Você está na página 1de 2

A arte de recomear

Nobreza humana no est na coragem com que recebemos o infortnio, mas


na nossa capacidade de prosseguir

OS PESADELOS acontecem. Uns tempos atrs, um conhecido escritor


portugus contava-me que, chegando ao aeroporto de Caracas, o seu laptop
foi roubado sem deixar rastro. Mas o pior no foi o laptop. Nunca . O pior foi
o contedo do laptop: um romance original, ou uma parte generosa dele, que
s existia no computador. Nenhuma cpia de segurana em casa. Nenhum
manuscrito. Nada de nada capaz de compensar a perda absoluta. Meses de
trabalho, anos de trabalho, perdidos em segundos.

Ouvi o infortnio com certo horror e fascnio. E depois recordei a mais bela
histria intelectual da Inglaterra do sculo 19, que sinceramente me comove
at s lgrimas. Aconteceu com Thomas Carlyle, o notvel historiador
escocs, tal como ele a relata nas suas memrias. Durante anos de intenso
labor e habitando uma pobreza excessiva, Carlyle completara o primeiro
volume da sua histria da Revoluo Francesa. Contara com a ajuda do
filsofo John Stuart Mill, que emprestara livros e dinheiro. E quando Stuart
Mill, no final da odissia, pediu de emprstimo o nico manuscrito do
trabalho para ler, aquele manuscrito que consumira a sade e a juventude de
Carlyle, este o emprestou, grato e honrado.

Foi uma hora funesta. No dia seguinte, Mill regressava, branco como um
fantasma, para comunicar que o manuscrito fora acidentalmente consumido
pelas chamas.

A descrio que Carlyle nos deixou nas "Reminiscences" ainda hoje emociona
qualquer cristo: o estoicismo com que a notcia recebida, apesar da
mortificao interior; as trs horas de conversa esforadamente banal, como
se fosse Mill a necessitar de consolo; e quando este deixou finalmente a casa
do historiador, para infinito alvio do casal, a mulher de Carlyle, incapaz de
fingir normalidade, abraando um homem destroado e chorando com o
dramatismo que apenas concedemos s peras clssicas. E as palavras de
Carlyle, finalizando a cena, dirigidas a um Deus em que ele, para tragdia
sua, no acreditava.

Mas a histria no acaba aqui. A histria acaba na minha estante, quando


folheio, com uma reverncia absoluta, a sua histria da Revoluo Francesa.
Porque, depois da notcia das chamas, Carlyle sentou-se mesa e recomeou
a partir das cinzas. Cada palavra, cada linha. Cada pgina.

Hoje, quando releio esse monumento de erudio, paixo e estilo, no


encontro apenas um dos mais poderosos relatos sobre a glria e a misria de
1789: as aspiraes igualitrias e libertadoras da Bastilha que terminaram,
como usualmente terminam, no terror das guilhotinas.

Encontro a evidncia de que a nobreza do esprito humano no est na


coragem com que recebemos o infortnio. Mas na forma como o recebemos
e, apesar de tudo, somos capazes de continuar. Mesmo quando o mundo nos
parece perdido.

Livros de auto-ajuda? Sim, leitores; afinal, eles existem. Nas minhas piores
horas, olho para esse volume aparentemente annimo entre tantos volumes
annimos e h uma gratido silenciosa e interior que me faz, tantas vezes,
recomear.

Você também pode gostar