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AULA DE 5 DE JANEIRO DE 1983 Primeira hora Questées de método, — Estudo do texto de Kant: O que é o escl senga fiel de vocés. Gostaria de Ihes dizer também que ‘um pouco duro dar um curso assim, sem tet possibilidade de pudessem eventualmente dis ‘ou de que pude tratar em out ‘Zaz esse pequeno grupo, ou formais ¢ exteriores ao curso ¢ a instituigdo propriamente ditos, podem quem sabe esperar passar uma ou duas aulas. E se balho preciso no Ambito universitario quisessem ter cussio, eu pedirei, se quiserem, que nos encontremo: porei. Mais uma vez, no hi nenhuma exclusio do fil mais geral, ele tem todo o direito, como qualquer cidaddo francés, de ‘ser beneficiério, se assim podemos dizer, do ensino ministrado aqui. 4 0 governo dese dos outros Bem, o curso deste ano, creio que vai ser um pouco descosido e dis- perso. Gostaria de retomar alguns dos temas que pude percorrer ou evo- alguns, nio digo dos temas nem dos princi- dos pontos de referencia que estabeleci para mim mes- Iho, geral que tem o signo, se nao o titulo de “ -me de dois métods, todos 0s dois também perfeitamente legitimos. Distanciar-me primeiro do que se poderia chamar, do que se chama histéria das mentalidades e ra caracterizé-Ia de forma totalmente esquemitica, uma his- tuaria num eixo que vai da dos comportamentos efe- queria também me distanciar do que se poderia chamar de uma historia das representagdes ou dos sistemas representat se das funcdes represent que podem desempenhar as representacdes, depois, outro polo, me par. ‘Ges € a andlise dos valores representativos de um tagdes, isto é, a tema de represen- lise das representages em fungo de um conheci- "ido de conhecimento ou de uma regra, de uma for- nto — considerado critério de verdade, ou em todo caso verdade-referéncia em relagi lidades, entre esses dois temas (0 de uma des © 0 de uma histéria das representagées), 0 que procul uma histéria do pensamento, E por “pensamento” queria dizer uma ané- lise do que se poderiachamar de focos de experiéneia, nos quais se ati culam uns sobre os outros: segundo, as matrizes norma © enfim os modos de exi ia virtuais para sujeitos possiveis. Esses Aula de 5 de janeiro de 1983 5 ___trés elementos — formas de um saber nessa perspectiva que procurei analisar, faz muito yucura?, sendo a loucura por mim considerada no, absolutamente, um objeto invariante através da histéria, sobre 0 qual te- riam agido alguns sistemas de representagdes, com fungio ¢ valores va- is. Nao era tampouco para mim, essa hist6ri neira de estudar a atitude que se pode ter tomado, através num momento dado, a propésito da loucura. Era, isso si tudar @ loucura como experiéncia no in de saberes mais ou menos heterogéneos, cujas formas de desenvol- mento deviam ser analisadas: a loucura como matriz. de conhecimen- tos, de conhecimentos que podem ser de tipo propriamente médico, de ipo também especificamente psi i ‘mesmo tempo, igualmente normas de comportamento dos relagdo a esse fenémeno da loucura e em relagdo ao louco, comportamen- estudar a loucura na medida em que essa experién- ‘a constituigdo de certo modo de ser do sujeito nor- mal, perante e em relago ao sujeito louco. Foram esses trés aspectos, es- sas trés dimensdes da experiéncia da loucura (forma de saber, matriz de "_comportamentos, constituigdo de modos de se ), que procurei, ‘com maior ou menor sucesso ¢ eficécia, E digamos que, depois, o trabalho que procurei fazer consistiu em estudar sucessivamente cada um desses trés eixos, para ver qual devia sera forma de reclaboragio a fazer nos métodos e nos conceitos de and- artir do momento em que se pretendia estudar essas coisas, esses rimeiramente como dimensdes de uma experiéncia, e, em segun- do lugar, como deviam ser ligados uns aos outros. Estudar primeiro o eixo da formagdo dos saberes foi o que procurei fazer, em particular acerca das ciéncias empiricas nos séculos XVII- XVIII, como a histéria natural, a gramitica geral, a economia, ete., que ara mim no cram mais que um exemplo para a analise da formagao dos saberes'. E ai me pareceu que, para estudar efetivamente a experién- 6 0 govermo de si e dos outros cia como matriz para a formagao dos saberes, no se devia procurar analisar 0 desenvolvimento ou 0 progresso dos conhecimentos, identificar quais eram as praticas discursivas que podiam co trizes de conhecimentos possiveis, estudar nessas priticas di regras, o jogo do verdadeiro e do falso e, grosso modo, se vocés preferi- rem, as formas de veridicgao. Em de veridiegao — tempo. ‘Segundo, tratava-se de analisar em seguida, digamos, as matrizes nor- mativas de comportamento, E ai o deslocamento consistiu, no em anali- sar 0 Poder com “P” maiisculo, nem tampouco as instituigdes de poder jonais de dominagio, mas em estudar as técnicas e procedimentos ais se empreende conduzir a conduta ddos outros. Ou seja, procurei colocar a questio da norma de comporta- ‘mento primeiramente em termos de poder, e de poder que se exerce, analisar esse poder que se exerce como um campo de procedimentos de ‘governo. Ai também, o deslocamento consistiu no seguinte: passar da and- ise da norma a [anilise] dos exercicios do poder; ¢ passar da anilise do exercicio do poder aos procediment 9, Pareceu-me que seria preci- so tentar analisar as diferentes formas pelas quais o indi icdo consigo o individuo havia sido chamado a to moral da conduta sexual. Em outras palavras, ago através das técnicas/teenologias da ‘vamos dizer, através do que se pode chamar de prag Sul dos procedimentos de governamentalidade, substituir a teoria ou a historia da subjetividade pela anilise hist6rica da prag- i Aula de 5d janeiro de 1983 1 mitica de si ¢ das formas que ela adquiriu, eis as diferentes vias de fituir para vocés, nem que to s6 para fazer um balango. Mas vocés jé sabiam disso.* ‘Como essas trés dimensdes foram um pouco exploradas, deu-se, é claro, que, no decorrer de cada uma dessas exploragdes de modo um tanto aiimero de coisas que ficou de fora, que deixei de ‘tempo, me pareciam interessantes ¢ talvez I E & um pouco esse repercurso dos caminho: de empreender este ano, retomando alguns por ihados que eu gostaria : por exemplo, © que eu * 0 manuscritocontém agi todo um desenvolvimento que Foucault io retoma na sua __exposigdo orl 8 O governo dest edos ouros thes dizia ano passado a propésito da parresia*, do discurso verdadeiro na ordem da politica. Parece-me que esse estudo permitiria ver, conden- sar um pouco, por um lado, o problema das relages entre governo de si € governo dos outros, ou até mesmo a génese, a genealogia, se niio do discurso politico em geral, o qual tem essencialmente como objeto 0 go- vero pelo Principe, pelo menos de uma certa forma de discurso politi- <0 [que teria como] objeto 0 governo do Principe, o governo da alma do Principe pelo conselheiro, pelo filésofo, pelo pedagogo, que é encarre- gado de formar sua alma, Discurso verdadeiro, discurso de verdade en- ) toridade. i menoridade, se obedece em qualquer circunstincia, seja no bem, é precisamente 0 que ex: io, a discussio, a liberdade de pensar sob a sua forma pablica, ¢ s6 a aceita ~e a tolera ~ no que con- cerne a0 uso pessoal, privado e oculto. A Aufkldrung, ao contririo, € que vai dar 8 liberdade a dimensio da maior publicidade na forma do uni- versal e que manterd a obediéneia apenas nesse papel privado, digamos nesse papel particular que definido no interior do corpo social. Eis portanto em que deve consistir 0 processo da Aufkldrung, a nova repartigdo, a nova distribui¢do do governo de si e do governo dos ou- {i08| Ors Conon fvertfctia tense operacdoyqual vai acricsicvagente?.E ai que, vamos dizer, esse texto di uma viravolta, da uma viravolta de tal ‘modo que, até certo ponto, a maioria dos principios nos quais apoiou sua anilise vai se ver questionada, 0 que até certo ponto chama, 0 que vai designar 0 lugar possivel do texto sobre a Revolugdo. De fato, diz Kant, como se dé a Ausgang? Essa Ausgang, essa saida, esté se consumando; «em que pé estamos? Qual é, no processo da saida, o ponto atual? E ele dé a essa questo uma respostaabsolutamente tautolégic, e ndo diz nada além da questao, ele alemao diz muito exatament da Aufkldrung, A questao: ‘mos nesse processo da Aufklérun posta: estamos na era da Aufkldrung. Mas, na verdade, para dar a essa questo semelhante contetido, Kant faz intervir certo niimero de elementos, elementos que sto heterogéncos entre si e que, mais uma vez, questionam o préprio jogo da sua ani Primeiro ele diz: atualmente ha sinais que anunciam ss0 de bertacao e esses sinais mostram que se erguem “obsticulos”!? que até entdo se opunham a que o homem fizesse uso da sua razio. Ora, sabe- ‘mos que nao ha obsticulos ao fato de o homem fazer uso da sua razio, {4 que é o proprio homem que, por sua covardia e sua preguica, no faz ‘uso da sua razdo. Eis portanto que Kant faz valer a existéncia desses obsticulos. Segundo, depois de ter dito ¢ mostrado demoradamente que no pode haver um agente individual ou agentes individuais dessa liber- tagdo, ele faz intervir precisamente o rei da Prissia. Faz intervit Frederico 108 no periodo, no Zeitalter, na era iufkldrung e em que ponto esta- e se contenta em dar como res~ —— Aula de 5 de janeiro de 1983 37 da Prissia, do qual diz que — ¢ é nisso que ele é, ele, Frederico da Pris- sia, um agente, que é 0 proprio agente da Aufkldrung — nfo prescreveu a discussao religiosa, acompanhada da const ‘que garante a tranquilidade publica, temos exatamente, pela propria de- cisio de Frederico da Prissia e sua maneira de governar, esse ajuste en- ‘re um governo de si que se faré na forma do universal (como discussio piiblica, raciocinio piiblico e uso piblico do entendimento) e, de outro lado, 0 que vai ser a obediéncia, obediéncia & qual serdo constrangidos todos os que fazem parte de uma sociedade dada, de um Estado dado, de uma administragdo dada. Frederico da Prussia é a propria figura da Aufklérung, & 0 agente essencial da Aufildrung, & aquele agente da Auf: Klarung que redistribui como convém o jogo entre obediéneia € uso pri- vado, universalidade e uso piblico, Enfim — e € ai que 0 texto de Kant termina - ele evoca, apés esse papel de Frederico da Prissia como agen- te da Aufkliirung, uma espécie de pacto que & uma terceira maneira de 4questionar 0 que cle acaba de dizer. Ele questionou portanto tudo isso dizendo que se erguem obsticulos. Questionou sua propria andlise fa- zendo Frederico da Prisssia desempenhar um papel individual. E agora, na conclusio, questiona a divisdo exata que fazia entre o que ¢ discuss ppiblica e uso autdnomo do entendimento, de um lado, e obediéncia ¢ uso Privado, do outro. Ele evoca 0 que considera, o que chama de efeitos benéficos dessa abertura de uma dimensdo publica para o uso da razio. E diz —num texto, por sinal, bastante obscuro, mas que, a met ver, pode ser interpretado assim — que é precisamente deixando crescer 0 mais pos- sivel essa liberdade de pensar piblica, € por conseguinte abrindo essa imensio livre ¢ auténoma do universal para o uso do entendimento que esse entendimento vai mostrar, de maneira cada vez mais clara e evi que a necessidade de obedecer se impde na ordem da sociedade civil22. Quanto mais liberdade para 0 pensamento voces deixarem, mais vocés terdo certeza de que o espirito do povo ser formado para a obediéncia E € assim que se vé desenhar uma transferéncia de beneticio politico do uso livre da raziio para a esfera da obediéncia privada. 0 governo de sie dos outros Essas trés solugdes, essas trés definigdes, melhor dizendo, do pro- cesso da Aufkldrung, como vocés vem, evidentemente, se deslocam € até certo ponto contradizem, questionam 0 conjunto da andlise. O inc6- cm fazer o rei da Prissia atuar , em diivida em parte, o fato de que 0 agente da Aufkldrung, o proprio processo da Aufklarung seré, no texto de que cu Ihes falava na hora precedente ~ 0 texto de 1798 ~, trans- ferido para a Revolugo. Ou, mais exatamente, ndo propriamente para a Revolugio, mas para o fenémeno geral que se produz em torno da Re- volugio e que vai ser 0 entusiasmo revolucionaiio. © entusiasmo revo- do governo de si e dos outros. Aqui, eu queria apenas indicar para vocés como, na historia da ia moderna, esse tipo de problemética con- cerente & andlise da atualidade pode ser introduzido pot Kant. NoTAS 1. *Qu'est-ce que les Lumigres?, in Kant, La Philosophie de 'histoire, wad, fr. 8. Pio- 6, Alm da radu de S.Piobetta, que utiliza neste curso, Foucault J. Bai (in Blémens de métoplysique dela docrine 17. Trad. fr. de 8. Piobetta de Kant, “Qu'est-ce ‘hi ocoréncia de Rasonnieren na Critica da rasdo pura. Em compensasi0, esse temo fem sim o sentido de “aviocinayao” em Hegel, particularmente na Fenomenolo- Auta de 5 de janeiro de 1983 39, jocinem tanto quanto quiserem e sobre os temas que thes agradarem, mas obe- +p. 33).

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