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Psicologia-USP, 8. Paulo, 1(1): 93-96, 1990 PONTO DE VISTA PSICANALISE E PSICOTERAPIA BREVE Ryad Simon* Refletindo sobre os modelos de procedimento nos quais se inspiram — consciente ¢ incons- cientemente — as varias formas de psicoterapia, cheguei a conclusées que me parecem esclarecer de uma maneira nftida e coerente as diferengas, o alcance e os fundamentos das diversas abordagens psicoterdpicas. E isso tudo se articulando de uma maneira t4o simples, que achei util escrever algo a respeito e fazer poucas sugestdes. A psicoterapia — na qual se inclui a psicandlise como uma das abordagens — surgiu como um procedimento médico visando & “‘cura”” de uma doenga. Etmologicamente 0 conceito designa tra- tamento psicolégico. Procurando fugir ao modelo médico, muitos profissionais, principalmente americanos, propuseram adotar um modelo pedagégico. O individuo em busca de ajuda psicolégica € encarado como possuidor de um distiirbio de aprendizagem. Por exemplo, ALEXANDER & FRENCH (1946) concebem a neurose como efeito da interrupgao do processo de aprendizagem. Se um problema se torna muito perturbador para enfrenté-lo 0 processo de aprender se interrompe. Surgem formas estereotipadas de tentativas de solucao fracassadas. Dessa definigZo segue-se natu- ralmente que a psicoterapia visa reiniciar e completar um processo de aprendizagem interrompido quando se instalou a neurose. Outra dupla americana, SMALL & BELLAK (1978) também propéem o modelo pedagégico como forma de compreender ¢ modificar os distirbios psicoldgicos. Sua posicio nesse aspecto po- de ser resumida em duas questées: Como este paciente melhor desaprender4, aprender4, reaprenderd ou aprenderd de forma diferente (© que necesita aprender? Mais especificamente: como pode aprender certos sintomas, a adquirir fungdes, a responder diferentemente ¢ a modificar aspectos de sua personalidade? (p. 43). Entre os utilizadores da Terapia Comportamental 0 conceito reeducativo é ainda mais arrai- gado, baseado nas teorias de condicionamento e recondicionamento. Nao € meu intuito fazer uma resenha mas apenas situar e discutir um problema. Os usuérios do modelo da neurose como aprendizagem e da psicoterapia como reaprendizagem incorrem em certas posturas e esquemas de acdo com implicagées importantes. Vou tentar tomné-las claras ¢ evi- dentes. Na abordagem psicoterdpica, que segue 0 modelo pedagégico, observo: 1) O Terapeuta (T) se identifica com o professor; © Paciente (P) com o aluno. Daf se segue que na fantasia do P (¢ talvez do T), 0 T & aquele que sabe; o P aquele que nao sabe. 2) O T é ativo, o P é passivo. Aqui se retoma a relago médico-paciente, que se pretendia superar. O nico ganho é que o paciente nao € mais o “doente” € 0 médico o “normal”. Mas pe- manece a relacao dirigente-dirigido. 3) O T est certo, o P acredita. Essa € uma condicao inescap4vel. Pois, se 0 paciente nao acredita no médico, ndo segue a prescrigao. Se o aluno acha que o professor nao esté certo, € re- provado. 4) OT decide, o P acompanha, Em conseqiiéncia das trés relagdes precedentes 0 T escolhe 0 que mais convém ao P: 0 que manifestar € o que suprimir; a0 que é gratificdvel, 0 que € puntvel. * Professor associado do Instituto de Psicologia da USP. 93 Simon, R. . Paulo, 1(2) Desse modo a psicoterapia sob este modelo educativo estimula a passividade e 0 conformismo. (A- diante proporei algo para atenuar esses aspectos.) Na abordagem psicanalftica que tem se desenvolvido entre alguns praticantes ingleses, dos quais Bion foi expoente, o modelo que subentende a postura do analista, segundo suponho, se- gue o procedimento da investigacao cientifica, abandonando a idéia de tratamento € cura. Sua fi- nalidade nao é o aprendizado, mas a descoberta.* Nesta acepcio de prética psicoter4pica (psicanalftica) como descoberta, as implicagées mais relevantes me parecem: 1) O T nfo sabe ¢ 0 P nao sabe. Essa postura estimula uma relagio que, em vez de hierér- quica, € de colaboragdo. Ambos se tornam parceiros na empreitada rumo ao desconhecido. 2) T e P nao usam a memGéria, mas a capacidade de suportar 0 nao saber. E isso que propicia a descoberta. (No aprendizado o T fica no conhecido). Nesse caso, caberia falar do complexo de Edipo na experiéncia analftica como descoberta ou redescoberta? Suponho que, se se toma 0 com- plexo de Edipo como “‘coisa em si”, como “pensamento sem pensador’”, como “préconcepcao”” espera da “‘realizacdo (BION, 1963, 1965) entdo é forgoso admitir que o complexo de Edipo de cada pessoa é tinico, desde que nfo hd duas “‘realizacdes” idénticas. E esta originalidade de cada compleco de Edipo que se apreende quando analista e analisando adotam a disciplina de vivenciar a esperiéncia “‘sem desejo ¢ sem meméria”. Neste sentido cabe falar em descoberta. 3) Te P no sabem de onde partir, nem de onde chegar. Essa postura € inerente & descober- ta, N6s nao descobrimos; somos descobertos pelo desconhecido. Desde de que dispostos a suportar a escuridio e o desamparo. 4) Te P, ndo tendo um plano, um espago definido para investigar, também nao tém limite de tempo. Daqui se segue que 0 modelo pedagégico (ou médico) dA coeréncia e sentido a psicoterapia breve (ou variedades que pretendem encurtar a andlise, mas sem duragdo definida). A psicoterapia breve, tendo um ponto de partida e um ponto de chegada, permite tragar-se um plano, uma orienta- cdo “espacial”. Para percorrer 0 “espaco” planejado pode-se presumir um tempo de percurso. A abreviagao do tempo de tratamento é a caracterfstica principal da psicoterapia breve. Para encurtar © tempo & imprescind{vel planejar. Para planejar € preciso “saber”. Através do “saber”, para con- duzir o paciente por um certo caminho num tempo determinado, o terapeuta dirige o curso da psi- coterapia. Assim, planejamento, duragao e diretividade, s4o caracteristicas que encaixam perfeita- mente no modelo pedagégico. E nao se coadunam de forma alguma com a abordagem psicanalitica. Retomando o assunto sob outro angulo. O que leva A escolha do modelo psicoterapico? — © objetivo a ser alcangado com o procedimento terapéutico. Uma vez escolhido 0 objetivo, os modelos de abordagem sio inescapdveis. Se o objetivo € a “‘cura” (remogao do sintoma, reversio do quadro clinico), 0 modelo médico € inevitivel. Se 0 objetivo é o “reajustamento” (adaptagdo As variagSes da realidade — interna ou externa — que exigem do sujeito novas respostas), 0 modelo imperativo € 0 pedagégico (desaprender, reaprender). Se 0 objetivo € 0 conhecimento da esséncia da individualidade de uma pessoa, 0 modelo € obrigatoriamente o da investigagao cientifica, que remonta a postura de Freud.* Entre os modelos médico e reeducativo hé grande semelhanca. As di- ferencas so superficiais, como foi visto. Portanto, se 0 psicoterapeuta adota uma terapia psicodinamica dos fendmenos mentais ¢ rela- g6es interpessoais, 0 espectro de sua atividade profissional poderia ser disposto num continuum. Num extremo ficaria a Psicandlise, seguindo-se todas as formas de Psicandlise Aplicada, culmi- nando com a Terapia Breve. + Professor associado do Instituto de Psicologia da USP. * W.R, Bion em seu “Second thoughis”, 1967, aponta que “o progresso da psicandlise levou a mudanga de um ¢siado de coisas no qual idgias de ‘tratamento’, ‘cura ¢ “resultados, nfo tm mais qualquer sentido." (p. 149) “Ei zm ove pt do bumdonn ‘cm’ Ge Sacber de rahnde ds picnic ne mundo da experitaci ica. O “desejo" da cura 6 precisamente um exempl 0, entre outros tantos, que no deve er Scolhido por um pecanalsta"(p.1S1) ** Quando, ea seu ensaio “On psyco-analysis” (1913), Freud refere-se 2 Psicanflise como método terapeuti teoria di personalidade e méiodo de investigasSo do psiquismo, sugio que o Gnico que mereceria nomear-s= ‘*Psicandlise” seria ests dltimo. Aos dois outros aspectos~ terapéutico eweSrico ~ mais caberia serem chamados “aplicagdes da Psicandlise", porque se referem ao jf sabido € accito, A Psicandlise nas acepg6es cientffica © social estd sempre nas fronteira respectivamente do desconbecido e Jo controvertido. Simon, R. Psicologia-USP, S. Paulo, 1(1) Todas as formas de Tpia.Psicanalitica Psicansilisef ————______ rain Breve (menos diretivas) (mais diretivas) Eu disse acima que uma vez escolhido 0 objetivo, o modelo de procedimento psicoter4pico era inelutével. Mas por sua vez a escolha do objetivo se deve & concepgao de distérbio psiquico adotada pelo terapeuta. A concepeao de neurose ou psicose como falha no processo de aprendiza- gem leva a um conjunto coerente (mas nem sempre explfcito) de procedimentos ativos (modelo de aco) que visam a informar, conformar ¢ dirigir 0 comportamento para determinado objetivo deci- dido pelo terapeuta. Por exemplo, ALEXANDER & FRENCH, (1946, cap. 5), propdem como princfpio diretor de sua “Terapia Psicanalftica”’: tratamento € reeducacio € diregao do processo te- rapéutico, Nao hé nada de errado com essa concepso de disttirbio e abordagem psicoterdpica, Mas € preciso perceber a diferenca qualitativa com relaco a psicandlise. Se no pareceria que analista € analisando sfio ingénuos, despendendo tempo e esforgo e dinheiro num longo trabalho que con- duz a0 mesmo fim da terapia breve. Os argumentos de que a psicandlise se alonga porque estabele- ce uma relacdo de forte dependéncia, ou porque 0 analista fica passivo, ou porque & necessério re- montar as origens do confito genético para obter a cura, etc, so efeitos da confusio entre os obje- tivos da Psicandlise e os das abordagens que visam a cura ou reeducacao. Por outro lado, pretender que a Psicanélise é um procedimento melhor, superior, porque al- canga nfveis mais profundos ¢ amplos do psiquismo do que outras abordagens, € frivolidade e ar- rogancia, Seria anélogo a pretender que 0 trabalho do intelectual € superior ao do camponés. Se so fruto da escolha livre do homem tém o mesmo valor. Sao apenas estilos diferentes de vida. Assim, creio que a decisao sobre 0 objetivo da psicoterapia deveria ser da livre escolha do te- rapeuta e do paciente. Estabelecido de antemao. Ou podendo mudar no curso da experiéncia, se ambos assim 0 desejarem, desde que compreendidas as motivagoes. Respeito ¢ compreendo o psicanalista que queira somente fazer psicandlise. embora sempre me venha & mente 0 modelo do alfaiate que somente faz um modelo e tamanho de roupa e o cliente precisa encaixar-se nela, ou desistir. Proponho que haja maior flexibilidade. Que o psicanalista aprenda modelos de técnicas cura tivas e reeducativas. Nao que deva abandonar a pratica da psican4lise. Mas diversificar seu proce- dimento. Pois, se 0 analista tem preocupagao de alcancar e ajudar maior nifmero de pessoas, nio serd barateando os honorérios ¢ mantendo as mesmas quatro sessGes semanais que conseguiré isso. Penso que a esséncia da questo esté na liberdade do cliente poder escolher 0 que pretende, € na liberdade do psicoterapeuta de aceitar ou nao o procedimento escolhido. (Para o cliente ter sua liberdade de opcao obviamente deve estar ou ser esclarecido). Porque, uma vez livremente esco- Ihido e aceito 0 método de abordagem, as implicag6es do modelo médico ou pedagégico — assina- ladas no comego deste trabalho — perdem muito da sua onipotencia ¢ idealizaga O terapeuta estaré aplicando, desta forma, seu conhecimento por escolha ser um método decidido pelo terapeuta, como aquele que sabe © que é bom € 0 que serve para o cliente, redundando numa relagio arrogante e onisciente. E possfvel que o cliente, tendo optado por psicoterapia breve, em seguida, ou ao cabo de al- gum tempo, decida pela psicandlise. Ou, se nunca pretender analisar-se, ter& sido fruto de uma de- ciséo Iticida e no por acidente casual. Por outro lado, penso nos intimeros pacientes que tendo feito uma experiéncia em psicandlise, ndo a suportaram muito tempo, ou j4 desistiram de safda. Talvez se 0 alfaiate nao fosse tdo rigoroso o cliente ndo safsse mi. 95 Simon, R, Paicologia-USP, S. Paulo, 1(1) REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS ALEXANDER, F. & FRENCH, T. Psychoanalytic therapy. New York, Ronald, 1946. BION, W. R. (1963). Elements of psychoanalysis. In: BION, W. R. Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. New York, Jason Aronson, 1977. 110p. BION, W. R. Second thougths. New York, Jason Aronson, 1967. BION, W. R. (1965). Transformations. In: BION, W. R. Seven servants: four works by Wilfred R. Bion. New York, Jason Aronson, 197. 183p. FREUD, S. (1913). On psychoanalysis. In: FREUD, S. The case of Schreber; papers on technique and other works, London, Hogarth Press, 1958, p.205-211. (Standard Edition of the Complete Psychological Works of S. Freud, v.12) SMALL, D. & BELLAK, L. (1978). Psicoterapia breve e psicoterapia de emergéncia. Porto Alegre, Artes Médicas, 1980.

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