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o imaginario trabalhista getulismo, PTB e cultura politica popular 1945-1964 Jorge Ferreira CIVILIZACAO BRASILEIRA Este livro acompanha uma proposta na area das Ciéncias Sociais e da Historia, que se bate pela transformagao de um modelo de interpretacdo, fortemente consolidado, sobre uma de nossas experiéncias republicanas. Trata-se daquela que cobre o periodo que vai de 1945 a 1964, e que continua sendo chamada, principalmente nos livros didaticos € nos discursos de imprensa, politicos e académicos, de Republica Populista. Tal proposta trata de um verdadeiro habito mental; uma formula que guia 0 pensamento, preenchendo-o de um sentido especifico e inibindo a capacidade de exercer a critica. E que sentido € esse? Fundamentalmente, € o sentido do fracasso politico desta experiéncia liberal-democratica, que se expressaria, entre outros indicadores, pela fragilidade/artificialidade dos partidos politicos e pelo cupulismo/pelequismo dos sindicatos, Esta grande tese se apresenta como extremamente desqualificadora em um dos periodos em que mais se exercitou a democracia no Brasil (e eles nao foram tantos). Recuperar sua dinamica politica em outra chave € condigao basica para se repensar 0 processo de construgao dos direitos de cidadania, particularmente os de representacao € participagao politicas em nova perspectiva historica. Jorge Ferreira escolhe uma rica estratégia para enfrentar esse desafio, e realiza um recorte denso e original. Privilegia a historia do trabalhismo brasileiro, destacando nao apenas a atuago das liderancas do Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, mas também, é principalmente, a de seus militantes f Jorge Ferreira s O imaginario trabalhista getulismo, PTB e cultura politica popular 1945-1964 CIVILIZACAO BRASILEIRA — Rio de Janeiro 2005 Copyright © Jorge Ferreira, 2005 CAPA Evelyn Grumach FOTO DE CAPA Campanha de Gettilio Vargas para as eleigdes presidenciais de 1950 no Rio Grande do Sul - CPDOC/Fundagdo Getulio Vargas PROJETO GRAFICO Evelyn Grumach e Jodo de Souza Leite CIP-BRASIL, CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. Ferreira, Jorge F166i imaginério trabalhista: getulismo, PTB e cultura politica popular 1945-1964 / Jorge Ferreira, - Rio de Janeito: Civilizagio Brasileira, 2005. Inclui bibliografia ISBN 85-200-0705-8 1. Trabalhismo - Brasil. 2. Partido trabalhista Brasileiro. 3. Brasil — Polf- tica e governo - 1945-1964, 4. Brasil - Histéria — 1945-1964. I. Titulo. CDD ~ 320.981 05-3224 CDU - 32(81) Todos os direitos reservados. Proibida a reprodugdo, armazenamento ou transmiss4o de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorizagao por escrito. Direitos desta edigao adquiridos pela EDITORA CIVILIZACAO BRASILEIRA Um selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA S.A. 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A literatura que, a partir da segunda metade dos anos 1960, procurou analisar a temporalidade que se abriu em 1930 e se encerrou com 0 golpe militar, salvo diversas excegdes, formulou e difun- diu, no imaginario académico, representagdes muito negativas: “perfodo populista”, “Estado populista”, “pacto populista” e “populismo na politi- ca brasileira” sao algumas das expressdes que encontramos facilmente nos livros, sobretudo nos didaticos de nivel médio. Nogdes como mani- pulagio, cooptagio, demagogia, traigao e desvio seguem no rastro das andlises. O grande problema, nao muito bem explicado, é responder por que os trabalhadores seguiram liderangas “populistas” que os “manipula- vam” e, ao final, os “trafam”. Sobre o movimento sindical entre 1930 e 1964, em particular, a lite- ratura especializada contribuiu, de maneira decisiva e igualmente exitosa, para a difusdo de imagens negativas sobre as lutas dos trabalhadores do passado. Para Hélio da Costa, o sindicalismo da “era populista” é defini- do nos textos como cupulista, devido ao esfor¢o para construir estruturas paralelas fortemente verticalizadas, mas descuidando da organizag4o nos locais de trabalho; distante das reivindicagdes do cotidiano dos operdrios nas fabricas e incapaz de romper com o atrelamento dos sindicatos ao Estado. Em sintese, no “sindicalismo populista”, os trabalhadores nao passariam de reféns da politica ditada por suas liderangas.' John French, por sua vez, chama a ateng4o para o “consenso populista” que se firmou entre os estudiosos do movimento sindical brasileiro. Segundo os textos especializados, diz o historiador norte-americano, os lideres operdrios INTRODUGAO desacreditaram-se ao aceitar as estruturas sindicais corporativistas, adap- tando-se a um sistema extremamente rigido e burocratizado, planejado para inibir a mobilizagao popular. Ao preferirem contar com a boa vonta- de do Estado, tinham que desestimular iniciativas que extrapolassem a Consolidagdo das Leis do Trabalho, de origem fascista. Além disso, as novas liderangas que surgiram na época de Getuilio Vargas nao necessita- vam prestar contas as suas bases por estarem legalmente garantidas nos seus cargos, enquanto o imposto sindical desestimulava a filiagao em massa dos oper4rios a seus sindicatos. Surge, deste modo, a imagem tao pejo- rativa do “pelego”. Assim, o sindicalismo, dito “populista”, deixou de representar os interesses dos operarios que, dependentes do Estado, te- riam sido usados como massa de manobra das classes dominantes. Na avaliagao de French, o “consenso populista” na historiografia trata-se de um conhecimento tradicional, historicamente discutivel e conceitualmente falho.? O trabalho sistematico de desmerecimento das lutas dos trabalhado- res do passado atuou com muita eficdcia no modo de pensar das geragdes que se formaram apés o golpe militar que depds Joao Goulart. Da manei- ra que passou a ser contada, a histéria politica brasileira contemporanea tornou-se bem conhecida, povoada por seres imagindrios, a exemplo dos “populistas”, dos pelegos, dos autoritarios comunistas, da falta de conscién- cia da classe, do cupulismo, da despolitizac4o, dos camponeses que vesti- ram macacio, entre outras construgées tedricas destitufdas de base empirica, mas que transformaram a luta dos operdrios, dos sindicatos e dos partidos de esquerda, entre 1930 e 1964, em uma sucessao de derro- tas, desvios e subordinag4o a patrées e ao Estado. A comegar, segundo Daniel Aarao Reis Filho, pelos classicos dos classicos da teoria do “populismo”: Francisco Weffort e Octavio Ianni. Nos textos fundadores, nao encontramos referéncias “A ago consciente dos trabalhadores, 4 sua. capacidade de elaborar avaliagées, célculos, escolhas. Na alianga que de- marca o populismo, ha uma burguesia industrial consciente, ha lideres carismaticos empreendedores e maquiavélicos e, do lado dos trabalhado- res, apenas massas — propria para amassar — de manobra”.? Em sintese, os assalariados, definidos como objetos de regulamentagao do Estado, 10+ INTRODUGAO desacreditaram-se ao aceitar as estruturas sindicais corporativistas, adap- tando-se a um sistema extremamente rigido e burocratizado, planejado para inibir a mobilizagdo popular. Ao preferirem contar com a boa vonta- de do Estado, tinham que desestimular iniciativas que extrapolassem a Consolidagao das Leis do Trabalho, de origem fascista. Além disso, as novas liderangas que surgiram na época de Getulio Vargas nao necessita- vam prestar contas as suas bases por estarem legalmente garantidas nos seus cargos, enquanto o imposto sindical desestimulava a filiagdo em massa dos operdrios a seus sindicatos. Surge, deste modo, a imagem t4o pejo- rativa do “pelego”. Assim, o sindicalismo, dito “populista”, deixou de representar os interesses dos operdrios que, dependentes do Estado, te- riam sido usados como massa de manobra das classes dominantes. Na avaliacao de French, o “consenso populista” na historiografia trata-se de um conhecimento tradicional, historicamente discutivel e conceitualmente falho.? O trabalho sistemdtico de desmerecimento das lutas dos trabalhado- res do passado atuou com muita efic4cia no modo de pensar das geragdes que se formaram apés o golpe militar que depés Joao Goulart. Da manei- ra que passou a ser contada, a hist6ria politica brasileira contemporanea tornou-se bem conhecida, povoada por seres imagindrios, a exemplo dos “populistas”, dos pelegos, dos autoritaérios comunistas, da falta de conscién- cia da classe, do cupulismo, da despolitizagd0, dos camponeses que vesti- ram macac4o, entre outras construgées teéricas destitufdas de base empirica, mas que transformaram a luta dos operdrios, dos sindicatos e dos partidos de esquerda, entre 1930 e 1964, em uma sucessio de derro- tas, desvios e subordinagdo a patrdes e ao Estado. A comegar, segundo Daniel Aarao Reis Filho, pelos classicos dos cldssicos da teoria do “populismo”: Francisco Weffort e Octavio Ianni. Nos textos fundadores, nao encontramos referéncias “4 agao consciente dos trabalhadores, 4 sua capacidade de elaborar avaliagées, cdlculos, escolhas. Na alianga que de- marca 0 populismo, ha uma burguesia industrial consciente, ha lideres carismaticos empreendedores e maquiavélicos e, do lado dos trabalhado- res, apenas massas — prépria para amassar — de manobra”.> Em sintese, os assalariados, definidos como objetos de regulamentagaio do Estado, 10° © IMAGINARIO TRABALHISTA cooptados por liderangas exteriores ao seu meio e vitimados pela domi- nago burguesa, nao teriam sido éapazes de se expressar como classe. Daf © sucesso que 0 conceito de “populismo” alcangou. Sobre a politica brasileira pés-1945, a literatura insiste em denunciar as continuidades das anomalias que, surgidas no perfodo anterior, passa- ram a reger as relag6es entre Estado e classe trabalhadora, sobretudo com a atuagSo dos trabalhistas na esfera do poder. E verdade que ha vozes discordantes, a exemplo de Maria Celina D’Araujo, ao afirmar que o PTB, embora repleto de erros e de virtudes, como tantas outras hist6rias, “re- servou para si alguns méritos e foi o partido que mais registros deixou na mem6ria de seus militantes e eleitores”.* No entanto, a prudéncia da au- tora, via de regra, nao é a representag4o mais corrente que descreve 0 PTB entre 1945 e 1964. As imagens mais vulgarizadas sobre a atuagao do partido ressaltam a ilegitimidade de sua fundagcao, fruto da argicia de Getiilio Vargas para afastar os trabalhadores do PCB; as ligagdes com o sindicalismo corporativista, submetendo os operdrios a uma casta de “pelegos”; a corrup¢ao, o fisiologismo, as nomeagées e benesses puiblicas, sobretudo com o uso do Ministério do Trabalho e dos Institutos de Previ- déncia; o dominio de quadros exteriores classe trabalhadora no parti- do, elementos sempre dispostos a atos de “traig&o”; enfim, a existéncia de um partido para os trabalhadores e nao dos trabalhadores, desvirtuan- do-os e controlando-os politicamente. As categorias de manipulagao, cooptagio, desvio e controle utilizadas para explicar a atuagao dos assala- riados na €poca do Estado Novo permanecem nas anilises do perfodo posterior a 1945, Abandonando categorias teéricas longamente aceitas e compartilha- das, mas nem sempre comprovadas, procuro, neste livro, compreender a politica brasileira entre 1945 e 1964 em um enfoque histérico. Assim, entendo que o sucesso politico dos trabalhistas e o crescimento eleitoral do PTB nao foram casuais nem arbitrdrios, resultados das agdes de um lider superconsciente, como Getilio Vargas, ou de uma burocracia “pelego- ministerial”, mas sim corresponderam a tradigées, crengas e valores que circulavam na sociedade brasileira da época. O “getulismo”, expresso que, na década de 1940, traduzia a defesa e as conquistas do trabalho WwW INTRODUGAO associadas 4 imagem do chefe do governo, além de um estilo politico que privilegiava uma relagao sem mediagées entre lider e trabalhadores, nao mais satisfazia As necessidades polfticas de uma gerag4o que passou a se manifestar politicamente nos anos 1950.5 Da personalizagao da politica, o “getulismo” institucionalizou-se em um partido politico, o PTB, trans- formando-se em um projeto para o pafs, nomeado de trabalhismo. Nessa mesma década, uma gera¢ao de homens e de mulheres, partilhando idéias, crengas e representagdes, acreditou que no nacionalismo, na defesa da soberania nacional, nas reformas das estruturas socioecondémicas do Bra- sil, na ampliagio dos direitos sociais dos trabalhadores do campo e da cidade, entre outras demandas materiais e simbélicas, encontraria os meios necessdrios para alcangar o real desenvolvimento do pafs € 0 efetivo bem- estar da sociedade. Esperanga, reformismo, distributivismo e nacionalis- mo, diz Lucilia de Almeida Neves, tornam-se “elementos integrantes da utopia desenvolvimentista que se constituiu como signo daquela época”.* Da década de 1940 até o golpe militar, diz a autora, expressivos segmen- tos da sociedade civil brasileira acreditaram que a modernidade somente seria alcangada “se apoiada em um programa governamental sustentado para a industrializagao, por politicas sociais distributivistas e por efetiva defesa do patriménio econémico e cultural do pafs”. Projeto e geragao, assim, interagiram entre si, num processo de constante “didlogo”. Além disso, uma conjuntura internacional, complexa e conflituosa, mas rica em projetos alternativos, permitia que essa geracio se identifi- casse politicamente com o projeto nacional-estatista’ defendido pelos tra- balhistas: embora afastados ideologicamente do modelo de socialismo soviético, os sucessos obtidos pela antiga Unido Soviética com o planeja- mento econdmico € o dirigismo estatal serviam de exemplos para a indus- trializagdo acelerada e o desenvolvimento econdmico auténomo; as experiéncias social-democratas na Europa Ocidental, com a valorizagao da democracia, a estatizago de setores estratégicos da economia e as po- Ifticas ptiblicas de bem-estar social apresentavam opgées mais humanas ao capitalismo liberal; os movimentos antiimperialistas que proliferavam na América Latina, as lutas pela emancipagio politica que se alastravam na Africa e na Asia, entre outros conflitos no Terceiro Mundo, sinaliza- 12 © IMAGINARIO TRABALHISTA vam que a possibilidade de construgdo de uma nova sociedade, politica- mente soberana e socialmente justa, era possivel, desde que se livrassem da opressao econédmica do antigo colonialismo e do moderno imperialis- mo. Os exemplos, portanto, eram diversos no Brasil dos anos 1950 e infcio dos anos 1960. As esquerdas trabalhistas, comunistas, socialistas e cristas, além dos movimentos sindicais urbanos, organizagdes campone- sas, estudantis e, inclusive, faccdes das Forgas Armadas, também no dei- xaram de elaborar um projeto de libertagio nacional. Assim, este livro tem por objetivo lembrar a sociedade 0 que aconte- ceu, em termos politicos, entre 1945 e 1964, no Brasil. Sobretudo, é um resgate da histdria do trabalhismo brasileiro. A preocupagio, no entanto, nao é centrada nas grandes liderangas. Embora elas estejam presentes, como nao poderia deixar de ser em um partido de origem carismatica como o PTB, procuro recuperar idéias, crengas, sensibilidades e valores de carter politico que circulavam entre trabalhadores, militantes e sim- patizantes do trabalhismo. Talvez a expressao que melhor defina as per- sonagens do livro, embora se trate de um conceito sem a menor preciso tedrica, seja “pessoas comuns”. Sao homens e mulheres, velhos e jovens, pobres e assalariados de baixa renda em geral que, a seu modo, participa- ram ativamente da politica brasileira naquele perfodo, engajando-se no projeto politico conhecido como trabalhismo. Além do esforgo de resgatar, ainda que parcialmente, vivéncias e ex- periéncias politicas de trabalhadores, populares e eleitores do PTB; pre- tendo recuperar imagens, simbolos e mitos que, traduzidos em idéias, crengas e certezas, atigaram a imaginag4o dos militantes petebistas; reconstituir a linguagem coletiva que permitiu a eles se comportarem e se comunicarem sobre um terreno comum; compreender, enfim, as atitu- des, as motivagdes e a maneira como os quadros do PTB, entre 1945 € 1964, deram significados e interpretaram a realidade social que viveram. Um objetivo mais amplo acompanha a anilise: estudar alguns episédios da histéria politica brasileira naquela época, recuperando um passado de grande mobilizagao da sociedade, os trabalhadores em particular, por re- formas que ampliassem seus direitos politicos, econémicos e sociais e que distribufssem a renda nacional de maneira mais justa. Ao mesmo tempo, 13 INTRODUGAO procuro resgatar o embate entre dois grandes projetos para o pafs que marcaram a agenda do debate politico naqueles anos. De um lado, as esquerdas, compostas por trabalhistas, comunistas, socialistas, sindicalis- tas, estudantes e facgdes do Exército, com o projeto nacional-estatista, cujo programa, em termos gerais, baseava-se na soberania nacional, no desenvolvimento econémico e na justiga social; de outro, os liberais-con- servadores de direita, como udenistas, politicos tradicionais, empresd- rios, latifundidrios, meios de comunicagao e facgdes da Aeronautica, Marinha e Exército, defendendo restrig6es aos direitos do movimento sindical, o liberalismo econémico, a abertura do pafs ao capital estrangei- ro eo alinhamento incondicional aos Estados Unidos. Contudo, o trabalho de recuperar a atuacao politica dos segmentos populares, sabemos, é tarefa particularmente dificil. Ao contrario dos gru- pos dominantes, nem sempre as pessoas comuns deixaram o registro siste- miatico de suas vivéncias e experiéncias. Ao historiador, neste caso, cabe usar de argticia e sensibilidade e abordar as cartas, os depoimentos e as manifestagdes comportamentais e discursivas de trabalhadores e populares como artefatos culturais. Particularmente neste livro, utilizarei o conceito de cultura para definir todo 0 conjunto de atitudes, representagGes sociais e cédigos de comportamento que forma as crengas, idéias e valores social- mente reconhecidos por um setor, grupo ou classe social. Estes padrées comportamentais surgem das experiéncias econémicas, politicas e cultu- rais dos individuos e dos grupos, que os expressam por meio da linguagem. Como Darnton, partirei do princfpio de que a expresso individual ocorre dentro de um idioma mais geral fornecido pela cultura de sua época e lu- gar.’ Assim, acredito na possibilidade de resgatar, ainda que parcialmente, n&o apenas o que o militante ou o simpatizante petebista pensava, mas também como interpretava e dava significados ao mundo em que vivia. Ao abordar teoricamente as manifestag6es politicas das camadas populares adeptas do trabalhismo e do PTB sob 0 conceito de cultura, acredito ser possivel reconstituir um aparato simbélico que, para elas, teve existéncia real. Como uma linguagem, necessariamente coletiva, a cultura organiza a realidade na consciéncia social das pessoas, tornando possivel, ao pesquisa- dor, resgatar e compreender a “gramAtica” desse idioma. 14 © IMAGINARIO TRABALHISTA E verdade que, segundo o relativismo cultural, ou hist6rico, no enten- der de Clifford Geertz, nao podemos entender adequadamente a imagi- nagio social das sociedades do passado da mesma forma que entendemos a nossa, Partindo deste principio, ha aqueles que, com ceticismo metodolégico, afirmam a impossibilidade de se entender qualquer coisa do passado. Como Geertz, nao tenho diividas: podemos compreender sim — e de maneira bastante adequada. No entanto, para isto, nao basta olhar por trds das interpretagdes intermedidrias que nos relacionam com i imaginag4o que queremos recuperar e compreender. “E preciso olhar itravés delas.”? Com esse objetivo, recorri a um tipo de fonte que, na Jefinigao de Vavy Pacheco Borges, atua no campo cotidiano da cultura, ja politica partidaria e do conflito entre grupos e projetos: a imprensa.'! Jtilizando os jornais como fonte privilegiada da pesquisa, embora nao a inica, procurei recuperar a cultura e o imaginério politico dos trabalhis- as olhando através das interpretagdes daqueles que serviram de interme- lidrios entre o meu presente e o passado que estudei. Muitas vezes, e sspero que o leitor me acompanhe, reconstituf episédios através dos olhares idades de repdrteres que trabalharam nas ruas das grandes cidades. Em seis cap{tulos, procuro analisar alguns momentos decisivos da his- éria do trabalhismo e da prépria politica brasileira. O primeiro, “Quan- fo os trabalhadores ‘querem’: politica e cidadania na transigao democratica le 1945”, resgata a participagao politica dos trabalhadores que, nas ruas, nanifestaram sua vontade politica em um movimento de massas ainda nuito mal estudado, o queremismo. O segundo, “O ministro que conver- ava: Joao Goulart no Ministério do Trabalho”, reconstitui a ascensio0 »olftica de Goulart e as manifestagdes do movimento sindical no cendrio la conservadora politica brasileira. O terceiro, “O carnaval da tristeza: os notins urbanos do 24 de agosto”, apresenta uma multiddo de homens e nulheres chocados, sobretudo profundamente magoados e furiosos, diante da notfcia do suicidio de Getilio Vargas. O quarto, “Trabalhadores e sol- dados do Brasil: a Frente de Novembro”, recupera a tentativa de golpe da direita e o contragolpe da facgio dominante no Exército, episédio que aproximou os trabalhistas dos militares. O quinto, “A legalidade trafda: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961”, apresenta a sociedade 15 © IMAGINARIO TRABALHISTA E verdade que, segundo o relativismo cultural, ou histérico, no enten- der de Clifford Geertz, nao podemos entender adequadamente a imagi- nagao social das sociedades do passado da mesma forma que entendemos a nossa. Partindo deste principio, ha aqueles que, com ceticismo metodoldgico, afirmam a impossibilidade de se entender qualquer coisa do passado. Como Geertz, nao tenho dividas: podemos compreender sim — e de maneira bastante adequada. No entanto, para isto, nao basta olhar por trds das interpretagées intermediarias que nos relacionam com a imaginagao que queremos recuperar e compreender. “E preciso olhar através delas.”? Com esse objetivo, recorri a um tipo de fonte que, na definigéo de Vavy Pacheco Borges, atua no campo cotidiano da cultura, da politica partidaria e do conflito entre grupos e projetos: a imprensa.?” Utilizando os jornais como fonte privilegiada da pesquisa, embora nao a nica, procurei recuperar a cultura e o imagindrio politico dos trabalhis- tas olhando através das interpretagdes daqueles que serviram de interme- didrios entre o meu presente e o passado que estudei. Muitas vezes, e espero que o leitor me acompanhe, reconstituf episddios através dos olhares esensibilidades de repérteres que trabalharam nas ruas das grandes cidades. Em seis cap{tulos, procuro analisar alguns momentos decisivos da his- t6ria do trabalhismo e da prépria politica brasileira. O primeiro, “Quan- do os trabalhadores ‘querem’: politica e cidadania na transigao democratica de 1945”, resgata a participagao polftica dos trabalhadores que, nas ruas, manifestaram sua vontade politica em um movimento de massas ainda muito mal estudado, o queremismo. O segundo, “O ministro que conver- sava: Joao Goulart no Ministério do Trabalho”, reconstitui a ascensa0 politica de Goulart e as manifestagées do movimento sindical no cenario da conservadora politica brasileira. O terceiro, “O carnaval da tristeza: os motins urbanos do 24 de agosto”, apresenta uma multidao de homens e mulheres chocados, sobretudo profundamente magoados e furiosos, diante da noticia do suicidio de Getilio Vargas. O quarto, “Trabalhadores e sol- dados do Brasil: a Frente de Novembro”, recupera a tentativa de golpe da direita e o contragolpe da faccao dominante no Exército, episédio que aproximou os trabalhistas dos militares. O quinto, “A legalidade trafda: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961”, apresenta a sociedade 15 INTRODUGAO brasileira lutando pela manuteng4o da democracia, recusando qualquer alternativa fora da democracia e da legalidade. Por fim, “O dltimo ato: sexta-feira 13 na Central do Brasil”, demonstra 0 processo de radicalizagao das esquerdas que, a partir do comicio, decidiram partir para o embate com os conservadores. Este livro é 0 resultado de uma pesquisa que realizei com 0 apoio de uma bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Agradego 0 auxilio de Alessandra Ciambarella, Marcia Rita Berbet Braga, Lucilia Maria Santiso Diegues e Jayme Licio Fernandes Ribeiro, bolsistas PIBIC-UFF. Cabe lembrar que, embora a pesquisa em histéria seja um trabalho muito solitdrio, ninguém est4 imune, e ainda bem que é assim, ao companheirismo de seus colegas de offcio. Digo isso porque outros his- toriadores, direta ou indiretamente, contribufram em muitas reflexdes aqui presentes. Ao longo desse tempo, e de outros, tive o privilégio de partilhar da convivéncia sempre enriquecedora de Angela de Castro Gomes, Daniel Aarao Reis Filho, Francisco Carlos Teixeira da Silva, Lucilia de Almeida Neves, Maria Helena Capelato, Mariza de Carvalho Soares, Rachel Soihet e Ronaldo Vainfas. A todos, meus agradecimentos sinceros. Por fim, dedico o livro 4 minha filha Tatiana. Notas 1, Hélio da Costa, “Trabalhadores, sindicatos e suas lutas em Sao Paulo (1943-1953)”, in Alexandre Fortes, Antonio Luigi Negro, Fernando Teixeira da Silva, Hélio da Costa, Paulo Fontes. Na luta por direitos, Estudos recentes em Hist6ria Social do Trabalho, Campinas, Editora da Unicamp, 1999, p. 90. 2. John D. French, O ABC dos operdrios. Conflitos e aliangas de classe em Sao Paulo, 1900-1950, Sao Paulo/Sao Caetano do Sul, Hucitec/Prefeitura de Sao Caetano do Sul, 1995, pp. 4-6. 3, Daniel Aarao Reis Filho, “O colapso do colapso do populismo ou A propésito de uma heranga maldita”, in Jorge Ferreira (org.), O populismo e sua historia, Debate € critica, Rio de Janeiro, Civilizagio Brasileira, 2001. 16 © IMAGINARIO TRABALHISTA 4, Maria Celina D’Araujo, “Partidos trabalhistas no Brasil: reflexdes atuais”, in Estu- dos Hist6éricos (6), Rio de Janeiro, Ed. da Fundagao Getulio Vargas, 1990, p. 202. 5. Angela de Castro Gomes e Maria Celina D’Araujo, Getulismo e trabalhismo, Sao Paulo, Atica, 1989, pp. 8-9. 6. Lucilia de Almeida Neves, “Trabalhismo, nacionalismo e desenvolvimentismo: um projeto para o Brasil (1945-1964)”, in Jorge Ferreira, op. cit. 7. A expressio nacional-estatismo foi sugerida por Daniel Aarao Reis Filho. 8. Robert Darnton, O grande massacre de gatos e outros episddios da histéria cultural francesa, Rio de Janeiro; Graal, 1986, p. XVI. 9. Clifford Geertz, O saber local. Novos ensaios em antropologia interpretativa, Petrépolis, Editora Vozes, 1999, pp. 69-70. 10. Vavy Pacheco Borges, Tenentismo e revolugdo brasileira, $40 Paulo, Brasiliense, 1992, p. 92. © IMAGINARIO TRABALHISTA Vasco. O ptblico ouviu-o com desgosto e a opinido unanime é de que aquela pega traduz os profundos ressentimentos de que est4 possufdo o chefe da ditadura, nesse creptisculo do seu governo.”” Os ataques das oposigées veiculados na imprensa desmereciam parti- cularmente a legislagdo trabalhista, sobretudo no tocante a implantagio do sindicalismo controlado pelo Ministério do Trabalho, definida como obra do fascismo. O Jornal, de Assis Chateaubriand, na mesma linha de acusagdes, citou algumas paginas de Mein Kampf, de Adolf Hitler, para comprovar que a organizac4o sindical imposta por Vargas no Brasil tinha origem no nazismo: 0 sindicato, nas duas ditaduras, nada mais se tornou que um instrumento do Estado.’ O Didrio de Noticias, com o titulo “Trabalhismo policial”, assim definiu a legislagao social promulgada na década anterior: “A politica trabalhista do ‘Estado Novo’ consistiu essen- cialmente em duas coisas: em procurar convencer a classe operdria de que as leis sociais eram um presente do ditador, e em controlar policial- mente as atividades dos sindicatos.”® Sabedores de que, entre os traba- Ihadores, as leis sociais promulgadas por Vargas repercutiram de maneira positiva, as oposig6es insistiam em desvincular a imagem presidencial dos “supostos” beneficios que eles teriam recebido com a legislagao trabalhis- ta. Logo no inicio de margo, Carlos Lacerda, em comicio patrocinado pela Unido Nacional dos Estudantes (UNE), no Rio de Janeiro, decla- rou: “A demagogia do Estado Novo pensa haver conquistado 0 apoio do operariado com as suas mistificagdes. Na verdade, a legislacao traba- lhista nao € obra da ditadura, e sim de uma revolugio liberal. E supri- miu todas as liberdades do operariado, reduzindo os sindicatos a simples méquina fascista.”! Ditador, tirano, fascista, demagogo, hipécrita, traidor, mistificador e opressor dos operdrios, entre tantos outros impropérios, assim Vargas passou a ser qualificado pela oposi¢io e na imprensa a partir de fins de fevereiro. Utilizando diversos recursos simbélicos, os jornais manejavam um conjunto de representagdes, um imagindrio, no dizer de Bronislaw Baczko, que, no mesmo movimento em que informava acerca de uma realidade, fazia um apelo a agao." Formulando uma contra-legitimidade fundada nos pressupostos liberais-democraticos, as oposigées, utilizando 23 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... sobretudo a imprensa, questionavam os bens simbdlicos de cardter polfti- co que, até entdo, sustentavam o governo ditatorial de Vargas. A liberdade de manifestagao politica, porém, ndo se restringiu ape- nas as pAginas dos jornais, mas invadiu as ruas. Os comicios da frente oposicionista e, sobretudo, as manifestagdes da UNE pela democratiza- ¢4o do pais e pela anistia tornavam-se cada vez mais agressivas, particu- larmente quando o nome de Vargas era pronunciado. Objeto de célerae de rancores das “oposigées coligadas”, os insultos, as ofensas e as agres- s6es tornaram-se comuns, praticamente uma norma, na linguagem viru- lenta de estudantes e liberais, unidos pelo mais profundo sentimento antigetulista. Menos de dez dias apés a entrevista de José Américo, estudantes uni- versitarios filiados ao Centro Académico Onze de Agosto promoveram um comicio na Praca da Sé, na cidade de Sao Paulo. As faixas e cartazes pregavam “Liberdade de palavra”, “Anistia aos presos politicos”, “Nunca se poderd enganar toda a multidao todo o tempo” e “Fora o getulismo”. Os oradores, com veeméncia, davam vivas 4 democracia e pediam a mor- te do Estado Novo e do ditador. Apés ofender e insultar Vargas com linguagem contundente, Rui Nazareth, presidente do Centro Académico, declarou: “Trabalhadores e estudantes de Sao Paulo, avante! Pela Demo- cracia!”'2 No entanto, para grande surpresa dos manifestantes, centenas de pessoas, de aparéncia humilde, mas profundamente indignadas, che- garam na praca e, batendo em panelas, comegaram a vaiar os jovens uni- versitarios. Sem se intimidar, o orador lembrou a derrota do integralismo naquele mesmo local e, com coragem, aumentou o tom dos ataques a Gerilio Vargas. Os trabalhadores, ainda mais revoltados, bateram mais forte nas panelas e, aos gritos, exclamaram: “Abaixo o PR.P!”, “Viva os trabalhadores!” e, surpreendentemente, “Nés queremos Getilio!”. Sem condigées de continuarem o comicio, os estudantes, desalentados, se dis- persaram, e a multiddo, com suas panelas, apoderou-se da praga. Dias depois, em Belo Horizonte, novos incidentes ocorreram. Ao pre- senciarem estudantes ofendendo Vargas, populares acabaram com 0 co- micio e tentaram, por quatro vezes, embora sem conseguir, invadir e depredar a sede de O Estado de Minas, jornal do grupo Didrios Associa- 24 © IMAGINARIO TRABALHISTA dos, cuja linha editorial era de ataques sisteméticos ao presidente. Insatis- feitos, os trabalhadores dirigiram-se para a Avenida Afonso Pena e, aos gritos de “Getilio!, Getilio!, Getilio!”, ameagaram destruir 0 comité elei- toral de Eduardo Gomes. Na Rua S4o Paulo, atacaram a Radio Mineira, também do grupo Associados.'8 Na imprensa, aqueles incidentes foram explicados de maneira muito simples. Em Sao Paulo, garantiu O Jornal, um grupo de “arruaceiros”, “perturbadores”, “desordeiros” e “agentes provocadores”, armados com pedagos de pau, teriam impedido uma manifestagdo estudantil cfvica e ordeira. Depois, os “selvagens” invadiram bares das redondezas exigindo bebidas. Em Belo Horizonte, “exaltados” e “arruaceiros”, na maioria li- xeiros da Prefeitura orientados por individuos em atitude suspeita, pro- vocaram todo tipo de desordens. Entre fins de fevereiro de 1945, quando José Américo de Almeida rompeu 0 cerco da censura, e 29 de outubro, com a deposigao de Vargas, a sociedade brasileira, em pleno processo de democratizacao politica e mobilizada em dois campos antagénicos, assistiu e participou de um movi- mento de massa, de proporgées grandiosas, conhecido como queremismo, “Presenga de ineg4vel importAncia na Histéria Politica contemporanea de nosso pais”, diz Arnaldo Spindel, “a mobilizagdo queremista de 1945 ain- da nao mereceu a andlise aprofundada a qual faz jus”.'* Em termos gerais, as andlises sobre a transigao democratica de 1945 centram suas preocu- pages nos comportamentos de grandes liderangas, como Vargas, Prestes, Eduardo Gomes, entre outras, e em instituigdes, a exemplo das Forgas Armadas e dos partidos politicos, e nao tanto em compreender as motiva- g6es de milhdes de pessoas que foram As ruas defender a continuidade do presidente no poder.'’ Sobretudo, grande parte dos textos ainda nao ob- servou, e particularmente n4o valorizou, que a atuag4o e a intervengao dos trabalhadores, determinados e com vontade politica, impediram que atransigéo 4 democracia ficasse restrita a uma negociagao, pactuada pelo alto, entre as elites. O objetivo, aqui, é compreender as idéias, anseios, crengas e tradigdes politicas que, manifestadas com vigor por trabalhadores, assalariados e pessoas que se definiam como “pobres” ou “comuns”, entre fevereiro e 25 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... outubro de 1945, assentaram, a partir daf, uma maneira de acreditar, se definir e se comportar politicamente no Brasil. Mobilizagao somente comparada, em periodo anterior, 4 da Alianga Nacional Libertadora, e, décadas depois, 4 das “diretas j4”, o queremismo apresenta ao estudioso algo que, na tradig4o intelectual de liberais ou das esquerdas, soa como estranho: cai a ditadura do Estado’ Novo, mas cresce 0 prestigio do ditador; vislumbra-se o regime democratico e, no entanto, os trabalhadores exigem a permanéncia de Vargas no poder. Populismo, efeitos das habeis técnicas de propaganda politica, mistifi- cacao ideolégica, manipulagao de massas, consciéncias desvirtuadas de seus “reais” interesses, nenhuma dessas explicagdes, atualmente, conven- ce o estudioso. Os historiadores etnogr4ficos, ha bastante tempo, nos ensinam que se a cultura erudita tem o objetivo de subjugar os povos, nao ha por que acreditar que “estes foram real, total e universalmente subme- tidos”. Para Roger Chartier, “é preciso, ao contrario, postular que existe um espago entre a norma € 0 vivido, entre a injungio e a pratica, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espaco onde podem insinuar-se reformulagées e deturpagées”.'° O queremismo, antes de ser apressada- mente interpretado como a vitéria final de um suposto condicionamento homogeneizador da midia do Estado Novo, expressou uma cultura polf- tica popular e a manifestacao de uma identidade coletiva dos trabalhado- res, resultados de experiéncias vividas e partilhadas entre eles, ao mesmo tempo polfticas, econdmicas e culturais, antes e durante o primeiro go- verno de Vargas. Muitas vozes, resgatadas daquele passado, surgirao dizendo-nos mui- tas coisas. As narrativas que se repetem, as express6es partilhadas e os comportamentos comuns sero tratados aqui como “textos”, no sentido dado por Clifford Geertz. Atencioso aos significados, o estudioso das manifestagdes populares pode, por sobre os ombros daqueles que “escre- veram”, “ler” os seus “textos”. “As sociedades, como as vidas”, diz 0 an- tropélogo norte-americano, “contém suas préprias interpretagées. £ preciso apenas descobrir 0 acesso a elas”.'7 Mas também, e sobretudo, querer ouvi-las, 26 © IMAGINARIO TRABALHISTA UMA VOZ DESTOANTE (?): “NOS QUEREMOS GETULIO” Em 6 de abril de 1945, as “oposig6es coligadas” realizaram no prédio da Escola Nacional de Masica, na cidade do Recife, o langamento da campa- nha pela anistia dos presos politicos, intitulado “noitada democrAtica”. Apés uma série de discursos exaltando a democratizagao do pais e insul- tando Gettilio Vargas e seu regime, os participantes, euféricos, comemo- raram com “vivas” & anistia, 4 democracia, a liberdade, as eleigdes livres, ao brigadeiro Eduardo Gomes, entre diversas outras palavras de ordem. Nesse mesmo momento, porém, Nelson Pinto, um jovem negro, pa- deiro por profissio, passava pela porta da Escola de Musica. Curioso com tantos “vivas”, Nelson entrou no prédio e, percebendo que se tra- tava de uma manifestago politica, novidade para ele, nao se conteve e gritou: “Viva Getilio Vargas!” Um estudante, indignado e furioso, agre- diu violentamente Nelson. Sem nada entender e cafdo no chao, o jovem padeiro ainda recebeu varios golpes de diversos outros estudantes. Ator- doado e confuso, ele foi arrastado até a janela e jogado do primeiro andar do prédio. Muito machucado, Nelson foi medicado no pronto- socorro local. O Ministério do Trabalho imediatamente interveio no episédio. Um representante do Ministério responsabilizou-se pelo rapaz, exigindo que a enfermeira prestasse todo o atendimento necess4rio e o medicasse, in- clusive, com penicilina — novidade para a época. Alguns dias depois, recuperado das agressées, o funciondrio do Ministério 0 colocou em um avido: Nelson seria recebido pessoalmente por Getilio Vargas no Palacio do Catete diante de dezenas de jornalistas. Ao perceber o interesse do presidente da Republica pelo seu drama, Nelson, emocionado, relatou o incidente em minticias. Vargas, apds ouvi-lo com atengao, concluiu para os repérteres: “A isso, eles chamam democracia.”'* Oepisédio, ainda que tragico, permitiu que Nelson safsse da obscuri- dade prépria das pessoas comuns e se tornasse objeto de disputa entre grupos politicos poderosos. A imprensa oposicionista, majoritaria no pais, tinha dificuldades em lidar com populares simpAticos a Vargas e nas suas paginas as imagens se repetiam: Nelson, descrito como um “bébado”, 27 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM™: POLITICA E CIDADANIA... “arruaceiro” e “provocador”, teria praticado violéncias em uma manifes- tag4o pacffica. Para O Radical, um pequeno e possivelmente 0 tinico jor- nal na capital da Republica que apoiava o governo, Nelson, ao contrario, surgia como um brasileiro humilde, mas honrado, que queria apenas ex- pressar sua preferéncia politica. Desordeiros, provocadores, arruaceiros, bébados, exaltados, violentos, selvagens, entre outros qualificativos, era dificil para os grupos sociais culturalmente eruditos compreender as raz6es para o inconformismo e definir os comportamentos de indignacao de populares que se insurgiam contra os que ofendiam Gettlio Vargas. Sobretudo, nos limites da inter- pretagao liberal, nao havia instrumentos para nomear aquela gente. Con- tudo, era necessdrio um esforgo intelectual para explicar um problema que, por mais constrangedor que fosse, estava nas ruas: quando 0 pats finalmente se liberta de uma ditadura e a sociedade, até entao subjugada a um Estado autoritario, vislumbra as liberdades polfticas sufocadas desde 1937, os trabalhadores se insurgem contra os liberais defensores da de- mocracia e, pior, gritam “queremos Gettlio”. Um jornalista tentou enfrentar a questao."* Inicialmente, alegou, é preciso evitar explicagées que sustentam a maldade inerente A natureza humana ou, seu oposto, a partir da leitura rousseauniana. O que importa, em seu argumento, é que as “ag6es mds devem ser suprimidas para impe- dir-se a sua repetigao”. Assim, a presenga de arruaceiros que tentam im- pedir manifestagdes pela democracia tem origem, fundamentalmente, na presenga, no Brasil, de uma “atitude mental obscurantista” oriunda da importagao da ideologia nazista. Tais idéias, perniciosas, mas ainda vivas na sociedade brasileira, perturbam a ordem, impedem encontros polfti- cos legitimos e repelem a marcha para as liberdades democraticas. Por- tanto, conclui o autor, é preciso eliminar estas “forgas do mal que, esmagadas na Alemanha nazista, ainda procuram defender posigdes que nao podem defender pelas armas”. Para as forgas liberais e antigetulistas havia, sem divida, uma grande dificuldade, incapacidade mesmo, para compreender e assimilar manifestagdes populares de defesa do ditador, embora nao deixassem de refletir e de produzir discursos sobre aqueles episédios. Mas é nas épocas de crise de um poder, diz Baczko, que “se 28 © IMAGINARIO TRABALHISTA intensifica a produg’o de imagindrios sociais concorrentes e antagonis- tas”, em que as representagdes de uma nova legitimidade ganham difusaio e, muitas vezes, agressividade.” Entre a influéncia do nazismo e a atuagio de embriagados, entre a mentalidade obscurantista e o comportamento préprio de arruaceiros, assim a oposi¢ao liberal esforgava-se para dar conta dos conflitos que surgiam. Portanto, a explicagio liberal, em seu limite, denunciava a aplicagao, nos anos do Estado Novo, das técnicas de propa- ganda politica de massa pelo DIP, importadas da Alemanha nazista, sobre uma populagao pobre, analfabeta e ignorante, permitindo que, no ocaso da ditadura, surgissem tais constrangimentos. Reprimir as manifestagdes a favor de Getilio, assim, era a safda legitima para o problema. No entanto, alguns indfcios para compreender a indignagao popular, manifestada sempre que Vargas era ofendido publicamente, estavam A disposigao da sociedade brasileira naquele momento. Em fins de abril, a Federagao dos Empregados no Comércio do Rio de Janeiro publicou uma nota nos jornais convocando seus filiados a comparecerem nas comemo- ragdes do Dia do Trabalho, no estadio de S40 Januario. Para os sindicalis- tas, os trabalhadores nao poderiam se ausentar do evento, “a nossa maior festa trabalhista”. Agora que o exterminio final do nazifascismo europeu se aproxima, alegam no texto, € preciso que “nos reunamos numa gran- diosa manifestag4o de solidariedade e de coesao, de confianga e respeito aos nossos direitos, de aprimoramento de nosso patriménio, que é a le- gislagao do Trabalho”. Sobretudo porque, no 1° de maio, o proletariado iria “comprovar nossa uniao em torno dos ideais trabalhistas, nosso reco- nhecimento e nossa amizade ao grande estadista que concretizou nossas aspiragGes, nossa confianga no futuro da Patria e a certeza de que a legis- lagao do trabalho é patriménio valioso e intoc4vel, nao sé dos trabalha- dores como de todo o Brasil”.2# Também em abril, O Radical, defensor solitdrio da candidatura de Eurico Dutra, advertia sobre a campanha desencadeada pela grande im- prensa de Sao Paulo e do Rio de Janeiro contra a legislacao trabalhista, cujo objetivo era, simplesmente, aboli-la. A freguesia desses jornais, de- nunciou O Radical, é aquela que 0 povo designa de “gra-finos”, abando- nando o proletariado a prépria sorte, embora saibamos que “dar express3o 29 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM™”: POLITICA E CIDADANIA... aos interesses dos ricos é sempre mais confort4vel e mais remunerado”. Assim, concluiu o editorial, “a legislagao trabalhista é obra do presidente Vargas” e nao passa de atitude ridicula e de md-fé a “oposig4o pseudo- democrética” transformar “um velho assalariado do capitalismo interna- cional” — Eduardo Gomes — “em patrono do operariado”.” Nos textos dos sindicalistas, da pequena imprensa- que apoiava 0 go- verno e, como veremos mais adiante, nas falas dos préprios trabalhado- res havia o temor de que, com a safda de Vargas da presidéncia, os beneficios da legislagao social fossem suprimidos, como também suspei- tas e desconfiangas sobre o grupo politico que se preparava para assumir o poder. Para Spindel, a frase “queremos Gettlio” expressava o receio de que a democratizago, sem o controle de Vargas, ameagasse os princfpios que fundamentavam a cidadania social alcangada pelos trabalhadores desde 1930.4 O conjunto de leis de protegao ao trabalho, definido pelos assala- riados, no infcio de 1945, de “trabalhismo” ou “getulismo” — nesse mo- mento as expressdes eram intercambidveis —, tinha que ser defendido. Os ataques a Vargas significavam, na cultura politica popular, grande pe- rigo para aqueles que, desde o inicio dos anos 1930, se beneficiavam da legislacao. Para a grande surpresa das oposi¢ées, os trabalhadores safram as ruas na luta por demandas politicas e nao, como seria o esperado, por reivin- dicagées econémicas. A politica do “esforgo de guerra”, com a suspensao temporaria de alguns beneffcios da legislac4o trabalhista, e a inflagao que corroera os saldrios resultaram em um empobrecimento dos assalariados. A pauperizagao obrigou o governo, por exemplo, a estabelecer tarifas especiais nas barcas Rio-Niteréi para os trabalhadores que andavam des- calgos. Contudo, diz Elza Borghi de Almeida Cabral, foi este mesmo povo empobrecido que saiu as ruas exigindo a permanéncia de Vargas. Para a autora, “nao se pode atribuir o apoio inconteste das massas 4 sua ignorancia ou 4 forca da propaganda de seu mito, como o fazia o pensamento libe- ral”.24 Ao contrario do que pregavam as oposig6es, os beneffcios sociais nao foram poucos. E muito dificil, hoje, imaginar um mundo sem um conjunto de leis sociais que resguardem os direitos dos trabalhadores. Este mundo, no 30 QUANDO OS TRABALHADORES "QUEREM™: POLITICA E CIDADANIA... aos interesses dos ricos é sempre mais confortavel e mais remunerado”. Assim, concluiu o editorial, “a legislagio trabalhista € obra do presidente Vargas” e nao passa de atitude ridicula e de m4-fé a “oposigao pseudo- democrAtica” transformar “um velho assalariado do capitalismo interna- cional” — Eduardo Gomes — “em patrono do operariado”.# Nos textos dos sindicalistas, da pequena imprensa-que apoiava 0 go- verno e, como veremos mais adiante, nas falas dos préprios trabalhado- res havia o temor de que, com a saida de Vargas da presidéncia, os beneffcios da legislacdo social fossem suprimidos, como também suspei- tas e desconfiangas sobre o grupo politico que se preparava para assumir o poder. Para Spindel, a frase “queremos Getilio” expressava 0 receio de que a democratizag4o, sem o controle de Vargas, ameagasse os principios que fundamentavam a cidadania social alcangada pelos trabalhadores desde 1930. O conjunto de leis de protegio ao trabalho, definido pelos assala- tiados, no inicio de 1945, de “trabalhismo” ou “getulismo” — nesse mo- mento as expressdes eram intercambiaveis —, tinha que ser defendido. Os ataques a Vargas significavam, na cultura politica popular, grande pe- rigo para aqueles que, desde o inicio dos anos 1930, se beneficiavam da legislagao. Para a grande surpresa das oposig6es, os trabalhadores safram as ruas na luta por demandas polfticas e nao, como seria o esperado, por reivin- dicagdes econémicas. A politica do “esforgo de guerra”, com a suspensao tempor4ria de alguns beneffcios da legislagdo trabalhista, e a inflagao que corroera os salérios resultaram em um empobrecimento dos assalariados. A pauperizacao obrigou o governo, por exemplo, a estabelecer tarifas especiais nas barcas Rio-Niteréi para os trabalhadores que andavam des- calgos. Contudo, diz Elza Borghi de Almeida Cabral, foi este mesmo povo empobrecido que saiu 4s ruas exigindo a permanéncia de Vargas. Para a autora, “nao se pode atribuir o apoio inconteste das massas a sua ignorAncia ou a forca da propaganda de seu mito, como o fazia o pensamento libe- ral”.2* Ao contrario do que pregavam as oposigées, os beneffcios sociais nao foram poucos. E muito diffcil, hoje, imaginar um mundo sem um conjunto de leis sociais que resguardem os direitos dos trabalhadores. Este mundo, no 30 © IMAGINARIO TRABALHISTA entanto, j4 existiu — e aqueles que pediam a continuidade de Vargas o conheceram. No caso brasileiro, entre 1931 e 1934, em apenas quatro anos portanto, toda a legislag4o trabalhista, a exceg4o do salério minimo, foi promulgada: limitagao da jornada de trabalho, regulamentacao do trabalho feminino e infantil, horas extras, férias, repouso semanal remu- nerado, pensdes e aposentadorias, entre diversos outros beneficios. Mas nao bastava legislar. Era preciso obrigar o empresariado a cumprir as leis. Dafa criagio da Justica do Trabalho. O impacto das leis sociais entre os assalariados nao pode ser minimizado. Sem alguma repercussdo em suas vivéncias, o governo Vargas no teria alcangado o prestigio que obteve entre os trabalhadores, mesmo com a avassaladora divulgagao de sua ima- gem patrocinada pelo DIP. Como defendi em trabalho anterior, o “mito” Vargas nao foi criado simplesmente na esteira da vasta propaganda polfti- ca, ideolégica e doutrinaria veiculada pelo Estado. Nao ha propaganda, por mais elaborada, sofisticada e massificante, que sustente uma persona- lidade publica por tantas décadas sem realizag6es que beneficiem, em ter- mos materiais e simbélicos, o cotidiano da sociedade. O “mito” Vargas — € 0 movimento que decorre dele, o queremismo — expressava um con- junto de experiéncias que, longe de se basear em promessas irrealizdveis, fundamentadas tao-somente em imagens e discursos vazios, alterou a vida dos trabalhadores. Se em fins de fevereiro e em margo a populac&o apenas revidava as agressdes nos comicios da oposig4o, indignada com as ofensas a Vargas, em abril 0 conflito comegou a assumir contornos mais nitidos, sobretudo no campo das idéias, e um novo personagem surgiu no cenario politico brasileiro: os trabalhadores. A partir de abril, a transigao democratica nao ficaria mais restrita aos interesses das elites polfticas, governistas ou de oposigao, mas a presenga e a intervencao dos trabalhadores teriam que ser consideradas — ainda que, nesse momento, eles tivessem que apren- der, mesmo que As pressas, a participar do jogo politico. E em abril que surgem pela primeira vez na imprensa as expressdes “queremos”, “nds queremos” ou ainda “nds queremos Getilio”. No més seguinte, o movimento, de base popular, ainda sem diregio e organizacao centralizada, e cujo nico idedrio politico era a continuidade de Vargas 31 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM™: POLITICA E CIDADANIA.. no poder, espalhou-se por todo o pafs e, como que reagindo ao objetivo comum que unia as oposigdes — “Fora Getilio” — pregavam, tao- somente, “Queremos Gettilio”. Embora resistissem, os jornais nao mais podiam omitir o movimento. No interior do Estado da Bahia, um repér- ter, fingindo-se de cabo eleitoral, perguntou a um grupo de pessoas: “ — Posso contar com 0 seu voto, nao é? Todos respondem sorridentes: — Se Deus quiser, pode contar, mas somente se for para votar no dr. Getilio, em outro nao.” Qs jornais, no entanto, noticiavam o queremismo de uma maneira muito peculiar. Em Natal, diz o Correio da Manha, liam-se por toda parte pichagdes nos muros e paredes com frases “Queremos Getilio” e “Viva o presidente Getilio Vargas”. No entanto, sugerindo a interferéncia, a ma- nipulagao e o financiamento governamental, completou: “Liam-se em grandes letras bonitas, pintadas de tinta azul, 4s vezes numa altura que demonstrava que os pintores necessitaram de uma escada.” A bela cali- grafia, a cor da tinta e o uso de escadas, portanto, denunciavam a inter- vengio estatal, insinuava o texto. Na grande imprensa, invariavelmente as noticias sobre o queremismo surgiam com mensagens de suspeita, com. ironias e, mesmo, com franca mé vontade: “A Paraiba era um dos raros estados por onde a praga do curuqueré do ‘queremismo’ ainda se nao havia alastrado, foi afinal invadida pelo mal.” Segundo o mesmo jornal, o “queremos Getilio” teria sido uma criagao artificial e sem substancia do Ministério da Fazenda, do DASP e da Associagao dos Servidores Civis do Brasil, cujos funciondrios, sem alternativas, eram obrigados a descontar um percentual de seus saldrios e a comparecer nas manifestag6es “espon- taneas” do queremismo. Embora equivocados quanto 4s instituigdes estatais que apoiavam o queremismo, os jornais revelavam episédios que, Aquela altura, era dificil esconder: 0 apoio que o movimento recebia do DIP e, sobretudo, de um 6rgao do Ministério do Trabalho, o Departamento Nacional do Traba- lho, na pessoa de seu diretor e fundador do PTB, Segadas Viana. Apoio habil e particularmente cauteloso, afirma Lucflia de Almeida Neves, os vinculos nao poderiam ser, e sobretudo parecer, explicitados. “A conjun- tura”, diz a autora, “jé era por demais desfavoravel a Vargas, e demons- 32 © IMAGINARIO TRABALHISTA trar a participagao da mdquina estatal em campanhas de sustentagio de sua imagem, para respaldar um projeto continuista, poderia acabar por se tornar mais um argumento nas m4os da oposi¢ao.”2” Com o discreto apoio oficial, o queremismo também recebeu o supor- te, sobretudo financeiro, de empresdrios favoraveis a Vargas. O ministro da Fazenda, Souza Costa, seguindo orientag4o presidential, realizou al- guns contatos com homens de negécios, em busca de dinheiro e amparo politico. Hugo Borghi, empresdrio que enriqueceu com o comércio do algodao, foi um deles, ouvindo o seguinte apelo do ministro: “Nés estamos no governo hd tantos anos e n4o temos um tost4o, nem elementos para defender o governo contra a oposigao. Nao temos recursos, nao temos nada.”* Em vez de dinheiro, Borghi, getulista convicto, comprou trés estagdes de radio e, mais tarde, alugou outras. Como os préprios homens do governo nfo rebatiam as crfticas dos oposicionistas, Borghi, indigna- do, comegou a escrever textos em defesa de Vargas que eram lidos por locutores e, alguns dias mais tarde, ele mesmo tomou a voz aos microfo- nes. Quando os queremistas o ouviram pelas radios, imediatamente pro- curaram o empresdrio: “Eu tinha dinheiro”, afirmou anos mais tarde, “e na mesma hora comecei a ajudar 0 movimento queremista — aluguei uma porgao de caminhdes, comprei caminhdes, lotei alto-falantes nos caminhées... E a coisa queremista foi-se propagando pelo Brasil inteiro.” Mas 0 queremismo nio foi simples criagéo do Ministério do Trabalho com 0 suporte do dinheiro privado, como pregava a oposigao. Sem a vontade politica dos trabalhadores e a presenga popular nas ruas, 0 apoio oficial e empresarial seria inécuo e condenado ao fracasso. O préprio Hugo Borghi avalia que existia um clima polftico de luta de classes no pais: “A UDN conseguiu unir a direita e a extrema-direita. Todos os jor- nais e radios atacavam o Getilio frontalmente, mas esqueciam que esta- vam atacando a obra trabalhista do Getulio. E havia nitidamente uma luta de classes travada. Eu sentia aquilo.” Seja como for, os conflitos nos comicios da oposig4o, j4 rotineiros, aumentavam de intensidade. Nas capitais e em muitos municfpios do in- terior, as ruas amanheciam pichadas exaltando Vargas ou exigindo sua continuidade no poder. Embora sem nenhuma divulgagio oficial e com 33 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... acesso muito restrito aos meios de comunicagao, a frase “queremos Getilio”, em maio, apoderou-se das crengas e das sensibilidades politicas populares. Nas propagandas comerciais, diz Elza Borghi de Almeida Cabral, eram comuns slogans como “Nés queremos vender barato!” ou “Nos queremos Beverly!”. Dos centros espiritas, nos afastados suburbios, vinham noticias de que D. Pedro I e Pinheiro Machado, materializados, pediam, igualmente, que Vargas permanecesse na presidéncia da Republi- ca. © BRIGADEIRO E SEU PARTIDO O grande movimento de oposi¢ao, no entanto, surgiu oficialmente em 7 de abril de 1945. Com o nome de Unido Democratica Nacional (UDN), o partido, nesse momento, abrigava diversos grupos politicos heterogéneos, nem sempre afinados ideologicamente, mas unidos pelo mesmo rancor a Vargas. Aglutinando nomes como os de Arthur Bernardes, Julio Prestes, Borges de Medeiros, Prado Kelly, Otavio Mangabeira, Oswaldo Aranha, Ademar de Barros, Graciliano Ramos, Evaristo de Morais Filho, Isidoro Dias Lopes, a familia Caiado, entre tantos outros, além de ter 0 apoio da Esquerda Democratica e de comunistas dissidentes da linha oficial do PCB,*° todos, no entanto, tinham os mesmos anseios politicos: além do fim do Estado Novo e da luta pela democratizagao do pafs, nutriam um combate sem tréguas a Vargas. Mais ainda, unia-os a candidatura do bri- gadeiro Eduardo Gomes para suceder o ditador. Para todos os grupos que compunham as “oposigdes coligadas”, diz Maria Victoria Benevides, o nome do brigadeiro era ideal para a campanha sucesséria: alta patente militar, legenda de her6i, tradig&o em lutas democraticas e um “nome limpo”.*" Partido que resumia o horror a Vargas, a UDN tornou-se tam- bém, nesse momento da vida politica brasileira, o “partido do brigadeiro”. Na imprensa, nos meios intelectuais, entre as elites politicas e em- presariais, Eduardo Gomes recebia apoio entusiasmado. Manuel Ban- deira, por exemplo, escreveu 0 seguinte poema, publicado nas paginas dos jornais: 34 © IMAGINARIO TRABALHISTA “Homem mesmo escandaloso! Nao tem mancha, Nao tem medo, Quem nao sente? Brigadeiro da fitiza, Sem agacho, sem empino, Foi assim desde tenente, Foi assim desde menino! Homem mesmo escandaloso! Nao € bruto, Ambicioso, Maldizente, Nunca diz um disparate, Nunca faz um desatino, Foi assim desde tenente, Foi assim desde menino! Homem mesmo escandaloso! N&o zunzuna, Nem na fala Atoamente Serd nosso presidente Estava no seu destino Desde que ele era tenente, Desde que ele era menino!”3? Seus comfcios, como candidato a presidéncia, eram noticiados nas primeiras paginas dos jornais com grande destaque e eloqiiéncia: “Quem conhece Alagoas sabe o que representam as forcas que apdiam Eduardo Gomes”; “Esperado com maior interesse o discurso do candidato demo- cratico, na concentrag4o popular em Sao Paulo”; “Belo Horizonte prepa- ra-se para receber o candidato nacional”; “O povo de Goids consagrou a candidatura de Eduardo Gomes”; “Vitéria e Cachoeiro do Itapemirim receberam Eduardo Gomes com manifestagdes consagradoras”; “Verda- 35 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM”: POLITICA E CIDADANIA... deira apoteose a manifestag4o ao Brigadeiro, em Porto Alegre”; “Incalcu- lavel multidao assegurou em Recife a candidatura de Eduardo Gomes”; “Eduardo Gomes foi consagrado em Fortaleza pela maior concentragao popular ja realizada”.» Os espagos politicos de destaque, nas paginas da grande imprensa, eram reservados 4 campanha do candidato da oposigab. A imagem proje- tada, plena de otimismo e entusiasmo, era a da vitéria certa e inequivoca do brigadeiro. O candidato do Partido Social Democratico (PSD), general Eurico Gaspar Dutra, por sua vez, surgia em pequenas notas, cercadas por outras noticias, sugerindo ao leitor uma candidatura sem maior im- portancia e fracassada, com mensagens de desalento, inviabilidade politi- ca e, sobretudo, envolvida pelo estigma condendvel do continuismo. Os textos, negativos e sem brilho, se sucediam: “O general Dutra serd o can- didato e continuador do atual governo”; “Debilita-se a candidatura Dutra pelas divergéncias no governo de Sao Paulo”; “Fracasso na convengao governista. Poucas dezenas de pessoas na reuniao do PSD de Curitiba”.* Em sua primeira p4gina, 0 Correio da Manhd noticiou: “Um fracasso a Convengao do Partido Social Democratico em Sao Paulo”. Segundo o jornal, o encontro politico “transcorreu na maior tristeza. Notava-se, por exemplo, a falta de muita gente que 14 deveria ter comparecido em pessoa e, no entanto, se fez representar. E também o general Dutra la nao apare- ceu”.** Imposta por grupos militares e empresariais, a candidatura de Eurico Dutra dependia do apoio explicito do presidente, o que nao ocor- ria, Vargas a aceitava para dividir as Forcas Armadas, mas nao lhe mani- festava apoio pessoal e polftico. Nenhuma palavra a seu favor era pronunciada publicamente. Ansioso pela definigdo do presidente, sempre adiada, Dutra convenceu-se de que seu verdadeiro embate nao seria com o brigadeiro, mas com o préprio Vargas.** Seja como for, a marca dos comicios da UDN, nas capitais e mais importantes cidades do pais, era a agressividade dos oradores contra Ge- tilio Vargas, sempre em tom crescente. Em Barbacena, logo apés o dis- curso do brigadeiro, o padre Antonio Dutra iniciou sua intervengio exclamando “chega de Getilio!”3” Em seu argumento, antes de 1930, se ouvia dizer que a moral se dividia em privada e publica, mas, naquele 36 © IMAGINARIO TRABALHISTA momento, s6 existia a primeira porque Getilio acabara com a ultima. Mais ainda, argumentou o padre, 15 anos de ditadura transformaram 45 milhdes de seres humanos em “gado anénimo”. Portanto, do alto de sua autoridade eclesidstica, concluiu: “Concito o povo reunido em praga pt- blica a tudo fazer para por termo a esse tremendo pecado paiblico que éo governo de Vargas.” Embora os discursos do brigadeiro, escritos por Prado Kelly e reple- tos de citagdes histéricas e jurfdicas, fossem absolutamente incompreen- siveis para os trabalhadores,** seus comicios eram noticiados com grande antecedéncia pela imprensa. Recorrendo a imagens que sugeriam entusias- mo e mobilizagéo popular pela candidatura da UDN, as manchetes pro- curavam convencer o publico da vitéria certa, praticamente inevitavel, da oposigao. O comicio na cidade de Sao Paulo € ilustrativo. Marcado para 16 de junho, j4 no dia 5, o Correio da Manha, sempre na primeira pagina, informava que, na capital e no interior do estado, notava-se “vivo entusias- mo” e “expectativa do povo que demonstra por todos os meios sua sim- patia ao brigadeiro”. Nesse dia, o jornal calculava que 100 mil pessoas compareceriam no estddio do Pacaembu.*? No dia 16, o mesmo jornal publicou que os organizadores esperavam a participacao de 150 mil pes- soas. Na manhi seguinte, noticiando o encontro, o Correio da Manhd, sem citar nimeros, referiu-se 4 “apoteose da entrada no estddio do Pacaembu do major-brigadeiro” que recebeu entusiasmados aplausos. “Senhoritas de todas as classes sociais, enpunhando bandeiras, percorre- ram 0 estadio sob aclamagao.” Por mais que se esforgasse em apresentar uma candidatura vitoriosa e carismatica, a imprensa disseminava mensa- gens que destoavam dos acontecimentos. Hermes Lima, presente no Pacaembu, lamentou: “Ao entrar no estddio fiquei aterrado. Repletas as sociais de um publico seleto, elegante mesmo, em que se destacava nume- roso concurso de senhoras, de chapéu e calgando luvas, mas as gerais vazias. Era um espetaculo politicamente constrangedor, a enorme praca de esportes, metade morta, metade bem composta, até nas palmas com que saudou 0 candidato e lhe aplaudiu o discurso.” Segundo Maria Victoria Benevides, a campanha da UDN mobilizou as camadas médias, os intelec- tuais, os oficiais das Forgas Armadas, “mas nao os trabalhadores; este 37 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA.. povo permaneceu a parte da campanha feita, pelo menos teoricamente, em seu nome”.*? Os trabalhadores, quando se manifestavam, por sua pr6- pria vontade, queriam Getilio. © “NOS QUEREMOS” EM SEGUNDO MOVIMENTO Noite de 31 de julho, centro da cidade do Rio de Janeiro. Em “um prédio velho, sujo, sombrio, e com entrada misteriosa, por um beco de mau as- pecto”, pessoas se retinem para um encontro. Na sala pequena, “escura e acanhada, tudo foi preparado para dar idéia de uma grande sessio”. Na assisténcia, o indio Lirio do Vale, cacique dos tembés e “pai de santo” nos subtrbios, distribui “passes” e “bons fluidos” para o bom andamento do encontro. Com imagens negativas e irdnicas, assim os jornais noticiaram o langamento do Comité Pr6-Candidatura Getilio Vargas do Distrito Federal." Ao descreverem a fundagdo do comité, a imprensa recorreu a um con- junto de representagdes que, ao longo dos séculos XIX e XX, segundo Raoul Girardet, obsedia o imagindrio polftico ocidental: os homens do compl6é. Agindo na noite e nas sombras, movimentando-se por dreas ur- banas suspeitas, como becos, entradas misteriosas, lugares mal-ilumina- dos e de aspecto repugnante, conjugados, nesse caso, a cultos ao sobrenatural, eles tem objetivos definidos: urdir complés, conluios e tra- mas nunca confessadas. Trata-se, no dizer de Girardet, de profissionais no manejo da corrupgio, do aviltamento dos costumes, da desagregacao das tradigdes sociais e dos valores morais*? — tudo, alids, o que Vargas representava para a oposi¢ao. A maior prova de que aqueles homens e sua reuniao deveriam ser tratados com suspeita, portanto, era que eles “queriam Getilio”. Fundado e liderado por Jaime Boavista, o comité tinha por objetivos organizar, unificar e dar direg4o ideolégica a centenas de outros nticleos que j4 existiam em inumeras cidades do pais. Em seu discurso de abertura da solenidade, Boavista, entao recém-chegado do Rio Grande do Sul, onde acabara de fundar o comité gaticho, disse nao ter relagdes pessoais com 38 O IMAGINARIO TRABALHISTA Vargas, conhecendo-o apenas por fotografias, mas “neste momento em que se chocam forgas populares e reaciondrias” e quando seu nome é “apoiado pelo povo anénimo, queremos dar-lhe a oportunidade de sen- tir-se realmente apoiado pelas correntes populares”. A seguir, Aristides Saldanha ressaltou o distanciamento dos queremistas da candidatura de Eurico Dutra: “O povo”, alegou, “nao foi consultado”. Logo, nao ha ra- z6es para apoia-lo, ainda mais porque se sabe que os adeptos do candida- to do PSD também sao queremistas, embora no declarados. Lembrando o recente discurso de Vargas na cidade de Santos, quando o presidente garantiu que o povo teria total liberdade de votar no candidato de sua preferéncia, Saldanha concluiu: “Pois bem, senhores queremistas, a na- ¢40 aceita os conselhos do presidente: sagrard nas urnas 0 candidato de sua preferénicia e este candidato é Getilio Vargas. Nés queremos Gett- lio.” Na platéia, exclamagées interrompiam os oradores: “Muito bem, apoiado e viva Gettlio!”, “Até morrer eu sou Gettilio Dorneles Vargas!”, “Abaixo as eleigdes e viva o dr. Getilio!”, entre diversas outras. Quando o marinheiro Aquiles Rocha, em seu discurso, perguntou “quem nao rece- beu 0 apoio e o amparo do dr. Getitilio Vargas?”, logo diversas respostas surgiram: “Somos queremistas porque sabemos 0 que queremos!”, “Por mais quinze anos!”, entre outras. O queremismo, inicialmente um conjunto de manifestag6es popula- res de reagdo aos insultos a Vargas, tornou-se, a partir dai, um movimen- to com feigées mais definidas em termos organizacionais e politicos. As ades6es, ntcleos e comités de bairros, abaixo-assinados e declaragées de solidariedade aumentavam diariamente. No dia seguinte a fundagao do Comité do Distrito Federal, operarios da construgdo civil, entrevistados por O Radical, declararam que sé votariam em Vargas. Um deles comple- tou: “Se o presidente Vargas nao comparecer as urnas como candidato ter4 faltado o melhor soldado na batalha decisiva para os destinos do Brasil. Pode ficar certo de que o operariado brasileiro nao tem outro can- didato.”*? Moradores da Estrada da Gavea, local que, mais tarde, ficaria conhecido como “Rocinha”, publicaram um abaixo-assinado: “Essa can- didatura natural nada mais é do que a tradug&o consciente da vontade popular, agradecida a pessoa do exmo. sr. Getiilio Vargas, que durante 15 39 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM”: POLITICA E CIDADANIA... anos consecutivos como Chefe da Nag4o soube compreender tao bem os anseios do seu povo.” O entusiasmo politico permitiu que surgissem, entre os trabalhado- res, vocagées para liderangas polfticas, nos bairros e locais de trabalho. Alcebiades V. Térres, operdrio da fabrica Ceramica Brasileira, tornou-se 0 elo de ligacao entre os 600 empregados da empresa em que trabalhava, os moradores dos morros da Mangueira e do Jacarezinho e 0 comité re- cém-fundado. Segundo seu depoimento: “Em todas as localidades onde tenho amizades vinculadas, estamos realizando um grande movimento de todos os moradores, levados por um sentimento de gratidao e civismo, no sentido de reeleger o presidente Getilio Vargas, amigo dos operd- tios.” Provocado pelo repérter, Alcebfades disse nao entender a legisla- ¢40 que impedia a candidatura de Vargas: “Se isso € crime”, argumentou, “nao existe mais mentira do que a democracia! O povo quer e 0 povo é soberano em qualquer regime democratico! Se estamos no caminho de liberdades populares, como se apregoa, por que evitar que 0 povo esco- tha e eleja aquele que € 0 chefe da pobreza, o amigo dos humildes que nos garantiu e sé é atacado pelos que estao furtando o povo e lucrando de barriga cheia?” Lembrando que o presidente Roosevelt “foi reeleito por- que morava no coragio do seu povo”, completou, “ou h4 democracia ou nao ha!” Pela cidade, comicios-relampago eram realizados. Nas barcas que li- gam o Rio de Janeiro a Niter6i, Ifderes queremistas discursaram para tra- balhadores que, cansados, voltavam no final da tarde para suas casas. No infcio curiosos, mas logo entusiasmados com os discursos a favor de Vargas, os passageiros aplaudiam os oradores e davam “vivas” ao presidente. Apés a atracag4o, algumas pessoas deram seus depoimentos sobre o inusitado comicio maritimo. Uma senhora, pobremente vestida, descreveu o repér- ter, declarou: “S6 votarei se o presidente for candidato. O meu voto eu nao dou a ninguém, a nao ser ele.”4* Um carregador de embrulhos afir- mou: “Os inimigos do presidente sdo uns mal-educados. Quando fazem comicio nao sabem dizer outra coisa a no ser desaforos.” Um operario, com 0 apoio de um outro colega de trabalho, comentou as atitudes dos opositores a Vargas: “Eles estao € com saudades. Ninguém pense que eles 40 © IMAGINARIO TRABALHISTA tenham verdadeiramente interesse pelo Brasil. Tanto tempo estiveram no poder, e nao fizeram coisa alguma.” Entre 15 e 18 de agosto, uma campanha nacional, sistematica e coorde- nada, foi deflagrada em todo o pais para mobilizar a populagao para o primeiro grande comicio queremista, programada para o dia 20. Todas as capitais, no dia 18, amanheceram inundadas com boletins e retratos de Vargas.’ Somente nesse dia, quatro comfcios-relampago foram realizados, em diferentes pontos da cidade do Rio de Janeiro, com o objetivo de con- vocar a populac4o para o encontro politico. No Largo de Sao Francisco, centenas de pessoas ouviram com interesse os oradores, mas os inter- rompiam, a todo momento, dando “vivas” a Vargas. O cabo da Forga Ex- pedicion4ria Brasileira (FEB) Luiz R. Fernandes, recém-chegado dos campos de batalha, discursou afirmando que lutara na Italia pela vitéria da demo- cracia e estava disposto a manté-la no Brasil, mas com Vargas no governo. Na Praga Tiradentes, os oradores tiveram dificuldades para falar devido aos aplausos e exclamagées de “queremos Getilio”. No Méier, a presenga de uns poucos opositores ao presidente indignou a multid4o que, aos gritos de “morram os desordeiros”, expulsou-os do local. Em Madureira, algu- mas pessoas que participavam do comicio deram seus depoimentos. O con- dutor de bondes Luiz A. Rodrigues disse: “Sou pelo presidente Vargas, porque nunca os pobres tiveram tantos direitos. Que € que tinhamos antes de 19302” A operéria Olivia M. Santos garantiu: “Ele deve continuar como presidente e farei tudo o que estiver ao meu alcance para conseguir isso.” Para os trabalhadores, Vargas, por suas realizagGes e atitudes ao longo dos 15 anos na presidéncia da Repdblica, tornara-se um mito. A expres- so, ao contrario do que comumente se pensa, no trata de uma “ficgio” ou de uma “ilusdo”, mas o que etndlogos e historiadores das religiSes definem como modelo exemplar, tradigao sagrada, revelagao primordial. Fenédmeno humano, cultural por definigdo, o mito fornece pardmetros para a conduta dos homens, conferindo significado e valor a existéncia, e narra um modelo exemplar de comportamento. O mito, diz Mircea Eliade, “relata de que modo algo foi produzido e comegou a ser. O mito fala apenas do que realmente ocorreu, do que se manifestou plenamente”.** Quando os trabalhadores se expressavam, descreviam Vargas como um 41 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... modelo exemplar de governante: aquele que se preocupou com a questao social, elevou os pobres a categoria de cidadaos, implantou a justiga so- cial, generosamente doou leis sociais, atuou no sentido de impedir a ex- ploragaio desmesurada do capital sobre o trabalho, lutou pelo progresso do pais, compreendeu os anseios dos assalariados, “falou” a linguagem dos operdrios, entre outros feitos até entéo nunca reéalizados por um governante. Como modelo exemplar, como o relato de algo que realmen- te aconteceu no passado, o mito narrava uma série de realidades vivenciadas e experimentadas pelos trabalhadores. Ao mesmo tempo que o movimento mobilizava a populag4o com os comicios-relampago, sobretudo com 0 objetivo de convocar o povo para 0 primeiro comicio queremista, populares e trabalhadores impediam, sem- pre que possivel, e utilizando os mais diversos expedientes, que a UDN realizasse manifestag6es publicas a favor do brigadeiro Eduardo Gomes. Em 4 de agosto, um comj{cio udenista em Vila Isabel, com a participagdo de Juraci Magalhaes e Mauricio de Lacerda, foi interrompido por gritos de “viva Getilio!”. Os cabos eleitorais da UDN revidaram com insultos a Vargas, o que gerou brigas corporais entre os adversarios. Um soldado do Exército sacou o revélver e disparou varias vezes para 0 alto, assustando as pessoas que, apavoradas, correram sem rumo certo. Quando a situagdo se acalmou, as luzes foram cortadas e, na escuriddo, 0 comicio foi suspenso.”” Em Madureira, outra manifestagao da UDN foi interrompida por populares. Um integrante da comitiva da oposigo que, a muito cus- to, tentara discursar diante das vaias e apupos, desceu do palanque e abor- dou um manifestante queremista. Segundo sua descrigéo, a aparéncia pessoal daquele homem indicava que “o que ele ganhava nao dava para vestir-se, muito menos para alimentar-se, pois seu aspecto era de um sub- nutrido”.“* Pobre, mal-vestido e subnutrido, pensou 0 oposicionista, aquele queremista, pela légica, nao deveria apoiar Vargas. Em um esforgo para entender seu comportamento, perguntou se ele estava satisfeito com o governo. Portador de uma outra légica, a resposta foi imediata: “Nés queremos Getilio.” Sem compreender a relagao entre a pobreza do ma- nifestante e seu apreco por Vargas, e com o aumento das hostilidades da multidao, ele voltou ao palanque e encerrou a manifestag4o. 42 © IMAGINARIO TRABALHISTA Nesse clima politico de confronto crescente, o Comité do Distrito Federal preparava o primeiro grande comicio. No dia 17 de agosto, em paginas compradas na grande imprensa, o comité, pregando a palavra de ordem “Queremos Gettilio, com ou sem Constituinte”, publicou uma es- pécie de “manifesto queremista”, esclarecendo por que eles queriam Ge- tilio. As raz6es eram claras e objetivas: além de querer o “bem do Brasil” e transform4-lo economicamente, Vargas “é um génio politico” que “s6 tem compromissos com os homens que trabalham” e apenas é atacado pelos “polfticos” e pelos “gananciosos exploradores do povo”. Sobretu- do, queriam sua permanéncia “porque, antes de Gettillio, o trabalhador tinha deveres e [ele] Ihe deu direitos; tinha familia e Ihe deu assisténcia; tinha fome e lhe deu pao; estava doente e lhe deu hospital; ficava velho e Ihe deu aposentadoria; morria e lhe garantiu a familia; o trabalhador tinha filhos e lhe deu escola; © operario era homem e lhe deu a mao; enfim, Getilio viu que o trabalhador era gente e Ihe deu uma situagdo na sociedade. E por isso que NOS QUEREMOS GETULIO.”4? Ocrescimento do movimento, os conflitos nas manifestagdes da UDN e a proximidade do comicio inquietaram as oposig6es. Os jornais, insis- tindo na mesma linha, aumentaram ainda mais seus ataques. O Correio da Manhd, por exemplo, dizia que o queremismo elevou-se ao nivel de verdadeira religido. “Possui culto proprio, apdstolos, iniciados, novigos e prosélitos”, embora dividida em duas seitas: uma delas, a ortodoxa, dos misticos, iluminados e salvadores, conhecida como “fiquismo”; a outra, a dos que “fingem n4o querer”, mas que querem ardentemente, nomeada de “continuismo”.”” No Didrio da Noite, de S40 Paulo, a andlise foi me- nos ir6nica. Segundo o editorial, Vargas, de fato, “desfruta de alguma popularidade” entre certas categorias de trabalhadores. Mas 0 prestigio do ditador explica-se fundamentalmente “pela propaganda demagégica do Estado Novo. Hitler e Mussolini também, por forga mistica que sou- beram difundir, desfrutaram de popularidade de milhées de homens 43 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA... fanatizados, bestializados, excitando sua imaginagio”.”' Como Hitler e Mussolini, continua o jornal, Vargas, durante o Estado Novo, inundou as mentes dos trabalhadores com sua “propaganda totalitaria”, permitindo que surgisse a “praga daninha” do “queremismo”. O lema “nés quere- mos”, frase definida como “enervante”, diz o Didrio de Noticias, apre- senta um “espetaculo totalitario”, orquestrado por “minoria absoluta” de pessoas e financiado pelo Ministério do Trabalho e por pelegos sindicais da ditadura, gerando esta “mistificagao igndbil”. Os ataques ao queremismo aumentavam a medida que se aproximava o dia do comicio — ou, talvez, exatamente por isso. © "AGOSTO” DAS OPOSICOES As 18 horas de 20 de agosto, uma multidao tomou o Largo da Carioca, no Rio de Janeiro, para participar do primeiro comicio queremista. Ex- clamando, compassadamente, “Ge-ti-lio” ou, simplesmente, “queremos Getilio”, as pessoas aguardavam o primeiro orador. Muitos trabalhado- res ostentavam, com orgulho, retratos de Vargas. Um deles chegou ao local com um grande painel escrito “Queremos Getilio” e, apés conver- sages com outros operdrios, decidiu coloca-lo em local bem visivel. Alto- falantes irradiavam marchas e hinos patriéticos e os equipamentos das radios Tamoio e Tupi, presentes no evento gragas ao pagamento em di- nheiro a Assis Chateaubriand, permitiram que um piblico, muito mais amplo, tomasse conhecimento do ato politico. Na mesma hora, comicios eram realizados em outras capitais. A segao do PTB de Minas Gerais, por exemplo, reuniu 2 mil pessoas no estddio Benedito Valadares.** O primei- ro orador, 0 jornalista Waldyr Rodrigues, insistiu no tema que legitimava © movimento: © povo nao foi consultado na escolha dos candidatos e ninguém pode falar pelos trabalhadores, a nao ser eles mesmos. “A oposicio”, alegou, “irreverentemente, comecou a chamar de ‘queremismo’ a toda manifestagao de aprego tributada ao presidente Vargas. O povo, ferido por essa irreveréncia, levantou-se e aceitou o cartel de 44 © IMAGINARIO TRABALHISTA desafios. Surgiu, entéo, o slogan ‘Queremos Getilio’. Foi o bastante. A Nagao inteira, pela sua maioria incontestavel, que é a massa trabalhadora —o homem pobre, o brasileiro desajustado da sorte, o individuo simples e desambicioso — pronunciou-se pela candidatura do sr. Getiilio Vargas.” A partir daf, tornou-se dificil para aqueles que se seguiram falar. Os aplausos, assobios e coros de “queremos, queremos, queremos” interrom- piam os discursos. Apartes como “Viva Getilio Vargas, o padroeiro do Brasil!” ou “Ele j4 € como Sao Jorge ou $40 Damiao!” inibiam aqueles que discursavam. No entanto, uma forte chuva caiu sobre a cidade, obri- gando as pessoas a se refugiarem em marquises préximas, mas continuan- do a ouvir os oradores gracas aos alto-falantes. Ao final, os organizadores do com{cio convidaram o povo para a mat- cha até o Palacio Guanabara com 0 objetivo de falar diretamente com o presidente. Em passeata pelas ruas da cidade, os manifestantes chegaram aos jardins do Palacio e, recebidos pelo oficial de servigo, capitao Carlos, fizeram um apelo para que o presidente aparecesse nas varandas. Mais do que isso, Vargas, acompanhado t4o-somente pelo capitdo, veio falar dire- tamente com a multiddo. Recebido com aplausos entusiasmados, algumas pessoas, tomando a palavra, saudaram o Ifder polftico e enalteceram seu governo. Apés agradecer a todos, Vargas fez um pequeno retrospecto de sua administragdo desde 1930, lembrando, particularmente, de Volta Re- donda e das leis trabalhistas. Iniciou-se, entao, um diélogo, em que povo e presidente apresentaram seus argumentos: “ — J4 se passaram 15 anos. Nao acham que tenho o direito de descansar?” — disse Vargas. “— Nao! Nao! V, Exa. ndo pode nos abandonar!” — Argumentando que nao pre- tendia abandonar os trabalhadores, Vargas afirmou, sempre interrompi- do por aplausos, que apenas iria descer as escadas do Palacio para viver no meio do povo, de onde safra, e que, juntos, encontrariam um caminho para a felicidade do Brasil. Novos protestos surgiram: “ — Nao! Nao! Nao! Queremos V. Exa.” — Agradecendo as manifestagées de carinho, Vargas, despedindo-se, declarou que a sua preocupagao era lutar pelos humildes, mas advertiu: “ — O caminho é longo. O povo deve prosseguir na luta em defesa de seus direitos.” 45 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA... O didlogo entre o povo e€ o presidente permitiu que, nesse momento, as representagdes que sustentavam o modelo exemplar de Vargas sofres- sem adaptagoes e, de maneira similar como 0 que ocorre no imagindrio social de outras coletividades, modelos de heréis foram resgatados no passado longinquo da humanidade. Para Raoul Girardet, “os mitos polf- ticos de nossas sociedades contempor4neas nao se diferenciam muito, sob esse aspecto, dos grandes mitos sagrados das sociedades tradicionais”.** Entre o modelo de Sélon, aquele que, com serenidade e firmeza, legislou pelo bem-comum, e o de Cincinnatus, simbolo da experiéncia e prudén- cia, que apés exercer altos cargos preferiu o retiro modesto, distante dos tumultos da vida publica,*> eis 0 novo elemento simbdlico que passou a representar Vargas em seu final de governo. Ao safrem do Palacio, os manifestantes concentraram-se no Largo do Machado e realizaram outro comicio, com o objetivo de comunicar 4 populago as conversas que haviam tido com o presidente. Mesmo apés se dispersarem, as manifestacdes continuaram e diversos grupos se for- maram na Praga Paris, Avenida Rio Branco, Praga Tiradentes e Lapa. Tra- duzindo suas demandas politicas por meio de suas tradig6es culturais, os populares, nas ruas centrais da cidade, realizaram um carnaval fora de época. Com objetos que encontravam pelo caminho, eles improvisaram tambores, tamborins, surdos e reco-recos. As faixas de propaganda trans- formaram-se em estandartes que esvoacavam nas mios de habeis mulhe- res. Como em um baile carnavalesco, as pessoas dancavam e pulavam no compasso de sambas e breques, com letras improvisadas no momento: “Nés queremos... oba! Nés queremos... oba!” ou “Gé... gé... gé... tiilio é de colher, s6 ele a gente quer”. Outros grupos, menos festivos, ramaram para as sedes do Diério Ca- rioca, Didrio de Noticias e Diario da Noite. Com “vivas” a Getilio, exigi- ram que os jornais parassem de insultar o presidente. No Didrio de Noticias, os manifestantes invadiram a redagao e, circulando pelas mesas, ou sal- tando sobre elas, assustaram funciondrios e jornalistas. Sem nada que- brar, o “brincar de roda” entre as mesas expressava, com irreveréncia simbélica, ameagas 4 imprensa de oposi¢ao. Um outro grupo, por fim, apedrejou a fachada da Faculdade de Direito, no Catete, por ostentar 46 © IMAGINARIO TRABALHISTA cartazes do brigadeiro. Os estudantes, indignados, safram das salas de aula e enfrentaram os manifestantes. A chegada da policia, contudo, acal- mou os animos. As oposigées, sem diivida, viviam o seu “agosto”. Dias antes do comf- cio, nas sedes do PSD em Sao Paulo e no Recife, a propaganda eleitoral de Dutra foi substitufda pela de Vargas. Diversas alas do’PSD declararam apoio politico ao presidente. A candidatura Dutra, até aquele momento sem empolgaco alguma, ameacava esvaziar-se por completo. Ainda mais grave para os antigetulistas foi a linha politica tomada pelo PCB. No dia 15, cinco dias antes do comfcio, Luiz Carlos Prestes, em telegrama envia- do a Vargas, mas tornado publico, comunicou que o partido decidira lu- tar por uma Assembléia Constituinte a ser instalada antes das eleigdes presidenciais. O Partido Comunista assumia, assim, o lema cuja autoria até entZo recusara: “Constituinte com Gettlio.” O medo de que o lema permitisse que Vargas ampliasse suas manobras continuistas uniu, no mesmo protesto, lideres da UDN, PSD, PL, Esquerda Democratica, ca- t6licos e o préprio Gées Monteiro. O PTB, no entanto, mantinha relagdes mais complexas com o queremismo. Embora oficialmente apoiasse a candidatura do general Dutra, as vésperas do comicio suas segdes de Minas Gerais e da Paraiba, logo seguidas pelas de outros estados, aderiram a proposta de continuidade de Vargas na presidéncia. A sede trabalhista do Distrito Federal, por exem- plo, tornou-se quartel-general do queremismo, Em agosto, portanto, a alianga entre ambos foi estabelecida. Contudo, se a inspirag4o para o surgimento do PTB e do queremismo foram a imagem de Getilio Vargas ea legislagio social, e mesmo que, naquele momento, lutassem em con- junto pela continuidade do presidente no poder, eles tinham identidades proprias e nao devem ser confundidos. O partido e o movimento, diz Angela de Castro Gomes, “bebiam da mesma fonte; eram, basicamente, a mesma ‘idéia’. Mas é certo que do ponto do vista organizacional o PTB e © queremismo no eram a mesma coisa”. Por meio de cuidadosas gestdes do Ministério do Trabalho, os queremistas, organizados em nicleos e comités por todo 0 pais, evitavarn ingressar no PTB, embora fossem tra- balhistas. Mas seja no partido ou no movimento, nao importa, os militan- 47 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM™: POLITICA E CIDADANIA... tes seguiam a mesma linha polftica.5” Mais ainda, os Ifderes e dirigentes do PTB e do queremismo eram pessoas completamente desconhecidas na vida politica do pafs e suas fileiras nao apresentavam nomes de expresso, © que nao era casual. De acordo com a estratégia tragada pelo Ministério do Trabalho, ambos surgiam no cenério polftico como iniciativas espon- taneas e de cardter eminentemente popular. Portanto, suas origens, seus objetivos comuns e suas relagées fluidas e nao-explicitadas, enbora com identidades distintas, permitiram, segundo Lucilia de Almeida Neves, que os trabalhadores tomassem as express6es trabalhismo e queremismo como sindnimas de getulismo. O movimento queremista, diz a autora, “contri- buiu, de maneira decisiva, para que a unido trabalhismo-getulismo se con- solidasse ainda mais”, embora seja um equivoco concluir que “PTB e queremismo fossem a mesma coisa”.** Mas agosto ainda reservaria novos dissabores para as oposig6es. No dia 22 daquele més, populares do Distrito Federal receberam, com gran- de alegria, os soldados do Regimento Sampaio que lutaram em Monte Castelo. Acompanhado por Gées Monteiro, Eurico Dutra, Mascarenhas de Moraes, Cordeiro de Farias e outros militares de alta patente, Vargas, as 10 horas da manhi, recepcionou os soldados da FEB que desembarca- vam no cais do porto. Para os generais, a cena nao poderia ser mais desconfortavel. Ao se darem conta da presenga do presidente, os “praci- nhas”, manifestando visfvel contentamento, expressaram seus sentimen- tos com longos aplausos para, logo a seguir, darem repetidos “vivas” a Getilio.? Os constrangimentos, no entanto, aumentariam na parte da tarde. Na Avenida Rio Branco, os mesmos soldados iriam desfilar para as autorida- des eo povo. A parada militar da FEB, simbolizando a luta pela democra- cia e a derrota do fascismo, e portanto do Estado Novo, seria a festa da UDN e do brigadeiro Eduardo Gomes. No entanto, quando Vargas che- gou no palanque, em frente 4 Biblioteca Nacional, a multidao, ovacio- nando-o, manifestou sua alegria com aplausos demorados e insistentes. Ao final do desfile, a populag4o, em verdadeiro delfrio, rompeu o cordao de isolamento e avangou em sentido ao palanque para saudar, bem de perto, o presidente. Somente a muito custo, e forgando a passagem, o 48 © IMAGINARIO TRABALHISTA carro oficial aproximou-se de Vargas que, de pé no automével conversf- vel, saiu do local sob fortes aplausos e ouvindo seu préprio nome e “vi- vas” pronunciados, em coro, por milhares de vozes. Um pouco mais adiante, ocorreu um incidente inesperado: o revélver de um investigador caiu no chdo e um popular imediatamente apanhou a arma e a devolveu ao policial. A proximidade dos dois homens de Vargas permitiu que mui- tos interpretassem 0 episédio como um possfvel atentado ao presidente. O investigador, acuado, foi cercado pela multiddo que, em coro, gritava “lincha! lincha!”. Dois soldados da Aeronautica salvaram o policial da faria popular. “O movimento era assimétrico”, diz Angela de Castro Go- mes, “caia o Estado Novo, mas crescia o prestigio de Vargas”. As manifestagées populares a favor de Vargas, embora constrangedo- ras, continuavam sendo ignoradas pelas oposigées. No dia 24 de agosto, um comicio da UDN no Largo do Machado, em plena hora do rush, nao chamava a atengao das pessoas que, com frieza e parecendo nao ouvir os discursos, esperavam pelos 6nibus e bondes. Sem publico algum, os po- Ifticos e cabos eleitorais, pensando em atrair ouvintes, passaram a insultar agressivamente Vargas. Rapidamente um numeroso publico surgiu cer- cando o palanque, hostilizando e ameagando os udenistas que, surpresos e apavorados, fugiram rapidamente do local. Mais alguns minutos e o palanque ardia em chamas.*! Em Belo Horizonte, em comfcio promovido pelo PTB, os discursos atacavam duramente as candidaturas de Eurico Dutra e Eduardo Gomes. Soldados da FAB, indignados com as criticas ao brigadeiro, apareceram de surpresa e dispararam contra a multidao va- tias vezes. Na confusio, varias pessoas se machucaram, mas 0 operdrio e ex-pracinha José Azeredo Filho, que gritava “morras” ao brigadeiro, foi vitima de um petardo certeiro e teve morte instantanea. Ao perceberem a tragédia, os queremistas homenagearam ali mesmo o trabalhador morto com um minuto de siléncio, uma oragao do “credo” e, em passeata, leva- ram o cadaver até o necrotério dando vivas a Vargas. Na cidade de Sao Paulo, em fins de agosto, distirbios também ocorre- ram. Na Praga do Patriarca, o Comité Pré-Candidatura Gettlio Vargas paulista montou um posto de coleta de assinaturas com o objetivo de enviar um telegrama de apoio ao presidente. Logo uma multidao aglome- 49 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM”: POLITICA E CIDADANIA... rou-se em volta das pequenas mesas. Policiais, fortemente armados, assis- tiam de longe, prontos para a eventualidade de conflitos. Nao demorou muito e alguns estudantes da Universidade de $40 Paulo apareceram gri- tando “nao queremos!”. Antes que a confusdo surgisse, a polfcia interveio os afastou dali. Uma hora depois, no entanto, eles voltaram e, ao lado das mesas dos queremistas, montaram as suas, com 0 igual objetivo de colher assinaturas, mas contra Vargas. Novamente a policia interveio e, para evitar conflitos, expulsou-os do local. Teimosos, eles montaram suas mesas 30 metros mais adiante e pediam para as pessoas assinarem um telegrama que dizia: “queremos Getilio em Sao Borja” e “nés queremos que o presidente nao fique”. O delegado, irritado, cercou o grupo com seus homens. Das discussées iniciais, policiais e estudantes passaram a trocar empurrées e pontapés que resultaram em fugas e correrias genera- lizadas. Muitas pessoas, assustadas, também comegaram a correr, geran- do conflitos diversos, em meios a gritos de “vivas” e “morras” a Getilio.® Também em fins de agosto, uma novidade surgiu nos jornais. Em p4- ginas compradas na imprensa, o Comité do Distrito Federal passou a pu- blicar milhares de telegramas enviados pela populagao, oriundos de todas as capitais e dos mais diversos municipios do pats, pedindo a continuidade de Vargas no poder. Em textos telegrafados, individuais ou coletivos, cur- tos ou longos, trabalhadores exigiam a candidatura do presidente. Da cidade de Sao Paulo, o abaixo-assinado colhido na Praga do Patriarca resultou no seguinte texto: “O povo que nao decepcionou o seu governo pede e espera que Vossa Exceléncia nao o decepcione, recusando a candi- datura que espontaneamente lhe oferece. Comissio povo instalada em plena praga ptblica que até este momento representa 35.000 assinaturas conforme comprovante em seu poder, remetido por via aérea.”™ Da mesma capital, Durvalino Dourado, em telegrama acompanhado de mais 32 assinaturas, disse que “para presidente sé v. excia.”; Alfredo Coimbra e 38 companheiros declararam que “nés, cidadios brasileiros compenetrados de nossas responsabilidades, temos a honra de dirigir v.excia, esta mensagem formulando um apelo para que aceite candidatura presidente da Repiblica”. Antonio Alves e seis outras pessoas escreve- ram: “sé votaremos em v. excia.” Moisés Santos, por sua vez, garantiu 50 © IMAGINARIO TRABALHISTA que “minha mae e eu, abaixo assinados, declaramos que v. excia aceite a candidatura a presidéncia”. Comissées de trabalhadores também telegra- faram. Uma delas afirmou que “quinhentos operdrios indtistria Firestone Santo André querem candidatura v. excia”. Com a mesma expectativa, outro telegrama coletivo garantiu: “E com forga do coragao que nés ope- rarias aclamam sua candidatura.” : De Belo Horizonte, uma comissao de barbeiros, cabeleireiros ¢ simi- lares se declarou solid4ria com a candidatura Vargas. De Recife, Natal Natarelli, representando 23 pessoas, enviou o seguinte texto: “Candi- datando-vos a presidéncia da Repiblica sabereis pela votagao dos traba- lhadores o quanto sois benquisto no seio da massa trabalhadora nacional.” Genesio Miranda, de Niter6i, alegou: “Nao pertengo a alta sociedade: tenho porém os mesmos sentimentos que eles € peco-vos, como 0 povo, candidatar-se.” Os trabalhadores da industria do agiicar do municipio de Santo Amaro, Bahia, também por meio de uma comissao, aplaudiram “o gesto democratico que teve o partido queremista apresentar candidatura v. excia. Préxima eleigio poderé v. excia. contar mais de dez mil votos desta classe. Queremos ser reconhecidos v. excia. a quem devemos tudo como redentor nosso Brasil”. Os telegramas, aos milhares, se multiplicavam nas paginas dos jor- nais. De todas as capitais e de inimeros municfpios, o clamor popular se repetia, exigindo a candidatura de Vargas. O “agosto” das oposigées avancava. Na tltima semana do més, os queremistas se dedicaram a organizag4o do segundo comicio, intitulado o “dia do fico”, Queremistas gatichos, inclusive, sugeriram a deflagracao de uma greve geral naquele dia. No Rio de Janeiro, as ruas foram toma- das por cartazes, panfletos e comunicados anunciando o evento. Marcada para o dia 30 no Largo da Carioca, a manifestagao terminaria com a “mar- cha luminosa”, nome dado A passeata até a sede do governo. Tanto o comicio como a passeata seriam transmitidos por uma cadeia de radios — 58 no total —, permitindo que a populacao do Distrito Federal, Sao Pau- lo, Belo Horizonte, Salvador, Porto Alegre, Manaus, Natal e Fortaleza acompanhasse as manifestages. As paginas compradas na grande imprensa, a cadeia de radios e as modernas técnicas de propaganda politica difi- 51 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA... cilmente poderiam esconder a presenga do Ministério do Trabalho, do DIP e de empresdrios que, muito discretamente, apoiavam e financiavam os lideres queremistas. A expectativa que cercou o “dia do fico” foi grande, se lembrarmos que o prazo de desincompatibilizagao para a inscrigao das candidaturas se encerraria quatro dias depois, no dia 3 de setembro. A possibilidade de Vargas se desincompatibilizar e concorrer as eleigdes inquietou a oposi- ao. No dia do comicio, a Gazeta Judicidria, em longo editorial, atacou duramente o presidente e o queremismo. Segundo o jornal, Vargas, apés 15 anos de “administragio infecunda e perturbadora, traindo os seus com- promissos”, surge a frente do queremismo, “uma estipida teimosia sem ideologia politica” e tomada pela “absoluta auséncia de bom senso. Sim- ples caso de policia”. Para os editorialistas: “O ‘queremismo’, que é um dos indices mais expressivos dos efeitos morais e sociais da ditadura fas- cista que o sr. Getilio Vargas instaurou no Brasil, é um fendmeno depri- mente para a nossa cultura, e sé se tornou possfvel pela agao corrosiva de um regime de corrupgao e delinqiiéncia moral.” Embora sob os ataques da imprensa, no dia 30 o Largo da Carioca foi tomado pela multiddo. Muitos trabalhadores, ao chegarem, espalharam seus cartazes pelas redondezas: “Queremos Getilio, que nos deu aposen- tadoria”, pregava um deles. Ao final, todos rumaram para 0 Palacio presi- dencial. Nos jardins, apés clamarem por sua presenga, Vargas apareceu. Diante do presidente, falaram operarios, sindicalistas, estudantes, empre- s4rios, soldados que lutaram na Itélia e representantes de delegagées vin- das de outros estados. Em seu discurso, Hugo Borghi, nessa altura lider queremista e integrante de uma ala do PTB, demonstrou que o movimen- to procurava elaborar melhor seu projeto politico. Ao reconhecer como novo lema que “A solugo € a Constituinte”, Borghi, em nome dos queremistas, clamou por uma “Constituinte com Gettlio”. As mudangas, de julho para agosto, portanto, sao significativas. Da simples personalizagao da politica com a palavra de ordem “Queremos Getilio”, o movimento passou a reconhecer a necessidade da prépria institucionalizagao da polf- tica, por meio de uma Assembléia Nacional Constituinte. 52 © IMAGINARIO TRABALHISTA Para a decepgao de todos, no entanto, Vargas declarou que seu desejo era o de apenas presidir as eleig6es e, reforgando a imagem do governante desinteressado, voltou a afirmar que nada queria a no ser “recolher-se & tranqiiilidade de seu lar”. Contudo, afirmou estar “profundamente co- movido” com a homenagem e, aproveitando a oportunidade, respondeu aos ataques das oposigdes: “€ que eu compreendo o significado destas manifestag6es. Ela constitui uma reagao do povo contra as injarias dos gazeteiros; contra aqueles que, cegos pelas paixées politicas, procuram pela injtiria e pela faceria, amesquinhar a pessoa do chefe da Nagio. A tesposta foi esta: o protesto do povo!”* Reagindo com mais contundéncia aos insultos da imprensa, ainda afirmou: “Estou vingado, porque nenhu- ma vinganga desejava ter. Eu sempre fiz a politica do trabalhador, a polf- tica dos homens que trabalham e produzem nos campos e cidades. Nao me gostam os gazeteiros e os sibaritas que, vivendo na abundancia, nao querem pagar aos homens que trabalham uma justa remuneragao dos seus servigos.” Apés acusar os trustes e monopélios que, premeditadamente, elevam o custo de vida, oprimindo os assalariados, e destoando de seu habitual comedimento, citou os Evangelhos: “Perdoai-os, Senhor, porque eles nao sabem o que fazem.” Por fim, convocou os trabalhadores a usa- rem 0 voto como uma arma e fazer dele um instrumento de sua vontade. Inconformados, os ouvintes insistiam, quase em coro, na frase “que- remos Getilio”. Initil. Com grande frustragao, os queremistas chegaram no dia 3 de setembro sem verem Vargas se desincompatibilizar do cargo. Definitivamente, ele nao seria candidato. Mas 0 “agosto” das oposig6es se estenderia até o dia seguinte, 4 de setembro. Surpreendentemente, Vargas apareceu, no centro da cidade, ca- minhando tranqiilamente. Ao ser percebido pelo povo, logo estrondosos aplausos ecoaram pelas ruas. Com gritos de “viva o presidente” e outras expresses, a populagao, com alegria, manifestou seus sentimentos. O au- mento desmesurado da multidao, no entanto, obrigou Vargas a entrar em um dnibus que passava pelo local. Cercado pelo povo que nao parava de aplaudir, o 6nibus seguiu seu caminho, nao sem alguma dificuldade.” Seu prestigio entre os trabalhadores, sem diivida, era cada vez maior. $3 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... SOBERANIA POPULAR E APRENDIZADO DEMOCRATICO Em pleno processo de democratizag4o, os trabalhadores, recusando as candidaturas de Eurico Dutra e Eduardo Gomes, queriam a oportunidade de votar em outra, a de Vargas. Embora por tras do queremismo estivesse 0 Ministério do Trabalho, é muito simples alegar, como faziam os liberais em 1945, que o sucesso do movimento teria ocorrido exclusivamente pelo apoio estatal. “O que importa ressaltar”, diz Angela de Castro Go- mes, “€ que o trabalhismo como ideologia politica centrada na figura de Vargas, em sua obra social e no tipo de relagao — direta e emocional — que ele se propunha manter com a massa trabalhadora, vinha sendo construfdo dentro do Ministério do Trabalho desde 1942. Assim, sem o suporte ideolégico do trabalhismo, o queremismo teria sido praticamen- te impossivel”.® Surgindo tao-somente como reago aos insultos ao pre- sidente, mais adiante, os trabalhadores, com entusiasmo e vontade politica, responderam de maneira positiva aos lideres e organizadores do queremismo. Historicamente, é muito diffcil negar. Eles queriam Getilio. A questo a ser enfrentada, portanto, é a seguinte: queriam por que e para qué? Muitas respostas j4 foram dadas, paginas atr4s, por trabalhadores e populares. E interessante, contudo, sistematizar com mais cuidado suas idéias, anseios e crengas de carter politico. Em espagos comprados na grande imprensa, o Comité Pré-Candidatura Getilio Vargas do Distrito Federal, a partir de agosto, passou a publicar, como ja foi dito, milhares de telegramas oriundos dos mais diversos pontos do pafs. O que estas pessoas diziam? Inicialmente, um conjunto de experiéncias estabeleceram um marco muito bem delimitado na cultura politica popular daquela época. Para aqueles que viviam do trabalho, havia o tempo de “hoje” e o tempo de “antes”, e a linha simbdlica que os separava era 1930. Nelson Siqueira, representante da comissao eleita pelos operérios da Companhia de Fia- Gao e Tecelagem de Pelotas, disse, em nome de seus colegas de fabrica, que eles “nao querem voltar tempos antigos quando bala e pata de cavalo imperavam”. Seu argumento, com base em experiéncias vividas no passa- 54 © IMAGINARIO TRABALHISTA do, era objetivo: “Que era o operdrio antes de 1930? Escravo. Operdrio nao tinha casa morar, rua para andar quando politicos nao perseguiam; nao tinha férias, estabilidade, seguranga contra acidentes e nem instituto de previdéncia para amparé-lo.” (sic) ® Do Distrito Federal, Alcina Peceguero, em telegrama acompanhado de mais trés assinaturas, recorda a polftica brasileira no tempo de “antes”. Segundo ela, Arthur Bernardes, atual politico da UDN, afirmara que 99% dos fiéis a Getdlio eram comprados ou intimidados pelo Ministério do Trabalho. Para Alcina, “povo nao se abala isso, nem palavra facil politicos carcomidos que usam falatério pomposo, empregando abusivamente vo- cdbulos ‘liberdade e democracia’ depois terem governado pajs Estado Si- tio durante quatro anos e viveram trancados Palacio Catete, deixando desterrados verdadeiros campos concentragao Clevelandia muitos brasi- leiros morrendo crime ter opiniao”. Apds lembrar o movimento dos 18 do Forte, a repressao policial aos sindicatos e Clevelandia, Alcina afirma que, no governo Bernardes, imperava “regime de opressées e terrorismo, em que nenhum jornal ousaria o que hoje fazem. Voz do povo é forte, sufocando intteis tentativas destruir V. Exa. coragao povo”. Os argumentos se repetiam, sempre de descrédito com a politica e os politicos do tempo de “antes”. Ferrovidrios paulistas, por exemplo, pediam acandidatura de Vargas para “salvar o Brasil garras politicos carcomidas evitando desgraca do povo”. José A. Lima, do Distrito Federal, confiava que Vargas no iria “entregar governo elementos ndo represente aspira- g6es povo”. José de Souza Neto, de Vera Cruz, Sao Paulo, afirmou que “povo consciente e exausto de politica” apela pela candidatura de Vargas. Archimedes de Andrade, de Itaboraf, Rio de Janeiro, foi enfatico e resol- veu telegrafar a Vargas para “falar com franqueza. Por que nao se candidatou a Presidéncia? Por ventura V. Excia. ignora que o povo brasileiro est4 firme e intransigente seu lado? Como pretende nos deixar sem protegdo o maior brasileiro vivo? Uma porg4o de olhos agoureiros estao arregalados sobre nés; sé V. Excia. nos salvara. Vamos a frente e a demagogia dos macedo, zésmericos, aranhas e toda esta céfila de ratos barriga branca que estore no inferno. Povo quer 5s QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... Getilio Vargas e pronto. Fique V. Excia. com Brasil que é estar com 0 povo que adora seu Getilio.” Repressao policial as reivindicagées sindicais, campos de concentra- Ao, censura aos jornais oper4rios, politicos indiferentes aos anseios po- pulares, trabalhadores sem garantias, direitos sociais e reconhecimento politico, eis a maneira como, em 1945, os que viviam do trabalho descre- viam o tempo de “antes”. A repercuss4o verdadeiramente impactante que as leis sociais causaram entre os assalariados dificilmente pode ser minimizada e permitiu que, na meméria popular — embora possivelmen- te nao em outras —, 1930 surgisse como um divisor de 4guas nas relagdes entre Estado e classe trabalhadora. E verdade que, lendo os telegramas, seria uma perda de tempo procu- rar operdrios com inclinagGes revoluciondrias ou “autonomistas” — como queiram. Mas como nos adverte Barrington Moore Jr., “agir assim seria forgar os sentimentos e os comportamentos dos trabalhadores a encaixa- rem-se em categorias predeterminadas, que podem guardar pouca rela- ¢4o com suas vidas e preocupagées reais”.”° O que eles nos falam, por meio de seus textos, é de sensacdes de justiga e injustiga que mediaram suas relagdes com outras classes sociais e com o préprio Estado.”! Seguin- do algumas idéias do autor ao estudar 0 caso alemao, trabalhadores e populares perceberam no governo de Vargas sobretudo a possibilidade de serem tratados e viverem como seres humanos, ou seja, de serem reco- nhecidos politicamente e valorizados socialmente. Para Moore Jr., “con- creta e especificamente, o tratamento humano decente significava aquele minimo de respeito e preocupagao merecido por todos os membros da comunidade nacional”. Por “tratamento humano decente” entende-se seguranga na velhice, garantia contra as arbitrariedades patronais, justica nas relac6es trabalhistas, regulamentagao de saldrios e jornadas de traba- lho e, particularmente, o reconhecimento e a valorizagao social e politica. Equivalia também 4 aceitagao da ordem social existente, mas “de sua modificagéo no sentido de uma maior igualdade”, sem, no entanto, pre- tensdes a revolugoes sociais.”” 56 © IMAGINARIO TRABALHISTA O reconhecimento dos beneffcios sociais, da valorizag4o politica e do “tratamento humano decente”, portanto, era uma necessidade. Ramiro Benoliel, do Distrito Federal, declarou seu voto a Vargas por tudo 0 que ele “tem feito pela grandeza do Brasil e bem-estar dos trabalhadores a quem deu o direito de ter direitos”.”? Em seu telegrama, o recifense Angelino Ferri, subscrito por mais 32 assinaturas, disse que “trabalhado- res nacionais querem demonstrar gratidao para com V. Excia. apoiando vossa candidatura”. Luiz P. de Figueiredo, de Jequitinhonha, Minas Ge- tais, comunicou: “meu voto seré dado a Getilio Vargas para presidéncia da Repiblica como prova do reconhecimento de um sertanejo.” José M. de Oliveira, por sua vez, enviou o seguinte telegrama: “Nés, abaixo assinados, levado pelo espirito patriético de operarios nesta cidade de Penedo, Estado de Alagoas, reunidos e cumprindo um dever de gratidao, levamos ao conhecimento de V. Excia. que nao encontramos nenhuma manifestacao satisfatéria nos operdrios desta terra no sentido de que seja a pessoa de V. Excia. substituida no Governo. E, aqui, estamos ao lado de V. Excia., nao com espirito politico, mas como operarios unidos que compreendem os grandes beneficios prestados por V. Excia.” As manifestagées de gratiddo e reconhecimento se repetiam muitas vezes nas paginas dos jornais. Afonso Salatino e mais 27 companheiros, todos da cidade de Sao Paulo, afirmaram que “a gente quer Gettlio por- que Getiilio nos deu leis boas”. Pedro T. Silva, expressando os sentimen- tos de 172 ferrovidrios de Santos, declara que eles sio “agradecidos pelos beneficios recebidos do Benemérito Governo de V. Excia”. e manifestam “gratidao ao seu benfeitor”. José A. Resende, de Ribeirdo Preto, escreveu que “humilde trabalhador votar4 em vosso nome em pagamento da divi- da de gratidao ao grande benemérito do Brasil”. Igualmente oito traba- lhadores da cidade de Rio Grande disseram que “nés operdrios agradecidos exigimos candidatura”. Em seus telegramas, os trabalhadores ressaltavam, com insisténcia, os beneffcios alcangados com as leis sociais, mas as repetidas declaragées de gratidao e reconhecimento demonstram sensibilidades politicas que di- zem algo mais do que a simples constatagao dos ganhos materiais obtidos 57 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM™: POLITICA E CIDADANIA... com a legislagao. As culturas humanas, nos ensina Marshall Sahlins, nao se explicam tao-somente pelas atividades materiais, pela perseguig4o in- dividualmente racionalizada de seus melhores interesses utilitarios. A esta espécie de raz4o, pratica, uma outra, mais significativa, rege as culturas: a simbélica. “Concebendo-se a criagdo e o movimento de bens somente a partir de suas quantidades pecunidrias”, diz o antropdlogo, “ignora-se 0 cédigo cultural de propriedades concretas que governa a ‘utilidade’ e as- sim continua incapaz de dar conta do que é de fato produzido”.”* Por essa interpretagao, nao é casual que Antonio Fernandes, da cidade de Santos, afirme que “se bem ndo esteja satisfeito aumento aposentados invalidez, meu voto é seu, fui e sempre serei Getiilio”.”> Portanto, uma outra légi- ca, simbélica, cuja abrangéncia cultural se estende além da razao mate- rial, mediou as relagdes entre Estado e classe trabalhadora a partir dos anos 1930. Um manifesto de trabalhadores publicado em O Radical nos auxilia a compreender os fundamentos simbélicos que regiam as repetidas mani- festagdes de gratidao e reconhecimento. “Bagunceiros, analfabetos e bé- bados!”, é assim, dizem eles em seu manifesto, que os politicos de oposigio tratam os operarios brasileiros. “Mas, nés, os operdrios, nao devemos estranhar esse tratamento por parte dos tais ‘democratas’, pois foi sempre assim que eles nos julgaram quando, antes da subida ao poder do Grande Presidente Vargas — o redentor do operario brasileiro — tentavamos er- guer a nossa voz em defesa dos nossos direitos.””* Segundo o texto, as oposigées declaram que Vargas nada fez pelos operdrios. “Mas porque, entao, falam hoje tanto em operdrio; em protegio ao operdrio, em casa para o operdrio, quando antigamente, antes do advento getuliano, eles, os tais ‘democratas’, nao se lembravam do operdrio nas suas campanhas polfticas e nos parlamentos?!...” Se Vargas nada fez pelos trabalhadores, como denunciam as oposig6es, continua o manifesto, “ao menos um grande beneffcio ele prestou: despertou na sua consciéncia o valor que represen- ta dentro da nagao, o que sempre lhe foi negado; deu-lhe personalidade, civismo e liberdade para fazer valer os seus direitos que sempre lhe nega- ram os tais ‘democratas’”. O texto ainda pedia aos companheiros para lembrarem da greve da “L. R.”, no Distrito Federal, quando os trabalha- © IMAGINARIO TRABALHISTA dores reivindicavam, pacificamente, aumento salarial. Logo os “demo- cratas” enviaram “uma grande forga policial que trancafiou no xadrez e seviciou os operarios menos temerosos, fazendo calar pela forga a voz do entio desprotegido operdrio”. Continuando, o manifesto ainda declara: “Operdrio! em que democracia brasileira vocé foi recebido no Palacio do Catete? Em que democracia brasileira vocé escreveu uma carta ao Presidente da Reptblica e obteve resposta prontamente?” Em que democracia brasileira vocé se ombreou, nas ruas, com o Presidente da Republica e teve a honra de apertar-Ihe a m&4o? Em que democracia brasileira vocé teve o prazer de ver o Presidente da Reptblica tomar nos bracos o seu filho querido, pobre, mas tao brasileiro quanto os filhos dos tais ‘democratas’?” Por fim, conclui o manifesto: “é por isso que eles, os tais ‘democra- tas’, injuriam o Presidente Vargas, taxando-o (sic) de Fascista e nos cha- mam de ‘BAGUNCEIROS, ANALFABETOS E BEBADOS’.” Portanto, nao se trata apenas de uma légica utilitarista, com a troca de beneffcios sociais por obediéncia e subordinacao politica. Sem negar a légica material presente no pacto estabelecido entre Estado e classe traba- lhadora, Angela de Castro Gomes afirma que houve uma combinagao com a légica simbélica embutida no discurso estatal, cujas mensagens, fundamentadas na ideologia trabalhista, resgataram idéias, crengas, valo- tes e a auto-imagem construfda pelos préprios trabalhadores na Primeira Repdblica. Para a autora, o Estado varguista nao surgia apenas como pro- dutor de bens materiais, mas, como formulador de um discurso que to- mava componentes simbélicos da identidade construfda pelos préprios operdrios no perfodo anterior a 1930, articulava demandas, valores e tra- digdes da classe e os apresentava como seus — além de ressaltar os bene- ficios sociais como uma atitude generosa que exigia reconhecimento e, fundamentalmente, reciprocidade. Segundo Angela de Castro Gomes, a classe trabalhadora “obedecia”, se por obediéncia politica ficar entendi- do o reconhecimento de interesses e a necessidade de retribuigao. “Nao havia, neste sentido, mera submiss4o e perda de identidade. Havia pacto, 59 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM™”: POLITICA E CIDADANIA... isto é, uma troca orientada por uma légica que combinava os ganhos materiais com os ganhos simbdlicos da reciprocidade, sendo que era esta segunda dimensdo que funcionava como instrumento integrador de todo 0 pacto.””8 Por presidir e garantir novas relagdes entre Estado e classe trabalha- dora é que, da capital paulista, Sebastiana Rocha e 21 pessoas declararam por telegrama: “queremos Getilio porque para os trabalhadores brasilei- ros ele € um simbolo”;”? ou levou Anna Katafaj, da mesma cidade, em nome de outras 27, a escrever: “queremos Getilio, clamam os trabalha- dores, porque Gettilio conhece nossos direitos e deveres.” Mas se ha di- reitos e deveres entre as partes, logo, afirmou o também paulistano Tolstoi Martins, em telegrama assinado por 32 companheiros: “todos os brasilei- ros cumprem com o seu dever, cumpra 0 seu, candidate-se.” Receosos de que, com outro governante, os fundamentos materiais e simbélicos do pacto fossem rompidos e, no mesmo movimento, os bene- ficios da legislago e o discurso estatal que os reconhecia politicamente se perdessem, os textos telegrafados eram bastante objetivos: “A garantia do trabalhador é V. Excia.”, disseram Jodo Isidoro e mais 23 pessoas da cidade de Sao Paulo. Trés outras, da mesma cidade, declararam que “sem vosséncia nao hé garantia trabalhador”; Nicolino Perusso junto com 28 compa- nheiros, todos também paulistanos, escreveram que “unicamente vosséncia poderd garantir continuidade da legislagio trabalhista”. Justino A. dos Santos, de Friburgo, Rio de Janeiro, foi claro: “pego encarecidamente para V. Excia aceitar candidatura para nao ser destruido tudo que vos tendes feito pelo povo Brasileiro.” Vargas, no entanto, nao se desincompatibilizou, relutando em con- correr as eleigdes, pelo menos publicamente. Diante da recusa em se candidatar, muitos trabalhadores, em seus telegramas, manifestaram re- ceios, medos e inquietagées. E 0 caso de Odilon Melucci, do Distrito Federal, ao declarar que “se recusardes a candidatura os humildes chora- r4o e nao haver4 mais esperangas para os desamparados”; da mesma ca- pital, Gloria M. Couceiro, por sua vez, afirmou que “se recusardes a candidatura haverd lagrimas sobre a terra brasileira”. Com diividas, Ma- ria Aparecida de Oliveira, da cidade de Sao Paulo, em nome de outras 15 60 © IMAGINARIO TRABALHISTA pessoas, foi enfatica: “Nés queremos Getilio porque ele encarna os nos- sos ideais. Por que serd que Gettilio nao nos quer mais?” Ao reconhecerem um governo que os elevou a categoria de cidadaos, com deveres, mas sobretudo com direitos sociais, e ao afirmarem os ganhos materiais ¢ simbdlicos usufruidos desde o inicio dos anos 1930, os traba- lhadores, partilhando idéias, crengas e comportameiitos em comum, nao poderiam admitir ofensas e agressOes Aquele que presidia o pacto. Aceitar os insultos pablicos a Vargas seria nao reconhecer devidamente os beneff- cios. Em uma palavra, ingratidao, uma falta condendvel, porque muito grave, na cultura popular. Indmeros telegramas, citados anteriormente, repudiavam as agressdes dirigidas a Vargas por seus opositores. Partilhan- do dos mesmos valores, o mecdnico Ovidio Barros telegrafou em nome de uma comissao de trabalhadores da cidade de Propri4, Sergipe, comu- nicando que “os trabalhadores de Proprid, com 0 apoio do povo em geral, levaram a efeito uma passeata de desagravo querida pessoa de V. Excia. agredida de ptblico com acusagées pesadas, injustas e desleais por quem tem o dever de respeitar as leis e assegurar a ordem publica distribuindo uma verdadeira justica. A festa teve o verdadeiro aspecto de civismo em um ambiente patridtico de disciplina numa belissima ligao moral e de democracia para quantos necessitem aprender a respeitar os seus adversdrios politicos.” Insatisfeitos com os rumos da transigao A democracia, sentindo-se ameagados com a possibilidade de voltarem ao tempo de “antes”, os tra- balhadores se mostraram indignados. “E na defesa de sua condigao de ‘vencedores’, de ‘cidadaos”, diz Spindel, “que eles tomam consciéncia de sua nova situagao de ‘vencidos’”."” Muitos reagiram com intransigéncia, recorrendo a argumentos autoritérios e de confronto politico. Tobias Canto, telegrafando pelos operdrios da construgao civil de Patos, Minas Gerais, disse que “trabalhadores nesta cidade mandam dizer que estao aguardando ordens de V. Excia. para o que der e vier”. Da capital paulista, Palmira Longhi e outras 31 pessoas garantiram que “o povo nio se inti- mida com ameagas”. Vitor Pujol, de Blumenau, protestou “contra baixe- 61 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA... zas atitudes s6rdidas utilizada forgas oposicionistas com seus termos, pré- prios de irresponsabilidade”. Mais ainda, afirmou Vitor, “fui dos que se bateram em 32 de armas na mio contra V. Excia., mas hoje sou um dos que se baterao de armas na mao para defender V. Excia.”. Com argumen- tos diversos, os trabalhadores formulavam discursos autoritdrios e antidemocrAticos. “Estamos af”, afirma Daniel Aardo Reis Filho, “diante de um tema delicado, doloroso para a meméria da esquerda e para a reconstituigao da trajetéria das classes trabalhadoras”. Recusando um certo tipo de interpretagdo mais comprometida com premissas nao demonstré- veis do que com as evidéncias disponiveis, o autor lembra que, nesse momento, para os trabalhadores, as alternativas eram muito restritas: “de um lado, a democracia liberal excludente das elites. De outro, 0 estatismo nacionalista e social (a democracia social e autorit4ria prezada por Vargas).” Portanto, no Brasil e na América Latina, pelo menos nessa época, o regi- me democrético nem sempre esteve afinado com as demandas da classe trabalhadora: “a democracia é ‘liberal’ e nao ‘social’, exclui os trabalha- dores, e o programa social nao passa pelas instituigdes da democracia representativa, os trabalhadores votam nos ditadores.”" O radicalismo politico popular muitas vezes revelava disputas econ6- micas para a melhor repartigéo da riqueza, expressando antagonismos entre as classes sociais. Em junho, por exemplo, Vargas decretou a lei 7.666, que dispunha sobre os Atos Contrarios 4 Economia Nacional, co- nhecida popularmente como “lei malaia”. Pela legislag4o, a industria na- cional seria protegida contra a agdo de trustes e cartéis, permitindo, ainda, que o governo federal interviesse em empresas e expropriasse seus bens, se atentassem contra os interesses do pais. O protesto das elites indus- triais foi imediato e contundente. Na imprensa, liderancas empresariais e politicos de oposi¢’o acusaram Vargas de afugentar o capital estrangeiro e de provocar uma crise politica com o grande aliado econédmico do pais, os Estados Unidos da América. Assis Chateaubriand, assustado com a “lei malaia”, foi o seu maior critico, mobilizando, para isso, seu conjunto de jornais. O Radical, entrevistando alguns trabalhadores do Distrito Fede- ral sobre a “lei malaia”, deixou registrados em suas p4ginas alguns depoi- mentos reveladores. No entender de um caixa empregado em uma casa 62 © IMAGINARIO TRABALHISTA comercial, “‘trust’ é sindnimo de dominio econémico. A lei fiscaliza o capital estrangeiro e nacional. £ um passo para a socializagio inevitavel. Se todos os homens sao filhos de Deus, por que tudo para um grupo e nada para nés todos?”* Gomes Filho, um poeta, foi taxativo: “Pau no capital opressor. Livre concorréncia, para que o pobre possa esperar um lugar ao sol. No mais, socializagao.” A comercidria Enéida Batista, apés pedir ao repérter maiores explicagées sobre a lei, refletiu um pouco e afirmou: “Tenho uma confianga inabalavel no presidente. Ele sabe o que faz. Duvidar dele é acreditar nos que querem gozar a vida 4 custa dos pobres.” O engraxate Ormindo F, Galvao comentou: “Li o estrilo dos jornais de oposi¢ao. Ele [o presidente] prometeu acabar com a politica do rico contra o pobre e esté cumprindo a palavra.” Manoel Rosas, gargom ¢ antigo lider operdrio, aprovou a lei com entusiasmo, mas duvidou de sua aplicacao: “O capitalismo internacional é um polvo terrfvel. Sera muito dificil livrar a pobreza dos seus tentdculos. Se o presidente executar a lei, as classes trabalhadoras devem-lhe um grande servico.”§> Radicalismo popular mas, sobretudo, safdas legais para a continuidade de Vargas no governo, defendiam muitos telegramas. Os textos dos assa- lariados demonstram que o aprendizado de cidadania social fincou tradi- ges em sua cultura politica, embora eles, naquele momento, se sentissem ameagados; agora tratava-se do aprendizado politico, de lidar com os direitos inerentes ao regime democratico para fazer valer a sua vontade como cidadaos. Nesse aspecto, trabalhadores e populares, muito rapida- mente, apropriaram-se de um dos fundamentos republicanos e do regime representativo, transformando-o em uma idéia-forga. Soberania popular, alegavam em seus textos, seria o elemento mais importante do regime democratico, refletindo a liberdade politica do povo de fazer suas esco- lhas e de expressar a vontade da maioria. Em particular, diziam os tele- gramas, a democracia nao poderia se restringir a votar em nomes para a presidéncia da Republica, mas também, e sobretudo, permitir a interfe- réncia do povo na escolha dos préprios candidatos. Ao se instituirem politicamente soberanos, os trabalhadores questionavam a maneira como a transigao 4 democracia estava sendo conduzida pelas elites politicas do pats. “E 0 povo quem escolhe seus mandatérios nao cabe nenhuma recusa 63 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... aos escolhidos”, escreveu do Recife Romildo Souza.** Rafael Ozi, da ci- dade de Sao Paulo, declarou em seu telegrama, seguido de 30 assinaturas, que “sé ao povo cabe o direito de indicar seu presidente, e 0 povo quer Vosséncia”. Walter Barreto e mais 11 companheiros, todos de Itabuna, disseram: “nao compreendemos eleigées livres, sem poder votar nome vosséncia.” Para Benedito de Almeida e 17 outras pessoas, todas da capi- tal paulista, “somos a maioria do povo, portanto Dr. Getiilio nao pode decepcionar”. Jeronimo Gomes, em nome de 3.000 operdrios da fabrica Suerdick, de Maragogipe, Bahia, foi enfatico: “compreendendo ser este regime [democratico] onde o povo tem direito de apresentar seu governo nao lhe ser imposto como querem politicos demagogos profissionais, so- licitamos candidatura sua personalidade.” Apenas votar, portanto, nao bastava. A democracia, em sua plenitude, exigia também o direito de escolher os candidatos que concorreriam as eleigdes. Afinados com as nogées populares de soberania e vontade popu- lar, os lideres queremistas, em editorial publicado nos jornais, afirmaram que “o voto é a mais legitima propriedade do eleitor”, permitindo que “os homens investidos das fungdes de Governo sejam depositarios da con- fianga popular”. No entanto, a democratizagao do pafs se vé ameagada em sua legitimidade por um dispositivo do cédigo eleitoral que impede Vargas de candidatar-se. Portanto, alegaram: “Que diabo de redemocratizagao é esta onde o povo fica impedido de fazer a sua livre escolha para a suprema magistratura do pais? Uma lei que impede alguém de ser eleito para a Presidéncia da Repi- blica, pode ser justa em qualquer outro regime, nunca em uma democracia. Na democracia, quando a lei contraria a vontade popular, nao é esta que deve conformar aquela, mas ao contrério. A lei que contraria a vontade popular é anti-democratica e precisa ser revogada. Nés queremos Getilio. E preciso que a lei se conforme com a nossa vontade,” Por nao terem sido consultados sobre as candidaturas e impedidos de escolherem a sua, alegavam muitos trabalhadores, eles interpretavam os © IMAGINARIO TRABALHISTA nomes de Eduardo Gomes e Eurico Dutra como sendo “impostos” ao povo pelas elites polfticas e, questionando a legitimidade das eleigdes, se recusavam a participar do pleito, como forma de protesto. “Governo do povo para o povo é 0 povo quem manda”, era assim que Americo Villante e 28 outros colegas do Distrito Federal entendiam a democracia. Portan- to, sentindo-se impedidos de exercerem a soberania politica, as recusas se multiplicavam nos jornais. Carlos Rossi, da cidade de Sao Paulo, escreveu para declarar que “os brasileiros nao querem Dutra ou Gomes. Nés que- remos Dr. Getilio Vargas”. Aguinaldo S. Marques, de Salvador, Bahia, ameagou: “Seja nome Vossa Exceléncia candidato ou no sairei minha residéncia para dar voto.” Igualmente, Julio C. Arruda e mais 20 outras pessoas da capital paulista pediram a candidatura de Vargas, “caso con- trario votaremos em branco”. Desire G. Silva, do Distrito Federal, disse que “se V. Excia. nao for candidato terei de votar em branco”. Também Trindade Gil e outros 12 companheiros, da cidade de Sao Paulo, declara- ram que “se V. Excia. nao se candidatar seremos obrigados votar em bran- 0”. Otavio Pavao, da mesma cidade, acompanhado por 14 assinaturas em seu telegrama, pediu, em nome dos trabalhadores, a candidatura de Vargas “para que os mesmos possam preencher seus votos”. Os lideres do Comité Pré-Candidatura Getilio Vargas do Distrito Federal, no entanto, nao se limitaram a publicar milhares de telegramas nas paginas compradas aos jornais, a organizar comicios e a centralizar as atividades de outros comités espalhados pelo pais. Em pequenos edito- riais, verdadeiros modelos de pedagogia politica, eles explicavam, com linguagem simples e didatica, o que era uma Assembléia Constituinte, os fundamentos da democracia, o que significavam direitos politicos e de cidadania, entre diversas outras questées relativas ao regime representati- vo. Mais ainda, em textos muito bem escritos e ilustrados com desenhos que chamavam a ateng4o do leitor, os Ifderes do movimento reinter- pretaram a histéria politica do Brasil, elegendo como personagem central 0 “povo brasileiro”. Com o titulo “Através da Hist6ria, um povo marcha para a Liberdade!”, a série, com otimismo dosado, “sem o ufanismo tfpi- co do Estado Novo e sem a agressividade ou a erudig4o do discurso udenista”,®> descreveu, em oito etapas, a luta do povo por seus direitos 65 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM”: POLITICA E CIDADANIA... polfticos.®* A série, publicada a partir de setembro, demonstrava que 0 queremismo mudava suas feig6es. Nao se tratava mais de “Gettlio com ou sem constituinte”, mas, apostando na institucionalizagao da polftica, e nao na sua simples personalizagéo, o movimento passou a defender o regime democratico e a se comprometer com ele. “Desde a Inconfidén- cia”, diz o primeiro texto, “crescia no povo brasileiro a necessidade de obter direitos politicos e conquistar sua liberdade” e assim, sob a pressao popular, D. Pedro I libertou o Brasil do jugo colonial. No entanto, insatis- feito com a primeira constituigéo, porque outorgada, “o povo, que co- nhecia seus direitos, continuou seus movimentos de reivindicagio”, desejando uma carta “votada por uma assembléia livremente eleita”. Com o Ato Adicional de 1834, “dando direitos mais sélidos 4 vontade popular, a causa da liberdade tinha vencido sua primeira batalha!”*” Mas havia o “espetdculo degradante das senzalas”. Na luta por seus direitos, o povo clama pelo fim do “crime monstruoso” da escravidao até que mesmo os senhores “mais recalcitrantes vao cedendo, aos poucos, a pressio popular”. Com a Lei Aurea, enfim, “o povo conquista a sua maior vitéria”. Todavia, sem o trabalho escravo, o regime imperial rapidamente se esgotou, incapacitado de responder adequadamente aos novos proble- mas econémicos e sociais. Assim, “o povo brasileiro falou, entéo, nova- mente, elaborando em 1891, a primeira Constituigao da Repdblica, distribuindo eqiiitativamente os direitos dos cidadaos”. Contudo, com 0 passar do tempo, novamente “o Povo Brasileiro impée a sua vontade! A Reptiblica de 1889 comegava a perder a confianga do povo. Esquecidos daqueles que os tinham eleito, os parlamentares e o Governo cogitavam mais os seus problemas pessoais, deixando em segundo plano os reais interesses da coletividade”. Insens{vel, o governo, hostilizando o préprio povo, provocou os movimentos armados de 1922 e 1924 até que, “final- mente, contando com 0 apoio de toda a Nagio, triunfou a Revolug4o de 1930, levando ao Governo os homens que conheciam as necessidades da coletividade”. Mais adiante, com a carta de 1934, “o povo brasileiro ti- nha, mais uma vez, imposto a sua vontade”. Contudo, os conflitos, sobre- tudo partiddrios, se agravaram. O pafs necessitava de uma estrutura politico-administrativa mais enérgica para vencer as dificuldades e alcan- 66 © IMAGINARIO TRABALHISTA gar “uma verdadeira democracia”. Assim, em 1937, “o povo aceitou a Constituigao outorgada pelo Governo, porque compreendeu a sua necessidade”. Finalmente, avaliando que “ha mais de um século, através da histéria este povo marcha para a liberdade”, diziam os lideres queremistas no oita- vo texto, chega-se aos dias atuais e, com a perfeita sincronia entre Estado e sociedade, “o povo exige a Assembléia Constituinte e 0 Governo concorda- 14, porque isso representa a vontade popular”. Mas nesse momento, crucial “para a construgao de uma verdadeira democracia popular”, a liberdade do povo nao pode depender da personalidade que, eventualmente, exerga o governo. A sua luta, nesta “encruzilhada da historia”, era a de alcangar seus direitos politicos, mas também o de garantir, constitucionalmente, 0s seus direitos sociais: “O povo brasileiro sabe de uma coisa: que s6 uma imediata ASSEMBLEIA CONSTITUINTE, livremente eleita e traduzindo a von- tade da coletividade, pode assegurar uma base jurfdica que corresponda a nossos anseios de liberdade. Fora da Assembléia Constituinte, ha apenas promessas sinceras de homens honestos, mas que, apesar disso, s40 ape- nas promessas.” Se o povo adquiriu, ao longo de sua histéria, experiéncia politica de luta pela liberdade, ele, contudo, “nao quer arriscar seu futuro na dependéncia de promessas”. E preciso que seus direitos estejam garanti- dos na Constituigio, pois “precisamos solidificar a nossa liberdade, de modo agarantir ao povo sua plena soberania nos destinos da patria. Nossos direi- tos e nossas reivindicagdes devem estar a salvo da vontade oscilante dos homens!” O objetivo, pregavam os lfderes queremistas, era a democracia, mas “democracia por principios e nao por concessao dos homens!” E a garantia para a democracia, a liberdade e os direitos sociais estava na “Cons- tituinte, com Getilio Vargas!” A série “Através da Histéria, um povo marcha para a Liberdade!”, nao édiffcil perceber, falaem nome do povo, interpreta os acontecimentos do passado de acordo com interesses polfticos imediatos e resulta em uma narrativa teleolégica. No entanto, denunciar os contetidos dos textos como “discurso populista” é atitude pouco proveitosa. Lembremos que os re- voluciondrios, em nome do “proletariado”, e os liberais, falando pela “Nagao”, nao fazem muito diferente. 67 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... As novidades discursivas contidas na série nao sao desprezfveis. Em um momento em que a “oficina da Histéria” privilegiava os grandes homens e seus feitos memorAveis, os queremistas elegeram 0 “povo” — vale dizer, os trabalhadores na interpretagéo varguista — como prota- gonista da histéria. O povo nao apenas “obrigou” D. Pedro I a declarar a independéncia e a Princesa Isabel a assinar a Lei Aurea, mas, particu- larmente, lutou por seus direitos — sociais, em um momento, politicos, em outro. Na série, diz Elza Borghi de Almeida Cabral, “todas as etapas mostravam-se como momentos em que 0 povo compreendera a inadequagao de uma situagio, o povo pedira para mudar e o povo agira, sempre o mesmo povo, fazendo a historia, em marcha para a democra- cia”.®® Na versao dos lideres queremistas, nao foram os “homens noté- veis” ou um lider carismatico que fizeram a histéria, mas sim 0 povo. Novidades, portanto. Os queremistas, naquele momento, nao compreendiam a democra- cia da mesma maneira que os liberais udenistas. Para estes, democracia era o direito de votar nos candidatos indicados pelos partidos politicos. Para os lideres queremistas, democracia era o regime politico que ex- pressava a vontade do povo, a soberania popular, a decisdo da maioria. A democracia, sobretudo, era o regime que garantia a cidadania social dos trabalhadores. Convencidos que a democratizagao do pais era inevitavel, os quere- mistas perceberam que era necessdrio aprender a lidar com os direitos politicos. Tomaram consciéncia de que a cidadania politica dos trabalha- dores poderia ser utilizada para garantir a cidadania social adquirida na década anterior, principalmente por meio da legislagao trabalhista. A ameaga de perder os direitos sociais surgia como real, sobretudo, acredi- tavam eles, com uma transi¢gio polftica sem o controle de Vargas. Somen- te escrevendo as leis sociais em uma Constituigéo, na letra da lei, os assalariados estariam seguros, exercendo, na plenitude, a cidadania social e politica. Assim, a presenga de Vargas no governo durante a Constituinte era um imperativo, tanto para a garantia de seus direitos quanto para a ampliagao deles. Para os trabalhadores, portanto, o lema “Constituinte 68 © IMAGINARIO TRABALHISTA com Getilio” expressava uma escolha politica, cuja estratégia se explica a partir de seus proprios interesses como personagem politico. 0 “NOS QUEREMOS”: ATO FINAL ‘A partir de setembro, o cenério privilegiado da transigdo continuou sen- do as ruas e os jornais, embora governo e oposigées, muito discretamen- te, procurassem um outro: os bastidores da politica. Vargas, embora ‘ cauteloso, aproveitava-se das candidaturas de um general e de um briga- deiro para dividir as Forgas Armadas. Se conseguisse enfraquecer os dois candidatos a presidéncia, o que j4 conseguira no caso de Dutra, um tertius poderia surgir vitorioso — certamente o préprio Vargas. Entretanto, o continuo crescimento do queremismo, a possibilidade de convocagao de uma Assembléia Constituinte — agora com o apoio de Luiz Carlos Prestes —, e as manobras continufstas de Vargas inquietaram as oposicdes. Em 21 de setembro, a UDN inaugurou a pratica, comum em suas fileiras durante os 19 anos seguintes, de recorrer 4s Forgas Arma- das para a resolugao de seus préprios problemas politicos. O secretario- geral do partido, em carta ao general Gées Monteiro, pediu “garantias indispensaveis a liberdade do pleito”.*’ A imprensa também contra-ata- cou. Com 0 titulo “Sao Paulo contra a Constituinte. Manifestam-se varios préceres”, os jornais de Assis Chateaubriand publicaram depoimentos de algumas personalidades importantes. Segundo o sr. Joao Sampaio, “a di- tadura e sua grei alimentam e incentivam o movimento subversivo pré- constituinte com Getilio e procuram alarmar a opinido piblica com as tendenciosas notfcias sobre desordens imagindrias, que poderiam resultar do pleito eleitoral”.” A sra. Carlota Pereira Queiroz, por sua vez, argu- mentou: “Por que raz4o constituinte com Getilio Vargas? Os que 0 apédiam deveriam estar satisfeitos com a Constituig4o por ele pessoalmente outor- gada e s4o incoerentes por essa pretensao.” Tentando reagir ao crescimento do queremismo, a UDN langou, em fins de setembro, algumas campanhas para popularizar a candidatura 69 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA. de Eduardo Gomes, mas insistindo na tematica antigetulista. Aprovei- tando a frase enunciada pelo brigadeiro, “Lembrai-vos de 1937”, o par- tido patrocinou um “concurso popular para cartazes” que melhor representasse o alerta, com prémio de 3.000 cruzeiros. Como exemplo, os organizadores do concurso publicaram o desenho de um rosto com a boca e os olhos vendados.*! Também nessa época, & procura de recursos financeiros, a UDN publicou nos jornais o seguinte texto: “O Brasil esta dividido em dois campos de luta: os que querem salva-lo e OS QUE QUE- REM SALVAR-SE. Adquira ‘CEDULAS DEMOCRATICAS’ PRO-EDUARDO GO- MES e vocé estard contribuindo para salvar o Brasil das garras dos que esto querendo SE SALVAR.” Senhoras de classe média, com o objetivo de arrecadar fundos, passaram a vender um doce, cuja receita foi elabora- da por elas mesmas, chamado “brigadeiro”. Também visando populari- zar a candidatura, cabos eleitorais gritavam: “vote no brigadeiro, é bonito e é solteiro.” O contexto internacional igualmente inquietava as oposig6es. Na In- glaterra, por exemplo, o Partido Trabalhista, com uma politica antiliberal, preparava-se para iniciar a nacionalizac4o de indistrias e do sistema ban- cdrio. Mas, sobretudo, assustava 0 quadro politico argentino, em que sin- dicalistas e trabalhadores, nas ruas, exigiam Perén no governo do pais. Nesse caso, em particular, o perigo era assustador para os opositores de Vargas devido a similaridade dos dois casos. Nos jornais, as notfcias sobre a situag4o argentina surgiam na primeira pagina, embora com manchetes contraditérias e pouco esclarecedoras: “Perén escorracado do governo.”% “Perén candidato oficial 4 presidéncia.” “Vitimas da demagogia fascista os partidarios do coronel.” “Insurgem-se os trabalhadores contra Peron.” “Perén deposto por um golpe militar.” “Per6n assumiu o controle da po- ltica argentina.” “O terror domina a Argentina. O governo tenta destruir 0 Ultimo vestigio de resisténcia”, entre diversas outras. Como um espelho que mostra um futuro ameagador, assim a Argentina surgia aos olhos das oposigées brasileiras naquele momento. Embora nao explicitadas com clareza, as correlagées entre ditadores apoiados por trabalhadores e sin- dicalistas eram constantes: “O povo argentino responsabiliza o nosso go- verno [Vargas] pela duracdo da ditadura em seu pais”, dizia uma manchete 70 © IMAGINARIO TRABALHISTA de jornal. Nao casualmente, Otavio Mangabeira, um dos mais importan- tes lideres das oposigées, declarou: “Aqui nao tem peronada.” Seja como for, faltando trés meses para as eleigdes, as duas candidatu- ras nao conseguiam mobilizar o eleitorado, sobretudo os trabalhadores. Na percepgao de Segadas Viana, que viveu de perto aqueles acontecimen- tos, as duas campanhas eram lastimaveis: “a candidatuta do brigadeiro nao tinha sensibilizado a massa, e depois, porque o marechal Dutra, por sua vez, ele tinha conseguido dessensibilizar a massa.”*? Dois episédios sao reveladores. Em um deles, um grupo de portudrios e estivadores foi levado pelo primo de Carlos Lacerda para conhecer Eduardo Gomes, no Ministério da Aerondutica. Apés esperarem por meia hora, o brigadeiro surgiu com um lacénico “boa tarde”. Acostumados com a recepgao calo- rosa de Vargas ou Marcondes Filho, mesmo assim um deles tomou a pala- vra e saudou a candidatura da UDN. Ao fim do discurso, Eduardo Gomes limitou-se a dizer “obrigado”, virou-se e entrou em seu gabinete. Segun- do Viana, “eles safram dali odiando o brigadeiro”. Mas com Eurico Dutra as coisas nao foram muito diferentes. Ao falar no auditério da Federago dos Rodovidrios, o general discorreu longamente sobre os feitos glorio- sos do Duque de Caxias, sobre o relevante papel de Deodoro da Fonseca na consolidag4o da Republica, sobre as vitérias retumbantes do almirante Tamandaré, entre outros militares famosos, mas nem uma tinica vez se- quer utilizou a palavra “trabalhadores”. Ao finalizar o discurso, somente duas pessoas, Marcondes Filho e um sindicalista, aplaudiram Dutra, & frente de uma platéia silenciosa. Enquanto isso, os lideres queremistas mostravam-se cada vez mais audaciosos. Marcado nao casualmente para o dia 3 de outubro, o préxi- mo comicio, chamado de “dia V”, de “vitéria”, revelava imaginagao e ousadia polftica, Embora o ponto central do evento, como os anteriores, fosse no Largo da Carioca, no Distrito Federal, o carater da manifestagao era nacional. No mesmo dia e na mesma hora, centenas de outros seriam realizados “nas capitais, cidades, vilas e nos mais distantes e modestos lugarejos espalhados por todos os Estados do Brasil”,™ dizia o manifesto de convocagao. Ao final, enquanto os manifestantes do Distrito Federal, em passeata, iriam até o Palacio do governo da Republica, nas capitais 0 71 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA... povo marcharia para as sedes das interventorias e nas cidades até as pre- feituras. O Comité Pré-Candidatura Getilio Vargas do Distrito Federal nao mais se preocupava em esconder 0 apoio logistico estatal e o finan- ciamento privado. Muito dinheiro foi gasto para a realizagdo do comicio. No Rio de Janeiro, trens suburbanos e bondes, com hora marcada e fai- xas identificando-os com o queremismo, levariam as pessoas, gratuita- mente, até o centro da cidade. Trens de longo percurso, com trajeto de ida e volta e alimentagio pagos pelo comité, estariam a disposigao da populagao das cidades de Volta Redonda, Trés Rios, Porto Novo do Cu- nha e Cachoeiro — esta Gltima em Sao Paulo. Uma cadeia nacional de radios, com mais de 60 emissoras, também seria acionada. Calcula-se que, no Largo da Carioca, compareceram entre 80 mil e 100 mil pessoas. Em S4o Paulo, o numero teria chegado a 200 mil — ou 250 mil, segundo outras verses. Outras capitais, como Porto Alegre, Sal- vador, Recife e Belo Horizonte, também presenciaram grandes concen- tragdes. No Distrito Federal, representantes de S40 Paulo, Volta Redonda, Niterdi, das favelas cariocas, entre diversos outros, discursaram. O palan- que, muito bem iluminado com lampadas em forma de V e com um imen- so retrato a éleo de Vargas, cercado com cartazes que aludiam as suas realizagdes no governo, chamava a atengio do piblico. O primeiro ora- dor, Martins Silva, lembrou da Revolugao Francesa e afirmou que 0 povo deveria igualmente derrubar a sua Bastilha, representada, no Brasil, pelos “politicos profissionais”.°> José Junqueira, lider do comité do Distrito Federal, repudiou as declaragdes do embaixador norte-americano sobre os rumos da democracia no Brasil. Os brasileiros, disse, nao comentam que na “democracia americana haja restrigdes de raga, cadeiras elétricas e c4maras letais”. Todos, no entanto, insistiram na convocagao de uma As- sembléia Constituinte. As 20 horas, iniciou-se a “marcha luminosa”. Milhares de pessoas conduzindo cartazes, retratos de Vargas, emblemas e lanternas chegaram ao Palacio Guanabara. Emissoras de radio, transmitindo para todo o pais, registraram o que se seguiu. Apés as palavras iniciais de José Junqueira, Hugo Borghi, ao lado de Vargas e cercado de microfones, leu o seguinte documento: 72 © IMAGINARIO TRABALHISTA “ASSEMBLEIA GERAL DO POVO BRASILEIRO, realizada em praca publica, no dia 3 de outubro de 1945 Reunidos em praca publica, em todos os centros, capitais do pais, cidades, vilas, povoados, estabelecimentos, lares etc., 0 Povo Brasileiro, em uso de seus direitos e atribuigGes, resolveu o seguinte: 1°— ANazgio brasileira, representada pela opiniao soberana de seu povo, quer as eleigdes a 2 de dezembro préximo; 2° — as referidas eleigdes devem ser destinadas a eleger os legitimos representantes do povo para comporem a ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE, destinada a criagdo de Estatuto Legal, que deverd reger a vida politica do pais; 3° —as eleigdes para Presidente da Reptiblica deverdo ser realizadas em €poca que a nova Constituicdo elaborada prefixar; 4° — 0 povo determina que S. Exa., o Presidente da Republica, proceda a convoca¢ao imediata de seu Ministério, a fim de atender ao que ficou decidido por essa Assembléia Geral, para que se cumpram os tramites legais da redemocratizagao do pais. 0 POVO Brasil, 3 de outubro de 1945, ano do centésimo vigésimo quarto da Independéncia e qiiinquagésimo sétimo da Repiblica.” O texto, em papel de luxo e letras géticas, traduzia as nogGes mais funda- mentais do queremismo: a soberania do povo, a vontade da maioria, a democracia direta e popular. Ao receber 0 documento, Vargas, como de praxe, discursou. Reafir- mando que ndo seria candidato, nem pretendia dar golpes, insistiu que presidiria as eleigdes e retornaria ao sossego e & obscuridade do lar. No entanto, disse ele, “devo acrescentar que atravesso um momento drama- 73 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... tico de minha vida publica e que preciso falar ao povo com prudéncia e lealdade”. Reconhecendo o clamor popular por uma Assembléia Consti- tuinte, afirmou que o atual problema politico do pafs deveria ser resolvi- do dentro da lei e da ordem. Contudo, ressaltou, quando a vontade do povo nfo é satisfeita, ha o perigo da desordem e da revolta. Assim, de- nunciou ele, “devo dizer-vos que ha forcas reaciondrias poderosas, ocul- tas umas, ostensivas outras, contrarias todas A convocacao de uma Constituinte”. E, em tom de desafio, acrescentou: “Posso afirmar-vos que, naquilo que de mim depender, o povo pode contar comigo.” Sob aplau- sos e 0 canto do Hino Nacional, a manifestagdo chegou ao fim. Mas 0 queremismo e, sobretudo, o presidente, no “dia V”, tinham ido longe demais para os padrées da conservadora politica brasileira. Vargas, avalia com razao Elza Borghi de Almeida Cabral, “radicalizava tarde demais e sobre uma base de apoio precaria”.” A reagao das oposi¢ées foi imediata. Em nota oficial publicada nos jornais, a UDN ridicularizou 0 comicio: “o povo desta cidade acaba de presenciar, estarrecido, um inacreditavel espetaculo que, este sim, se diria ocorrido num ‘manicémio polftico’.”*” Qualificando 0 comicio de “bombachada” e denunciando os milhées de cruzeiros gastos, o texto acusou Vargas de manobras continufstas e que “o carater subversivo, j4 do comicio em si mesmo, j4 dos pronunciamentos do ditador nao pode ser contestado. A nago é agredida e ameagada. As forgas civis e militares que se opdem ao continufsmo sao tachadas de ‘reaciondrias’ pelo funda- dor do ‘Estado Novo’ totalit4rio fascista. O representante de um pais ligado ao Brasil pela mais profunda amizade é objeto de remoques”. Por fim, clamando pela intervengio militar, a nota concluiu que a UDN “con- fia em que as forgas vivas, de que disponha o Brasil, nao serao menos fiéis ao seu grande dever para com a Patria”. Embora o ministro da Guerra tivesse manifestado sua contrariedade ao comfcio e, em S40 Paulo, a manifestagao do “dia V”, na Praca da Sé, tivesse ocorrido sob clima de forte tensao, cercada por tanques, soldados armados com metralhadoras e carros de combate, os queremistas nao recuaram. Em 13 de outubro, um novo comicio foi realizado, repetindo os moldes dos anteriores. A novidade, no entanto, foi a presenga, sem 74 © IMAGINARIO TRABALHISTA discrigao alguma, de comunistas e socialistas. Cartazes do MUT, Partido Comunista do Brasil, Partido Nacional Classista, Partido Socialista, Parti- do Socialista Cristao e Partido Democratico Libertario surgiam ao lado das fotos de Vargas. Maurfcio Grabois, lider comunista, discursou pedin- do a Constituinte. Vargas, ao falar aos manifestantes, novamente denun- ciou que “existem forgas reaciondrias contrarias a essa idéia”,”® mas, surpreendentemente, acrescentou que, para a tranqjiilidade do povo, ele poderia ouvir os partidos politicos e as forgas organizadas da sociedade sobre a conveniéncia da convocagao de uma Assembléia Constituinte. E, para maior irritac&o de seus adversdrios, ainda afirmou: “Eu vos prometo fazer esta consulta para que cada corrente de opiniao assuma perante 0 povo a parcela de responsabilidade que Ihe cabe. Eles precisam dizer se esto de encontro aos clamores populares ou se persistem em ficar na corrente reacionaria.” A promessa de Vargas, sem divida inquietante para as oposigées, somou-se, dias depois, o discurso de Luiz Carlos Prestes, em comicio em Belo Horizonte. O lider comunista nao apenas exigiu uma Constituin- te antes da eleigao presidencial, mas sugeriu que Dutra e Gomes renun- ciassem As suas candidaturas.” Embora sem comprovagées, os rumores de que Vargas e Prestes teriam pactuado um acordo mostravam-se cada vez mais convincentes para os oposicionistas. O perigo, portanto, era muito grande: os dois maiores lideres populares do pais, verdadeiros mitos politicos, falavam a mesma linguagem e, pior, com 0 apoio dos trabalhadores. Vargas adiantava-se aos acontecimentos e criava outros, provocando aira das oposigées. Ao inaugurar mais 14 quilémetros de eletrificagao de trens suburbanos, ele convocou os trabalhadores a aderirem ao PTB. O partido, disse, seria uma organizagio alternativa aos extremismos de es- querda e permitiria “evitar que os operdrios constituam uma massa de manobra para os politicos de todos os tempos e de todos os matizes, os quais, depois de eleitos pelos trabalhadores, se esquecem dos compromis- sos com eles assumidos”.! Sobretudo, com o PTB, acrescentou, “os tra- balhadores deviam ir as urnas escolhendo os representantes safdos de seu seio e intérpretes de suas aspiragées”. 75 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM”: POLITICA E CIDADANIA... O discurso de Vargas tinha objetivos precisos. Os relatérios que ele recebia sobre a situac4o eleitoral, a partir de infcios de outubro, conti- nham indagag6es dos lfderes queremistas sobre quais rumos dar ao movi- mento. Quais as orientagdes, perguntavam: dissolver o queremismo? Ingressar no PTB? Aderir a outro partido? A resposta, portanto, nao tar- dou.'°! Mas ao indicar o PTB como um partido de trabalhadores, defen- der uma politica classista, denunciar os politicos tradicionais e ferir os princfpios basicos do liberalismo, Vargas continuava avangando muito além do permitido no comportamento das elites polfticas do pais. O Ra- dical, por exemplo, interpretou as palavras de Vargas 4 sua maneira: no Brasil, a divisao social era bem definida e os trabalhadores, conscientes de sua classe, deveriam se organizar politicamente: de um lado, diz 0 edito- rial, os “gra-finos”, os bacharéis, os “intelectualéides” e aqueles que, ri- cos, preocupados tao-somente com seus interesses pessoais, escolheram a UDN;; mas de outro, “os homens e mulheres que tressuam nas oficinas, nas fabricas, nos escritérios, nas lojas comerciais, e aquela massa enorme dos que laboram nos campos, se haviam decidido pelo Partido Trabalhis- ta Brasileiro, pela simples razo de que o trabalhador procura o seu parti- do como 0s reaciondrios vao procurar, por simples instinto, o desfalecente udenismo”.1 Embora as palavras de Vargas fossem apropriadas de diversas manei- ras, sua indicagao permitiu que um conjunto de idéias, crengas e atitudes coletivas — o trabalhismo como projeto politico, o getulismo como a sua personalizacao e 0 queremismo como movimento social, termos até en- tio sindnimos e intercambidveis — se institucionalizasse em um partido politico, o PTB. Nas paginas da grande imprensa, o comité do Distrito Federal, patrocinando a travessia do movimento social para 0 partido politico, incitava os trabalhadores: “Queremistas ontem e, agora, nas hostes do PTB.” No entanto, a partir do dia 15 de outubro, os jornais se abstiveram de noticiar a politica nacional. As manchetes sobre a sucesso, até entao vi- brantes, cederam lugar a temas diversos. Excecdo feita 4 Argentina, sem- pre de deniincia aos “métodos fascistas” de Perén. O novo com{icio queremista marcado para o dia 26 foi proibido pela policia. Naquele dia, 76 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA O discurso de Vargas tinha objetivos precisos. Os relatérios que ele | recebia sobre a situacdo eleitoral, a partir de infcios de outubro, conti- nham indagagées dos lideres queremistas sobre quais rumos dar ao movi- mento. Quais as orientagées, perguntavam: dissolver 0 queremismo? Ingressar no PTB? Aderir a outro partido? A resposta, portanto, nao tar- dou.'*! Mas ao indicar o PTB como um partido de trabalhadores, defen- der uma politica classista, denunciar os polfticos tradicionais e ferir os principios basicos do liberalismo, Vargas continuava avangando muito além do permitido no comportamento das elites polfticas do pafs.O Ra- dical, por exemplo, interpretou as palavras de Vargas 4 sua maneira: no Brasil, a divisio social era bem definida e os trabalhadores, conscientes de sua classe, deveriam se organizar politicamente: de um lado, diz 0 edito- rial, os “gra-finos”, os bacharéis, os “intelectualdides” e aqueles que, ri- cos, preocupados téo-somente com seus interesses pessoais, escolheram a UDN; mas de outro, “os homens e mulheres que tressuam nas oficinas, nas fabricas, nos escritérios, nas lojas comerciais, e aquela massa enorme dos que laboram nos campos, se haviam decidido pelo Partido Trabalhis- ta Brasileiro, pela simples raz4o de que o trabalhador procura o seu parti- do como 0s reacion4rios vao procurar, por simples instinto, o desfalecente udenismo”.'2 Embora as palavras de Vargas fossem apropriadas de diversas manei- ras, sua indicagio permitiu que um conjunto de idéias, crengas e atitudes coletivas — 0 trabalhismo como projeto politico, o getulismo como a sua personalizagao e 0 queremismo como movimento social, termos até en- tio sinénimos e intercambiaveis — se institucionalizasse em um partido politico, o PTB. Nas paginas da grande imprensa, o comité do Distrito Federal, patrocinando a travessia do movimento social para o partido politico, incitava os trabalhadores: “Queremistas ontem e, agora, nas hostes do PTB.” No entanto, a partir do dia 15 de outubro, os jornais se abstiveram de noticiar a politica nacional. As manchetes sobre a sucesso, até ent4o vi- brantes, cederam lugar a temas diversos. Exceco feita 4 Argentina, sem- pre de deniincia aos “métodos fascistas” de Pern. O novo comicio queremista marcado para o dia 26 foi proibido pela polfcia. Naquele dia, 76 O IMAGINARIO TRABALHISTA itrabalhadores desavisados compareceram no Largo da Carioca, mas en- ‘contraram apenas um choque da Policia Especial. Limitaram-se a debater politica em pequenos grupos." No dia 27 de outubro, o ministro do Trabalho, Marcondes Filho, em cadeia de 21 radios que cobriam todas as capitais e mais 54 que alcanga- yam o interior do pais, explicou aos trabalhadores o programa eas finali- ‘dades do PTB, o “partido criado para defender os seus interesses € 0 seu ‘futuro”.'* No dia seguinte, o comité do Distrito Federal publicou nos jornais, em folha inteira, um desenho estilizado de um operdrio com a frase: “Forja teu futuro, alistando-te no PTB.” No dia 30, O Jornal deua sua verso sobre o que ocorrera nas ruas da capital da Repdblica no dia anterior: “Desfilando sob os aplausos populares a poderosa concentragdo blindada que se deslocou ontem de Deodoro para a cidade era bem uma expressio do poder do povo. Mais uma vez colocavam-se as tropas a servico do pais e restitufam A Nagio o direito de determinar o seu proprio destino. O poderoso tank ‘Shermann’ roda sobre as avenidas dos suburbios para cumprir a grande missao. Nenhum tiro foi disparado. Emanando da soberania da Nag4o, o pronunciamento das forgas confunde-se com a aspiragio coletiva da democracia, liberdade, justica.”!5 AMALDIGAO DOS MARMITEIROS Aconspirago para depor Vargas estava em andamento hd algum tempo. O pretexto para a deposigio, em 29 de outubro, foi a nomeagao de seu irmao, Benjamin Vargas, para a Chefatura de Polfcia do Distrito Federal. Com o aval do embaixador norte-americano, Gées Monteiro e Eurico Dutra, entre outros, estiveram a frente do golpe militar. Algumas tentati- vas para impedir a deposigdo de Vargas ocorreram no Distrito Federal. Para dificultar a passagem dos tanques pela cidade, Segadas Viana plane- ‘jou bloquear as ruas com-bondes. Contudo, os dirigentes do Sindicato dos Carris nada puderam fazer, pois o DOPS, que aderira ao golpe, os 77 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA.., vigiava na sede da entidade. Hugo Borghi, por sua vez, entrou no Palacio Guanabara e logo recebeu uma metralhadora. Na Vila Militar, o general Paquet pensou em resistir, recuando, todavia, por falta de condigées polf- ticas nos quartéis. Vitoriosos, os militares entregaram 0 poder ao presidente do Supre- mo Tribunal Federal, ministro José Linhares, assim como pregava a UDN. Com um ministério de maioria udenista, as perseguigdes aos adeptos do antigo regime foram imediatas. Segadas Viana foi preso; Hugo Borghi, procurado pela polfcia, escondeu-se em um hotel; funciondrios piiblicos foram ameagados com demissées arbitrarias; o banimento de Vargas do pafs estava nos planos de grupos civis € militares. Com 0 titulo “Vinganga e édio”, O Radical denunciou: “Insinuam eles a necessidade de exilio, de pris6es, demissées em massa, estranham a permanéncia nos cargos, de certos funciondrios; aconselham devassas, sugerem inquéritos no sentido de punir, condenar, aniquilar. E uma verdadeira campanha de derrubada, de ddio, de exterminio.”!% Para os trabalhistas, era preciso reagir muito rapidamente, impedindo que as perseguigGes continuassem. Ao confirmar, por meio de alguns amigos oficiais do Exército, que, na Vila Militar, a deportagao de Vargas era certa, o grupo politico do PTB, liderado por Borghi, concluiu que a melhor alternativa para sustar as arbitrariedades era a vit6ria eleitoral do candidato do PSD. Apés conversagées, Eurico Dutra, com seu prestigio nos quartéis, impediu que Vargas fosse banido, apostando que o ex-presi- dente e os queremistas 0 apoiariam politicamente.'” Embora Vargas se recusasse a prestigiar a candidatura do general, acusando-o de traidor por sua conivéncia com o golpe, Borghi mandou imprimir milhdes de cartazes que inundaram as ruas do Rio de Janeiro e de S40 Paulo. Com a foto de Vargas, o panfleto dizia: “Ele disse: trabalhador alista-te e vota no Partido Trabalhista Brasileiro.” O “Ele disse”, portanto, teve uma primei- ra verso, a que sugeria aos trabalhadores que votassem no PTB. Mais adiante, um outro “Ele disse” tratou da indicagao de Vargas para que votassem em Dutra. Logo apés a deposigaio de Getilio, diz Lucflia de Almeida Neves, “os trabalhistas receberam, de imediato, a orientagao para transformar os comités queremistas, que se multiplicavam em grande | | 78 © IMAGINARIO TRABALHISTA némero de cidades, em diretérios do PTB, e em comités eleitorais para apoio dos candidatos petebistas nas eleig6es que ocorreriam no final de 1945”.!°8 Mas a adesao e a filiagao ao PTB nao modificaram o clima de desalento dos queremistas. Chocados com o golpe que depés Vargas do poder, eles pareciam ter perdido a capacidade de iniciativa e de mobilizacao dos trabalhadores, Entretanto, continuaram comprando paginas na gran- de imprensa e, com a mesma imaginagao politica, iniciaram uma nova série, agora propagandeando o PTB. Diariamente, um tema de interesse dos trabalhadores era explorado, com gravura e texto, ressaltando a ne- cessidade de os assalariados terem um partido préprio. Em meados de novembro, contudo, um novo fato politico deu algum impulso aos trabalhistas. Vargas, em seu primeiro pronunciamento apés a deposig4o, dirigiu um manifesto aos trabalhadores: “Trabalhadores do Brasil! Condensa as vossas energias e moldai a vossa consciéncia coletiva, ingressando no Partido Trabalhista Brasileiro.” De marco a novembro, as mudangas, sem diivida, foram significativas: um movimento social que comegou com o simples lema “Queremos Gettlio, com ou sem Constituin- te”, passou, mais adiante, a clamar por “Constituinte com Gettlio”, até chegar a um partido que moldasse a consciéncia politica da classe traba- Ihadora. O PTB, no entanto, fragil e sem estrutura politica, dividia-se em di- versas alas, principalmente entre a dos fundadores do partido, a exemplo de Segadas Viana, e aquela proveniente do queremismo, liderada por Hugo Borghi. Mas, sobretudo, estavam desorientados os trabalhadores. Com a auséncia de Vargas e, particularmente, sem a sua palavra, o voto dos assa- lariados tendia a se dispersar entre o brigadeiro e o candidato do PCB, Yedo Fitiza. Se a UDN contava com nomes de expressao na politica nacio- nal e o apoio macigo dos meios de comunicagao, os comunistas apresen- tavam como trunfo a imagem emblematica do Cavaleiro da esperanca e uma militancia aguerrida, e o PSD dispunha de uma poderosa maquina eleitoral, o PTB nada tinha além de Getilio Varga > insistia no siléncio. Enquanto o ex-presidente nao declarasse seu ape es- tratégia dos trabalhistas, quase desesperada, era atacar six 79 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA.. a candidatura de Eduardo Gomes e conclamar o eleitorado a votar no PTB. Os apelos para que os trabalhadores escolhessem o PTB como o seu partido tornaram-se didrios, Nas eleigées de 2 de dezembro, dizia O Ra- dical, “vai ser jogada a sorte do trabalhador brasileiro: ou perde tudo o que j4 conquistou a custa de muito sacrificio, voltando a ser considerado ‘caso de polfcia’, ou mantém a posigdo de dignidade que hoje desfruta. E para manter esta posi¢ao, s6 votando com o seu tinico partido, que é o PARTIDO TRABALHISTA BRASILEIRO”.""° Votar no PTB, mas também denun- ciar a candidatura da UDN. Definido na pequena imprensa que apoiava Vargas como “O candidato dos gr4-finos”, os ataques ao candidato da UDN aumentavam de intensidade 4 medida que o dia das eleig6es se apro- ximava. O Correio Paulistano, por exemplo, publicou: “EDUARDO GOMES Inimigo de Sao Paulo em 1924. Inimigo de S40 Paulo em 1930. Inimigo de Sao Paulo em 1932. Inimigo de Sao Paulo em 1937. E atualmente constitucionalista por imediatismo, pela ambigdo de ser presidente da Repiblica. [...] Bombardeador de Sao Paulo na memordvel campanha constitucionalista de 1932. O célebre avido vermelhinho pilotado por Eduardo Gomes em 1932 participava dos que derramaram sangue paulista, principalmente em Cam- pinas. [...] Ainda haver4 paulista ou brasileiro em S40 Paulo que vote em seus algozes?™" Por mais que se esforgassem na estratégia, restava menos de duas se- manas para o pleito eleitoral e dificilmente Eduardo Gomes perderia as eleigdes, acreditavam até mesmo os lideres trabalhistas. Na avaliagio de Hugo Borghi, “o brigadeiro ja tinha ganho a eleigao por 90% dos votos. Nao tenho davida. O Dutra nao ia ter 10% dos votos”.'” Somente um evento de grande impacto, forte o suficiente para indignar os mesmos trabalhadores que participaram do queremismo, mobilizando seus senti- 80 © IMAGINARIO TRABALHISTA mentos e incitando-os a uma ac4o politica em comum, poderia sustar a vit6ria da UDN. Hugo Borghi foi aquele que criou esse fato. Com imaginagio e talen- to politico, ele conseguiu estabelecer, com extrema habilidade, um sim- bolo que representou uma identidade coletiva dos trabalhadores e, no mesmo movimento, projetou uma imagem absolutamente negativa do . adversdrio. Atento aos discursos de Eduardo Gomes, Borghi, pelo radio, ouviu a seguinte frase: “Nao necessito dos votos desta malta de desocu- pados que apéia o ditador para me eleger presidente da Reptiblica.”"¥ Malta, para o brigadeiro, seria 0 conjunto de trabalhadores que partici- pou dos comicios queremistas, porque, em sua percepgao politica, rece- beu dinheiro do Ministério do Trabalho para comparecer as manifestagdes pela continuidade de Vargas no poder. Borghi foi ao diciondrio e leu: “Malta — agrupamento de lobos, conglomerado de ma catadura, oper4- tios que percorrem as linhas ferrovidrias levando suas marmitas, marmi- teiros...” Marmiteiros, pensou ele, era melhor do que malta. Com sensibilidade politica, nao foi diffcil perceber que marmiteiro “pegava” mais do que malta. No dia seguinte, Borghi acionou uma cadeia de 150 radios. Sem meias-palavras, declarou: “A maior prova de que o senhor Brigadeiro € o candidato dos gra-finos, dos miliondrios, dos ricos, dos bardes, dos exploradores do povo € que ele declarou que nao precisa do yoto dos marmiteiros, que trabalham, que lutam.” Similar as limalhas de ferro que se separam, para utilizar uma metdfo- ta do historiador E. R Thompson," a marmita agiu como uma placa magnetizada. Como um simbolo de cardter polftico, ela permitiu, por meio de imagens e representagdes, que os trabalhadores percebessem os embates politicos, os conflitos econémicos e as contradigdes sociais expe- rimentadas por uma sociedade dividida em classes. De um lado, os gra- finos, os miliondrios, os ricos, os barées, as elites, os exploradores do povo; de outro, os que vivem do trabalho, os pobres, os simples, os hu- mildes, a plebe, os que lutam. “Entre a plebe e a elite, um divisor: — marmiteiro”, afirmava em uma manchete O Radical.'5 O sucesso da ex- pressao foi imediato, impactante, entre os assalariados. “Os simbolos”, diz Baczko, “sé s&o eficazes quando assentam numa comunidade de ima- 81 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA... ginagao”.1! E naquele momento, a simbologia da marmita encontrou um “territ6rio” cultural e politico fértil para ser assimilada e apropriada, com significados diversos, na imaginagio social dos trabalhadores. “E porque havia o sentimento de luta de classes criado”, diz Borghi muitos anos mais tarde. “Havia na mentalidade do povo o sentimento de que a UDN era contra ele. E faltava apenas um denominador comum, alguma coisa que galvanizasse aquilo, um catalisador. E a palavra marmiteiro catalisou.” Panfletos pregavam a dignidade dos marmiteiros. Nos comicios dos can- didatos do PTB, milhares de trabalhadores participavam com marmitas, panelas e outros utensilios domésticos de metal, batendo neles com talhe- res. Em uma manifestagao no Vale do Anhangabat, uma multidao, avalia- da em 500 mil pessoas, promovendo barulho ensurdecedor, batia em latas e marmitas. Naqueles poucos dias, esquemas de interpretagdo, sistemas de legitimag4o e cédigos comportamentais coletivos permitiram, por meio de uma “linguagem” comum, imaginar a divisio social e, no mesmo mo- vimento, desqualificar suas hierarquias, promovendo uma agao conjunta, Representados nas met4foras do marmiteiro e do gra-fino, trabalhadores ¢ elites eram traduzidos por imagens antagénicas e conflituosas. “No- mear € saber”, afirma Robert Darnton, e “nds pensamos no mundo da mesma maneira que falamos sobre ele, estabelecendo relagdes metaféri- cas”.1"” Por meio da marmita, um simples utensflio doméstico agora trans- formado em poderoso bem simbélico de carater politico, os trabalhadores identificaram seus interesses materiais e simbdlicos, resultando em uma identidade coletiva prépria: “Manhi cedo, ainda, e eles deixando o lar, rumo ao trabalho. Enchem os bondes, chova, faca sol, esteja frio, esteja calor. Que importa? Em casa, a mulher e os filhos esperam que o chefe da familia, ao voltar logo mais, ao anoitecer, diga que cumpriu o seu dever, para ser digno de si mesmo e Para que as contas possam ser pagas corretamente. LA vai ele... vestido com limpeza e simplicidade, com alguns remen- dos, feitas caprichosamente as costuras pela esposa, enquanto os meninos ajudavam a arrumar a casa... 82 © IMAGINARIO TRABALHISTA LA vai ele, com a marmita debaixo do brago. Ele €, portanto, um marmiteiro.”""8 A marmita representava a dignidade, o respeito e a decéncia do traba- lhador. Tratava-se portanto de um conflito de interesses e de uma luta por valores — ou de classes, no entender de Thompson —, vividos e social- mente experimentados, e nao apenas construfdos intelectualmente. Mas também a delimitag4o simbélica de lugares sociais opostos e a denancia das contradig6es estabelecidas no interior da sociedade: “6 marmiteiro sim. E honra-se de o ser. Nao podendo freqiientar os restaurantes dos gr4-finos, nem ter os acepipes dos fidalgos, ele conduz para a sua atividade a marmita que contém a comida preparada, com prazer, pela sua companheira. Quantos individuos poderao apresentar, como o marmiteiro apresenta, uma vida honesta, laboriosa e esforgada? HA muitas e muitas coisas que, formando embrulhos, grandes ou pe- quenos, mancham as m4os que os carregam. Mas a marmita nao. A mar- mita € um simbolo de que a pessoa que a est4 carregando luta pela vida, honestamente, sem ter medo das dificuldades.” Congregando em sua imagem bens simbélicos que definiam valores qualitativamente diferentes entre as classes sociais, a marmita igualmente tepresentava disputas por uma melhor distribuig&o da riqueza econdmica: “O marmiteiro deseja, simplesmente, que baixe o aluguel das casas. Que a alimentagao, por causa do prego dos géneros, nao v4 além de trinta por cento do seu salario. Que os seus filhos possam também, como os filhos dos gra-finos, cursar as escolas. Que o vestudrio nao lhe leve mais dum quinto do que recebe na fabrica. Isso € que o marmiteiro tem por ideal.” Com um poder incomum de mobilizagao, a palavra marmiteiro, com extrema rapidez, varreu o pais e tornou-se elemento integrante do imagi- nario popular, como um patriménio simbélico do trabalhador. Cartazes com imagens de marmitas amanheciam pregados nas paredes e postes das 83 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM*: POLITICA E CIDADANIA... ruas. As charges, quase didrias, divertiam os leitores de O Radical. Em uma delas, o desenho mostrava um oper4rio, sentado no chao e comendo macarrao em uma marmita, olhando para um homem elegantemente ves- tido. O texto completava o desenho: “Virgilinho: — Vocé vota conosco?”; “Operdrio: — Seu doutor, ‘marmiteiro’ ndo se mistura com gra-fino.” Em outra, aparece um homem trabalhando em casa; enquanto seu filho recebe na porta um individuo de terno e gravata: “— Papai, est4 af um gra-fino que diz que quer falar com o marmiteiro da casa”; “— Diga a ele que s6 dou audiéncia apés 3 de dezembro.”"” O mesmo jornal dizia que os marmiteiros, “a patuléia e a ralé de cujos votos nao precisa o candidato udenista, sao assim denominados pelos chefes dessa corrente politica, nao s4o gra-finos, sio trabalhadores, simples e modestos, também sao cida- dios dignos de respeito”.” Se interpretarmos 0 simbolo como polissémico, fluido e complexo,'2* como algo que transmite sentido, ou miltiplos sentidos, percebemos que amarmita, para os trabalhadores, significava muitas coisas ao mesmo tem- po, mas nada dizia para os membros das elites sociais e polfticas do pais. Na UDN, um dos poucos politicos que percebeu o perigo que o partido corria foi Carlos Lacerda. Ao alertar o brigadeiro, 0 candidato limitou-se a dizer: “Vocé fale com o Dr. Prado Kelly.” Este, por sua vez, pouco se importou com 0 episédio: “Mas Carlos, isto nao tem tanta importancia! O povo nfo vai acreditar nisso. Imagine!” Lacerda, mais sensivel politica- mente, argumentou sobre o poder dos meios de comunicagao e sobre uma questdo que eles nao poderiam mais ignorar: “O operariado é grato a Gettlio porque personificou nele uma porgao de coisas que nao tinha antes e passou a ter.”!2? A partir daf, a campanha eleitoral da UDN e as paginas da grande imprensa dedicaram-se apenas a desmentir as acusagdes. “Explique-se 0 mentiroso!”, acusando Hugo Borghi, exigia o Correio da Manhd: “Para impedir a vit6ria do verdadeiro candidato do povo, juntaram-se todos: integralistas, saudosistas da ditadura antigamente chamados queremistas, dutristas, prestistas hoje também conhecidos como fiuzistas; e desse cal- do nasceu a mentira dos ‘marmiteiros’.”"* Na primeira pagina, o mesmo jornal descreveu o didlogo entre Eduardo Gomes e um repérter: 84 © IMAGINARIO TRABALHISTA “Marmiteiro? Que é isso?”, disse o udenista. Na apressada tentativa de desfazer o boato, o jornalista agravou ainda mais a delicada situag4o po- litica do candidato, escrevendo: “Eduardo Gomes evidentemente no esta familiarizado com o termo.” A frase, dubia, permitia concluir que o bri- gadeiro, de fato, era um homem das elites, pois sequer sabia o que era uma marmita. Os desmentidos, os ataques ao queremismo e a Hugo Borghi se multiplicavam nos jornais: “Essa intriga € uma zombaria aos ‘marmi- teiros’, € usar da pobreza como miscara, para miserdveis propésitos politicos.” Em poucos dias, uma onda de boatos, intrigas, difamagées e toda sor- te de caltinias e falsas noticias apoderou-se da sociedade. A Liga Eleitoral Catédlica, por exemplo, teria imposto aos candidatos um programa de governo que subordinaria totalmente o pais ao Vaticano. Noticias de que 0 dinheiro popular seria confiscado logo apés a vitéria da UDN ame- drontaram os trabalhadores. Com o titulo “Em perigo o dinheiro do po- bre”, O Radical denunciou: “Eduardo Gomes se propée a confiscar os depdsitos das Caixas Econémicas e dar, em troca, titulos da divida pabli- ca, a fim de sanear as finangas e, salvaguardar, com isso, o dinheiro dos magnatas.”!24 Mais desmentidos na grande imprensa, outras notas ofi- ciais da UDN defendendo o brigadeiro. A ccandidatura de Eduardo Gomes, que até entao nao alcangara popu- laridade, tornou-se definitivamente antipatica aos eleitores de baixa ren- da. O que nao significava, automaticamente, a vitéria de Eurico Dutra. Somente com o apoio piblico de Vargas, acreditava uma facgao dos tra- balhistas, o general teria alguma chance. Hugo Borghi, incansAvel, foi a S40 Borja convencer o ex-presidente a se manifestar publicamente. “Viestes buscar apoio a Dutra, nao é?”, disse Vargas. “Eu nao apoio esse traidor”, completou.!5 Em um apelo dramatico, Borghi argumentou: “Dr. Getilio, estou tendo uma grande decepcao na minha vida. O senhor estd me desiludindo completamente. Eu pensei que o senhor fosse um grande homem. Sou, sinceramente, um trabalhista, sou getulista, mas o senhor nao esté agindo como um grande homem. Porque um grande homem, dr. Getilio, nado coloca os seus sentimentos pessoais acima dos Bs QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... sentimentos de sua patria. O senhor, para se vingar de Dutra, est4 destruindo o Brasil. Destruindo toda a sua obra social, entregando o Brasil aUDN, entregando-o aos seus maiores inimigos, desgragando-nos a todos, desgracando o Brasil.” Vargas, com seu charuto, retirou-se para o quarto, em siléncio. Os apelos de Borghi, mas sobretudo os insultos crescentes da oposigao e a ameaga de banimento, convenceram o ex-presidente, e, no amanhecer do dia seguinte, ele mudou de idéia. O acordo seria selado, desde que Dutra garantisse a manutengio das leis sociais e o ministério do Traba- lho para o PTB. O manifesto de Vargas apoiando Dutra chegou meia hora antes do encerramento do ultimo comicio do general, no Rio de Janeiro. Em 29 de novembro, O Radical, com o titulo “Nao vencerd o candidato dos gra- finos. Os ‘marmiteiros’ votarao no general Eurico Dutra”, publicou a cé- pia fotostatica do manifesto de Vargas.176 Nas eleig6es de 2 de dezembro, Eurico Dutra, surpreendentemente e contrariando todos os prognésticos, obteve 55,39% dos votos, com vota- ¢4o maciga em Sao Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul; Eduardo Gomes conseguiu 35,74%; enquanto Yedo Fiza amealhou 9,7%. Geti- lio Vargas e Luiz Carlos Prestes dividiram entre si o voto popular e urba- no. O PTB surgiu como o terceiro partido na Camara, sobretudo devido a Vargas, seu “puxador de legenda”.!”” O grande vitorioso, no entanto, foi o PSD que, gragas 4 sua m4quina eleitoral, elegeu a maioria de verea- dores e deputados estaduais e federais, além do préprio presidente da Republica. PALAVRAS FINAIS: QUEREMISMO E CLASSE TRABALHADORA O queremismo surgiu no cendrio politico da transigéo democratica como um movimento de protesto dos trabalhadores, receosos de perderem a cidadania social conquistada na década anterior. Inicialmente, eles proje- taram na pessoa de Getilio Vargas a Gnica garantia de preservar as leis 86 © IMAGINARIO TRABALHISTA sociais e trabalhistas. Mais adiante, o queremismo evoluiu no sentido de reivindicar uma Assembléia Constituinte. Tratou-se da percepgao de que, para além da pessoa de Vargas, havia outras formas de luta.’* O resulta- do foi a institucionalizagao do movimento em um partido de trabalhado- tes, o PTB. O queremismo também foi uma experiéncia politica de aprendizado dos trabalhadores. Na década de 1930, eles aprenderam a exercer a cida- dania social, aprenderam que tinham direito a ter direitos. Ao longo de 1945, na luta para garantir leis sociais, eles aprenderam a lidar com a cidadania politica. Perceberam a importancia politica para garantir as leis trabalhistas. E verdade que o queremismo nao alcangou seu quase obcecado obje- tivo: manter Vargas no poder. Nem com a Constituinte, nem sem ela. Mas concluir tao-somente que o movimento foi derrotado, pelo simples fato de que Vargas foi deposto pelos militares, é nao perceber a sua im- portancia e o seu alcance politico. Apés as eleigées, na imprensa e em » diversas interpretagdes de Ifderes pessedistas e udenistas, houve a © constatagao, espantosa para eles, de que os trabalhadores, de maneira contundente e irreversfvel, passaram a ter vontade politica. Esta, inclusi- ve, foi a conclusao a que os jornais chegaram para explicar a eleigio de Dutra e o revés sofrido pelo brigadeiro. José Lins do Rego, por exemplo, comparou a derrota da UDN em Sao Paulo com a batalha de Waterloo. ‘ Chefes politicos republicanos tinham sido derrotados em seus prdprios - “currais”, algo inédito na tradi¢4o polftica brasileira. Sobral Pinto igual- mente percebeu que os trabalhadores passaram a decidir por si mesmos, votando no PTB e no PCB, “para nossa humilhacao”, disse ele.'° Portan- to, se Vargas nao continuou no poder, Eduardo Gomes ndo se elegeu e, muito mais importante, os trabalhadores surgiram no cenério politico com consciéncia de seus interesses e vontade politica, O queremismo foi absorvido pelo PTB, mas, historicamente, 0 surgimento de ambos somente foi possivel por estarem afinados com um conjunto de experiéncias econémicas, politicas, ideoldgicas e culturais, vividas e partilhadas pelos trabalhadores, consubstanciado no projeto nomeado de trabalhismo. 87 QUANDO OS TRABALHADORES "QUEREM": POLITICA E CIDADANIA... Houve, decerto, a intervengio estatal. Sobretudo a partir de 1942, a formulagao do projeto trabalhista pelo Estado contribuiu, de maneira decisiva, para configurar uma identidade coletiva que se manifestou, com vigor, nos conflitos politicos do segundo semestre de 1945. Mas, em qual- quer experiéncia histérica, os trabalhadores sofrem influéncias dos con- textos sociais, polfticos e ideolégicos em que vivem. Refutando as interpretagdes que insistem na passividade dos trabalhadores, sempre vi- timas de influéncias externas 4 sua classe, Thompson demonstra que, se eles sofrem com os contextos polfticos, reagem a sua maneira e, 4 medida que modificam sua organizagao e consciéncia, também alteram as pré- prias circunst4ncias que os incitaram 4 mudanga. A consciéncia de classe, defende o historiador inglés, traduz as experiéncias vividas pelos traba- Thadores em termos culturais, “encarnadas em tradig6es, sistemas de va- lores, idéias e formas institucionais”.'>° No caso brasileiro, como em outros, tratou-se de uma relagdo, em que as partes, Estado e classe trabalhadora, identificaram interesses comuns. No trabalhismo, origem e motivagao do queremismo e do PTB, estavam presentes idéias, crengas, valores e cédi- gos comportamentais que circulavam entre os préprios trabalhadores muito antes de 1930. O trabalhismo, portanto, traduziu uma consciéncia de classe, legitima como qualquer outra, porque histérica. Mas as classes sociais, sabemos hoje, nao antecedem a historia de suas proprias lutas polfticas e ideolégicas; surgem como 0 efeito delas.'?1 Afi- nal, € no terreno das ideologias e da conflitividade politica e social que as pessoas tomam ciéncia das relagdes em que estado envolvidas na socieda- de. Ao longo do ano de 1945, a sociedade brasileira conheceu um acirra- mento das lutas sociais, manifestado, muitas vezes, por uma luta de valores. E foi no préprio decorrer do conflito que os trabalhadores se reconhece- ram como classe social, em oposi¢Ao a outras, com uma cultura politica e interesses proprios. O queremismo, portanto, atuou no sentido de mobi- lizar os trabalhadores como classe social. “A classe”, diz Adam Przeworski, “molda o comportamento politico dos individuos tao-somente se os que sio oper4rios forem organizados politicamente como tal”. Este, a meu ver, foi o papel politico de relevo do queremismo e, mais adiante, do proprio PTB. Resgatando crengas, idéias, tradigées, sensibilidades e valo- a8 © IMAGINARIO TRABALHISTA tes politicos presentes entre os trabalhadores, antes e depois de 1930, e “dialogando” com eles, 0 queremismo mobilizou-os como classe social, com consciéncia de sua identidade coletiva. Evidentemente que a anilise se afasta frontalmente das interpretagdes que véem na polftica brasileira apds 1930, ou 1945, nada além do que tepressio e propaganda governamental, resultando em uma classe traba- -lhadora sem consciéncia de seus “reais” interesses, sempre a reboque de ' “pelegos” e “lideres burgueses de massa”. Contudo, afirma Przeworski: “No papel, podem se enquadrar as pessoas nas classificagGes que se desejar, mas na pratica politica é preciso tratar com pessoas de carne e osso, com seus interesses e a consciéncia dos mesmos. E tais interesses, quer sejam ou nao ‘reais’, nao sao arbitrarios; tampouco é arbitraria sua consciéncia € a propria pratica politica que os forja.”3 ‘Notas 1. Os grupos e movimentos mais conhecidos de resisténcia 4 ditadura foram a Unido Nacional dos Estudantes (UNE); os comunistas seguidores de Luiz Carlos Prestes que organizaram a Comissio Nacional de Organizacio Proviséria (CNOP); libe- rais unidos nas chamadas “oposigdes coligadas”; banqueiros ¢ financistas que, majoritariamente, assinaram o “Manifesto dos Mineiros”, texto sem grande reper- cussio na €poca; grupos civis e militares aglutinados na Sociedade dos Amigos da América e na Liga de Defesa Nacional. 2. Em 28 de fevereiro, o governo sancionou a Lei Complementar n° 9 que regula- mentou as eleigdes para presidente da Republica, senadores, deputados federais e governos ¢ deputados estaduais, 3. Elza Borghi de Almeida Cabral, O queremismo na redemocratizacdo de 1945, Pro- grama de Pés-Graduagao em Histéria da Universidade Federal Fluminense, Niteréi, 1984, dissertagdo de Mestrado, p. 72. 4. Correio da Manhd, Rio de Janeiro, 3 de abril de 1945, 1* pagina. $. Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 17 de margo de 1945, p. 3. 6. Idem, 7 de margo de 1945, p. 4. 7. O Jornal, Rio de Janeiro, 3 de maio de 1945, p. 4. 89 QUANDO OS TRABALHADORES “QUEREM™: POLITICA E CIDADANIA... 8. Idem, 4 de abril de 1945, p. 4. 9. Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 13 de margo de 1945, p. 4. 10. Idem, 8 de marco de 1945, p. 3. 11. Bronislaw Baczko, “Imaginagao social”, in Enciclopédia Einaudi, Anthropos-Ho- mem, vol. 5, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1985, p. 311. 12. O Jornal, Rio de Janeiro, 3 de marco de 1945, p. 3, € 4 de margo de 1945, 2* segio, 1* pagina. 13. Idem, 21 de margo de 1945, p. 2 ¢ 22 de marco de 1945, p. 2. 14. Arnaldo Spindel, O Partido Comunista na génese do populismo, Sao Paulo, Edi- des Simbolo, 1980, p. $9. 15. Sob o risco de cometer injustigas com outros trabalhos, excetuo aqui a importante contribuigéo de Elza Borghi de Almeida Cabral, O guerrerismo na redemocratizagdo de 1945, 16. Roger Chartier, “Cultura popular: revisitando um conceito historiografico”, in Estudos Hist6ricos, n° 16, Rio de Janeiro, Editora da Fundacao Getilio Vargas, 1995, p. 182. 17. Clifford Geertz, A interpretacdo das culturas, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1978, p. 321. 18. O Radical, Rio de Janeiro, 18 de abril de 1945, pp. 1 7, € 19 de abril de 1945, pp-1e7. 19. O Jornal, Rio de Janeiro, 11 de maio de 1945, p. 2. 20. Bronislaw Baczko, op. cit., p. 310. 21. O Radical, Rio de Janeiro, 27 de abril de 1945, p. 3. 22. Idem, 11 de abril de 1945, 1 pagina. 23. Arnaldo Spindel, op. cit., p. 61. 24, Elza Borghi de Almeida Cabral, op. cit., p. 55. 25. Jorge Ferreira, Trabalhadores do Brasil. O imaginério popular, Rio de Janeiro, Edi- tora da Fundagéo Getulio Vargas, 1997. 26. Correio da Manhd, Rio de Janeiro, 18 de maio de 1945, 1* pagina; 16 de maio de 1945, 1? pagina; 9 de junho de 1945, 1° pagina; e 18 de abril de 1945, 1 pagina. 27. Luctlia de Almeida Neves, PTB: do getulismo ao reformismo (1945-1964), Sio Paulo, Marco Zero, 1989, p. 48. 28. Hugo Borghi (Depoimento), Rio de Janeiro, FGV/CPDOC — Histéria Oral, 1982, pp. 36-41 € 47. 29. Elza Borghi de Almeida Cabral, op. cit., pp. 124-125. 30. Em agosto de 1943, os comunistas seguidores de Luiz Carlos Prestes, na “Confe- réncia da Mantiqueira”, decidiram pela linha politica de Unido Nacional em torno de Getalio Vargas. 90

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