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Ceres ae ue os Diet kee at eine Cr que — a partir de Max Scheler e Karl Mann- heim — se designa por sociologia do conheci- LS Ma Cece Merete ed CS CCI Cee st treme Card maior no campo das cféncias soctais. Eyre Muna Cace tetera Cie ae ememeReTtieatesr e te ces do conhecimento da vida quotidiana (A rea- eee ee Wicca ee Wut Ciera CR eae ucy we Mera tes CU iericn hess eM ete eet See Sunt oer esac acres Brean Mucucere Cintra Center ean Leta eg Beer Suet eee nee case cy ete te tere eg ie ane ge Gate esc NC ee cea aL) eee Ro essa eg ee eee te stuido da Cultura Economica, da Universidade de Boston. [ieee es aerate is ste Gerace Ren eae asa Rue ee ocean ae Cee ecu ie se Bier che ae eae ee a ara gion e (com Altred schutz) Structures of the Life-World. — A Peter L. Berger Thomas Luckmann A CONSTRUGAO SOCIAL DA 133-4 BY) Ua A Die) LIVRO SOBRE SOCIOLOGIA CONHECIMENTO 2.° edigao a Se Ta ACONSTRUGAO SOCIAL DA REALIDADE Peter L. Berger Thomas Luckmann A CONSTRUCAO SOCIAL DA REALIDADE Um livro sobre sociologia do conhecimento BHpnativro Tut og: i Sel ora of tty Ars eBoy Tnas acer Caprio © 1p Per Dargo’ Tamar Lasko Palade pr ecods tom Delton Doe Rendon Howe Copyright © 1999 desta iraciucdie por Dinaliva * Kardon Hes. Tali: Rone de Gavaie Rovabr dnt Circe Pec efor Fa - des Gbhse Ine aetaaele SFIS Cop Ta ian, © & .~ Eaboa Coes Foals ajc ISBN: o73.976-358.8 Depisito Legal: 21775704 2 edipfa: Novembre de 200 esas spar spas de ngs prasnea DINALIVRO ‘Rea Jodo Onigto Rames, 17 ~ 1500-362 LISBOA Tel, 217 122-210 — Fax 217 159 774, Email info einaiora pe socio =I INDICE Preficio .. Intredugao: © problema de sociologia do conhecimento .... I. Os alicerees do conhecimento na vida quotidiana 31 1. A realidade da vida quotidiana rf 2. A interacco social na vida quotidian ra 3. A Tinguagem ® o conhecimento na vida quotidian 45 IL. A sociedade como realidade objectiva 1. Institucionalizagao .... a) Organismo e actividede bb) As origens da institucionalizaya0 ©) Sedimentagao e tradigfo «.. @) Papeis : : ©) Exiensdo.¢ modos de inslitucionalizasto... 2. Lewitimecdo.... x a) As origens dos universos simbilieos sn b) Os mecanismes conceptuais da manutengdo do universo ....113 ©) A organizagio social para a manutenciio do universo IIT, A socisdace como realidade subjectiva.. 1. A intoriorizagao da realidade .. a) A socializaclo primaria b) A sceializara «) A manutengao etransformacao ds realidade subjectiva ~...134 2. A interiorizacao e a estrutura social secundaria 3. Teorias sobre # identidade. tcc TD 4, Organismo ¢ identidade nen 185 Conehusio .n. 139 Notes s 194 PREFACIO © presente volume deve ser entendido como uma obra teSrica, siste- itica, da sociologia do conhecimento, Nao tem, portanto, como propésito proporcionar um levantamento histérico do desenvolvimento desta dis- cipline, nem de se ocupar da exegese de virias figuras deste ou de outros desenvolviriontos da teoria sociolégica, ou mesmo mostrar como seria possivel cheger-se a uma sintese de varias dessas figuras e desenvolvi- mentos. THio-pouco se apresenta com qualquer intuito palémico. Os comen- trios eriticos sobre outras posigées tedricas foram introduzidos apenas (nfio no texto, mas nas Notas) onde passam servir para esclarecer a pre- sente argumentacio. (O niicieo do angumento encontra-se nas Seegdes IT IT(“A Sociedade como Realidade Objectiva” e “A Sociedade como Realidade Subjectiva"), a primeira contém o nosso entencimento bésico dos problemas da sociolo- gia do conhecimento e a segunda aplica esta compreensdo ao nivel da cons- cigncia subjectiva, construindo desta maneira uma ponte teérica para os problemas de psicologia social. A Secedo I contém aquilo que podcria ser mais bem descrits como prolegimenos filoséficos ao micleo do racioct- iio, em termos de anélise fenomenolégica da realidade da vide quotidiana (Os Fundamentos do Conhecimento na Vida Quotidiana”). © leitor inte- ressado apenas na argumentaeio sociolégica poderia ser tentado a saltar este parte, mas deve ser avisado de que certos conceitos-chave empregues 10 longo de todo o raciocinio sio definidos ne Secgo I Embora © nesso intoresso nio seja histérico, sentime-nos na obrigazéo de explicer porqué & em que sentido a nossa concepeo da sceiologia do conhecimento se diferencia do que, até aqui, tem sido em geral entendido como constituindo essa disciplina. Tratamos dessa tarefa na Introduco. Na parte final fazemos algumas obsorvagées, com caricter de conelusio, “Fo social ea rewliderde ar 9 que consideramosserem os “comtibutos” do presente trabit- Iho para a woria soviolégica em geral e para certas areas da pesquisa empiri A Iogica do nosso argumento toma inevitdvel um verio naimero de ropetigdes. Assim, alguns problemas sio examinados entre aspas Fenomenolégicas nia Seoydo 1, retomados na Secgdo [1 sem essas aspas & ‘com um interesse pela sue génesx empirica, ¢ uma vez mais retomados na Seceao II ao nivel da consciéneia subjectiva. Tentamos tomar este livro to legivel quanto possivel, mas sem desrespeitar a sua logiva interna, ¢ esperamos que ¢ leitor compreenda as razGes des repeligGes que no pude- ram ser evitadas, Iba ul-"Arabi, 6 grande mistic do Islio, exelama num dos seus pos- mas: “Livraienos, Ald, do mar de nomes!” ‘Temos repetido, com frequén- cia, esta exclamagio, nas nosses conforéneias sobre teoria sovioldgica Por conseguinte, decidimos eliminar todas os nomes do nosso actual argumento, Este pode ser lido agora como uma apresentago continua da nossa posi¢ao pessoal. sem a constante incluso de observ: “Durkheim diz. isto”. “Weber diz aquilo”, “Concordamos aqui com Durkheim mas nao com Weber", “Parece-nos que Durkheim foi mal com- preendido neste ponto” e assim por diante, E evidente, a cada pagina que a nossa posig2e ndo surgiu ex nififo, mas desejamos gue soja juleada pelos seus proprios métitos endo em fungo dos seus aspectos exegéticos ou sindpticos, Assim, colocémus todas es referéncias nas Notas. bem come (embora sempre como um resumo) qualquer discordéncia que tenhamos com as fontes de que somos devedores. [sso obrigou a um con- Junto de notes, bastante alergedo. Tal nio significa render homenagem aos rituais da Hissenschafilichkeit, mas preferimos manter-nos fi exigéncias da gratidao historic. O projecto que este livro coneretiza, comegou a ser congeminedo no Verio de 1962, no decurso de conversas descontraidas, ao pé (eas vezes no alto) dos Alpes da Austria ocidental. © primeiro plano para o livro foi ‘ragado nos principios de 1963, De comego tinha-se em vista um empreen- dimento que incluia mais outro sccidlogo e dois fildsofos. Os outros part- cipantes. por varias razies biogréficas, foram obrigados a retirarem-se da Petticipacao activa no project, mas desejamos agradecer com muito aprego os continuos comentarios criticas de Hansfried Kellner (Universidade de Frankfust e Stanley Pulloerg (Ecole Pratique des Hantes Etudes) sdo wénero. Prficio 1 Q quanto devemas ao falecido Alfted Schutz ir-se-a tomando claro ao longo das varias partes do livro. Gestarfames, porém, de reconhecer aqui a inflséneia no nosso pensamento, dos ensinamentos e das obras de Schutz, ‘A nossa compreensio de Weber deve muito 2os ensinamentos de Carl Mayer {Graduate Faculty. New Setiool for Social Research), como que Durkheim ea sua escola tm das interpretagdes de Albert Salomon (também da Graduate Faculty), Luckmann, recordando muitas conversas proveitoss durante um periodo de leccionamente Conjunto no Hobart College € em ultras ocasides, deseja exprimir a sua admiraego pelo pensamento de Friedrich Tenbruck (Universidade de Frankfurt). Berger gostaria de agra- decer a Kurt Wolff (Universidade de Brandeis) « « Anton Zijdervelé (Uni- versidede de Leiden) pelo seu constante interesse eritien no progresso des ideias incorporadas neste obra E habitual, em projectos deste tipo, agradecer as varias contribuigses, intengiveis de esposas, filhos e diversos colaboradores particulares de posigio legal mais duvidosa. Sé para contrariar este costume estivemos tentados a dedicar este livro a um ecrto Jodler de Brand/Vorarlberg Con- tudo, queremos egradecer a Brigitte Berger (Hunter College) ¢ Benita Luckmann (Universidade de Freiburg), no por quaisquer desempenhos sem relevancia cientifica, de fungdes privadas, mas pelas suas cbservaeoes criticas enquanto cientistas sociais e pela sa persistente recusa em se dei~ xarem impressionar com facitidade, Peter L. Berger Graduate Faculty New School for Social Research Thomas Luckmann Universidade de Frankfurt INTRODUCAO: 0 PROBLEMA. DA SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO ‘As propostas bésicas do argumento deste livro esto implicitas no titulo eno subtitulo, spontando que a realidade & construida em termos sociais & que a sociologix do conhecimento deve analisar os processos em que tal corre. Os termos-chave dessas afirmagées sio “realidade” e “conheci- mente”, termos esses nfo apenas correntes na linguagem actual mas que tém atras de si uma longa historia de investigagaio filoséfica. Nao precisa mos de entrar aqui numa discussao de minticias seménticas nem ¢o uso uotigiano ou do uso filos6fico desses termos. Serd bastante, para 0s nos- sos propésitos, definir “realidade” como uma qualidade pertencente a fenémenos que reconhecemos terem um ser independente da nossa prépria, voliczo (nto podemos “fazer que no existam, com a nossa vontade”) ¢ definir “conhecimento” como a certeza de que os fendmenos sio reais ¢ possucm caracter'sticas cspecifices. E neste sentido que se reconhece simplista, que esses termos tém relevéncia, tanto para o homem comum quanto para o filésofo, © homem comum habita um mundo que é “real” para ele, embora em diferentes graus, ¢ “sabe”, com graus varidveis de ‘certeza, que este mundo possui iaise tais eoracteristicas. Claro que o filé sofo levantard questdes relativas ao estatuto iltimo, tanto desta “realidad ‘quanto deste “conrecimento”. O que é real? como 6 que se tem conheci- mento? Estas slo algumas das meis antiges perguntas, nfo apenas da pes- quisa filoséfica de per si mas do pensamento humano enquanto tal. Por esta raziio, é provivel que a intromissio do socislogo neste venerdvel ter- Titbtio intelectual va chocar o homem comum e, talver mais ainda, enfure- cer 0 fildsofo. £, ror conseguinte, importante que esclarecamos desde 0 inicio em que sentido usamos estes termos, no contexto de sociologia, ¢ ‘que neguemos desde jé qualquer pretenséo de que sociologia tem resposta para estas antigas preocupacdes filosdifieas. 14 A conrerupéo social da realidhde Se quiséssemes ser meticulosos na argumentapo a seguir apresentada, deveriamos colocar entre aspas os dois vocabulos mencionados, sempre que os empregéssemos, mas isto ndo seria elegante em termos de esilistca. Falar de aspas pode, contudo, dar um indicio quanto & maneira peculiar ‘como estes termos aparecem nurt contexto sociolégico. Poder-se-ia dizer quea compreensio socioléigica da“realidade” e do “conhecimento” se sinua, de certa maneira, num meio-lermo entre a do homem comum e ado fl6sofo. © homem comum, por normna, nfo se preocupa com aquilo que ¢ “real” para ele © com o que “conhece”. a nao ser que tropece num problema qual- quer. Tem como certa a sua “realidade” © 0 seu “conhecimento”, O socié- logo jd nfo pode fazer 0 mesmo, quanto mais no seja por ter consciéneia, sistematica, do facto de que © homem vulgar toma como certas “realida- des” muito diversas, em diferentessociedades.O socidlogo é forgade, quanto mais nifo seja pola prépria légica da sua disciplina, a questionar se a dife- renga entre as duns “realidades" rite pode ser compreendida em termos das diferengas entre as duas sociedades. 0 fildsofo é obrigado, por outro lado, pela sua posieao profissional, a 240 considerar coisa alguma como dado adquirido e a atingir a maxima clareza quanto £0 estatuto iitimo daquilo que o homem comm acredita ser“tealidade” e “conhecimento”. Por outras palavras, 0 fil6sofo é levaco a decidir onde é que as aspas so adequadas onde podem ser omitidas com seguranca, isto é a estabelecer a distingao entre as afirmagces vélidas eas invalidas em relaeto a0 mundo. 4 0 socid- Jogo, nao tem possibilidade de ¢ fazer. Por I6gica, se nao por estilistica, esti preso as aspas, Por exemplo, 0 homem comum pode acreditar que possui “liberdade volitiva” sendo, por conseguinte,“responsével” pelas suas acyDes, aomesmo, tempo que nega esta “liberdade” ¢ esta “responsabilizayo” as criangas & aos dementes. 0 fildsofo, seja por que métodos for, tem de indagar sobre 0 estatuto ontoligice e epistemoldgico destas concepsées. O homemé livre? Que é responsabilidade? Onde esto os limites da responsabilidade? Como pode uma pessoa conhecer estas coisas? E assim por diante. Desnecessé- tio se toma dizer que 0 soeidlogo ndo tem condigdes para dar respostas a estas perguntas. O que pode e deve fazer, contudo, é perguntar por que & ‘que a noedo de “iberdade” é tida como um dado adquirido numa soviedade endo noutra, como a sua “realidade” é mantida naquels sociedade e como, mais interessante ainda, esta “realidade” pode vir a ser perdida por um individuo ow por toda uma colectividade. O problema da sacislogia do couhecimento O iinteresse socioligico pelas questdes da “realidade” e do “conheci- ¢ assim, logo A partida, pelo facto da sua relatividade social. O que é “reel” para um monge tibetano pode nao ser “real” para um homem de negéciosamerieano. O “conliecimento” do criminoso é diferente do “conhecimento” do criminalista, Segue-se que aglomeragdes especifi- cas de “realidade” e de “conhecimento” se referem a contextos sociais especifices ¢ que estas relagdes terdo de ser incluidas numa andlise socio Iowica correcta desses contentos. A necessidade da “sociologia do conhe- cimento” & assim susciteda pelas diferengas observaveis entre as socieda des, em termos daquilo que nelas é considerado como “conhecimento”. Para além disso, porém, uma ocupar dos modos gerais pelos quais as “realidades” sio tidas come “conhecidas” nas saciedades humanas. Por outras palavres, uma “socialo- gia do conhezimento” terd de tratar no apenas da variedade empirien de “eonhecimento™, nes sociedades humanas, mas também dos prosessos pelos quais qutlquer corpo de “conhecimento” se estabelece como “realidade” sociel A nossa conviesao &, por conseguinte, de que a sacialogia do conheci- mento se deve ocupar de tudo equito que passa por“conhecimenta” numa sociedade, sem ter em conta a validade ou nao validade ditima desse “conecimento”, quaisquer que sejam os critérios. E na medida em que todo 0 “conhecimento” humano se desenvotve, transmite e se conserva em situagdes sociais, a sociologia do conhiecimento deve procurar compreen- der 0 processo pelo qual isto se realiza de modo a que uma “realidade”. adimitida como ceria, se cristaliza para. homem da rua. Por outras pala- vras, defendemos o ponte de vista de que asociologia do conhecimento se preocupa com anitise da consirugdo social da realidade. Esta compreensio do verdadeiro campo a sociologia doconhecimento difere daquilo que, de maneira geral, se entende por esta disciplina, desde que pela primeira vez foi chamada por este nome hi uns 40 anos. Por con- seguinte, antes de iniciarmos a nosse argumentagio, sera itil exeminer em Fesumo 0 deserivolyimento anterior da disofplina e explicar de que maneira, © por que motivo, sentimos @ necessidade de nos afastarmos do mesmo, Otermo “scciologiado conhecimento” (Wissenssoziclogic) fei introduzido Por Max Scheler |, na década de 20, na Alemanha, ¢ Scheler era fildsofo. Estes trés factos sfo muito importantes para a compreensio da génese € Ulterior desenvolvimento ca nova disciplina. A sociologia do conhecimento plina que assim se designa terd de se 16 Aconsirueao social da realidedle reve origem numa situagto particular da histGria intelectual alema e em ceterminado contexto filosofico, Embora a nova disciplina fosse mais tarde introduzida no adequado conteate sociolégico, em especial no mundo de lingua inglesa, continuou a ser marcada pelos problemas ¢a situagao inter lectual em que brotara. Como resultado, a sociologia do conhecimento per- manceeu no estado de objecto marginal de estudo entre os sociéloges, em eral, que néo participavam dos problemas préprios que preceupavam os pensadores alemies na década de 20. Isto foi real, em especiel no que diz respeite cos socidlogos americans que, de um medo geral, consideravem aquela disciplina como uma espovialidade periférica, de caracteristico sabor europev. Mais importante, cortudo, é que a permanente ligacdo da socio- logia do conhecimento com a sua constelagio original de problemas tem constituide uma fraqueza tebrica, mesmo onde se verificou um interesse pela disciplins, Isto ¢, a socialogia do conhecimenta foi considerada pelos cs seus proteganistas e, em geral, pela piiblico socialégico mais ou menos indiferente, como uma espécie de glosa sociolégica sobre a historia das ideias. O resultado foi uma considerivel miopia em relaeao ao potencial significado tedrico da sociologia do conhecimento. Tem havido diferentes definigdes da natureza e émbito da sociologia do conhecimento. Na verdade, € possivel dizer-se que a histéria desta subdisciplina tem sido até agora a historia das suas vasias definicdes. Ha, contudo, uma concordéncia geral cm que @ sociclogis do conhecimento trata das relagSes entre o pensamento humano ¢ o contexto social do qual emerge. Pode dizer-se, assim, que a sociologia do conhecimeato constitul © foce sociolégieo de um problema muito mais geral, o da determinagio tencial (Seinsgebundertheit) do pensamento, enquanto tal. Embora, neste aso, a atengiio se concentre sobre o factor social, as dificuldades teéricas, fo semelhantes és que surgiram quando cutros factores (como os histéri- 0s, 0s psicoldgicos ou os bioligiecs) foram propostos com 0 valor de determinantes do pensamento humano. Em todos esses casos 0 verdadeiro problema tem sido o de estabalever at8 que ponto o pensamento reflecte os factares determinantes propostos ou é auténomo em relagio a eles. E provavel que o destaque do verdadeiro problema, na moderna filoso- fia alema, tenha as suzs raizes ma vasta acumulacdo de erudig%o hist6rica, ‘que foi um dos maiores produtos intelectuais da Alemanha do século XIX. ‘Deum modo sem paraleloem qualquer outro perfodo da historia intelectual, ‘0 passado, com a sua impressiorante variedade de formas de pensamento, Oprobiema da sociologia do conkecinenta 17 foi “tomado presente” para o espirito contempordineo, através dos esforcos da erudicdo historico-cientifica. & dificil negar 0 direito da cultura alema ‘0 primeiro lugar neste empreendimento. Nao deverd, por isso, surpreen- der-nos que o problema tebrico emanante do referido empreendimento teaha sido sentido com maior acutilancia na Alemanlia. Pode-se descrever esse problema como a vertigem da relatividade. A dimensdo epistemolégica do problema ¢ dbvia. Aonivel empirico, conduziu & preocupagdo de se inves- tigarem, com todo o detalhe possfvel, as relagdes coneretas entre o pensa~ tnento © as suas situagbes historias. Se esta interpretagdo é correcta, a sociologie do conhecimento tomou a si um problema levantado de inicio pela erudigdo histirica, sem divide numa perspective mais estreita masem esséncia, interessada nas mesmas questies. * ‘Nem o problema em geral nemo seu enquadramento mais limitado s80 novidades. Uma conscineia das bases sociais dos valores e das concep- ges do mundo pediam ser jé detectadasna Antiguidade. Pelomenos desde o Hluminismo que esta consciéncia se eristalizou num dos principais temas do pensamento acidental moderne. Seriaassim possivel defender uma quan- tidade de “genealogias” do problema central da sociologia do eonheci~ mento. Pode mesmo dizer-se que o problema esta contido, in mice, na famosa expresso de Pascal: “Aquilo que € verdade de um lado dos Pirenéus € falso do outro." * Contudo, os antecedentes intelectuais imediatos da sociologia do conliecimento sfo ties criagdes do pensamenio alem&o do séoulo XIX: o pensamento marxista, 0 pensamento nietzschiane © © historicismo. E em Marx que a socivlogia do conhecimento encontra a raiz da sua proposta, que declara ser a conscigncia do homem determinada pelo seu ser social §, Muito se tem debatido, sem divide, que espécie de determina- fo teria Mant em mente, Pode, contudo, ofirmar-se que muito da grande “uta com Marx”, que ceracterizou no apenas os comegos da sociologia do conhecimento mas também a “idade clissica” da sociologia em geral (e, em especial, tal como manifestada nas obras de Weber, Durkheim e Pareto), foi de facto uma batalha contra # defeituosa interpretagao de Marx pelos marxistas modemos. Esta proposigdo ganha plausibilidade quando reflec- timos no facto de que foi apenss em 1932 que os importantissimos Mamuscritos Econimicos e Filoséficos de I844 lorem redescobertos, ¢ que S6 apés a Segunda Guerra Mundial € que todas es implicagbes dessa redescoberta puderam ser integradas ne pesquisa sobre Marx. Seja como 18 Acommupae snetal do realidade for, a soviotogia do conhecimento herdou de Manx nao apenas amaisexacta formulaedo do sew problema central mas também al tos-chave, entre os quais deverdo ser mencionados os conceitos de “ideo- logia” (ideias que servem de armas para interesses soziais) e “ cigncia” (pensamento alienado do verdadeiro ser social do pensadcr). A sociologia do conhecimento tem-se deixado fascinar muito pelos :meos, estabelecidos por Mars, de “infre-estrutura/supers- truture” (Unterbaw Ueberban). Foi sobre este ponto, em particular, que a controvérsia se tornou violenta a propdsito da correcta interpretagdo do pensamento do préprio Marx. © marxismo posterior teve a tendéncia de identificar a “infra-estrutura® com a estrutura econdmica fout court, da quel a “superstratura™ era considerada um “reflexo” directo (como, por exemplo, Lenin). E agora muito claro que isto é uma representagdo incor- recta do pensamento de Marx, pciso cardcter em esséncia mecanicista, em ver de cialéctieo, desta espécie de determinismo econémico, torna-o 6u3- peito. O que interessava a Marx era que 0 pensamento humanose alicercava na actividade humana (“rabalho" no sentido mais amplo da palavra) e nas relagbes sociais produzidas por esta zetividade. O melhor modo de com- preender as expressdes “infra-estrutura “ e “superstrutura” & considera las & primeiza como actividade humana, e a segunda como 0 mundo pro- duzido por essa actividade.* De qualquer modo, o esquema fundamental ‘“infra/superstrutara” foi admitido sob varias formas pela sociologia do co- nhecimenio, a comegar por Scheler, sempre subentendendo que existe al gum tipo de relardo entre 0 pensamento ca realidade “subjacente”, distin« ta do pensamento, © fascinio dese esquema prevaleceu, a despeito do facto de grande parte da sociologia do conhecimento ter tide uma formula- 0 explicita em oposigtio ao marxismo, o de que diferentes posigdcs tm sido assumidas dentro deste, no que respeita & natureza da correlagio entre 1s dois componentes do esquerna. AS ideias de Nietzsche tiveram uma continuidade menos explieita na sociologia do conhesimento, mas fazem parte integral da sua base intelec- tual geral e do “ambiente” em que surgi, © anti-idealismo de Nietesche, apesar das diferengas no conteiidonio dissemelhante, na forma, ac de Mar, acrescentou novas perspectives sobre 0 pensamento humano como instru- ‘mento na luta pela sobrevivéncia e pelo poder. * Nietzsche desenvolven a sua propria teoria da “falsa consciéncia’’ nas suas analises do significado social do engano € do auto-engano, e da ilusdo como condigo necesséria Isa cons- dois cone ate O probleme da sociologia do conhecimeno 19 da vida. O conceito nietzschieno de “ressentimento”. como factor gerador de certos tipos de pensamento humano, foi retomado em linha direeta por Scheler. De um modo geral, pode-se dizer que # sociologia do conheci- mento representa uma aplicaso especifica daquilo que Nietzsche chameva, com muita propriedade, a “erte da desconfianga”® Ohistoricismo, expresso em especial na obra de Wilhelm Dilthey, pre- cedeu de imediato a sociologia do conhecimento.* O tema dominante aqui era um esmagador sentido da relatividade de todas as perspectivas sobre os acontccimentos 1umanos, isto ¢, da inevitavel historicidade do pensamenio humano. A insisténeia historicista de que nenhuma situagao hisi6riea poderia termos, podia com facilidade ser traduzida numa énfase da situaséio social do pensemento, Certos conceitos historicistas, tais como a “determinagdo situscional” (Standortsgebundien- hnoit) © “luger na vida” (Sits im Leben), poderiam ser traduzidos como refe- rindo-se & “localizaco social” do pensamento, Em termos mais gerais, a heranga historicista da saciologia do conhecimento predispd-la para um forte interesse pela histGria © 4 empregar um método, historico em essén- cia, © que, diga-se de passagem, contribuiu também para a sua marginali- zaga0 no émbito da Sociologia americana, iimeresse de Scheler pela sociologia do conhecimento ¢ pelas ques- ‘es sociolégicas em geral foi de facto um episddio passageiro na sue car reira filosdiica, '° © seu objectivo final era o estabelecimento de uma antropologia filoséfica que transcendesse trelatividade dos pontos de vista, com localizagdiv especifica, tanto na histéria como no secial. A soviologia do conhecimento deveria servir de instrumento para alvangar este propésito, tendo por principal finalidade esclareeer e afaster as diftculdades levanta- das pelo relativisme, de modo que a verdadsira tarefe filoséfien pudesse prosseguir. A sociologia do conhecimento de Seheler é, em sentido muito real, ancilla philosophiae e, mais ainda, ums filosofia muito especifica Dentro desta orientago, a sociclogie do conhecimento de Scheler &, ‘no essencial, um método negative. Scheler argumentava que a relagHo entre “factores idecis” (Ideaifaktoren) e “Factores reais” (Realfaktoren), termos. muito reminescentes do esqueme marxisia “infia/supersteutura”, era ape~ nas uma relac3e reguladora, Isto €, os “factores reais” regulam as condi- ges nas quais certos “factores ideais” podem aparecer na historia, mas ago Ihes podem afectar 0 conteido. Ou seja, a Sociedade determina a pre= senga (Dasein) mas nio a natureza (Sosein) das ideies. A sociologia do ser entendida, excepto nos seus propr: 20 Aconstrugdo sovial da rialidede conhecimento é, portanto, 0 procedimento com o qual deve ser estudada a seleceao sécio-histérica dos contetdos ideativos, ficando compreendido que estes contetidos, em si, sto irdependentes da causalidade sScio-histd- rica, por conseguinte, inacessiveis & andljse socioWbgica, Se quiséssemos fazer uma representagio gréfica do método de Scheler, poderia dizer-se que consiste em langar 20 dragio da relatividade um bom engodo, mas apenas 0 suficiente pare melhot poder penetrar no castelo da cesteza ontelégica Neste quadro, modesto por intengio ¢ por incvitabilidade, Scheler ana lisou com considerivel detathe a mancira como o conhecimenta humano & ordenado pela sociedade. Acentuou que o conhecimento humano é consi- derado na sociedade como um a priori da experiéncia individual, forne- cendo-lhe a sua ordem de significagio. Esta order, embora relativa auma situagHo sécio-histérica particular, aparece a0 individuo cme © modo natural de olhar o mundo, Seheler chamou a isto a “visio relativa e naiue raf” (relativnatiirliche Weltanschauamg) de uma sociedsde, conceito que pode ainda ser considerado central na sociologia do conhecimento, ‘Na sequéncia da “invengao” por Scheler da sociologia do conhecimento, houye na Alemanha um amplo debate a respeito da validade, ambito © aplicabilidade da nove disciplina.” Deste debate emergiu uma formulagao ‘que marcou a transposigéo a sociologia do conhecimento para um mais sstrito contento sociologico. Foi sob formulagao que a sociclogia do ‘conhecimento chegou ao mundo de lingua inglesa, Trata-se da formulago de Karl Mannheim. " Pode-se afirmar, com seguranya, que quando os soeidlogos de hoje pensam em sociologia do conhecimento, proou contra, em geral fazem-no nos termos da sua formulagiio por Mannheim. Na sociologie emericana este facto é facil de compreender se reflectir= ‘mos na acessibilidade, em inglés, da totalidade da obra de Mannheim (de facto, uma patte desta obra foj escrita em inglés, durante o perfodo em que Mannheim esteve a leccionar em Inglaterra, depois do advento do nazismo nna Alemenha, ou foi publicada em tradugdes inglesas revistas), enquanto obra de Scheler, sobre a sociologis do conhecimento, permancecu até hoje sem tradugdo. Descontando este factor de “difusio”, a obra de Manttheim esti menos carregada de “bagagem” filoséfica do que a de Scheler. Isto é verdade, em particularno que se refere aos tltimos escritos de Mannheim, e pode ser verificado se compararnos 2 tradugdo inglesa da sua obra prin- cipal, Ideology and Uiopia (Tdeologia e Utopia). com o original elemao. O problema da sociclogia cho conhecimenio 21 Mannheim tornou-se assim a figura mais “congenial” para os socidlegos, mesmo para aqucles que eriticavam 0 seu modo de ver ou nase interessa= vam pelo mesmo. A compreensao que Mannheim tina da sociologia do conhecimento ‘era muito mais extensa do que a de Scheler, o que se deve talvez por 0 confronto com c marxismo ser mais importante no seu trabalho. A socie- dade seria visia como determminando no apenas a aparéncia mas também o conteiide da ideagtio humana, com exeepedo da matemitica e de, pelo menos, parte das cigacias naturais. A sociologia do conhecimento tomou- se entdo um método positivo para o estudo de quase todas as facetas do pensamento humano. E muito significativo o facto de Mannheim se preocupar em particular com o fensimeno da ideologia. Distingue os vonceitos de particular, de total ¢ de geral om ideologia: a ideologia constituindo apenas um segmento do ponsamento do adversirios a ideologia constituinco a totalidade do pense- mento de um acversério (semelhante “false conseiéneia” de Marx) ¢ (aqui, conforme pensou Mannheim, indo além de Marx) a ideologia carac- terizando nfo s6 0 pensamento de um adversirio mas também o do préprio pensador. Com aconceito geral de ideologia alea Jogia do conhecinento, a compreensao de que no hi pensamenta humano. (alem das excepcies referidas) que seja imune.s influéneias ideologizentes 0 seu contexto social Mediante esta expanséo da teoria da ideologia, Mannheim procura separar o seu problema central do contexto de uso politico, e traté-to como um problema geral de epistemologia e de sociologia histori Embors Mannheim nao partilhasse das ambigdes ontologies de Scheler, também ele se sentia pouce & vontade com o pan-ideologismo a que 0 seu pensamento parecia conduzi-to. Introduziu o termo “relacionismo” (oposto 2 “relativismo”) para assinalar a perspectiva episternolégice da sua socio 20 nivel da socio~ logia do conhecimento; nfo uma capitulagio do pensamento diante das, relatividedes sécio-histéricas, mas 0 sSbrio reeonhecimento de que © co- nhecimento tem sempre de serconhecimento a partir de umaccerta posigdo. E provavel que a influéncia de Dilthey tenha grande importéncia neste Ponto do pensamento de Mannheim: 0 problema do marxismo é resolvido ‘com os instrumentos do historicismo. Seja como for, Mannheim acreditava que as influéncias doutrinantes, embora no pudessem ser erradicadas por completo, podiam ser mitigadas pela andlise sistematica do maior mimero 22 Acumsirupéio social da realidade possivel das diversas posigdes alicercadas no social, Por outres palavras, 0 objecto do pensamento tarna-se cada ver mais claro com esta acumulaeao de diferentes perspectivas relatives a0 mesmio. Nisso deve consistira tarefa da sociologia do conhecimento, que se torna assim uma importante ajuda nna busea de qualquer compreenséo correcta dos acantecimentos humanos, Mannheim acreditava que os diferentes grupos sociais variam, assim, imenso na sua capacidade de transcender a sua estreita posigdo. Depositava & maior esperanga nos “intelectuais sem comprometimento social” (Frelschwebende Intelligenz, um termo derivado de Alfred Weber), como uma espécie de estrato intersticial que ele acreditava estar, de certo modo, isento de interesses de classe. Mannheim aventuou também 0 poder do pensamento “utépico” que, tal como a ideologia, produz uma imagem distorcida da realidade social mas que, co contrério da ideclogis, tem 0 dinamismo necessiric para transformar essa realidade na imagem que dela presenta, Desnecessario se torna dizer que as observagdes anteriores de modo slgum fazem justiga & concepefo de Scheler, ou & de Mannheim, da socio- logia do conhecimento. Essa nfioé a nossa intengo aqui. Limitémo-nos a indicar alguns aspectos-chave das das concengdes que foram, com pro- priedade, apelidadas de concepyéo “moderada” e concepedo “radical” da sociologia do conhecimento."* O notavel é que o subsequente desenvolvi- mento da soviologia do conhecimento consistiu, em grande parte, em criti- cas e modificagdes desses dois conceitos. Como jé assinalimios, a formula «@o feita por Mannheim da sociologia do conhecimento continuou a estabelecer os termos de referéncia paraessa disciplina, de mancira defini- tiva, em particular na sociologia de lingua inglesa. © mais importante socidlogo americano que prestou séria atengao & sociologia do conhecimento foi Robert Merton. "A sus andlise da disci- plina, que abrange dois eapitulos da sua obra principal, serviu de introdu- ‘do, Util, @ este campo, para aqueles socidlogos americanos que por ele se tm interessado. Merton construiu um paradigma para a sociologia do conhecimento, redefinindo os temas mais importantes desta discip forma condensada e eoerente. Esta construgdo ¢ interessante, porquanto procura integrar a abordagem da sociologia do eonhecimento com a da teoria fineional-estrutural. Merton aplica os seus préprios conceitos de fungses “manitestas” ¢ “latentes” & esfera da ideacho, fazendo distineo entre fungdes conscientes, intencionais das ideias, e fungdes inconscientes, ade O problema de soviologia de combacimento io intencionais. Embora Merton se concentrasse na obra de Mannheim. que para ele € 0 socidlogo do conlievimento por exceléneia, acentuou a importancia da escola de Durkheim dos trabalhos de Pitirim Sorokin £ interessante notar que Merton, ao que parece, nfo se apercebeu da importancia, para sociologie do conhecimento, de certos desenvolvimen- tos importantes de psivologia social emericana, como’a tei de referencia, que ele discute noutro ponte da mesma obra. Talcott Parsons também comentou @ sociologia do conhecimento. Neste comentaric predomina, porém, a critica a Mannheim © no procura uma integragio dz disciplina no priprio sistema tebrico de Parsons. Neste Gitimo, de facto, 0 “problema do papel das ideias” é analisado em porme- nor mas num quadro de referéncia muito diferente do da sociologia do conhecimento de Scheler ou de Mannheim. "Podemos arriscar, portanto, afirmar que nem Merton nem Parsons deram qualquer passo decisivo para além da sociolog:a do conhecimento, tal como formulada por Mannheim (O mesmo se pode dizer de outros eriticos. Mencionando apenas o mais eloquente, C. Wright Mills abordouw a scciologia do conhecimento nos seus primeiros trabalhos, mas de uma maneire expositiva ¢ sem qualquer Contributo para o seu desenvolvimento teérico.” ‘Um interessante esforgo para integrar a sociologia do conhecimento na Optica neopositivista da sociologia em geral, € 0 de Theodor Geiger, que teve grande influéncia na sociologia escandinava, apés ter emigrado da ‘Alemanha.™ Geiger voltou « um conceito mais estreito de idcologia, como um pensamenta distorcide em termos soviais, ¢ sustentou a possibilidade de superar a ideclogia pela cuidadosa observagdo de cénones eientificos de procedimento. A perspectiva neopositivista da andlise ideolézica foi, em tempos mais recentes, continuade na sociologia de Hingua alema pela obra de Emst Topitsch, que acentuou as raizes ideoldgices de varias po ges filoséficas. Na medida em quea anilise sociologica das ideologias ‘constitui uma parte importante da sociologia do conhecimento, conforme definida por Mannheim, tem havide muito interesse por ela na sociologia europeis, tanto quanto na americans, desde a Segunds Guerra Mundial. ‘A mais arrojede tentativa de ir além d2 Mannheim, na construgio de uma ampla socioiogia do conhecimento, € provavel que seja a de Wemer Stark, outro erudito continental emigrado, que Teecionow na Inglaterra ¢ hhos Estados Unidos. * Stark vai mais longe, deixando para tras a optice de Mannheim sobre © problema da ideologie. A tarefa da sociologia do ia dos grupos 24 A consirupie social da realidade cones imento nfo consiste em desenterrar ou desmascarar as distorgies produziddasao nivel social, mas no estudo sistematico das condigh do conhecimento enquanto tal. Dito de maneira simplista, o problema cen- tral € 0 da sociologia da verdade, nao 0 da sociologia do erro. Apesar da sua singular aboréagem, é provavel que Stark esteja mais perto de Scheler do que de Mannheim na compreenséo da relacao entre as ideias € 0 seu ‘contexte social Uma vez mais ¢ evidemte que nao tentémos dar uma adequada visto global histérica da sociologia do conhecimento, Algm disso, ignordmos até agora certos desenvolvimentos que poderiam, em teoria, ter imporiéin- cia para a sociologia do conhiceimento, mas que nao foram considerados como tal, pelosos scus priprics protagonistas, Por outras palevras, limitémo- ociais -nos.aos desenvolvimentos que, por assim dizer, navegaram sob a bandeira da “sozfologia do conheciment (considerando a teoria da ideologia como parte desta iltime). Isto tomou muito elaro um facto: & parte o interesse epistemoldgico de alguns socidlogos do conhecimento, o foes empirico da tengo tem-se situado quase em exclusivo na esfera das ideias, ou seja, do pensamento tedrico. Isto é também verdade com Stark, que deu come sub titulo 4 sua obra principal sobre a sociologia do conhecimento, a expresso ‘An Essay in Aid of Deeper Understanding of the History of Ideas (Ensaio ara gjudar a una compreensao mais profiunda da histéria das ideas) Por outras palavras, 0 interesse da sociologia do conhecimento tem incidido has questdes episiemoldgicas ao nivel teérico, e nas questoes da historia intelectual ao nivel empirico, Queremos sublinhar que nio temos quaisquer reservas quanto a vali- dade ¢ importincia desses dois conjuntos de questoes. Consideramos, porém, infeliz que esta particular constelacao tenha até agora dominado a sociologia do conhecimento, Opinariamos que, como consequéncia, a plena significseio teérica da sociologia do conhecimento tem sido obscurecida. Incluir quests epistemologicas, respeitantes & validade do conheci- mento saciolégico, na sociologiado conhecimento &, de certo modo, como tentar empurrar um eutocarro ao mesmo tempo que viajamos nele. Sem divide que 4 sociologia do conhecimento, como todas as disciplinas empiricas que acumulam evidéncia pertinente & relatividade e determina 80 do pensamento humano, conduz a questies epistemologicas a respeito da propria sociologia, assim coma de qualquer outro corpa cientifico do conhecimento, Conforme observimos antes, a socialogia do conhecimento problema ta sociologia de conhecimento 28 desempenha ai urs papel semelhante ao da hisi6ria, da psicologia ¢ da bio- legi, para mencionar apenas trés das mais importantes disciplinas empiricas aque causaram problemas & epistemologia, A estrutura lGgica desses pro blemas é, no essencial, @ mesma em tedos os casos, @ saber: come posse estar certo, digamos, da minha andlise sociolégica dos costumes da clesse ‘meédiaamcricana, considerando que as categories que uso para esta andlise 40 condicionadas por formas de pensemento de um relativismo histérico e que eu proprio, ¢ tudo quanto penso, somes determinados pelos meus ‘genes ¢ pela minha inaia hostilidade para com os meus semelhantes ¢ que, ‘além do mais, eu proprio sou membro de classe média americana? Longe de nds o desejo de menosprezar estas questées. Tudo quanto desejariamos afirmar aqui, é que estas quest5es nao sto, em si mesmas, parte da disciplina empiries da sociologia. Pertencem mais metodologia das ciéncias sociais, uma area que pertence a filosofia e, por definicao. no se confunde com 2 sociologia que é, na realidade, 0 odjecto das suas indagacdes. {A sociologia do conhecimento, mais outros agitadores episiemoldgicos centre as ciencias empiricas, “alimentaré” com problemas esta investigacio ‘metodolégica. Ele nao pode resolver tais problemas dentro do seu proprio quadro de referencia, Por conseguinte, excluimos de sociologia do conhecimento os proble- mas epistemologicos © metodoldgicos que perturbararn os seus dois prinei- pais criadores. En virtude desta exclusdo, afastamo-nos da coneepgfo da isciplina, tanto da de Scheler como dade Mannheim, dos iltimos socié- logos do conhecimento, em especial os de orientagdo neopositivista, que partilharam de icl concepedo. Ao longo de todo o livro colocimes entre aspes, com determinagdo, todas as questdes epistemologicas ou ‘metodolégicas acerca da validade da anilise sociolégica na sociologia do Proprio conheeimento ou em qualquer outro campo. Consideramos a socio- Togia do conhecimento como parte da disciplina empirica da sociologia. nosso propésito aqui é, claro, de carécter tedrico, Mas a nossa teorizagio refere-se A disciplina empitica nos seus problemas concretos, € no a pes- uisa filosofica dos alicerces da disciplina empiica, Em resumo, 0 nosso empreendimentn € de teoria sociologiea, ndo de metodologis da sociolo- ‘Bia, Apenas numa secgao do nosso livro (a que se segue a esta Introdueo) iremos além da teoria sociol6gice, mas por motivos que pouce tém a ver com a epistemologia, conforme seri explicado na devide altura 26 A consiructo social ca realidarle Devemos, contudo, redefinir também a tarefa da sociologia do conhe- cimento ao nivel empirico, isto é,enquanto teoria orientada para. disciplina empirica da sovioiogia. Conforme vimos, neste nivel a soviologia do conhesimento tem-se ocupado da hisiéria intelectual, no sentido de histS- ria das ideias. Sublinhariamos ainda que este é, ne verdade, um foco muito importante da pesquisa sociolégica, Além disso, contrastando com a nossa exclusio do problema epistemolégicoimetodoliuio, aceitames que este foco pertenga a sociologia do coahecimento, Defenderemos, porm, que © problema das “ideias”, incluindo o problema especial da ideologia, consti- tui apenas parte do problema msis amplo da sociologia do conhecimento, nao sendo sequer um aspecto central A Sociologia do conhecimento deve ocupar-se de tvelo taguilo que é con- ‘siderado “conhecimenio” na seciedade. Mal se acaba de afirmar iste e logo se compreende que a focagem ne historia intelectual é uma ma escolha, ou antes, 6 mal escolhida quando se toma 0 foco central da scciologia do.conhe- cimento, O pensamento tetrico, as" ideias”. Weltanschaammgen, nao So assim, ‘Go imporiantes na soviedade. Embora todas as sociedadies conterham estes fendmenos, eles so apenas uma parte da soma total daquilo que é considersdo “conhecimento”. Em qualquer sceiedade, apenas um grupo muito limitado de pessoas se dedica a teoricas, a ocupar-se de “ideias” e a construir Feltanschawungen, Mas todos na sociedade participam, de uma maneira ou. de outra, do seu “conhecimento”, Dito de outra mansira, sé muito poucas pessoas se preocupam com a interpretapi tedrica do mundo, mastodas vivem 2m algum tipo de mundo, Nao sé.a concentragiio no pensamento tedrico &, sem justificacSo, restrtiva da sociologia do conhesimento, ela é também insetisfatéria porquanto nem esta parte do “eonhecimento”, disponivel em termos sociais, poderd ser compreendida na sua plenitude se niio for enqua- drada numa anelise mais geral do “eonhecimento” Exagerar a importancia do pensanento tedrieo, na sociedaide e na his- \ria, € uma falta tipica dos teorizadores. F isso torna ainda mais necessé- lo corrigir esta incompreensao intelectual. As formulagdes tedricas da realidade, quer cientifices, filoscficas ou até mitolégicas, nfo esgotam 0 queé “real” para os membros de uma sociedade, Senda assim, 2 sociologia do conhecimento deve antes de mais ocupar-se com o que os homens “conhecem™ como “realidade”, ne sua vida quotidiana, viéa nao teérica ou pré-teérice. Por outras palavras, 9 “conhecimento” com bom senso, mais do que as “ideias”, deve ser 0 foco central da sociologia do conhecimento. 0 problema dks socialogia do conhecimento. — 27 f este “conheeimento” que constitui o tecido de significados sem o quel nenhuma sociedade poderia existir A sociologia do conhecimento deve, portanto, empenhar-se na cons- srugao social da ralidade, A analise de articulagio tebrica desta realicade, por cero que continuard a ser uma parte, mas nao a parte mais importante, deste empenho. Fivaré clare que, apesar da exclusio dos problemas epistemoligicos/netodolégicos, 0 que aqui estamos a sugerir 6 uma redefiinigio, de longo alcance. do émbito da sociologia do conhecimento, ‘muito mais ampla do que tude quanto até agora tem sido entendido como constituindo esta disciplina, Coloca-se a questio de quais slo os ingredientes teSricos que devem ser acrescentades & sociologia do conhecimento, que permitam que ela soja redefinida no sentido atrés indicado, Devemos a Alfred Schutz a com- preensio fundamental da necessidade desta redetinigdio. Em toda a sua obra, como fildsofo ¢ como socidloga, Schutz concenirou-se sobre a estrutura. do mundo do senso comum da vide quotidiane. Embora ele proprio n20 tenhe elaborado uma sociologia do conhecimento, linha. clera percepseo daquilo em que esta disciplina se deveria concentrar Todas as tipificagdes do pensamento do senso comum sao clemen- tos imtegrais co Lebenswelr concreto, historivo ¢ sociocultural em que prevalcccm, sendo dadas como asseguredas ¢ aprovadas pela sociedade, Acsuacstrutura determina, entre outras coisas, a distribuigio social do conhecimente ¢a sua relativideds e importincie pare c ambiente social concreto, de um grupo conereto, numa situagdo histérica concreta. Encontram-se axqui os legitimos problemas do relativismo, do histori- cismo ¢ da chameda sociologia do conhecimento. = E ainda: O conhecimento encontra-se distribuido na sociedade ¢ 0 meca- nismo da distribuigo pode tomar-se objecto de uma diseiplina socio Iogica. E certo que temos uma, assim chamada, sociologia do conhe- cimento. No entanto, com muito poucas excepodes, essa mal denominada disciplina abordou o problema da distribuigdo social do conhecimento apenas pelo éngulo dos alicerces ideolégicos da ver~ dade na sua dzpendéncia das condigdes sociais e, em particular, econd- 28 A consiruedo social de realidade mivas, ou de angulo des impticagoes sociais da edueagao, ou a do pape! social do homem culto, Nao Forain os sociélogos, mas os econc- mistas € es fildsofos, que estudaram alguns dos muitos aspectos teé- ricos do probleme, ” Embora nfo atribuamos a distribuigio social do conhecimento o papel central que Schutz aqui implica, concordamos com a sua critica de “essa mal denominada disciplina” ¢ derivamos dele a nossa nogdo bisica da maneira pela qual a tarefe de sociologia do conhecimento deve ser redefinida. Nas consideragdes que se seguem dependemos, em larga medida, de Schutz nos prolegémenos referentes 20s fundamentos do conhecimento na vida diria, ¢ ficamos em grande divida para com a sua ebra em vérios pontos importantes do nosso principal argumento consequent. (05 nosses postulacos antropolégiccs so muito influenciados por Marx, em especial pelos os seus primeiros estritos, ¢ pelas implicagdes antropo- logicas retiradas da biologia humana por Helmuth Plessner, Amold Gehle: outros. A nossa concepedo da natureza da realidade social deve muito a Durkheim a sua escola de sociologia francesa, embora tenhamos modifi- cado a teoria durkhcimiana da sociedade, com a introdugao de uma pers pectiva dialéctica derivada de Marx e uma énfase na constituigao da reali- dade social mediznte significedos subjectivos derivados de Weber." As nossas prossuposigies sociopsicolégicas, de especial importincia para a.anilise da interiorizagdo da reelidede social, fo muito influcnciades por George Herbert Mead e alguns desenvolvimentes da sua obra, realizedos pela chamada escola simbélico-interaccfonista da sociclogia americana.™ Indicaremes nas Notas aié que ponto estes diversos ingredientes foram usados na nossa formapao tedrica. Compreendemos muito bem, claro, que reste uso nio somos, nem podiamos ser, Fidis As intengGes originais destas varias correntes da teoria social, mas, conforme jé dissemes. 0 10550 pro- Osito aqui nao é exegético, nema 0 de fazer uma sintese s6 pelo valor da sintese, Compreendemos bem que, em varios pontes, violentamos certos pensadores ao integrar 0 seu pensamento numa formagéo teérica quealguns deles teriam considerado de todo estranha. Poderiamos dizer, a titulo de Justificagao, que gratidao historisa néio é, em si mesma, uma virtude cien- tifica. Podezemos citar aqui algumas observacdes de Talcott Parsons (sobre cuja teoria temos sérias reservas, mas cuja intencéo integradora partilha- ‘mos por intziro): 0 probleme dls saviologia do conkecimento 29 Oobjectivo principal do estudo ndo consiste em determiner e enun- cier, de forma resumida, o que esses escritores disseram ou acredita- ‘vam em relagaoaos assuntos sobre os quais escreviam. Nao € tao-pouco ée indagar, em relayao 2 cade proposigdo das suas “teorias”, se aquilo que dizem pode ser sustentado a luz do actual conhecimente soeiotbgico e conhecimentos afins... E um estudo da ieoria social, nfto de ieorlas. O seu interesse no esié nas proposigdes separades ¢ independentes (que se encontram nas obras desses homens mas num znico corpo tle racioci io teérico sistematico. * A nosse finalidade, de facto, consiste em empenharmo-nos num “sacio- cinio tedrico sistemdtico”, 46 ge teré tornado evidente que a nossa redefinigdo da sua natureza alcance, deslocaria a sociologia do conhecimento da pariferia de teoria sociolégica para o seu proprio centro. Podemos assegurar ao leitor que no temos qualquer intsresse pessoal no ritulo “sociologia do eonhecimento”, Foj antes a nossa compreensio da teoria sociolégica que nos levou até a sociologia do conhecimenta ec orientou @ maneira pele qual iriamosredetinir 08 seus problemas e tarefas. O melhor modo de descrever o caminho que seguimos, sera fazer referéncia a duas das mais famosas e intluentes “guias de marcha’ da sociologia. Uma foi-nos dada por Durkheim nas Rules of Sociological Method Regras do Métody Soctolégieo); a outra por Weber em Wirtschaft und Gesellschaft (Economia ¢ Soctedule). Durkheim diz-nes: “A primeira ¢ ‘mais fundamental regra é Considerem os factos socials como coisas.” ® E Weber observa: “Tanto para a sociologia, no sentido actual, como para a histéria, 0 objecto cognitive ¢ © subjectivo complexo-de-significados da Aegfio.” * Estas duas afirmagbes no sio contraditérias. A sociedaile pos- sui, na verdade, uma fectualidade objectiva. E a sociedade é, de facto, tam- ‘bém constitutda per actividades que exprimom um significado subjestive. Durkheim, aliés,tinha conhecimento deste tltimo enunciado, assim como Weber conhecia o primeiro. E entio esse duplo caréeter da soviedade, em termos de factualidade objective e significado subjective, que toma a sna “realidade sui generis”, para usar outro termo-chave de Durkheim. A ques- ‘0 central da tgoria sociolégica pode, por conseguinte, ser enunciadadesta Maneira: come & possivel que significedos subjectivos se fornem fectualidsdes objectivas? Ou, em palavras ajustadas as posigtes teéricas

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