividade muito gratificante, pois requer a participagao de diferentes sentidos: tato, olfato e paladar. Além disso, mamar alimenta 0 bebé, dando-lhe uma sensac&o de prazer. O est6mago se dilata e se contrai 4 medida que o alimento entra e é digerido. Esta fungao fisiolégica, ao contrério de respirar, é identificada conscientemente com estados alternados de desconforto e sa- tisfagdo. “Vazio” e “‘cheio” sio experiéncias viscerais de im- portancia definitiva para o homem. O bebé as conhece e res- ponde com choro ou sorriso. Para o adulto, tais experiéncias corriqueiras adquirem um significado metaf6rico adicional como sugerein as expressdes: ‘‘chorar de barriga cheia”, ‘‘sen- tir um vazio por dentro”, “estar na plenitude da vida”. A crianga usa suas maos para explorar as caracteristicas tateis e geométricas de seu meio ambiente, Enquanto a boca agarra 0 bico do seio e adquire a sensac¢’o de espago bucal, as maos movemyse ativamente sobre o scio. Bem antes que os olhos da crianca possam se fixar em um pequeno objeto e discriminar sua forma, suas mdos ja o apreenderam e conheceram suas propriedades fisicas através do tato. © O mundo visual da crianga é especialmente dificil de descrever porque somos tentados a atribuir-lhe as categorias \ bem conhecidas do mundo visual do adulto, A maior parte 25 Espago, Lugar ea Crianga das vezes nos escapa como os sentidos do olfato, paladar e tato estruturam 0 meio ambiente; até mesmo as pessoas cultas nao tém um yocabulirio diversificado para descrever os mundos olfativo e tatil. Mas nao enfrentamos problema algum com o visual. Gravuras e diagramas, tanto quanto as palavras, estio 4 nossa disposi¢io. O mundo visto através dos olhos dos adultos ou das criancas mais velhas é vasto e nitido; nele os objetos estao claramente ordenados no espaco. Isto nao acon- teée com o bebé. Falta.ao seu espago visual estrutura e perma- néncia, Os objetos neste espago sto impressdes; portanto ten- demi a existir-para ele-somente enquanto permanecem em seu campo visual.* As formas ¢ tamanhos dos objetos carecem de constancia, que as criangas mais velhas ja identificam. Piaget afirma que um bebé pode nao reconhecer a mamadeira quando é dada ao contrario; com cerca de oito meses aprende avira-la” Para uma crianga mais velha, com experiéncia, um objeto parece menor a distancia, e a diminuigio em tamanho de um objeto que recua é sem pensar interpretada como um aumento da distancia. Para o bebé, no entanto, um objeto que parece pequeno porque esta distante pode ser tomado como um outro objeto. O bebé possui uma capacidade inata para reconhecer as qualidades rudimentares das coisas tridimen- sionais, sua constancia de tamanho e forma e a distincdo entré longe e perto, mas o reconhecimento age dentro de um campo muito restrito comparado com o de um bebé que ja esta enga- tinhando’ A capacidade de ver est intensamente firmada em expe- riéncias nao visuais. Mesmo para uma crianga mais velha, a lua no alto é facilmente considerada como um objeto dife- rente da lua no horizonte. Que a Lua se move ao redor da Terra é uma abstrag4o alheia 4 experiéncia da crianga: a Lua é vista apenas em dados momentos, separados por intervalos de tempo que a crianga sente quase como eternos. A gravura de uma estrada que leva a um distante chalé parece facil de interpretar; contudo:a estrada s6 tem sentido completo para alguém que a tenha percorrido. Uma crianga que no anda, no pode tor sentido de distdncia quanto ao gasto de energia para veticer uma barreira espacial. Uma crianca aprende de- 26 Espaco, Lugar ea Crianga pressa a ler os indicadores espaciais e ambientais, mesmo quando lhe sao apresentados em forma de gravura. Um jovem apreciador de livros, de trés ou quatro anos, ja pode olhar em uma gravura um caminho que desaparece na mata e ver a si mesmo como o heréi de uma iminente aventura. g O primeiro ambiente que a crianca descobre é seus pais. “, O primeiro objeto permanente e independente que ela reco- ' nhece é talvez outra pessoa. As coisas aparecem e continuam a existir somente quando a crianga lhes dé ateng4o; mas logo se introduz em sua consciéncia nascente a 'realidade indepen- dente do adulto, que existe com ou sem sua atencdo? Os adultos sao necessdrios, nao somente para a sobrevivéncia biolégica da crianca, mas também para desenvolver seu sen- tido de mundo objetivo. Uma crianga de poucas semanas ja aprendeu a prestar atencao a presenca de gente. Ela comega a adquirir 0 sentido de distancia e direc&o através da necessi- dade de julgar onde possa estar o adulto. Ao final do primeico més, é capaz de seguir com os olhos apenas um percepto distante — o rosto do adulto. Um bebé com fome e chorando se acalma e abre a boca ou faz movimentos de sucg%o quando vé aproximar-se um adulto. Um bebé de oito meses esta atento aos ruidos, especial- mente os dos animais e das pessoas no quarto vizinho. Ele presta atencao neles; a sua esfera de interesses se expande além do que é visivel e do que lhe preocupa. No entanto, © seu espaco comportamental permanece pequeno. Parece que se desanima facilmente com as dificuldades percebidas. Segundo Spitz, ao redor dos oito meses o horizonte espacial da crianga esta limitado pelas grades do seu berco ou do qua- drado. “Dentro de seu quadrado, ela pega seus brinquedos com facilidade. Se o mesmo brinquedo lhe é oferecido de fora das grades do seu quadrado, ela estende as maos, mas estas se detém nas barras; no continua o movimento além delas; poderia facilmente fazé-lo, porque as barras tém suficiente espaco entre si. E como se 0 espaco terminasse com o seu quadrado, Duas ou trés semanas apés os oito meses, repenti- namente compreende e é capaz de continuar seu movimento além das barras e pegar seu brinquedo.”"” 27 paco, Lugar ea Crianca O bebé que engatinha pode explorar 0 espacgo. O movi- | mento além da vizinhanga imediata da mae ou fora do bergo « acarreta riscos que 0 bebé nao esté preparado para enfrentar. | Os instintos de sobrevivéncia n&o estéo bem desenvolvidos. | O medo de estranhos aparece entre seis € dito meses. Antes | desta etapa, o bebé nao distingue os rostos familiares dos nio | familiares; a partir dai vira a cabeca ou chora quando um \ estranho se aproxima!' O ambiente inanimado fornece pou- cos sinais claros de perigo para o intrépido bebé explorador. Qualquer coisa que pode ser agarrada é agarrada ou colo- cada na boca para um conhecimento mais intimo; 0 medo do fogo e da Agua tem que ser aprendido. Para a crianga que engatinha, 0 espaco horizontal parece seguro. Ela esta cons- ciente de um tipo de perigo no ambiente fisico: 0 precipicio. Experimentos tm demonstrado que um bebé nao engatinhara em cima de uma placa de vidro colocada sobre um buraco com lados verticais apesar do encorajamento da mae. Seus olhos reagem aos sinais de mudanga brusca de declividade.'* A crianga pequena, tio logo aprende a andar, quer ir atrés da mie e explorar 0 ambiente dela. Quanto mais hostil o ambiente, maior a dependéncia da protegao do adulto. Por exemplo, bebés bosquimanos do sudoeste da Africa sio menos propensos a perder-se da m&e quando estdo brincando e cor- rem mais facilmente para ela do que as criangas ocidentais. Em um estudo sobre 0 comportamento ao ar livre de criancas inglesas, de um ano e meio a dois anos, Anderson notou que raramente elas se distanciam mais de sessenta metros de suas- mies. A crianga, caracteristicamente, se move em pequenas investidas de nao mais do que poucos segundos. Ela para entre as investidas por periodos semelhantes. Quando cami- nha, a crianga gasta a maior parte do seu tempo aproxi- mando-se ou distanciando-se de sua mae. Os objetos e. os acontecimentos no meio ambiente nao parecem afetar a ma- neira como a crianga se move. A crianga necessariamente no se distancia da mae porque foi atraida por um objeto, nem’ volta correndo por causa de um objeto. Os movimentos tém um carater brincalhdo de experimentagao. A crianga “‘se dis- tancia um pouco da mie, se detém para olhar ao redor, presta Cm ee mm mw we coor rer OO re ee ee eS ‘ Espaco, Lugar ea Crianga atencao as causas dos sons e dos estimulos visuais.e em alguns casos atrai a atengio da mae. Entremeado com o distante passar dos olhos, esta um exame do chao: pega folhas, grama, pedras e sujeira; rasteja ou pula para frente e para tras sobre 0s paus c tenta sacudir ou trepar em obstaculos.”"" Apontar é um gesto comum. Qualquer cena ou barulho que chama a atencao da crianca 6 suficiente para esse gesto. Freqiiente- mente o adulto nao consegue discernir a fonte do estimulo. Pode ser imaginario. “Uma crianga pode apontar para um lado do horizonte onde nada se moye e dizer 4 m&e que um homem vem vindo.”"> E interessante observar a aparente preocupagio da crianga com o distante e 0 préximo. Ela aponta para o horizonte ¢ brinca com as pedras a seus pés, mas mostra pouco interesse com 0 que esta no meio. Os bebés e as criangas pequenas tendem a articular o mundo em categorias polarizadas. Reparam e classificam as coisas com base nos contrastes maiores. A propria linguagem comega quando a crianga para de balbuciar indiscriminada- mente e passa a fazer experiéncias coin sons altamente dife- renciados. A primeira vogal é 0 a bem aberto ¢ a primeira consoante é a oclusiva p ou b feitos com os labios. A primeira oposigao consonantal é entre as oclusivas nasal e oral (mamai/ papa); em seguida vem a oposicao das labiais ¢ dentais (papa/ tata e mam4/nana). Juntas, elas compreendem o sistema consonantal minimo de todas as linguas do mundo.'* Entre o sexto e oilavo més, como j4 mencionamos, 0 bebé come¢a a separar as pessoas entre “familiares” e “estranhos”. Pouco depois discrimina os brinquedos inanimados. Quando os brin- quedos s%o colocados em sua frente, ele pega o que prefere em vez do que esta mais proximo. Uma crianga de um ano, no colo, levanta seus bracos para indicar “para levantar’’; con- torce-se e olha para baixo quando quer dizer “para descer’”’. Os opostos espaciais sto claramente diferenciados por uma crianga de dois a dois anos e meio de idade. Estes incluem em cima e embaixo, aquie 14, longe e perto, topo e fundo, sobre e sob, cabeca c cauda, frente ¢ atras, porta da frente e porta de tras, botdes da frente e botdes das costas, casa e exterior.!” Uma crianga que engatinha é capaz de verbalizar algumas 29 Espaco, Lugar ea Crianga destas oposigdes. Nao sio muito especfficas. Uma crianga pequena distingue entre “casa” e “exterior” como seus luga- res de brinquedo mais do que “meu quarto” e “jardim”. Os extremos opostos no sio entendidos tao bem; por exemplo “aqui” tem um significado maior do que “14”, e “em cima” é mais rapidamente compreendido do que “embaixo”.* Os trabalhos de Piaget e seus colaboradores (ém repeti- damente mostrado que a inteligéncia sensério-motora pre- cede, ds vezes por varios anos, a apreensdo conceitual. Du- rante as atividades do dia-a-dia, a crianga revela habilidades espaciais que esto muito além de sua compreensao intelec- tual. Um bebé de seis meses pode discriminar entre um qua- drado c um triangulo, mas 0 conceito de quadrado como uma fornia determinada nao aparece até ao redor dos quatro anos, quando também pode desenha-lo. Além disso, uma crianga pequena pode ter a nocao da linha reta como a trajet6ria de um objeto em movimento (0 caminhdo que ela empurra ao longo da borda da mesa), mas 0 conceito geométrico de linha reta no aparece antes dos seis ou sete anos.” Antes dessa idade, a crianga niio desenha espontaneamente uma linha reta e nao consegue apreender a idéia de diagonal.” A crianca que comega a andar, logo anda com um propésito: sai de um ponto-base, dirige-se para 0 objeto desejado e volta ao ponto de saida por um caminho diferente. Uma crianga sadia de trés ou quatro anos nao se perde dentro de sua casa e de vez em quando visita os vizinhos. Estas realizacdes sensério-motoras, contudo, nao implicam um conhecimento conceitual das rela- goes espaciais. Criangas suigas de cinco a seis anos de idade podem ir A escola e yoltar para casa sozinhas. Elas tém difi- culdades em explicar como fazem isto. Uma crianga “‘lembra apenas de onde ela parte e aonde chega, e que tem de dobrar uma esquina em secu caminho. Nao consegue se lembrar de nenhum referencial, e o desenho de seu trajeto nao apresenta nenhuma relag&o com a planta da escola e do bairro.” Outra crianga “Iembra os nomes das ruas, mas n&o sua ordem ou os lugares em que deve virar. Seu desenho é apenas um arco com varios pontos aleatoriamente assinalados para corresponder aos nomes que ela lembra.””” vu Espago, Lugar ea Crianga O quadro de referéncia espacial de uma crianga é limi- ! tado. Os desenhos das criangas fornecem abundantes suges- i tdes dessa limitacdo. Por exemplo, no desenho da crianga, | o nivel da 4gua em um copo inclinado aparece em Angulo reto com os lados do copo em vez de paralelo a superficie da mesa que fornece a linha b4sica horizontal para o desenho. Ou, quando se pede a uma crianca que desenhe uma chaminé no telhado inclinado de uma casa, ela pode colocar a chaminé em - Angulo reto com a inclinag&o do telhado em vez de com a superficie plana na qual esté a casa” “Separac4o” é outro tipo de evidéncia que sugere a inabilidadé da crianga para detetar as relacdes espaciais entre os objetos, ou apenas sua indiferenga para com elas.. Por exemplo, 0 desenho do va- queiro em seu cavalo pode mostrar uma grande lacuna entre 0 : chapéu e a cabeca do vaqueiro e outra entre o vaqueiro eo cavalo” Erros deste tipo sugerem que a crianga pequena esti mais preocupada com as coisas em si — a Agua no copo, 0 vaqueiro e 0 cavalo — do que com as suas exatas relacgdes espaciais. Os pais sabem como é facil seus filhos se perderem em um ambiente nao familiar. Os adultos adquiriram 0 ha- bito de tomar nota mentalmente de onde as coisas estao e de como ir de um lugar para outro. As criangas, por outro lado, excitam-se com as pessoas, coisas e acontecimentos; ir de um lugar para outro nao é de sua responsabilidade. Os homens vivem no cho e véem as Arvores e casas de t j lado. Eles nado véem de cima, a nao ser que escalem uma ) montanha alta ou viajem de avido. As criangas pequenas difi- :cilmente tém a oportunidade de supor uma paisagem vista de cima. Elas so seres pequenos em um mundo de gigantes e de coisas gigantescas que no foram feitas em sua escala. No en- tanto, criancas de cinco ou seis anos revelam uma extraor- ! dindria compreensio de como seriam as paisagens vistas de cima. Elas podem “ler” fotografias aéreas verticais em branco e preto de povoados e campos de cultivo com uma acuidade e seguranga inesperadas. Podem reconhecer casas, caminhos e Arvores nas fotografias aéreas ainda que estes aspectos apare- gam em uma escala muito reduzida e sejam vistos de um Angulo e posi¢aio desconhecidos.em sua experiéncia. E possivel 31 Espago, Lugar ea Crianga que as criangas da cidade tenham tido a experiéncia de olhar fotografias em revistas ou na televisdo, mas as criancas do campo que no tém contato com esses veiculos, também con- seguem interpretar as fotografias verticais do seu meio am- biente.* ‘Talvez uma razao pela qual as criancas pequenas conse- guem realizar estas faganhas de extrapolago é porque te- nham brincado com brinquedos. As criangas sio miniaturas no mundo dos adultos, mas gigantes em seu mundo de brin- quedos. Olham do alto as casas e os trens de brinquedo e dirigem seus destinos como deuses do Olimpo. Susan Isaacs relata que um grupo de criangas inglesas precoces apren- deram rapidamente as relagdes espaciais através de um jogo de imaginagio. As criangas estavam entregues A modelagem com plasticina de cenas com- pletas de lugares conhecidos, como, por exemplo, a piscina natural em um. tio, com pessoas. Um dia, quando estavam trabalhando nisto, passou um ayidio sobre 0 jardim, como acontecia freqientemente. Todas as criangas olharam para cima e, como de costume, gritaram: “Desca, descal”... [Uma criangal disse: “Sera que cle nos vé?” E outra: “Gostaria de saber o que ele vé, como nos vé.” Entio eu sugeri: “E se a gente fizesse um modelo do jardim como é visto pelo homem do aviao?” Esta sugestto os encantou. Comegamos imediatamente ¢ trabalhamos varios dias. Algumas criangas subiram “até o topo da escada para saber como se vé do avido.” Um menino de quatro anos ¢ meio compreendeu espontaneamente que do avido apenas se veria 0 alto de suas cabegas ¢ desenhou varias bolas achatadas ao longo dos caminhos do modelo: “Estas sto as criangas correndo.”% No periodo de 1950 a 1970, melhorou a capacidade das criangas de idade de jardim de infancia para entender foto- grafias aéreas. Ver na televiséo cenas aéreas e brincar com simples brinquedos de armar podem ter ajudado esta tendén- cia progressiva. Por outro lado, durante o mesmo periodo de tempo, as criangas nao apresentaram nenhum sinal de maior sofisticagio para compreender os pontos de vista dos lados opostos de um quarto ou terreno.” E mais facil, tanto para a crianga como para o adulto, imaginar como um piloto em seu avidio vé uma paisagem, do que como um agricultor a vé, estando do lado oposto da colina. Assumimos mais rapida- mente uma posigao divina, olhando a terra do alto, do que da x wwe ew 32 Espago, Lugar ea Crianga perspectiva de outro mortal no mesmo nivel em que estamos. Além disso, a compreens&o do meio ambiente sofre menos apés 90° de rotagio da perspectiva da horizontal do que depois da rotacio de 40 a 50°, A cena obliqua é mais dificil de ser inlerpretada do que a vertical. Para a crianga, uma foto tirada de lado ou de um pe- queno Angulo acima do chao tem uma grande vantagem sobre o mapa ou a fotografia aérea: apela mais diretamente para a acdo imaginativa. Uma crianca de trés anos e meio de idade j4 é capaz de se projetar cinestesicamente na ilustragio de seu livro. Ela olha para uma gravura e em sua imaginagio per- corre o caminho até a casa e penetra furtivamente através da sua pequenina porta?’ A perspectiva central cria uma ilusiio de tempo e movimento na cena: as margens convergentes de um caminho que desaparece na porta de uma casa distante so poderosos indicios de-acaio, Ao contrario, a fotografia vertical favorece a compreensio das relagdes espaciais. A crianga nao esta preparada para iniciar a, aco imaginativa — a nao ser para atirar bombas na escola. Uma gravura em perspectiva daquelas que aparecem nos livros infantis esti- mula um ponto de vista egocéntrico: a crianga se vé como herdi do palco, e nao tem condigdes ou vontade de imaginar como outro ator — 0 menininho no fim do caminho, por exemplo — o yeria quando se aproximasse. Uma fotografia aérea, ou mapa, por outro lado, incentiva um ponto de vista objetivo. Um ponto de vista objetivo desencoraja a ago, espe- cialmente aquelas aventuras precipitadas e dramalicas que sao naturais 4 crianga. Como uma crianga pequena entende um lugar? Se defi- nirmos lugar de maneira ampla como um centro de valor, de alimento e apoio, ent4o a mae é o primeiro lugar da crianga. A mie pode bem ser o primeiro objeto duradouro e indepen- dente no mundo infantil de impresses fugazes. Mais tarde ela é reconhecida pela crianga como o seu abrigo essencial e fonte segura de bem-estar fisico ¢ psicolégico. Um homem sai de casa ou da cidade natal para explorar 0 mundo; a crianga que engatinha sai de perto da mae para explorar o mundo. Os lugares permanecem ai. Sua imagem é de estabilidade e per- . 33 Espaco, Lugar ea Crianga manéncia, A mie se move, mas para a crianga, no obstante, ela representa estabilidade e permanéncia. Ela esta quase sempre perto quando necessdria. Um mundo estranho in- funde pouco medo A crianga pequena sempre que a mie esteja perto, porque ela é seu ambiente e reftigio familiar. A crianca fica desnorteada — sem lugar — na falta da protec&o dos pais.* A medida que a crianga cresce, vai-se apegando a obje- Sios, em lugar de se apegar a pessoas importantes, e finalmente ja.localidades. Para a crianca, lugar_é um tipo.de objeto |erande ec um tanto imével., A principio as coisas grandes tém menos significado para ela do que as pequenas porque, ao contrario dos brinquedos portateis ou dos cobertores prefe- ridos, elas nao podem ser manipuladas e transportadas facil- mente; podem nao estar disponiveis nos momentos de crise para dar conforto e apoio, Além do que, a crianga pode desen- volver sentimentos ambivalentes por certos lugares — objetos grandes — que lhe pertencem. Por exemplo, a cadeira de bebé € seu lugar. Ela come aj e comer da satisfacao, mas também Ihe dao de comer coisas de que n&o gosta e est presa em sua cadeira. A crianga pode ver seu bergo com ambivaléncia, O bergo € seu aconchegante pequeno mundo, mas quase todas as noites vai para ele com relutdncia; precisa dormir mas tem medo do escuro e de ficar sozinha. To logo a crianca é capaz de falar com certa fluéncia, } quer saber o nome das coisas. As coisas nao s4o bem reais até que tenham nomes e possam ser classificadas de alguma maneira. A curiosidade pelos lugares faz parte de uma curio- sidade geral sobre as coisas, surge da necessidade de quali- \ficar as experigncias; adquirem assim um maior grau de per- manéneia e se ajustam a algum esquema conceitual. De acor- , docom Gesell, a crianca de dois ou dois anos e meio de idade compreende ‘onde’. Ela nao tem uma imagem clara do es- | pago intermediArio entre aquie 14, mas adquire um sentido de lugar e seguranca quando o scu “onde?” é respondido com “Jar”, “escrit6rio”, ou “edificio grande”. Depois de mais ou menos um ano, a crianga mostra um noyo interesse nos refe- renciais. Ela os reconhece e adianta-se quando sai para um | Espago, Lugar ea Crianga passeio ou uma volta de carro. O egocentrismo se manifesta na tendéncia em pensar que todos os carros que vio na mesma diregdo devem estar indo para o lugar dela. A crianca também aprende a associar pessoas com lugares especificos. Ela se confunde quando encontra a sua professora do jardim de in- fancia no centro da cidade, porque segundo ela a professora esta deslocada; esta perturba seu sistema de classificagao.” A idéia de lugar da crianca torna-se mais especifica e geografica A medida que ela cresce. A pergunta ‘‘onde gosta de brincar?”, uma crianga de dois anos provayelmente dira “casa” ou “fora”. Uma crianca mais velha respondera “no meu quarto” ou “no quintal”. As localizagdes tornam-se mais “Aqui” e “1a” sao ampliadas por “aqui mesmo” e “14 mesmo”. Aumenta o interesse por lugares distantes e a consciéncia de distancia relativa, Entéo, uma crianga de trés a quatro anos de idade comega a usar expressdes como “la longe” e “la pra baixo”’ ou “bem longe”. A pergunta “onde vocé mora?”, uma crianga de dois anos provavelmente diré “casa”. Mais ou menos um ano depois, ela pode dar 0 nome da rua ou até o nome da cidade, 0 que no é freqiiente.” Na escola primaria, como o conhecimento de lugar de uma crianca se aprofunda e se expande? Um estudo de alunos da primeira e sexta séries em duas comunidades do meio- oeste americano é sugestivo." Mostram-se as criangas gravu- ras de quatro tipos de lugares que formam parte do ambiente maior delas: vila, cidade, fazenda e fabrica. A respeito de cada lugar pergunta-se: ‘Que histéria conta esta gravura?”’ As respostas revelam grandes diferengas individuais. Em ge- ral, as respostas das criancas mais velhas séo muito mais sofisticadas. Vila, cidade, fazenda e fabrica sio categorias de lugares familiares aos alunos da sexta série; descrevem-nas com certeza e facilidade compar4veis as dos adultos. Quando se mostra uma gravura a um aluno mais velho, ele é freqiien- temente capaz ndo apenas de dizer o que é (vila, cidade, etc.), em que consiste, mas também de colocar o lugar no seu contexto geografico maior; nado somente descreve 0 que esto fazendo as pessoas que aparecem na gravura (cortando grama, fazendo compras, etc.), mas também procura explicar como 35 Espaco, Lugar e a Crianga funciona o lugar. Em comparac4o, quando um aluno de primeira série olha a gravura da vila, é mais provavel que ignore seu ambiente espacial mais amplo; pode mesmo nao reconhecé-lo como uma vila, sua atenc&o se prende as partes — a igreja, a escola, a loja e o caminho. A crianga pequena pouco tem a dizer sobre o significado social e econémico das coisas que vé na gravura. De fato, o principal interesse dos alunos de primeira série parece nao ser o ambiente, mas as pessoas: 0 que esta fazendo o homem ou a menininha. Em geral, estes alunos nao mostram tanto entusiasmo pelos luga- res, como os mais velhos. O horizonte geografico de uma crianca expande A medida que ela cresce, mas nao necessariamente passo a passo em ‘diregio a escala maior. Seu interesse e conhecimento se fixam primeiro na pequena comunidade local, depois na cidade, saltando o bairro; e da cidade seu interesse pode pular para a nagao e para lugares estrangeiros, saltando a regifio. Na idade de cinco ou seis anos, a crianga pode demonstrar curiosidade sobre a geografia de lugares remotos. Como pode apreciar locais ex6ticos se no tem experiéncia direta? A teoria da aprendizagem ainda nao explica satisfatoriamente estas apa- rentes transigdes bruscas na compreensdo, Nao é de surpreen- der, entretanto, que uma crianga possa demonstrar interesse pelas noticias de lugares distantes, pois a sua vida é rica em fantasia e se sente 4 vontade no mundo da fantasia antes que os adultos venham lhe exigir que viva imaginariamente nos paises reais do livro de geografia. Para uma crianga inteli- gente e esperta, a experiéncia é uma procura ativa e em que algumas vezes faz extrapolagdes surpreendentes para além dos fatos: ela nao se prende ao que vé ou sente em sia casa e em seu bairro. O que caracteriza 0 lago emocional da crianga pequena com 0 lugar? Os alunos norte-americanos de primeira série podem reconhecer como entidades: vila, esquina e fazenda,; mas temos observado. que os alunos mais novos tém menos a dizer e sio menos entusiasmados com tais lugares do que os mais velhos. Com excecdo das creches e dos playgrounds, poucos lugares ptiblicos estado feitos na escala das criancas y 7 nm mm te a 2 a a a od od ) 5 ’ y 4 4 ’ \ 36 Espago, Lugar ea Crianga pequenas. Sera que elas sentem necessidade de estar em luga- res de acordo com seu tamanho? Supde-se que existam tais necessidades. As criangas pequenas, por exemplo, como se sabe, metem-se embaixo do piano de cauda, onde se sentam num visivel estado de alegria. Ao brincarem, as criangas mais velhas procuram cantos e esconderijos tanto em ambientes construidos pelo homem como na natureza. Passar a noite no quintal, em uma barraca ou em uma casa na Arvore é para elas uma verdadeira festa, como se estivessem realmente fa- zendo uma longa viagem para uma cabana de cagador. O sentimento por lugar é influenciado pelo conheci- mento de fatos basicos: se o lugar é natural ou construido e se érelativamente grande ou pequeno. A crianga de cinco ou seis anos no tem este tipo de conhecimento, Ela pode falar com entusiasmo sobre a cidade e 0 lago de Genebra, mas a apre- cia destes lugares, com certeza, é muito diferente da de um adulto culto. Nessa idade 6 provavel que ela suponha que tanto a cidade como © lago sao artificiais. E bem provavel que ela ache, também, que ambos tenham tamanhos compar4- veis.? As criangas, pelo menos as do mundo ocidental, desen- volvem um profundo sentido de propriedade. Elas tornam-se extremamente possessivas. Uma crianga afirma que certos bri quedos sao dela, que a cadeira perto da inde € seu lugar e se apressa em defender 0 que considera que lhe pertence. Entretanto, grande parte da luta da crianga pela posse nao é evidéncia de uma genuina afeigdo. Nasce da necessidade de garanlir o seu proprio valor e de conseguir status entre os companheiros. Um objeto ou um canto do quarto, sem valor para a crianga em um momento, de repente adquire valor, quando outra crianga ameaca tomar posse. Uma vez que a crianga readquire 0 controle absoluto, seu interesse pelo brin- quedo ou lugar rapidamente acaba.” Isto nado quer dizer que as pessoas, jovens e velhas, nao sintam necessidade de apoiar sua personalidade em objetos e lugares. Todos os seres hu- manos tém seus proprios pertences e talvez todos tenham necessidade de um lugar seu, quer seja uma cadeira no quarto ou um canto preferido em qualquer veiculo. 37 Espago, Lugar ea Crianga Robert Coles acredita que, nos Estados Unidos, os filhos dos trabalhadores rurais yolantes sofrem porque, entre outras razGes, nao tém durante um periodo de tempo um lugar que possam identifiear como deles. Pedro, por exemplo, € um menino de sete anos que viaja com seus pais, para cima e para baixo, na costa Leste. Raramente permanecem muito tempo em uma fazenda. Pedro ajuda a colher frutas e verduras. Vai a escola quando pode. Coles escreve: Para um menino como Pedro, 0 prédio da escola, mesmo velho e nfo bem mobiliado, é um mundo novo — com grandes janelas, s6lidos assoalhos © portas, forros rebocados e paredes com gravuras, e uma carteira que é dele, que Ihe € designada, que se supée Ihe pertence, ou virtualmente the per- tence, dia apés dia, quase como um certo tipo de dircito. Depois de sua primeira semana, na primeira série, Pedro disse: “Falaram que cu podia sentar nesta cadeira e me disseram que a carteira 6 para mim, e que todos os dias eu deveria vir para o mesmo lugar; sobre a cadeira ela disse que era minha enquanto eu estiver nesta escola — isto foi o que disseram as professoras.”3# O lugar pode adquirir profundo significado para 0 adulto através do continuo acréscimo de sentimento ao longo dos anos, Cada pega dos méveis herdados, ou mesmo uma man- ‘tha na parede, conta uma est6ria. A crianga ndo apenas tem um passado curlo, mas seus olhos, mais que os dos adultos, [esto no presente ¢ no futuro imediato, Sua vitalidade para ‘fazer coisas e explorar o espaco nao condiz com a pausa refle- xiva e com a olhada para tras que fazem com que os lugares paregam saturados de significfncia, A imaginagdo da crianga é de um tipo especial. Esta presa a atividade. Uma crianga cavalga um pau como se estivesse sobre um cavalo de verdade, e defende uma cadeira virada como se fosse um verdadeiro castelo. Ao ler um livro ou ao ver suas figuras, ela entra rapi- damente na fantasia de um mundo de aventuras. Porém um espelho quebrado ou um triciclo abandonado nao lhe transmi- tem nenhuma mensagem de tristeza. E as criangas ficam des- concertadas quando solicitadas a interpretar 0 estado de espi- tito de uma paisagem ou de uma pintura de paisagem. As pessoas tém estados de espirito; como pode uma cena ou lugar parecer feliz ou triste? Porém, os adultos, especialmente os 38 Espago, Lugar ea Crianga cultos, n&o tém dificuldade de associar objetos inanimados com estados de espirito. As criancas pequenas, tao imagina- tivas em suas esferas de acdo, podem olhar prosaicamente para os lugares que aos adultos Ihes trazem tantas recor- dagdes. 4 Corpo, Relacées Pessoais e Valores Espaciais 66 EK spaco” é um termo abstrato para um conjunto com- plexo de idéias. Pessoas de diferentes culturas dife- rem na forma de dividir seu mundo, de atribuir va- lores As suas partes e de medi-las. As maneiras de dividir 0 es- paco variam enormemente em complexidade ¢ sofisticagao, assim como as técnicas de avaliagaio de tamanho e distancia. Contudo existem certas semelhancas culturais comuns, e elas repousam basicamente no fato de que o homem é a medida de todas as coisas. Em outras palavras, os principios fundamen- tais da organizagao espacial encontram-se em dois tipos de fatos: a postura ¢ a estrutura do corpo humano e as relagdes (quer proximas ou distantes) entre as pessoas. O homem, como resultado de sua experiéncia intima com seu corpo e com outras pessoas, organiza 0 espago a fim de conforma-lo a suas necessidades bioldgicas e relagdes sociais. A palavra “corpo” sugere de imediato antes um objeto que um ser vivo e espiritual. O corpo é uma “coisa” ¢ estd no espago ou ocupa espaco. Ao contrario, quando usamos os termos “homem” e “mundo”, no pensamos apenas no ho- mem como um objeto no mundo, ocupando uma pequena parte do seu espaco, mas também no homem como habitando o mundo, dirigindo-o ¢ criando-o. De fato, o simples termo 39 OG E&GwAaeaearrerreeer a Ak (Lt 4 Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais inglés world (“mundo”) contém e conjuga o homem c seu am- biente, porque o seu radical ectimoldgico Wer significa ho- mem. Homem ¢ mundo indicam idéias complexas. Ora, ne- cessitamos também examinar idéias mais simples abstraidas do homem e do mundo, principalmente corpo ¢ espaco, lem- brando, no entanto, que aquele no apenas ocupa este, porém o dirige e o ordena segundo sua yontade. O corpo é “corpo vivo" e 0 espaco é um constructo do ser humano. Entre os mamiferos, 0 corpo humano é impar, porque se mantém com facilidade na posigao ereta. Na posigao ereta, o homem esta pronto para agir. O espago se abre diante dele ¢ imediatamente pode diferencid-lo nos cixos frente-atras ¢ di- reita-esquerda de acordo com a estrutura de seu corpo. Verti- cal-horizontal, em cima-embaixo, frente-atras e direita-es- guerda s&o posigdes e coordenadas do corpo que sao extra- poladas para o espaco (Fig. 2). No sono profundo, o homem CORPO HUMANO ERETO, ESPACO E TEMPO Futura Passado Figura 2. Corpo humano ereto, espago e tempo. O espago projetado do corpo propende para a frente ¢ para a direita. O futuro esta A frente ¢ “acima’”. O passado esth atris ¢ “abaixo”. 41 Corpo, Relagées Pessoais e Valores Pessoais continua a ser influenciado pelo seu meio ambiente, mas perde scu mundo; ele é um corpo ocupando um espago. Acor- dado e em pé, ele recupera scu mundo, € 0 espago é articulado de acordo com seu esquema corporal. O que significa dominar © espago e sentir-se A vontade nele? Significa que os pontos de referéncia reais no espago, como os referenciais e as posigdes cardeais, correspondem a intengdo e 4s coordenadas do corpo humano. Kant escreveu em 1768: Mesmo nossos julgamentos sobre as regides césmicas esto subordinados ao conceito que temos de regides em geral, na medida em que elas estio determinadas pela relag%o com os lados do corpo (...) Nao importa quo bem eu conhega a ordem.dos pontos cardeais, somente posso determinar as regides de acordo com essa ordein na medida em que conhega para qual mao esta ordem se dirige; ¢ a mais completa carta celestial, nao importa quao perfeito seja o plano que dela eu tenha em mente, no me ensinar& sobre uma regitio conhecida, digamos o Norte, para que lado procurar 0 nascer do sol, a ndo ser que, além das posigdes das estrelas entre si, esta regido seja também determinada pela posicio relativa ao plano de minhas maos. Igualmente, nosso conhecimento geogréfico, ¢ até 0 nosso conheci- mento mais corriqueiro das posic®es dos lugares, nao nos serviré de nada, se nao pudermos, pela referéncia aos lados de nossos corpos, atribuir as regides esta mesma ordem e todo o sistema de posiges mutuamente rela- tivas.! O que significa estar perdido? Sigo uma trilha na flo- resta, saio da trilha, e de repente sinto-me completamente desorientado. O espaco ainda esta organizado de acordo com os lados do meu corpo. H4 regides A minha frente e As minhas costas, A minha direita ¢ A minha esquerda, mas nao funcio- nam em relagiio aos pontos de referéncia externos, e portanto s&o indteis. As regides em frente ¢ atras de repente parecem arbitrarias, pois tanto faz cu ir para frente ou para tras. Basta aparecer uma luz oscilante atras de umas Arvores distantes. Eu continuo perdido, no sentido que ainda nao sei onde estou na floresta, mas 0 espaco recobra dramaticamente sua estrutura. A luz oscilante estabeleceu uma meta. Movendo-me para essa meta, para frente, para tras, A direita e 4 esquerda readqui- rem seu significado: avango para frente, alegro-me em deixar para tras 0 espaco escuro e certifico-me de n4o virar nem para a direita nem para a esquerda. 42 Corpo, Relagdes Pessoais e Valores Espaciais O homen, pela simples presenga, impde um esquema no espaco. Na maioria das vezes, ele no est4 consciente disto. Sente a sua falta quando esta perdido. Marca sua presenca nas ocasides rituais que elevam a vida acima do cotidiano e forgam-no a uma consciéncia dos valores da vida, incluindo aquelas manifestadas no espago. As culturas diferem bastante na elaborag&o dos esquemas espaciais. Em algumas culturas, estes sio rudimentares; em outras podem se tornar uma mol- dura magnifica que integra quase todos os aspectos da vida. Porém, apesar das grandes diferengas aparentes, os vocabu- lérios da organizacao espacial e do valor tm certos termos em comum. Estes termos comuns sto basicamente derivados da estrutura e valores do corpo humano. Em pé e deitado: estas posigdes produzem dois mundos opostos. Gesell e Amatruda dizem que, quando um bebé de seis meses de idade se senta, ‘‘seus olhos se arregalam, 0 pulso fica mais forte, a respirag&o se acelera e ele sorri.”” Para 0 bebé, a mudanca da posig’o supina horizontal para a perpen- dicular sentada j4 é “mais do que um triunfo postural. E a ampliagao de um horizonte e uma nova orientag%o social.”? Este triunfo postural e a conseqiiente ampliagéo do horizonte s&o repetidos diariamente durante toda a vida da pessoa. A cada dia desafiamos a gravidade e outras forcas naturais para criar e manter um mundo humano ordenado. A noite cedemos a estas forgas e deixamos 0 mundo que haviamos criado. A posicdo ereta é afirmativa, solenee altiva. A posic&o deitado é submissa, significando a aceitagdo de nossa condi¢ao biolé- gica, A pessoa assume sua total estatura humana quando est4 em pé. A palavra " (stand) é o radical para um grande niimero de palavras relacionadas que incluem ‘‘status”’, “‘esta- tura”, “estatuto”, “estado” e “‘instituto”, Todas implicam realizac4o e ordem, “Alto” e “baixo”, os dois polos do eixo vertical, sdo pala- vras que na maioria das linguas transcendem 0 significado literal. Tudo que é superior ou excelente é elevado, associado com um sentido de altura fisica. De fato, “superior” deriva de uma palavra latina e significa ‘‘mais alto”. “Excelso” é outra palavra latina para “alto”. A palavra brahman do sAnscrilo é 43 Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais derivada de um termo que significa “altura”. “Degrau”, no seu sentido literal, é um escalao pelo qual subimos e descemos no espago. O status social € designado “alto” ou “baixo” em lugar de “grande” ou “pequeno”. Deus mora no céu. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, Deus foi as vezes iden- tificado com o céu. Edwyn Bevan escreveu: “A idéia que considera 0 céu como a morada do Ser Supremo, ou como idéntico a ele, é tao universal na humanidade como pode ser qualquer crenga religiosa.”* Em arquitetura, os edificios importantes sao colocados sobre plataformas, e, quando existe a tecnologia necessdria, tendem a ser os mais altos. Quanto aos monumentos, isto é talvez sempre verdadeiro: uma piramide ou coluna de triunfo alta impde maior estima do que uma baixa. Na arquitetura residencial aparecem muitas excegSes a esta regra. A razdo é clara: as vantagens simbdlicas dos andares mais altos de uma casa podem ser facilmente anuladas pelos problemas de ordem pratica. Antes da instalagao de sistemas adequados de encanamento, a 4gua tinha que ser carregada para cima e os lixos tinham que ser trazidos com as maos. Viver nos andares superiores era muito trabalhoso. Nao somente na antiga Roma, mas também na Paris do século XIX, 0 andar de pres- tigio era o que estava sobre as lojas que davam para a rua. Nos prédios ao longo dos Campos Eliseos, quanto mais altos eram os cémodos, mais pobres eram seus ocupantes: empregados domésticos e artistas pobres ocupavam as mansardas. Nos altos edificios modernos, a desvantagem da distancia vertical é superada com maquiniria sofisticada, resultando na reafir- magio do prestigio da altura, As localizagées residenciais tém a mesma hierarquia de valores. Assim como em uma casa as Areas de servico estdo escondidas no pordo, também em uma cidade a Area indus- trial e comercial estdo perto da Agua; ¢ as casas particulares aumentam de prestigio com a elevacio; Os ricos e poderosos, nao somente possuem mais bens imdyeis do que os menos privi- legiados, como também dominam mais espaco visual. O sta- tus deles se torna evidente aos estranhos pela localizagao supe- rior de suas residéncias; e de suas residéncias os ricos reafir- a ene eer ur ees ao Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espac mam sua posigao na vida a cada vez que olham pela janela e véem o mundo aos seus pés. Mas ha excegdes. Uma bem conhecida é 0 Rio de Janeiro, onde os altos ¢ luxuosos edificios buscam a conveniéncia e atrativos da praia, enquanto as favelas esto penduradas nas encostas dos morros. O prestigio do centro esta bem determinado. As pessoas, em todos os lugares, tendem a considerar sua terra natal como o “lugar central”, ou o centro do mundo.§ Entre alguns povos, ha também a crenga, sem evidéncia geografica, de que eles vivem no topo do mundo, ou de que seu lugar sagrado esta no cume da Terra (Fig. 3). As tribos némades da Mon- gélia, em épocas passadas, acredilayam habitarem o topo amplo de um morro, cujas encostas estavam ocupadas por outras ragas.” Uma crenga comum na literatura rabinica é que a terra de Israel esta mais alta do que qualquer outra terra acima do nivel do mar, e que a colina do Templo é 0 ponto mais alto de Israel.’ A tradicao islamica ensina que o santudrio mais sagrado, a Caaba, no é apenas o centro e 0 umbigo do mundo, mas também o seu ponto mais alto. A posic¢io espacial da Caaba corresponde ao da estrela polar: “nenhum lugar na Terra esta mais perto do céu que Meca.""? Por isso as oragdes feitas no santuario sao ouvidas mais clara- mente. Quando 0 explicito simbolismo religioso do centro e da altura € fraco, a elevacao fisica da Terra mantém, contudo, um certo prestigio. As nagdcs modernas gostam de pensar que um alto cume, mesmo que nio seja o mais alto do mundo, fica dentro de suas fronteiras. A falta de medigdes acuradas per- mite deixar solta a imaginacao, insuflada pelo fervor patrid- tico, Mesmo no século XVIII, os britanicos cultos podiam considerar o Ben Nevis como uma das montanhas mais ele- yadas da Terra.” India, Nepal ¢ China gostariam, sem dt- vida, que o monte Evereste lhes pertencesse. Além das polaridades vertical-horizontal e alto-baixo, a forma e a postura do corpo humano definem o seu ambiente espacial como frente-atrs e direita-esquerda. O espaco fron- tal é basicamente visual. E nitido e muito maior do que o espaco posterior, que s6 podemos experienciar através de indi- cadores nao visuais. O espaco frontal é “iluminado” porque Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais A: Taba Tien (Sngudo de Audizneias) B: Wa Men (Porto do Sol da Meio-ia) © Tieo-an Men (Portdo da Paz Celestia) CIDADE SETENTRIONAL DE PEQUIM Figura 3. “Centro” sugere “clevagto", ¢ vice-versa: 0 exemplo da cidade setentrional de Pequim. O comprimento da avenida meridional (eixo cen- tral) deve ser lido como altura, “Na China, nfo importa qual & a confi- guragdo do terreno natural, sempre se vai para cima, para Pequim” (N. Wu.). Reimpresso com permissio de Nelson I. Wu, Chinese and Indian Architecture. New York, George Braziller, 1963, fig. 136, “Plano de Pe- quim interpretado como volume”. pode ser visto; 0 espaco posterior é “escuro”, mesmo quando 0 sol brilha, simplesmente porque nao pode ser visto. A crenca de que os olhos projetam raios luminosos remonta, pelo me- nos, até Platdo (Timeu) ¢ persiste além da Idade Média. 46 Corpo, Relagées Outro sentimento comum é que a propria sombra cai para tras do corpo, mesmo quando, de fato, muitas vezes ela se projeta para frente. Em um plano temporal, o espago frontal & percebido como futuro e 0 espago posterior como passado. A frente significa dignidade. O rosto humano impée respeito, até temor. Os seres inferiores se aproximam dos superiores com os olhos baixos, evitando a face atemorizante. O poste- rior é profano (Fig. 2). Os seres inferiores permanecem atras (e na sombra) de seus superiores. Na China tradicional, o governante fica de frente para 0 sul e recebe de cheio os raios do sol do meio-dia; deste modo assimila o masculo e luminoso principio do yang. Disto.se depreende que a frente do corpo também é yang. Ao contrario, as costas do governante € a area atras dele so yin, feminino, escuro e profano."' Toda pessoa esta no centro do seu mundo, e 0 espaco circundante € diferenciado de acordo com 0 esquema de seu corpo. Quando ele se move e vira, também o fazem as regides frente-atras e direita-esquerda ao seu redor. Mas 0 espago objetivo também assume estes valores somaticos. Os quartos em um extremo da escala, e as cidades no outro, freqtien- temente tém frente e atras. Nas sociedades grandes ¢ estrati- ficadas, as hierarquias espaciais podem ser claramente arti- culadas pela arquitetura, através da planta, desenho ¢ tipo de decoracao. Consideremos algumas das maneiras como sao diferen- ciadas, no mundo ocidental, as areas anteriores e posteriores. Os cémodos sao mobiliados assimetricamente: seu centro geo- métrico nao é geralmente o ponto focal do espaco interior. Por exemplo, 0 ponto focal da sala pode ser a lareira, que esta localizada em um extremo do cémodo. Um anfiteatro tipico é nitidamente separado em frente e atras pela posigio da cate- dra e pela localizagio das poltronas. A relag&o entre os cO- modos, mais do que a forma como esta arranjada a mobilia dentro deles, pode estabelecer diferencas no espaco interior: assim um quarto de dormir tem frente e atras, apesar da disposigao simétrica dos méveis, janelas e portas, simples- mente porque uma porta abre para a sala e outra para o banheiro. Em muitos edificios, as partes da frente e de tras Corpo, Relagoes Pessoais e Valores Espaciuis estao claramente diferenciadas. As pessoas podem trabalhar no mesmo prédio e experienciar mundos diversos, porque as diferengas de status as colocam em rotas de circulagio e Areas de trabalho diferentes. Homerts da manutengio e zeladores entram pela porta de servigo, na parte dos fundos, e transitam pelos “‘corredores escuros” do prédio, enquanto os executivos e suas secretarias entram pela porta da frente, cruzam o amplo saguao e os corredores bem iluminados até seus escri- trios elegantemente mobiliados. Uma tipica residéncia da classe média tem uma fachada atrativa para impressionar e receber as visitas, e um fundo despretensioso para o uso de pessoas de baixo status, como os entregadores e criangas. ‘Tém as cidades regides anteriores e posteriores? Na ci- dade chinesa tradicional, frente e atras eram bem diferen- ciados: nao havia possibilidade de confundir frente e sul, com sua ampla avenida cerimonial, com atrés e norte, que era reservado (pelo menos no planejamento tedrico) para 0 uso comercial profano.® No Oriente Préximo e na Europa, as diferengas expressas no plano urbano eram menos sistema- ticas. No entanto, as antigas cidades muralhadas ostentavam vias para procissées que eram usadas em ocasides reais e triunfais; estas vias provavelmente tinham entradas impo- nentes. No fim da Idade Média e durante o Renascimento, os centros urbanos de importancia politica e eclesidstica cons- truiram portais suntuosos nas muralhas que ndo mais cum- priam uma finalidade militar. A monumentalidade do portao simbolizava o poder do governante. Também funcionava como um ideograma para toda a cidade, apresentando uma fachada que pretendia impressionar os visitantes e os poten- tados estrangeiros." Na moderna cidade econémica nao foi planejada uma parte anterior e uma posterior; nao ostenta uma via para as procissdes ou portio cerimonial, e seus limites freqiiente- mente sao arbitrarios, marcados por um insignificante letreiro indicando, como nos Estados Unidos, o nome e a populacio do distrito. Porém o sentido de “‘frente”’ e “atras’”’ nao esta de todo ausente. A ampliddo e a aparéncia das auto-estradas (projetadas e marcadas com cartazes gigantescos) indicam ao ee ee See Sesser eS SEE BY ve ervr er oe ee vs Se 48 Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais motorista que ele esta entrando na cidade pela porta da frente. Se a cidade moderna nos d4 a impressio de ter frente ¢ atrs, esta impressdo é tanto resultado da direg’o e volume do transito como dos simbolos arquiteténicos. Em um quadro mais amplo, veja como o movimento hist6rico de um povo pode dar a impressdo de uma assimetria espacial a toda uma regio ou pais. St. Louis é 0 portal preeminente para o Oeste. A cidade ergueu um arco alteroso para ressaltar 0 seu papel como a entrada para as Grandes Planicies e mais além. A maioria das pessoas nos Estados Unidos provavelmente con- sidera as costas nordeste como a frente da nacao. A histéria da nacao é percebida como comegando ai. Em especial, New York passou a significar 0 portao da frente. Entre os intimeros cognomes da cidade, um é 0 Escrit6rio Principal dos Negécios Americanos. Porém, mais importante do que o tamanho e o poder dos negécios, New York deve sua imagem de portio de entrada para o fato de que através dele entraram tantos imi- grantes na terra da promissao. As pessoas nao confundem de brugo com a posi¢io em pé, nem frente com atras, mas os lados direito ¢ esquerdo do corpo, assim como os espagos deles extrapolados sao facil- mente confundidos. Em nossa experiéncia como animais que se locomovem, frente e atras s4o bdsicos e direita e esquerda sfo secund4rios. Para conseguir andar, primeiro nos levan- tamos e depois avancamos. O andar para frente é periodica- mente interrompido para virar para a direita ou esquerda. Suponha que estou descendo uma rua e apés um tempo viro para a direita. Um observador pode agora dizer que estou indo para a direita, Mas, em absoluto, tenho a sensagio de que a minha dirego é para a direita. Eu fiz uma virada para a direita, mas continuo indo para frente. Direita e esquerda sio diferengas que tenho que reconhecer. S4o meios, para atingir meu objetivo que fica sempre a frente. Qs lados direito e esquerdo do corpo humano sao bem semelhantes em aparéncia e fung3o. Existem algumas assi- metrias: por exemplo, um cacho de cabelo na cabega vira para a direita; 0 corag&o esté ligeiramente deslocado para 0 lado 9 Corpo, Relagdes Pessoais e Valores Espaciais esquerdo do corpo; os dois hemisférios cerebrais nao estAo igualmente bem desenvolvidos, e tém fungdes ligeiramente diferentes; a maioria das pessoas so destras e quando andam. tém tendéncia de inclinar-se para a direita, talvez como resul- tado de um pequeno desequilibrio no controle vestibular. Estas pequenas assimetrias biolégicas nao parecem suficientes para explicar as nitidas diferencas de valor atribuidas aos dois lados do corpo e aos espagos social e cosmolégico, que se derivam do corpo. Em quase todas as culturas, sobre as quais ha infor- magao disponivel, 0 lado direito é considerado como muito superior ao esquerdo. A evidéncia deste preconceito é parti- cularmente abundante na Europa, Oriente Médio e Africa, mas 0 preconceito é também bem documentado para a India e sudeste da Asia!’ No fundo, a direita é percebida como signi- ficando poder sagrado, o principio de toda atividade’ efetiva, ea fonte de tudo que € bom e legitimo. A esquerda é a sua antitese; significa o profario, o impuro, 0 ambivalente e o débil, que é maléfico ¢ deve ser temido, No espago social, 0 lado direito do anfitriao 60 lugar de honra. No espaco cosmo- logico, “a direita representa 0 que est4 no alto, o mundo superior, o céu; enquanto a esquerda est4 relacionada com 0 baixo mundo e com a Terra.""® Cristo, em telas do Juizo Final, tem sua mao direita levantada apontando para a regido luminosa do Céu, e sua m&o esquerda apontando para baixo, para a escuridao do Inferno. Uma idéia semelhante de cosmos aparece entre os simples Toradja habitantes da Célebes cen- tral. O lado direito é dos vivos, um mundo de luz; 0 lado esquerdo 6 0 escuro mundo subterraneo dos mortos.!7 No plano geografico, os antigos arabes equacionavam a esquerda com 0 norte ea Siria. A palavra Simdl indica tanto norte como lado esquerdo. A palavra arabe para Siria 6 Sam: 0 seu radical significa “‘desgraca” ou “mau agouro” e “esquerda”. Um verbo derivado, sa’ma, significa “trazer m4 sorte” e “virar para a esquerda”. Ao contrario, o sul e 0 lado direito do lar arabe est4o saturados de béngdos. O sul é a terra florescente do Iémen, e seu radical ymn implica idéias de felicidade © “direita’’."" No oeste da Africa, os ‘Timne consideram o leste 50 Corpo, Relagdes Pe: e Valores Espaciais como a orientacdo fundamental. O norte, portanto, esta a esquerda e é considerado escuro; o sul para a direita é a luz. Para os Timne, trovao e relampago s&o preparados no norte, ao passo que as “‘boas brisas”’ vém do sul.” A viso chinesa tem um interesse especial porque parece _ser uma excecao importante a regra. Como a maioria dos povos, os chineses so destros, mas para eles o lado honoravel 6 0 esquerdo. Na grande classificag4o bipartida yin e yang, 0 lado esquerdo yang e pertence ao homem, o lado direito é yin e pertence 4 mulher. A razao principal para isso é que 0 espaco social e cosmoldégico chinés esta centrado no gover- nante que serve de mediador entre o céu e a terra. O gover- nante olha para o sul e para o sol. Portanto, no seu lado esquerdo esto leste, o lugar em que 0 sol nasce e do homem (yang); no seu lado direito est o oeste, o lugar em que 0 sol se pde e da mulher (yin)” O homem é a medida. Em sentido literal, 0 corpo hu- mano é a medida de direcAo, localizagao e distancia. No Egito Antigo, a palavra para “‘rosto”’ € a mesma para “sul”, e a palavra “‘nuca” est4 associada com “norte”. Muitas linguas da Africa e dos Mares do Sul extraem suas preposicdes espa- ciais diretamente de termos das partes do corpo como “‘cos- tas’ para “tras”, ‘‘olho” para “em frente de”, “pescoco” para “acima”, e “estémago” para “dentro”” Na lingua Ewe, da Africa ocidental, a palavra para ‘“‘cabeca”’ tanto significa “pico” como as denominagSes espaciais gerais de “em cima’’ e “acima”.™ O costume de usar substantivos como preposi- codes para expressar relacdes espaciais pode extrapolar 0 corpo; por exemplo, em lugar de “‘costas”, uma palavra como “ras- tro” pode ser usada para indicar “sob” pode ser, designado por “chao” ou “terra”, e “em cima” por “ar”. As preposigdes espaciais sAo necessariamente antropo- céntricas, quer sejam substantivos derivados de partes do corpo humano ou n4o. Como afirma Merleau-Ponty: “Quando digo que um objeto esta sobre a mesa, sempre me coloco, mentalmente, quer na mesa, quer no objeto, e lhes atribuo uma categoria que teoricamente ajusta a relacio de meu corpo aos objetos externos. Sem esta associag4o antropolégica, a pa- SI Corpo, Relagées Pessoa: e Valores Espaciais lavra sobre é indistinguivel da palavra sob ou da palavra ao lado."* Onde esté o livro? Esta sobre a escrivaninha. A res- posta é apropriada porque de imediato nos ajuda a localizar 0 livro dirigindo nossa atengdo para a grande escrivaninha. E dificil imaginar uma circunstancia na vida real na quai seja apropriada a resposta “a escrivaninha esta sob 0 livro”. Di- zemos que um objeto esta sobre, em, acima ou sob outro objeto como resposta a preocupagées praticas e urgentes. Entretanto, frases de localizagdes, normalmente, exprimem muito mais do que simples fatos locacionais. “Deixei minhas chaves dentro do carro” diz onde as chaves esto, mas é tam- bém uma expresso de angtistia. “Estou em meu escritério” pode significar, dependendo do contexto, ou “venha me ver”, ou “no me incomode”, Somente no hospicio, frases como estas sao estritamente locacionais; no hospicio, ‘“o livro esta sobre a escrivaninha” e ‘a escrivaninha esta sob 0 livro” sto partes equivalentes e permutaveis na conversa* As medidas populares de comprimento sio derivadas de partes do corpo. So muito usadas a largura e o comprimento dos dedos ou do polegar; a distincia, quer do polegar até a ponta do dedo minimo ou até a ponta do indicador; da ponta do dedo médio até 0 cotovelo (cévado), ou a distancia entre as pontas dos dedos, com os bragos estendidos e'as mios abertas (braca). Objetos, de uso corrente, feitos pelo homem, servem como medidas fixas de comprimento, por exemplo, a vara usada para espicacar os bois, a lanca e pedacos comuns de corda ou corrente. As estimativas de distancias maiores se baseiam na experiéncia e na idéia de esforgo. Assim, a jarda é uma passada larga, a milha so mil passos e 0 furlong, equi- valente a um oitavo de milha (sulco longo), é a extensio que a junta de boi pode comodamente arar. O arremesso da langa ou o aleance da flecha sto unidades aproximadas de dis- tancia, e mesmo no mundo moderno falamos de “até o al- cance de uma pedra atirada”, ¢ “até a dist’ncia de um grito”. As medidas de capacidade “incluem a concha da mao, 0 pu- nhado ou a bragada, a carga de um homem, animal, vagdo ou navio; 0 contetido de um ovo, cuia, ou qualquer outro objeto natural; ou de alguns objetos fabricados, de uso comum, eevee eee ea) weer Corpo, Relagées Pessouis e Valores Espaciais como uma cesta."”” As medidas de area sAo expressas em unidades como um couro de boi, uma esteira ou capa; o campo que uma parelha de bois pode arar em um dia; e a terra que podia ser semeada com uma determinada quantia de sementes.” O corpo humano e suas subdivisdes parecem nao fornecer as unidades comuns para estimativas de 4rea, como o fazem para a estimativa de comprimento e volume ou capacidade. Area é provavelmente um conceito mais abstrato do que com- primento e volume. Mesmo nas sociedades mais simples, as pessoas precisam calcular comprimento e distancia. “Capa- cidade” ¢ igualmente basica. O proprio corpo humano é um recepliculo. Sabemos o que é sentir-se “‘cheio” ou “vazio". Experienciamos diretamente a quantidade de alimento ou Agua na concha de nossas maos ou em nossa boca. Os adje- tivos de tamanho como “grande” e “pequeno”, se referem principalmente a volume ¢ secundariamente a 4rea. A palavra “grande” deriva do latim “bochecha inflada”. Apesar de que nas aulas elementares de geometria aprendemos sobre area antes de volume, na experiéncia didria, area é uma idéia sofisticada abstraida do sentido mais primitivo de capacidade. “Distancia” tem conotagao de graus de acessibilidade e também de preocupacao. Os seres humanos estao interes- sados em outras pessoas e nos objetos importantes em suas vidas. Querem saber se as pessoas que lhes sao importantes esto longe ou perto deles e umas das outras. Quando um objeto importante é designado por uma palavra ou descrito em uma frase, a palavra ou frase sugere algumas qualidades do objeto: “um cachorro feroz”, “uma langa partida”, “um. homem doente”. Quando usamos estas expressbes, estdo im- plicitas localizagio e distancia, embora nao sejam dadas expli- citamente. “Um cachorro feroz” € um cachorro que esta bem perto de mim para proteg%o, ou amarrado em um poste, de maneira que estou fora de seu alcance, “uma langa partida” € a langa ao alcance da mao, porém par- tida e por isso-intitil. Em melanésio ¢ em certas linguas dos indios americanos, localizagao e distancia em relagdo a lugar ow pessoa sio requisitos indispensaveis na descrigio de obje- 53 Corpo, Relagdes Pessoais e Valores Espaciais tos. Codrington observou tanto entre os melanésios como entre os polinésios 0 habito de introduzir constantemente adyérbios de lugar ¢ de direcao como: para cima e para baixo, para cA ¢ para 14, para o marc para a terra. “Tudo que diz respeito a coisas c pessoas é visto como vindo ou indo, ou rela- cionado com lugar, em uma maneira que nio é natural para 0 europeu, a que ele nao esta acostumado.”” Sobre kwakiutl, uma lingua indigena da costa do Pacifico, Boas escreveu: “A exatidio com a qual a localizag&o é expressa tanto nos substantivos como nos verbos, em relagdo a quem fala, é uma das caracteristicas fundamentais da lingua.” Diversas lin- guas dos indios americanos apenas podem expressar um pen- samento como “‘o homem’est4 doente” dizendo ao mesmo tempo se o sujeito da orag4o est4 a uma distancia maior ou menor de quem fala ou de quem escuta e se 0 sujeito é visivel ou invisivel para eles. Distancia é distancia da propria pessoa (Fig. 4). Em mui- tas linguas, os demonstrativos espaciais e os pronomes pes- soais esto intimamente relacionados, de maneira que é dificil dizer que classe de palavras vem antes ou depois, ou quais so primitivas ou derivadas. As palavras nas duas classes sto atos de indicagdcs semimiméticos, scmilingiiisticos. Os pronomes pessoais ¢ demonstrativos e os advérbios de lugar est3o inti- mamente inter-relacionados.” Eu estou sempre aqui, e 0 que esta aqui eu denomino este. Ao contrario do aqui onde eu estou, vocé esta /d e ele esta acolé. O que esté 14 ou acola eu denomino aquele. “Este"’ ¢ “‘aquele”” aqui desempenham a fungao de tripla diferenca no alemio dies, das e jenes. Em linguas n&o-européias, uma gama sutil de variac4o de prono- mes demonstrativos pode ser usada para indicar distancias relativas a partir do eu. Assim em ¢lingit, uma lingua indigena americana, he indica um objeto que esta muito perto e sempre presente; ya indica um objeto muito perto e presente, mas um pouco mais distante; yw indica algo t4o remoto que pode ser usado como um artigo impessoal; we indica uma coisa extre- mamente remota e geralmente é invisivel.” Os Chukchi do nordeste da Sibéria tém até nove termos para expressar a io de um objeto em relagiio a quem fala. | | | Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais A. Pronomes pessoais e demonsteativos expuctais Anel continental B. O mundo de Hecatew C. Cosmografia religlosa na Asla Orlental (520 antes de Cristo) aN Rio Amareo ©) crung yan asc cena da Chine 220 MI. Kuan fequivateate do Mt. Mere). Figura 4. Organizagdes do espago egocéntricas (A) e etnocéntricas (B-G) dos tempos antigos até os modernos, nas sociedades letradas ¢ iletradas. A Figura 4G foi reimpressa com permissao de Torsten Hagerstrand, "Migra- tion and area: survey of a sample of Swedish migration fields and hypo- thetical considerations on their genesis”, Lund Studies in Geography, Series B, Human Geography, v. 13, 1957, p. 54. Gait @ Gaia Fat? 156, Rio Nilo Ny "= , D, ldéin do mundo dos indios E, Mupa 0-7 segundo Isidoro, blspo de Yurok da California i Sevithia (570-636 depois de Crlato) F. Hemisférios continental e oceanico centrado na Franga setentrional AMERICA DO NORTE, G. Mapa com distineta azimutal logaritmaica, centrado na Suécia central + Genk = centro do mundo cnr err ee 56 Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais Em inglés, os demonstrativos ‘‘este” ¢ “aquele” sio ape- nas um par e, portanto, carecem de amplitude locacional; talvez como resultado disto seus significados se tornam pola- rizados e podem transmitir uma grande carga emocional. “Falamos disto e daquilo, mas principalmente daquilo.” A palavra “‘aquele” sugere sem diivida t6picos de conversacio remotos e triviais** Em Ricardo I1, Shakespeare consegue evocar um sentimento de fervor patriético, em parte através do uso insistente de “este”, que é identificado com “‘nés os ingleses”. “Esta afortunada estirpe de homens, este pequeno mundo, esta pedra preciosa. [...]" Uma diferenga' que todos fazem é entre “nds” ¢ ‘‘eles’’. Nos estamos aqui; nés somos esta afortunada estirpe de homens. Eles estao /4; eles nao sto completamente humanos e vivem naquele lugar. Os membros do grupo-nés sto amigos chegados entre si, estio distanciados dos membros do outro grupo (eles). Aqui vemos como os significados de ‘chegados” e “distanciados”’ sao uma combinacao de graus de intimidade interpessoal ¢ distancia geografica. Nao seria possivel decidir qual sentido é o primitivo e qual é 0 derivado.* ‘Somos amigos chegados” quer dizer que temos intimidade, nos vemos muitas vezes ¢ yivemos no mesmo bairro. Ser chegado com- bina os dois significados de intimidade e proximidade geogra- fica, A medida que o amigo se muda cada vez mais para longe geograficamente, também declina 0 calor emocional: “longe dos olhos, longe do coracao”. E claro, ha intimeras excegdes. A dist&ncia social pode ser 0 inverso da distAncia geografica. O criado vive perto do patrio, mas ambos nao s4o amigos chegados. Psicologicamente, a auséncia (distancia espacial) pode aumentar o afeto. Tais excegdes nao invalidam a regra. Temos apontado que certas divisdes e valores espaciais devem sua existéncia e significado ao corpo humano, e tam- bém que a distancia — um termo espacial — est4 intima- mente ligada a termos que expressam relacdes interpessoais. Este tema pode facilmente ser ampliado. Poderiamos pergun- tar, por exemplo, como 0 espago e a experiéncia de espacio- sidade esto relacionados com o sentido humano de compe- téncia e liberdade. Se 0 espago 6 um simbolo de amplidao e 57 Corpo, Relagées Pessoais e Valores Espaciais liberdade,'como se afetaré com a presenga de outras pessoas? Qué experiéncias concretas nos permitem atribuir significados diferentes ao espago e a espaciosidade, A densidade de popu- lag&o e apinhamento? 5 Espaciosidade e Apinhamento nados, como sio densidade de populacio e apinha- mento; mas espaco amplo nem sempre é experienciado como espaciosidade, e alta densidade necessariamente no significa apinhamento. Espaciosidade e apinhamento sio sen- timentos antitéticos. O ponto no qual um sentimento se trans- forma em outro depende de condigdes dificeis de generalizar. Para compreender como estao relacionados espaco e ntimero de pessoas, espaciosidade e apinhamento, precisamos explo- rar seus significados em condigdes especificas.! Consideremos o espaco. Enquanto unidade geométrica (Area ou volume), é uma quantidade mensurdvel e precisa. Falando mais informalmente, espago significa lugar (room); a palayra alema para espago é Raum. Ha lugar para outro engradado de méveis no depésito? H4 lugar para outra casa na propriedade? A faculdade tem lugar para mais estudantes? Apesar de terem estas questdes uma forma gramatical seme- lhante e todas usarem a palavra “lugar” adequadamente, o significado de “lugar” é diferente em cada caso. A primeira questao indaga se mais objetos podem ser colocados e a res- posta requer uma medic&o simples e objetiva. A segunda e a terceira questdes mostram que lugar pode significar mais do ] <4 spago e espaciosidade sao termos intimamente relacio- 58 59 Espaciosidade e Apinhamento que espaco fisico: sugere espaciosidade. A questao nao é se a casa pode caber fisicamente na propriedade, mas se 0 sitio é suficientemente espacoso. E uma faculdade nao somente deve ter salas de aula adequadas, bibliotecas e laboratérios, mas deve parecer espacosa e livre aos estudantes que nela ingres- sam para ampliar suas mentes. ie Espaciosidade est4 intimamente associada com a sensa- : G40 de estar livre. Liberdade implica espaco; significa ter poder e espaco suficientes em que atuar. Estar livre tem di- | versos niveis de significado. O fundamental é a capacidade | para transcender a condic¢o presente, e a forma mais simples (em que esta transcendéncia se manifesta é 0 poder basico de locomover-se. No ato de locomover-se, 0 espaco e seus atri- butos sio experienciados diretamente. Uma pessoa imével tera dificuldade em dominar até as idéias elementares de espaco abstrato, porque tais idéias se desenvolvem com o movimento — com a experiéncia direta do espaco através do movimento. Um bebé nao é livre, assim como os prisioneiros e os acamados. Eles nao podem, ou perderam a capacidade de moyer-se livremente; vivem em espacos confinados. Uma pes- soa idosa moye-se com dificuldade crescente. O espaco parece fechar-se sobre ela. Para uma crianga sadia, a escada é uma ligagao entre dois andares, um convite para subir e descer; para um velho é uma barreira entre dois andares, um aviso para nao sair do lugar. Os fisicamente fortes — criancas e atletas — desfrutam de uma sensagao de amplidio espacial pouco conhecida dos que trabalham em escritério, os quais ouvem as narrativas de proeza fisica com um misto de admi- ragio e inveja. Eric Nesterinko, um jogador de héquei do To- ronto Maple Leafs, descreveu que mesmo quando crianga a alegria de mover-se era superior a alegria de ganhar. “Quando era crianga”’, ele recorda, ‘‘mover-me bastante era o que me encantava. Sentia-me solto porque podia me mover ao redor de qualquer um. Era livre.” Como um homem de meia-idade, aos trinta e oito anos Nesterinko continua se sentindo encan- tado com a liberdade espacial. Recorda como em uma tarde fria, clara e agradavel, ele viu um enorme manto de gelo na u Cee mer er ene vet 60 Espaciosidade e Apinhamento rua, Sem pensar, dirigiu seu carro para o gelo, desceu e colo- cou seus patins. O jogador de héquei disse: ‘‘Tirei meu casaco de pélo de camelo. Fiquei s6 de terno. E voei. Nao havia ninguém. Estava to livre como um pAssaro. [...] Incrivel! E lindo! Vocé est4 ultrapassando as fronteiras da gravidade. Eu acho que este € 0 desejo inato do homem."” | “ Instrumentos e maquinas ampliam a sensagao de espaco ¢ espaciosidade do homem. O espaco que é mensur4vel pelo ‘aleance dos bracos estendidos torna-se um mundo pequeno “ quando comparado com aquele que é medido pela distancia ido arremesso da langa ou 0 tiro de uma flecha. O corpo pode \sentir ambas as medidas. Tamanho € 0 que a pessoa sente \quando estende seus bracos; é a experiéncia do cagador quando arremessa sua langa, sente-a sair de sua mao e a vé desaparecer a distancia. Um instrumento ou m4quina au- menta o mundo da pessoa quando ela sente que é uma exten- s&o direta de seus poderes corporais. Uma bicicleta amplia a sensac%o de espaco do homem, assim como um carro esporte. Sao mAquinas comandadas pelo homem. Um carro esporte responde ao menor desejo do motorista. Descortina um mundo de velocidade, yento e movimento. Acelerando em uma reta ou fazendo uma curva, momento e gravidade — estes termos aridos tirados de um texto de fisica — tornam-se as quali- dades sentidas do movimento, Pequenos aeroplanos do tipo usado na década dos vinte sio capazes de aumentar a liber- dade do homem, seu espago, como também de colocd-lo em uma relagio mais intima com a vastiddo da natureza. O escri- tor francés ¢ piloto Antoine de Saint-Exupéry assim se ex- pressou: A méquina que & primeira vista parece um meio de isolar 0 homem dos problemas da natureza, na verdade mergulha-o mais profundamente neles. Tanto para o camponés como para o piloto, a aurora e 0 crepisculo tor- nara-se acontecimentos importantes. Seus problemas essenciais sto mar- cados pela montanha, mar ¢ vento. $6 diante do vasto tribunal do céu tempestuoso, o piloto defende sua correspondéncia |sic| ¢ discute em termos de igualdade com aquelas trés divindades elementares.? Quando o cagador paleolitico deixa a sua acha e pega o arco e a flecha, ele avanga um passo na conquista do espago, 61 Espaciosidade e Apinhamento contudo o espaco se expande diante dele: as coisas que antes estavam além do seu alcance fisico e horizonte mental agora fazem parte do seu mundo. Imagine um homem de nosso tempo que aprende primeiro a andar de bicicleta, depois a guiar um carro esporte e finalmente a pilotar um pequeno aeroplano. Ele obtém progressos sucessivos de velocidade; vence distancias cada vez maiores. Ele conquista 0 espago, mas nao aniquila o seu tamanho sensivel; ao contrario, o espaco coritinua a abrir-se para ele. Quando o transporte é uma experiéncia passiva, a conquista do espaco pode signi- ficar a sua diminuigao. A velocidade que da liberdade ao homem, faz com que ele perca a sensagio de espaciosidade. Pense em um aviao a jato de passageiros. Ele cruza 0 conti- nente em poucas horas; no entanto, a experiéncia dos passa- geiros com a velocidade e 0 espaco é provavelmente menos nitida do que a de um motociclista que desce ruidosamente uma auto-estrada. Os passageiros n&o tém controle sobre a maquina ¢ ndo podem senti-la como uma extensio de seus poderes corporais. Os passageiros s4o pacotes luxuosos — amarrados com seguranga em seus assentos — transportados _passivamente de um lugar para o outro. 5 O espaco é um simbolo comum de liberdade no mundo “ ocidental. O espago permanece aberto; sugere futuro e con- vida A aco. Do lado negativo, espaco e liberdade séo uma |ameaca. Um dos sentidos etimoldgicos do termo bad (“mau”) é “aberto’”’. Ser aberto e livre € estar exposto e vulnerdvel. O espaco aberto ndo tem caminhos trilhados nem sinalizagao. Nao tem padrées estabelecidos que revelem algo, 6 como uma folha em branco na qual se pode imprimir qualquer signifi- Jeado. O espago fechado ¢ humanizado é lugar. Comparado com 0 espago, o lugar é um centro calmo de valores estabe- lecidos. Os seres humanos necessitam de espaco e de lugar. As vidas humanas s4o um movimento dialético entre refiigio € aventura, dependéncia ¢ liberdade. No espaco aberto, uma pessoa pode chegar a ter um sentido profundo de lugar; e na solidao de um lugar protegido a vastid4o do espaco exterior adquire uma presenga obsessiva. Um individuo sadio aceita restricdo e liberdade, a limitago do lugar e a amplidio do 62 Espaciosidade e Apinhamento espaco. Ao contrario, 0 claustréfobo vé os lugares pequenos e apertados como algo opressivo, n&o como espacos limitados onde é possivel a meditagao ou a camaradagem fraterna. Um agordfobo teme espacos abertos, que para ele nao se apre- sentam como campos potenciais de ago nem de engrandeci- mento do eu; pelo contrrio eles ameacam a fragil integridade doeus O meio ambiente fisico pode influenciar o sentido de :tamanho e espaciosidade. Na pequena ilha melanésica de Ti- kopia, que tem apenas cinco quilémetros de comprimento, os ilhéus nao conseguem conceber o tamanho de uma grande extensao de terra. Duvidam que exista uma terra na qual nao se possa escutar o barulho das ondas do mar.S A China, no outro extremo, estende-se por um continente. Seu povo apren- deu a contemplar grandes distancias e a pensar nelas com medo, porque podem significar a separacio de amigos e namorados. A antiga literatura chinesa usava a expressdo, mil i* para evocar um sentido de grande distancia. Durante a dinastia Han, tornaram-se moda os ‘‘dez mil li’. Com 0 au- mento do conhecimento geografico, fez-se necessaria uma retificagio da hipérbole poética. Mais ainda, 4 medida que o conhecimento geografico ampliou, os poetas puderam usar ambientes naturais contrastantes para evocar um sentido de distancia e separag4o. Os versos seguintes de um poema es- crito durante o periodo Han ilustram o sentimento.e 0 método empregado para destaca-las: Sem parar, caminho sem parar, longe de ti— separados, dez mil lie mais entre nds, cada qual em um extremo do céu. aor A trilha que percorro longa e dolorosa; quem sabe quando nos veremos outra vez? O cavalo Hu inclina-se com o vento norte; © passarinho Yueh faz seu ninho nos ramos voltados para o sul; cada vez mais aumenta nossa separacio...° (*) Li é uma medida chinesa de distancia, correspondendo a mais ‘ou menos 580 m(N. daT.). 63 Espaciosidade e Apinhamento Hu designa a 4rea ao norte da China que se estende da Coréia até o Tibete; Yueh é 0 termo para a 4rea ao redor da foz do rio Azul. Portanto, uma hipérbole abstrata de distancia, dez mil li, € corporificada com a imagem de duas regides especificas com suas ecologias contrastantes. A sensacio de espaciosidade é identificavel com tipos particulares de meios ambientes? Um cendrio é espacoso se nos permite movermo-nos livremente. Um quarto amontoado de méveis n&o é espacoso;.ao contrario de um saguio vazio ou de uma praca ptiblica; se houver criancas soltas nestes Iu- gares, elas provavelmente tenderao a correr. Uma ampla pla- nicie sem Arvores parece aberta e extensa. A relacio do meio ambiente com o sentimento parece clara; mas de fato é dificil formular regras gerais. Dois fatores perturbam o assunto, Um que o sentimento de espaciosidade depende do contraste. Por exemplo, umi casa é um mundo compacto e articulado em comparagao com 0 vale la fora. De dentro da casa o vale parece amplo e indefinido, mas o préprio vale é uma depress sao bem definida se comparado com a planicie na qual ele se abre. O segundo fator é que a cultura e a experiéncia tem uma grande influéucia na interpretacdo do meio ambiente. Os norte-americanos passaram a aceitar as pradarias abertas do Oeste como um simbolo de oportunidade e liberdade, mas para os camponeses russos 0 espaco sem fronteira tinha um significado oposto. Conotava antes desespero que oportuni- dade; mais inibia do que encorajava a agao. Falava da insig- nificdncia do homem diante da imensidao e indiferenca da natureza. Imensidao que oprimia. Maximo Gérki escreveu: A planicie ilimitada onde se ergue uma vila com chogas amontoadas, de paredes de troncos ¢ telhados de palha, tem a maldita propriedade de desolar a alma humana ¢ de exaurir todo desejo de ago. O camponés pode ir além dos limites da vila, olhar para o vazio ao seu redor, e apos algum tempo sentiré como se essa desolago entrara em sua propria alma, Em parte alguma se podem ver vestigios de trabalho. [...] Até onde os olhos podem alcangar, estende-se uma planicie sem fim, e no meio dela esté um insignificante homenzinho miseravel, abandonado nesta terra sombria para trabalhar como um escravo de galera. E 0 homem esté esmagado por um sentimento de indiferenga que mata sua capacidade de pensar, de lembrar a experiéneia passada e de inspirar-se nela.” coe. e co cce es es BEUS 2 YEE SES -+.veuewe 64 Exspaciosidade e Apinhamento O problema de como o meio ambiente e o sentimento est&o relacionados traz 4 mente a seguinte questio: pode-se associar uma sensagio de espaciosidade com a floresta? De um ponto de vista, a floresta é um ambiente fechado, a anti- tesc de espaco aberto. Nao existem vistas panoramicas. Um fazendeiro tem que derrubar Arvores para criar espago para a sede da fazenda e para os campos de cultiyo, No entanto, uma vez estabelecida, a fazenda se transforma em um mundo orde- nado e com significado — um lugar —, e além dela est4 a floresta e o espaco.’ A floresta, ndo menos que a planicie desnuda, é uma regio virgem cheia de possibilidades. As Arvores, que de um ponto de vista fecham 0 espaco, de outro sdo meios pelos quais se cria uma consciéncia peculiar de espaco, porque as Arvores esto alinhadas até onde a vista alcanga, e elas levam a mente a extrapolar até o infinito. A planicie aberta, nao importa qudo grande seja, termina no horizonte. A floresta, embora possa ser menor, parece ifimi- tada para quem esta perdido dentro dela... Para que as montanhas florestadas ou as planicies com pastagens sirvam como imagem de espaciosidade depende, em parte, da natureza da experiéncia hist6rica das pessoas. No perfodo da grande expansio européia do século XIX, os migrantes geralmente mudavam-se das florestas para as pas- tagens. A principio a pradaria norte-americana provocava temor; carecia de defini¢’o quando comparada com os espa- gos reticulados do Leste habitado e arborizado. Mais tarde os americanos interpretaram a pradaria de maneira mais posi- tiva: a Costa Leste tinha lugares bem ordenados, mas 0 oeste significava espago e liberdade. Ao contrario da experiéncia norte-americana, na China os antigos centros de populag3o~ estavam localizados no territério relativamente aberto do norte semi-timido e semi-4rido. O movimento da populagao deu-se para o sul montanhoso e florestado. Poderiam os chineses ter associado o sul florestado com uma sensagao de espaciosi- dade? Pelo menos alguns deles 0 fizeram. A poesia do periodo Han, por exemplo, descreve a natureza selvagem do sul com admiragio; 14, os funcionarios vindos do norte encontraram um mundo imenso e aparentemente primitivo de montanhas ¢ 65 Espaciosidade e Apinhamento lagos envoltos em neblina. Foi no sul da China que a poesia naturalista e a pintura de paisagem alcancaram seu maior desenvolvimento: ambas as artes contrastaram 0 espaco natu- ral, um mundo de luz cambiante e de sucessivos cumes de montanhas desaparecendo no infinito, com 0 mundo formal e fechado do homem? O espaco é, sem diivida, mais do que um ponto de vista ou um sentimento complexo e fugaz. E uma condigao para a sobrevivéncia biolégica. Mas a quest4o de quanto espaco um homem necessita para viver confortavelmente nao tem uma resposta simples. O espaco como recurso € uma apreciagao cultural. No Oriente, uma familia de fazendeiros pode viver feliz em poucos hectares intensamente trabalhados: em 1862, nos Estados Unidos, um quarto de segaio*, ou 160 acres (65 hectares), era considerado 0 tamanho adequado para uma pequena propriedade rural. O nivel de aspiragao, sem duvida, afeta o que cada um considera como espaco adequado. A aspiragdo é condicionada culturalmente. A China tradicional, por exemplo, tinha muitos pequenos proprietarios, que se contentavam em viver das rendas das propriedades e desfrutar da ociosidade em vez de trabalhar e investir os lucros para aumentar suas propriedades. Nas sociedades ocidentais capi- talistas, aspiragdo e espirito empresarial tém sido e continuam sendo muito mais fortes. Para o verdadeiro empresério, os bens que possui, raramente parecem suficientes. O espaco suficiente para os negécios atuais pode parecer-lhe insufi- ciente. Os apetites bioldgicos logo atingem seu limite natural, mas o anseio ultrabiolégico — que rapidamente assume a forma deturpada da cobiga — é potencialmente ilimitado. Tolstéi, desesperado, indagou: ‘Quanta terra necessita um homem?"” — titulo de uma elogiiente fabula em que da sua resposta. Apesar de a questao de Tolstéi parecer uma coisa simples, sua resposta ¢ as de outros escondem comumente profundos compromissos politicos e morais. (*) Uma segdo é uma subdivisio de terras pablicas, nos EUA, de area equivalentea uma milha quadrada(N. daT.).. 66 Espaciosidade e Apinhamento O espago é um recurso que produz riqueza e poder quando adequadamente explorado. E mundialmente um sim- bolo de prestigio. O “homem importante” ocupa e tem acessc a mais espaco do que os menos importantes. Um ego agressive exige incessantemente mais espago para se movimentar. A sede de poder pode ser insaciavel — particularmente o poder sobre o dinheiro ou territério, visto que os crescimentos finan- ceiro e territorial sio basicamente simples idéias adicionais que demandam pequeno esforgo imaginativo para serem con- cebidas e extrapoladas. O ego coletivo de uma nag4o tem reivindicado mais espago vital as expensas dos vizinhos mais fracos; uma vez que uma nacdo tem éxito na conquista de territérios, pode ser que n4o veja nenhum impedimento im- portante para nao chegar quase a dominar 0 mundo. Tanto para a nacio agressiva como para o individuo agressivo, ¢ contentamento que acompanha a sensagao de espaciosidade € uma miragem que desaparece & medida que se adquire mais espago. ‘ — Oespago, uma necessidade biolégica de todos animais, ) € também para os seres humanos uma necessidade psicolé- \ gica, um requisito social, e mesmo um atributo espiritual. | Espaco e espaciosidade tém diferentes significados nas varias \culturas. Consideremos a tradig&o hebraica, que vem tendo uma forte influéncia nos valores ocidentais. No Antigo Testa- mento, as palavras para espaciosidade significam em um con- texto tamanho fisico e, em outros, qualidades psicolgicas e espirituais. Como uma medida fisica, espaciosidade é “uma terra boae grande, uma terra onde corre leite e mel” (Exodo, 3, 8). Os israelitas estavam preocupados com o tamanho da terra prometida. Eles nio podiam se levantar em armas e aumenta-la As custas dos vizinhos, porém Deus poderia apro- var sua aventura. “Porque expulsarei as nacdes diante de ti, e alargarei tuas fronteiras, e ninguém cobicara tua terra” (Exodo, 34, 24). Psicologicamente, espaco na tradicao he- braica significa escapar do perigo e livrar-se das restri¢des. A vitoria é escapar “para um espaco amplo”’. “Tirou-me e colo- cou-me em um espago amplo; livrou-me porque me tem amor” (Salmo, 18, 19). No Salmo 119, a linguagem de espaciosidade 67 Espaciosidade e Apinhamento é aplicada ao engrandecimento intelectual e liberdade espi- ritual do homem que conhece a Tora. ‘“'Correrei pelo caminho dos vossos mandamentos, porque sois vés que engrandeceis minha mente’’ (versiculo 32). No plano espiritual, espago conota liberagao e salvacio.”” Até aqui temos explorado o significado de espaciosidade sem considerar a presenga de outras pessoas. A soliddo é uma condic¢ao para adquirir a sensac&o de imensidade. A s6s, nossos pensamentos vagam livremente no espaco. Na presenca de outros, os pensamentos recuam devido ao fato de que outras pessoas projetam seus préprios mundos na mesma area. O medo do espaco muitas vezes vai junto com o medo da solidaéo. A companhia de seres humanos — mesmo de uma Sinica pessoa — produz uma diminui¢do do espaco e ameaca a liberdade. Por outro lado, 4 medida que as pessoas penetram no espaco, para cada uma chega um ponto em que a sensacdo de espaciosidade passa ao seu oposto — apinhamento, O que é apinhamento? Podemos dizer que uma floresta est api- nhada de Arvores e um quarto est4 apinhado de bugigangas. Mas sao basicamente as pessoas que nos apinham; elas, mais do que as coisas, podem restringir nossa liberdade e nos privar de espaco. Um exemplo exagerado de como os outros podem afetar a escala de nosso mundo. Imagine um homem timido estu- dando piano no canto de um salao. Alguém entra para olhar. Imediatamente o pianista sente restrig4o espacial. Mesmo uma s6 pessoa a mais pode parecer uma multidao. Sob o olhar de outrem, o pianista deixa de ser o tinico sujeito dominando o espaco, e passa a ser um objeto entre muitos do quarto. Ele sente que perde o poder para organizar as coisas no espaco de uma nica perspectiva, que é a sua. Objetos inanimados rara- mente produzem este efeito, embora um homem possa com facilidade se sentir doente em um quarto cheio de retratos de seus ancestrais. Até uma pega do mobilidrio pareceria uma presenca intrusa. No entanto, as coisas tém este poder apenas na medida em que as pessoas dotam-nas com caracteristicas animadas ou humanas. Os seres humanos possuem natural- mente este poder. Porém a sociedade pode priv4-los disto. Os ees 2s -—w eee ewe ee 68 idade e Apinhamento seres humanos podem ser tratados como objetos, de maneira que nao sejam mais do que estantes de livros. Um homem rico écercado de criados, porém eles nao o apinham; devido ao seu baixo status se tornam invisiveis — parte do madeiramento da casa. O apinhamento é uma condigao conhecida de todos, num ou noutro momento. As pessoas vivem em sociedade. Quer seja um esquimé ou um nova-iorquino, aparecerao ocasides em que a pessoa tera que trabalhar ou viver junto com outras pessoas. Quanto ao nova-iorquino isto 6 6bvio, mas mesmo os esquimés nem sempre se movem no espaco aberto da tundra; durante as inimeras noites longas e escuras, eles tém que suportar as companhias uns dos outros nas cabanas mal venti- ladas. O esquim6, ainda que nao tao freqiientemente quanto © nova-iorquino, deve as vezes filtrar o estimulo de outras pessoas transformando-as em sombras e objetos. A etiqueta a rusticidade so diferentes meios para se atingir 0 mesmo fim: ajudar as pessoas a evitarem o contato.quando tal contato ameaga ser intenso demais. Uma sensagao de apinhamento pode aparecer sob condi- des altamente variadas e em diferentes escalas. Como ja assi- nalamos, duas pessoas em um cOmodo podem constituir uma multiddo. O pianista para de tocar e sai. Consideremos o fendmeno em grande escala do apinhamento e da migracio. No século XIX, muitos europeus abandonaram suas pequenas propriedades rurais, moradias apinhadas e cidades polufdas, pelas terras virgens do Novo Mundo. Interpretamos correta- mente a migragao quando dizemos que foi motivada pelo desejo de procurar oportunidades em um meio ambiente mais livre e mais espacoso. Outro grande fluxo de pessoas, tanto na Europa como na América do Norte, foi do campo e dos po- yoados para as grandes cidades. Tendemos a esquecer que a migrag3o rural-urbana, como os antigos movimentos através do oceano e para o Novo Mundo, poderia também ser moti- vada pelo impulso de escapar do apinhamento. Por que a gente do campo, especialmente 0 jovem, troca suas pequenas vilas pelos centros metropolitanos? Uma razdo é que a vila carece de espago. O jovem a considerava apinhada em um 69 Espaciosidade e Apinkamento sentido econdmico porque nao oferecia empregos suficientes, e em um sentido psicolégico porque lhe impunha muitas res- trigdes sociais ao seu comportamento. A falta de oportunidade na esfera econdmica e de liberdade na esfera social fazem 0 mundo dos isolados povoados rurais parecer estrcito e limi- tado. Os jovens o abandonavam por empregos, liberdade e ~ em sentido figurado — pelos espagos abertos da cidade. A cidade era o lugar onde os jovens acreditavam que por si s6s poderiam progredir e melhorar de vida. Paradoxalmente a cidade parecia menos “‘apinhada” e ‘‘cercada” do que a zona rural, onde as oportunidades vinham diminuindo. Apinhamento é saber-se observado. Numa cidade pe- quena, as pessoas se “‘espiam” mutuamente. “Espiar” tem tanto 0 bom sentido de preocupag’o como o mau sentido de futil — e talvez de malévola — curiosidade. As casas tém olhos. Quando sao‘construidas proximas umas das outras, ouvem-se os ruidos dos vizinhos e as suas preocupacdes. Quando sao construfdas distantes umas das outras, a privas dade é melhor preservada — mas nao garantida; tal é a criati- vidade humana. Na ilha Shetland, longe do litoral da Escécia, os chalés sio bem espagados. Todavia a ‘intromissao visual persiste. Segundo o sociélogo Ervin Goffman, os habitantes que foram marinheiros usam. telesc6pios de bolso para obser- var as atividades de seus vizinhos. Apesar da distancia, um morador da ilha pode, de sua propria casa, ficar observando quem visita quem." Arvores ¢ matacdes podem ser densos em uma Area sel- vagem, mas os amantes da natureza nao a yéem como api- nhada. As estrelas podem salpicar o céu noturno; este céu no & visto como opressivo. Para os habitantes sofisticados da cidade, a natureza, qualquer que seja seu cardter, significa abertura e liberdade. Os homens; se estéo empenhados em ganhar sua subsisténcia da natureza, unem-se a6 cenario na- tural e ndo rompem sua solidio. No Oriente, nas regides do arroz, densamente povoadas, os agricultores, trabalhando ritmadamente, sao quase invisiveis para os observadores de fora, simplesmente parecem pertencer A terra. Java é api- nhada? Sua densidade demografica média de quatrocentos 70 Espaciosidade e Apinhamento habitantes por quilémetro quadrado a torna uma das regides mais apinhadas do mundo, Porém, eis aqui a resposta ambi- valente de Aristide Esser, psiquiatra ambientalista. Aomesmo tempo que Esser reconhece o fato da alta densidade de Java, ele assim se refere a ilha na qual nasceu: “A beleza de sua paisagem, e sua gente tranqiiila e compreensiva produziram em mim imagens de liberdade em um mundo onde tudo é bonito.” Ao contrario, a Holanda — o pais onde Esser estudou — pareceu-lhe “ridiculamente pequena” e “opres- iva’? Quer a natureza mantenha ou nao seu ar de solidao, pouca relagio tem com o ntimero de pessoas que vivem e trabalham nela. A soliddo é quebrada nao tanto pelo niimero de organismos (humanos e n4o humanos) na natureza, mas pela sensacao de trabalho — incluindo o trabalho da mente — e de objetivos diferentes, reais e imagindrios. Mary McCarthy observou que saber-se se “uno” com a natureza ja constitui uma intrusdo: “Dois pescadores arrastando uma rede para a praia parece natural, dois poetas meditando, um ao lado do outro, na mesma praia seria ridiculo — um s6 ja é demais.”” (_ As pessoas so seres sociais. Gostamos da companhia de / nossos semelhantes. Como toleramos ou apreciamos a proxi- ) midade fisica de outras pessoas, por quanto tempo e em que | condig6es, varia sensivelmente de uma cultura para outra. Os “indios Kaingang, da bacia Amaz6nica, gostam de dormir em grupos abracados uns com os outros. Gostam de se tocar € acariciar mutuamente; procuram a intimidade fisica (nao se- xual) para conforto e tranqiiilidade.* Em outra parte do mundo esparsamente poyoada, 0 deserto do Calaari, os bos- quimanos Kung vivem em condigdes de apinhamento. Patri- cia Draper observou que, em um acampamento bosquimano, 0 espaco médio que cada pessoa tem é de apenas 17 metros quadrados, muito menos que os 32 metros quadrados por pessoa considerados como um padrio recomendavel pela Associacao Norte-americana de Satde Piiblica. Em um acam- pamento bosquimano, 0 espaco é organizado para assegurar 0 maximo de contato. ‘As cabanas tipicas estao tao juntas que as pessoas sentadas em diferentes chogas podem trocar coisas 71 Espaciosidade e Apinhamento sem se levantar. Freqiientemente a pessoas sentadas ao redor de varios fogos mantém longas discussdes sem levantar o tom das vozes acima dos niveis normais de conversagdo.”'* Nao falta espago no deserto, Os bosquimanos vivem juntos porque gostam, e no mostram sintomas de stress biologico. Na sociedade industrial ocidental, sabe-se que as familias da classe operaria toleram uma densidade residencial muito mais alta do que as familias da classe média. E a razio nao é simplesmente porque os trabalhadores tém pouca escolha. Gostam da proximidade dos outros, As mansées suburbanas, assentadas em lotes de 2 mil metros quadrados de gramado, nao sio necessariamente invejadas pelas familias dos opera- rios acostumadas ao alvorogo e 4 cor do velho bairro. Essas familias olham com suspeita 0 subtirbio da classe média; pa- rece-lhe frio e desabrigado. A proximidade humana, o contato humano e um ambiente de ruidos humanos quase constantes sio tolerados e até bem aceitos. Em um novo projeto habita- cional no Chile, por exemplo, os moradores da classe operaria mudaram uns méveis da sala para 0 corredor, para poderem ficar juntos, como estavam acostumados. Ao passo que na Inglaterra um estudo de familias que mudaram de moradias apinhadas para um conjunto residencial ajardinado, relativa- mente espacoso, mostrou que elas se beneficiaram com a mudang¢a: ficaram menos tensas porque era mais facil desfru- tar de privacidade. Por outro lado, pelo menos durante algum tempo, os quartos foram, desnecessariamente, compartilha- dos, e por opgao os trabalhos caseiros e as tarefas conti- nuaram a ser feitos em grupo.!* Uma multidio pode ser divertida. Jovens e velhos de todos os niveis sociais sabem disto.” Um grupo difere do outro principalmente quanto ao tempo desejado de estar na multidao, a ocasiao e ao lugar preferido. O que.os operarios ingleses e suas familias fazem durante as férias de verio? Em grandes bandos se dirigem para a praia. Fogem de seus bair- ros acanhados, nas cidades industrializadas, para as tritu- rantes multidées de Blackpool e Southend. A multidao a beira-mar, longe de ser inc6moda, é uma grande atragio. Que seria de um desfile, de uma feira estadual, de uma quermesse [ee ee Ce aT Oy SST Cay Ean CS) vee verve oa ewee ew ver Peewee” ww ow wee ew Espaciosidade e Apinhamento de caridade, de uma festa religiosa ou de uma partida de futebol sem as multiddes? Os jovens norte-americanos de familias abastadas fre- qiientemente sao grandes adeptos da natureza e da experién- cia com o mundo selvagem. Ao mesmo tempo eles parecem gostar das multiddes. As marchas de protesto contra a injus- tica social e a guerra surgem de uma grande indignacao; porém os jovens protestadores, certamente também desfrutam da camaradagem, da sensagao de solidariedade de um grupo por uma causa justa e do simples prazer de juntar-se com pessoas que pensam como eles. Os festivais de rock ao ar livre captam a ambivaléncia essencial do jovem. De um lado, est o ambiente ao ar livre, a liberagdo feminina e a nudez; do outro, a imensa multidaio — mais densamente amontoada do que qualquer rua de Manhattan — e o clamor da musica ampliada eletronica- mente, Em 28 de julho de 1973, cerca de 600 mil jovens assistiram em Watkins Glen, Nova York, ao festival rock ao ar livre. Os fas se acotovelavam em 36 hectares de uma colina gramada. “Visto do ar”, noticiou o New York Times, “o lugar cercado, onde se realizou o concerto, parecia um formigueiro rodeado por extensas campinas repletas de carros e barracas fortemente coloridas. A colina estava tio atulhada de gente que uma moga de dezénove anos de Patchogue, Long Island, disse que levou trés horas. para ir e voltar do toalete portatil distante umas centenas de metros.”"* Ao considerar 0 sol escaldante, o fervilhar de gente, as precarias condigdes dos sanitarios e 0 grande consumo de cerveja ¢ vinho, era de esperar um grande stress fisico e mental, frustragao repri- mida, acessos de raiva, e briga a socos. Na verdade, a mule tidao estava bem-humorada e se comportou satisfatoriamente. A auséncia de incidentes sérios surpreendeu tanto os mora- dores locais como a policia. A musica nao foi a unica atragao do festival — a propria multidao foi uma festa. As pessoas nos restringem, mas também podem ampliar nosso mundo. O coracao e a mente se expandem na presenga daqueles que admiramos e amamos. Quando Lara, a heroina de Boris Pasternak, entra em um quarto, é como se uma 73 Espaciosidade e Apinhamento janela de repente se abrisse e o quarto se inundasse de luz e ar.’? Quando as pessoas trabalham juntas por uma causa comum, um homem nao tira espaco do outro; pelo contrario ele aumenta o espago do companheiro, dando-lhe apoio. “Quanto mais anjos, mais espago”, disse 0 erudito tedlogo cientista Swedenborg (1688-1772), porque a esséncia do anjo nao é usar 0 espago, mas crid-lo através de atos altruistas.” Por outro lado, uma causa freqiiente de nossa frustragio sio as pessoas: porque suas yontades cerceiam as nossas. As pes- soas freqiientemente se colocam em nosso caminho, e poucas vezes 0 fazem inocentemente, como os tocos de arvores e os méveis que nada fizeram para estarem ai. Num estddio lotado todos so benvindos; contribuem para a vibracdo da partida. No caminho de volta para casa, guiando o carro na estrada congestionada, as outras pessoas incomodam. Quando 0 mo- tor do carro da frente afoga, chegamos a pensar que foi de propésito. O estadio tem uma densidade demografica maior que a da estrada, mas é nesta que sentimos o dissabor da restricdo espacial. Atividades conflitantes geram uma sensagao de apinha- mento, Em um pequeno apartamento urbano, uma atarefada mae tenta cozinhar, alimentar o bebé, ralhar com a crianca que esta aprendendo a andar e derramou comida no chao, e atender a campainha, tudo ao mesmo tempo. Um fatigado pai volta para casa e nao consegue encontrar um canto sosse- gado, longe de suas criangas briguentas e falantes. Se esta familia se mudasse para uma residéncia adequada, sem di- vida a tensdo diminuiria ¢ aumentaria a serenidade da fami- lia. Entretanto, os seres humanos so to adaptaveis, que em certas condigdes favoraveis podem extrair vantagens até de moradias apinhadas — especialmente, um tipo de calor hu- mano indiscriminado e gregario. As pessoas da classe operaria as vezes tém conseguido este calor, como descreveram D. H. Lawrence e Richard Hoggart, escritores descendentes desta classe. Em um lar congestionado de uma familia operaria in- glesa, é dificil ficar sozinho, pensar sozinho ou ler tranqi lamente, Nao apenas as coisas, mas também as pessoas sio compartilhadas. A mae é “nossa mac”, 0 pai é “nosso pai”, € Espaciosidade e Apinhamento a filha é “nossa Alice”. Hoggart captou, nesta cena de sala, esse mundo de aceitagio e partilha, que, embora confuso, é intensamente humano: H& rAdio ou televisio, coisas sendo feitas de maneira irregular ou conversas intermitentes |...]; 0 ferro de passar bate sobre a mesa, 0 cachorro se coga & boceja ou o gato mia querendo sair; o filho perto da lareira se enxuga com a toalha da familia, trauteia ou sussurra a carta comum do irmao, que esta no exército, que havia sido deixada no consolo da lareira, atrés da fotografia de ‘casamento da irma; a menina comega a choramingar porque est4-muito cansada e.quer ir dormir.” Deste cémodo atulhado nasce um mundo de calor e tole- rancia. O que se perdeu? Qual é 0 custo desta bem-sucedida adaptagio ao apinhamento? O custo parece ser a oportuni- dade de desenvolver uma visio profunda da personalidade humana. Privacidade e solido s4o necessarias para uma re- flexdo perseverante e uma introspeccio rigorosa, e através da compreensdo do préprio eu para que se atinja a plena apre- ciacdo de outras pessoas” Um homem nao é apenas um mineiro, nfo é s6 “nosso pai’, mas também um individuo com © qual poderia ser. possivel uma troca prolongada — abrindo mundos através do dialogo ou dp trabalho comum. A privacidade espacial naturalmente no garante a solidio; mas é uma condigio necessdria. Viver constantemente em um grupo pequeno e fechado tende a restringir 0 aumento da considerac&o pelos outros em duas direcdes opostas: em um extremo, uma intimidade entre os préprios individuos, que transcende a camaradagem e os lagos familiares; e no outro extremo, uma preocupacio generalizada pelo oles estar da humanidade, do mundo todo.” O mundo nos parece espagoso e amistoso quando concilia nossos desejos, e limitado quando eles so frustrados. A frus- tracao difere em intensidade. Para os ricos pode ser simples- mente ficar engarrafado no transito ou ter que esperar por uma determinada mesa em um restaurante favorito. Para o pobre da cidade, frustracao significa muitas vezes avancar lentamente nas longas e vagarosas filas de emprego ou das agéncias da previdéncia social. H4 também frustragdo no nivel mais basico: a certeza de que a terra e Os recursos sio 75 spaciosidade e Apinhamento Es, limitados e muitas barrigas permanecem vazias. Em toda a humanidade, a massa conhece este tipo de privacao, esta sen- sacao de apinhamento. A viséo de Thomas Malthus na relacio entre recurso e populagiio merece um reconhecimento especial pela sua precisiio; a constatagio de apinhamento no sentido maltusiano é, entretanto, desde ha muito bem conhecida e bem difundida. Esse apinhamento tem existido em dreas de densidade demografica alta e baixa, na India, Sudeste Asia- tico e Europa, assim como nas partes esparsamente povoadas na América do Norte™ O folclore e as lendas dessas terras contam em detalhes e graus de clareza variados a est6ria de um mundo superpovoado. Um conto maltusiano comumente comega com um mundo no qual nao se conhecia a morte. Os seres humanos se multiplicaram até que no cabiam mais na terra e houve um grande sofrimento. A est6ria pode, entao, continuar assim. Deus ordenou a um anjo que matasse as pessoas que tivessem atingido uma certa idade. O anjo.con-, testou porque nao Ihe agradava o castigo humano; assim Deus permitiu que o anjo disfarcasse seu trabalho com uma cortina de doengas, acidentes e guerras. Eis outra est6ria maltusiana. Para os esquimés Iglulik, no principio no existia a morte. Os primeiros homens viveram em uma ilha no estreito de Hudson; multiplicaram-se rapidamente, porém nenhum ja- mais abandonou a ilha. Finalmente havia tanta gente na ilha que ela ndo agiientou e comecou 4 afundar. Uma velha gritou: “Que seja ordenado que os seres humanos possam morrer, pois nao haverd mais lugar para nés na terra.” E seu desejo foi atendido.* Os esquimés cagam em pequenos grupos nos amplos es- pagos abertos da costa Artica. O apinhamento urbatio e stress, como acontece durante as horas de pico, so totalmente alheios a experiéncia esquim6; no entanto, os esquimés co- nhecem o apinhamento e o stress. Eles experienciam 0 api- nhamento no nivel tragico da inani¢&o em tempos de escassez. \ ale eee - ~-ewewerevsvs vd Gnata: 6 Habilidade Espacial, Conhecimento e Lugar dade e amplitude de movimento variam enormemente entre as diferentes espécies e s4o em grande parte . Um cordeirinho recém-nascid6, apés alguns passos yacilantes, 6 capaz de acompanhar sua mae no pasto, contro- lando suas quatro patas de maneira a nao entrelag4-las. Os filhotes dos mamiferos aprendem rapidamente a andar. A ex- cegio bem conhecida é 0 homem recém-nascido. Um bebé niio pode ficar em pé ou engatinhar. Até seus pequenos movi- mentos corporais sao desajeitados. O bebé nao sabe bem onde est4 sua boca, e suas primeiras tentativas de levar o dedo a boca so o resultado de ensaio-e-erro. Um pouco mais tarde aprende a engatinhar por sua conta, mas ficar em pé e andar — atividades tipicamente humanas — requerem encoraja- mento e auxilio dos adultos. A habilidade espacial se desen- yolve lentamente nas criangas; 0 conhecimento espacial vem bem depois. A mente aprende a estabelecer as relagdes espa- ciais muito depois que 0 corpo tenha dominado o seu desem- penho, Porém, a mente, uma vez iniciado o caminho explo- ratério, cria grandes e complexos esquemas espaciais, que vio muito além do que 0 individuo pode abranger através da experiéncia direta. Com o auxilio da mente, a habilidade es- ° O s animais podem se locomover. A agilidade, veloci- 76 77 Habilidade Espacial, Conhecimento e Lugar pacial do homem (porém nao a agilidade) ultrapassa a de todas as outras espécies. A habilidade espacial se transforma em conhecimento espacial quando podem ser intuidos os movimentos e as mu- dangas de localizagio, Andar é uma habilidade mas, se eu puder me “ver” andando e se eu puder conservar esta imagem em minha mente que me permita analisar como me movo e que caminho estou seguindo, ent&o eu também tenho conheci- mento. Este conhecimento pode ser transferido para outra pessoa através de uma instrucao explicita em palavras, em diagramas e em geral mostrando como 0 movimento complexo consiste em partes que podem ser analisadas ou imitadas. Desde que a habilidade espacial consiste na realizagao de atividades cotidianas corriqueiras, 0 conhecimento espacial, embora acentue tal habilidade, nao necessério a ela. Pessoas que so capazes de encontrar seu caminho na cidade podem no saber dar a localizagio das ruas a alguém que esteja perdido e sio incapazes de desenhar mapas. Elas tém dificul- dade em intuir a diregAo de sua ado ¢ as caracteristicas espaciais do meio ambiente onde elas se realizam, Ha muitas ocasides em que desempenhamos atividades complexas sem 0 auxilio da mente ou de planos materiais. Os dedos humanos sto excepcionalmente habilidosos. Os dedos de uma datil6- grafa profissional voam sobre a maquina; tudo 0 que vemos é um movimento difuso. Esta velocidade e precisio sugerem que a datilégrafa realmente conhece o teclado no sentido de que pode ver claramente onde esta cada letra. Mas no pode; ela tem dificuldade de lembrar a posigZo das letras que seus dedos conhecem tio bem. Outro exemplo: andar de bicicleta requer coordenagio muscular e um agudo sentido de equi- librio, isto é, um sentido da distribuigdo da massa e das forgas. Um fisico pode ser capaz de desenhar o equilibrio de forcas necess4rio para dominar uma bicicleta, mas este conhe- cimento nao é preciso. © conhecimento consciente pode até atrapalhar o desempenho de uma habilidade! Quando vemos um animal andando por uma trilha longa ¢ tortuosa para achar comida ou abrigo, somos tentados a spacial, Conhecimento e Lugar ” Habilidade Es atribuir ao animal uma experiéncia semelhante a nossa se tivéssemos que percorrer 0 mesmo caminho. F tentador afir- mar que o animal tem em mente um objetivo especifico (uma fatia de queijo ou um buraco na parede da sala de jantar) e que pode imaginar 0 caminho ao longo do qual vai se movimentar. Isto 6 altamente improvavel. Mesmo os setes humanos, que esto visual ¢ mentalmente equipados para tais atos, rara- mente acham necessirio utilizar seus poderes de imaginagao? Fazemos muitas coisas eficientemente sem ter que pen- r, por puro habito. E estranho observar as pessoas atuarem ; com habilidade e propésito evidente e, no entanto, saber que | elas agem inconscientemente, tal como acontece com os pro- cessos fisiolégicos que se adaptam As mudancas do meio am- \ biente sem nosso controle consciente. Um exemplo exagerado €0 sonambulismo. Talvez milhares de norte-americanos sejam sondambulos ou quando criancas tenham andado enquanto dormiam, A informacio sobre 0 sonambulismo é abundante. Algumas est6rias sdo dificeis de acreditar, apesar de 0 fené- meno estar bem documentado e ter sido estudado em condi- gées de laboratério. Eis um caso fora do comum. Uma dona- de-casa de Berkeley se levantou uma noite as duas da madru- gada, vestiu um casaco por cima do pijama e colocou os bassés no carro para um longo passeio até Oakland, acordando no volante depois de ter percorrido trinta e sete quilémetros? Uma familia inteira pode sofrer de sonambulismo. Quando um grupo de pessoas agem em associagdo, com aparente deliberag&o e propésito, é dificil aceitar 0 fato de que nao sabiam 0 que estavam fazendo. No entanto, foram publicados varios casos de sonambulismo em grupo. Uma noite, uma familia inteira de seis pessoas (0 marido, a sua prima-esposa e as quatro criancas) se levantaram ao redor das trés da madru- gada e se sentaram a mesa de cha na copa das empregadas. Uma das criancas ao se mover derrubou uma cadeira. SO entao eles acordaram.‘ Se uma pessoa sofre de sonambulismo, provavelmente comega a agir quando entra em sono profundo. MedicGes com eletrodos mostram que a informacao sensorial continua a entrar no cérebro do sonambulo, cujo corpo res- ponde apropriadamente, mas o cérebro nao registra conscien- \ | i 79 “ Habilidade E ‘spacial, Conhecimento e Lugar temente esta informagiio como acontece quando a pessoa esta acordada. Uma experiéncia comum em diferentes setores da socie- dade norte-americana — guiar grandes distincias para ir e vir do trabalho — tem servido para que muitas pessoas saibam o que é dispor de habilidade espacial e competéncia geografica na auséncia de conhecimento consciente. O motorista “se desliga” quando. esta percorrendo um trecho familiar da es- trada. Ele no presta atenc&o no que esta fazendo; sua mente esté em outro lugar, ¢ no entanto, por varios minutos, seu corpo mantém controle sobre 0 veiculo, demonstrando habili- dade para adaptar-se As menores mudancas no meio am- biente, como no caso de fazer bem uma curva grande ou pisar no acelerador em uma longa subida. Griffith Williams documentou varios casos do que ele denomina de “hipnose da estrada”. Um motorista informou: Eu descobri este fato famnésia] enquanto guiava-a noite de Portland, em. Oregon, até So Francisco, na California. As luzes de uma cidade apare- ceram € constatei que estivera quase adormecido por cerca de quarenta quilémetros. Visto que eu sabia que a estrada por onde tinha passado n&éo era reta, foi evidente que guiei vencendo todas as curvas, etc. Nio me Jembrava absolutamente de nada desse trecho do caminho. Apés isso, de propésito tentei varias vezes repetir e comprovei que podia guiar quilé- metros sem lembrar de nada, enquanto descansava. Em cada oportunidade, quando aparecia uma emergéncia, eu acordava completamente> A aquisigao de habilidade espacial, seja para andar de bicicleta ou para encontrar um caminho dentro de um labi- rinto, nfo depende de possuir um cértex cerebral desenvol- vido. O experimento de Pechstein é convincente. Em seu experimento, ratos e seres humanos s&o treinados para achar os seus caminhos dentro de labirintos com padres idénticos. Apesar de a situagdo de treinamento ser muito mais familiar para os sujeités humanos do que para os roedores, os ratos aprenderam t&o depressa e desempenharam quase téo bem quanto os seres humanos.’ O cérebro maior do homem é redundante para a aprendizagem de certas habilidades para descobrir 0 caminho que s&o essenciais 4 sobrevivéncia dos animais.

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