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ABSTRACT: The aestheies, as philosophy ofthe ‘emotions that we received, should leave place, t0 is “se, forthe pola, a8 science and as pilosopty of the creative conduct. losophy of the reponsabila- de, the polétia isan ethics ofthe creation. KEY WORDS: Aesthetic fealngs. centve conduits, work todo, responsibilty. RESUMO: A estética, como flosoia das emortes ‘que nés recebemos, deve delar lugar, a seu Indo, [para a poiéca, como ciéncla e como Alosofia a ‘conduta ericora. Filosofia da reponsabildlade, 2 pokética uma éica da eriagao. PALAVRAS-CHAVE: Sentimentos eséics, con- utes ciadoras, obra a fazer, esponsabldade. 104 El _kené Passeron Ao € 56 para agradecer ao Prof. Ales Erjavec por ter concedido um es- aco a poiética em um Congresso de Estética que ele tio bem organizou, que vou abrir minha intervengao por um elogio da estética, mas para melhor destacar, em ultima anilise, a oposicéo entre a estética € a poiética. E esse elo- gio da estética nao precisaré demorar- se na definiggo de uma especialidade clentifica e filoséfica t&0 freqilente- mente definida em sua diversidade, do Abbé du Bos a Baumgarten e Kant, de Hegel a Croce e Monroe Beardsley, de Marx a Lucaks e Adorno, de Robert Wischer a Victor Basch, de Taine a Charles Lalo, de Platao a Jouffroy, para chegar em Thomas Munro, Arthur Danto, George Dickie, Mikel Dufrenne, Etienne Souriau e seus alunos, mais tantos apreciadores de arte, tantos cri cos apalxonados por teorlas, tantos amadores de beleza, inclusive os este- tas de profissdo e os cirurgides ditos estéticos. Souriau considerava ao que a estética se ocupa especificamente das formas e que ela €, a0 mesmo tempo, uma “Arvore” de galhos frondosos. So- bre este titimo ponto, como nao Ihe dar razéo? Todas as definigoes da estética, das mais amplas, aquelas que fazem dela mais do que uma “filosofia da arte”, uma filosofia geral e uma metafi- sica dos afetos, em todos os dominios do sensivel, as mais estritas como aquelas que a limitam a sociologia do gosto, até mesmo a psicofisiologia ex- perimental dos érgaos dos senticos, todas essas me convém, uma vez que tém como centro de interesse a cncénars (isthesis) O que € a cioénorc , na verda- de, senao uma sensacao que se contém nos prazeres da ndovn (hedone), mas dialeticamente suscita 0 pensamento, enriquece a psiqué da a cada um sua vido do mundo. Nao ha af uma exten- so considerdvel? E eu sublinho que toda colsa, natural ou cultural, artistica ‘ou centifica, corporal ou espiritual, pode desencadear em n6s sensacdes ‘emocionais, dignas de se integrarem a uma meditagao estética. Contra os re- dutores que limitariam a estética a co- mentérios sobre arte, Lalo por exemplo, considerando “inestética” toca emo¢4o vinda da natureza, eu acho que a natu- reza as vezes € tdo bela que desespera ista, a ponto de que um pouco de sensibilidade a luz do real arrebataria de vocé toda pretensao paisagistica, fosse esta apoiad. no génio de um Turner ou de um Claude Monet. Contra os teéri cos que reduzem a estética a uma ela- boragao filoséfica da “racionalidade da arte”- esta racionalidade, a dar-lhes ou- vidos, nao tendo mais razio do que a arte, ndo tem unidade possivel - enten- oar Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997. do que a estética viva despreza a sujei ‘so que suas categorias conceituais com- puseram com tanta sutileza, devendo toda categoria, na minha opiniao, softer os ultrajes da ambigiidade. Reger a arte por uma ordem filos6fica é ainda mals duvidoso do que reger a ciéncia, a ‘economia ou a moral. Guardemos para a estética sua preciosa meditagdo sobre © qualitative para que ela elucide as grandes estruturas do sentir: a ad ‘40, 0 6dio, 0 amor, a esperanga, luto, sentimentos todos que dao um sentido a vida e tantas vezes condicionam a conduta criaclora, objeto tépico da poié- tica... Contra os formalistas (ainda que se defendam de sé-lo, como Souriau), contesto que se possa reconduzir a es- tética, a fim de que seja superada a oposigao entre arte © natureza, a uma ciéncia filosofica das formas. Primeiro, porque intimeras riquezas informais s40 alimentos da sensibilidade estética; se- gundo, porque forma e contetido nem sempre sdo distinguivels e por fim, porque grande nGmero de formas nada tém a ver com a estética. O formal e as formalidades juridicas, mateméticas, 16- gicas, logisticas, morals, éticas e deon- tolégicas tém sua especificidade irre- dutivel. Porque, se eu aceito perfeita- mente que a afetividade se infiltra por toda parte a ponto de se poder até falar do primado da afetividade em uma filo- sofia dos a priori, recuso que se con- fundam as formas que por si mesmas so comoventes e expressivas com as Dacstéticaapoietica Mi) 105 formalidades administrativas ou fis- cals, que no aceito possam suscitar uma visio do mundo. A menos, claro, que repercutam na vida quotidiana para Ihe trazer tragos derrisérios ou cémicos, ou tragicos, como em Kaf- ka... Contra Etienne Souriau, que cha- ma estético 0 estudo das atividades instauradoras, com Mikel Dufrenne, para quem “O Objeto da estética € primeiro a irresistivel e magnifica presenga do sensivel."', com Bachelard que ultra- passa a reflexao estética na direg4o de uma meditagdo sobre a imaginacao material, com André Breton para quem “A beleza convulsiva sera erético- velada, explosivo-fixa, magico-circuns- tancial, ou no ser4,"? e sustenta que “s6 0 maravilhoso € belo”, eu posso proclamar que a estética tem por ob- jeto de consciéncia e de reflexao todo © universo que chega a nés pelos sentidos, os sentimentos, a lingua- gem afetiva, em suma, a totalidade do mundo recebido pelo Dasein, nos trés niveis de sua situacdo: pes-soal, histérico e fundamental. E aqueles que desconfiam da estética, os surrealistas especialmente, ter’o essa consciéncia do mundo para fazer dela, nas fantasias do amor (Breton) e no tragico da crueldade (Artaud), 0 “modelo interior” em que sua con- duta criadora, menos automatica do que se diz, sera diretamente enraiza- da. interiorizado Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997 106 @ René Passeron Ora, na vasta perspectiva de seu despertar para a totalidade, a conscién- cla estética sabe distinguir bastante ré- pido o que depende da natureza ~ este céu—e 0 que depende da cultura ~esta lingua ~ até mesmo da arte, este pala- clo. E € af que se vai iniciar um estr tamento progressive, néo da estética ‘em si mesma, mas do objeto oferecido pela consciéncia a um estuclo especiali- zado. O mundo das obras distingue-se do mundo natural. E as ciéncias ditas humanas vao desenvolver-se fora das ciéncias da natureza: elas séo em sua maior parte cléncias da obra enquanto produto da atividade humana. E, dentre tudo 0 que os homens produziram em sua histéria, € possivel dliscemir 0 que Valéry chamava “as obras do espirito” e, dentre elas, dominio ainda mais res- trito, apesar de tantas obras-primas ins- critas no patriménio da humanidade, as obras de arte. E, neste circulo das artes, cada dominio particular, da arquitetura A cangdo e das artes sacras as artes re- creativas. Desenvolvem-se entéo discipli nas que resistem a pertencer a estética se dedicam, com uma frieza clinica, & anatomia interna de cada corpus hist6- rico de criago, a estrutura propria de cada obra, A semiética possivel de seus elementos, a seus efeitos retoricos ¢ a sua estilistica, como a hermenéutica necesséria a suas interpretacdes. Trata- se das cléncias da arte e, mais ampla- mente, das ciéncias de qualquer obra em qualquer dominio. Assim, a “psi- cologia comparativa hist6rica” de Igna- ce Meyerson estende seu objeto a to- dos os setores institucionais das cria~ Ses possiveis. Este método objetivo tem por principio nao fazer intervir os gostos estéticos ou as crencas religiosas do historiador € nao se interessa pelos valores, estéticos ou outros, sendo pelo que sdo em si mesmas: obras. A margem das di inas cienti- ficas e universitarias, ter-se-4 notado a atividade intensa de todo um mundo de ensafstas que vao buscar nas artes ‘exemplos titeis a suas demonstragdes: Foucault, Deleuze, Barthes, Derrida ou Lacan, etc, nfo sé0 de modo algum levados a se colocarem sob uma ban- deira estética. E forgoso constatar que seu sucesso contribuiu para um certo descrédito da estética tentacular. Se se sustenta que esta engloba as ciéncias da arte, ser necessario explicar-me por que as autoridades universitarias ~ Sou- riau a frente julgaram bom, quando fol batizado 0 Institut d'esthétique da Universidade de Paris I, acrescentar & sua denominagao et des sciences de Tart. Sera tautologia? Nao... Dirigi por vatlos anos esse Instituto e posso tes- temunhar que as diferentes equipes que © constitufam souberam rigorosa- mente aplicar-se a pesquisas autono- mas, que tinham seus métodos parti- culares, e sabiam muito bem encontrar Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov, 1997. nomes préprios, como a poética de To- dorov, a psicologia da cultura de Fran- cés,? esta psicologia que se toma ex- perimental com Yvonne Bernard e Fran- gois Molnar, enquanto a estética dita geral permanecia uma reflexdo de ten- déncia historicista sobre as formas da arte em suas relacdes com as formas do espirito. Impunha-se um passo mais. Da analise interna e estrutural da obra, uma de nossas equipes passou a questdo de sua origem. Com Liliane Brion e a copio- sa obra sobre “O ano de 1913, as for- mas estéticas na Europa na véspera da primeira guerra mundial",* essa equipe ainda se chamava “Grupo de Pesquisas estéticas do C.N.RS.” Quando propus que este se dedicasse ao estudo do que Valéry, em seu curso no Collége de France, em 1937, chamara a “poiética’, esse grupo tomou 0 nome de “Grupo de pesquisa em filosofia da arte e da criagéo”... A palavra se soltara. Criagao! Como cientistas pesquisadores ousa- vam pronunciar esta palavra teolégica, obscura, proibida de discurso pelo po- sitivismo (“nada se cria"), pelo estrutu- ralismo, a sociologia neo-durkheimiana € 0 pensamento correto dito dominante dos cenaculos universitarios? As dife- rentes espécies de estetas € os ensais- tas sérios no pronunciavam este pala- vrai sendo com a ponta dos labios, Dacstéticaapoiética [ll 107 para confiscar-Ihe 0 estudo, dilufcdo em consideracées existenciais, fenomeno- légicos, sociohistéricos, psicolégicos € semiologicos, preferindo a ela a palavra vaga de produsao, ou a de instauracao, até mesmo uma estranha “estética pré- tica”, sem futuro... Abra-se 0 Vocabula- rlo de estética:’ a palavra crlacao esta af Imersa na bruma de uma nao-definicgo.. No entanto, essa palavra voltava moda na vida social e comercial. A Alta-Costura fazia desfilar suas “cria~ ges”. As estréias no teatro tornavam- se “criagSes mundiais". O mestre do dramalhéo, Paul Ricard, preconizava “um volume de paixao e cinco volumes de criagéo”. Uma jomalista falava de uma “parte de ctiacdo surpreendente’ Tornava-se urgente esclarecer este ter- mo. A poiética se encarregou disso. Entre 1975 e 1982 apareceram os cinco tomos da série Recherches poiétiques.® Depots, por ocasiéo do primeiro col6- qulo internacional de poiética em 1989, fol fundada a sociecade internacional de poiética (S.L.P.). Dots encontros in- temacionais aconteceram em seguida em Cartago e em Aix-en-Provence. E agora na revista Recherches poiétiques’ publicada pela S.LP. e a Universidade de Valenciennes ~ 0 ntimero 7 acaba de sair ~ que € necessario seguir 0 desen- volvimento dessa disciplina. Notemos que seu objeto € dos mals estreitos. Platéo, em Le Sophiste [O Sofista]* distingue no interior da Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov, 1997 108 @ René Passeron texv1 (tecné) dois dominios, o da es- perteza do pescador manual, a xr71x7) texvn, € 0 do verdadelro criador, a xomtixn texvn (poietiké tecné). Na arte, a poiética estuda apenas a con- duta criadora... Passando da estética, Cujo objeto € imenso, a poiética, ocu- pada unicamente com a conduta hu- mana no que ela tem de criador, re- montamos nao s6 de um objeto amplo a um objeto cerrado, mas, por uma mutaco de consideraveis conseqiién- clas, da filosofia da sensibilidade a da acdo. Certamente, a sensibilidade nao esté ausente das condutas crladoras, mas nao € seu elemento tépico. O ar- tista, por exemplo, no € necessaria- mente mais sensivel do que qualquer outro, mas ele é daqueles que passam ao ato. Alidés, a poiética se ocupa me- nos.dos afetos do artista do que dos lineamentos dindmicos, voluntarios e Involuntatios que o ligam a obra em execucdo. Em suma, seu objeto € a momots (poiésis) que poe o criador frente a seu projeto ¢ ndo a aoonois (aistesis) que ele pode experimentar em sua aco, ou suscitar através dela. E foi entaéo que os membros do grupo que eram nao somente doutores ou doutorandos, mas também artistas, como 0s misicos Bosseur e Tamba, 0 pintor R. Conte, 0 ator € diretor Cha- bert, especialista em Beckett, etc. foram levados a dar uma definig4o precisa da palavra criagdo:° no quadro geral da conduta produtora, a atividade criadora se destaca por trés diferengas especifi- cas: 1. Ela elabora um objeto tnico (mesmo que destinado a uma multipli- caso posterior); 2. Ela da existéncia a um pseu- do-sujeito (com a obra em execucdo, temos relacdes de dislogo); 3. A obra compromete seu autor desde 0 comeso da execugio, tanto no sucesso social quanto na recusa e na censura. E claro que uma definigao como esta se aplica ndo s6 arte, mas tam- bém a todos os setores em que 0 ho- mem se faz construtor. O objeto da polética € certamente restrito ~ a con- duta criadora ~ mas 0 campo de inves- tigacdo em que tal conduta pode ser percebida € novamente um campo es- tendido, 0 da antropologia histérica em todas as suas variedades. Uma vez posta a parte uma xrtix7) F. (ktétike t), habilidace que nao deixa de ter rela- Bes, certamente, com a crlagdo propria- mente dita, so, pois, abrangidas as re- ligioes, os costumes, o direito, a pol ca, as técnicas de todos as ordens, a medicina, as proprias ciéncias e a filo- sofia. A tezv7 , em seu conjunto, pode suscitar por si mesma uma admiracdo estética, Porém esta permanece externa a uma conduta cuja responsabilidade ela nao assume. O objeto estético, no dominio da arte alhures, é precisa- mente o sentimento que os outros (sem falar da natureza) nos inspiram. Como Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997, filosofia da critica de arte, a estética tenta justificar as emogées da cao@nois (aistésis). De parte dos prolongamentos socials, até mesmo mundanos, da criti- ca, € no recolhimento do atelié e no foro intimo do criador que a conduta criadora se toma 0 objeto especifico da poiética. Vv ‘Antes de aumentar, por algumas ‘observacées finais, a oposicdo que vejo entre estética e poiética, destaquemos certos aspectos dos resultados ja obti- dos e das pesquisas jé iniciadas pela poiética. 1, Entre 0 sujeito dedicado a ‘obra eo fim que ele persegue, os linea- mentos de que falei séo, em parte, materiais, e a polética dialética foi leva- da a mostrar que em todas as artes, in- clusive as que tém como material a lin- guagem, ou 0 corpo, sem falar da pré- ptia Geschichte, este material, que Dubuffet constatava que “resiste”, age ele mesmo, a exemplo do criador, so- bre © futuro da obra em gestacao. Aquilo que Atistételes denominava a “causa material” da obra nao € nada passiva, e a obra sera 0 produto ambi- guo de uma luta entre a subjetividade do artista e as necessidades técnicas do material 2. O sujelto criador nem sempre € um individuo, mas pode muito bem ser uma entidade coletiva, seja por co- Daestéticaapoietica M109 laboragdo voluntaria de alguns, seja pelo efeito de uma criacdo continuada, como a de uma lingua viva que cada ‘geraco modifica ao falar, sendo o que se chama “lingua natural”, com toda a evidéncla, uma obra. Assim acontece com grandes instituigSes e civilizacdes cujas particularidades € evolucdo a historia nos descreve, 3. A conduta criadora nao pode- tia ser repetitiva, mas a novidade nao € necessariamente um critério da criacao. Certas repetigdes, na ordem dos gestos técnicos especialmente, pode-se dizer com Gilles Deleuze, que “fazem a dife- renga”. E 0 conceito de diferenga, caro a Derrida, ndo adquire consisténcia se- no ao prego de um duplo movimento: © de uma yeveots (génesis) programada pela natureza e o que integra essa yevenig a uma mommots mais ou menos voluntaria e de ordem cultural, cujo carater principal, a despeito dos proje- tos do criador, € o de ser imprevisivel. 4. Para a poiética, a apresentacao de uma pessoa, de uma informacao ou de uma realidace qualquer ~ rito social bem conhecido - € 0 ato de um apre- sentador. E a arte, em todas as suas es- pecialidades € uma conduta apresenta- dora que instaura a obra como presenca para 0 outro. A ponto que consegul- mos chegar a uma definicéo da arte, mesmo quando ela se esconde em operacées que Ihe so estranhas, como a apresentacao do proprio fato de apre- sentar. Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997 110 @ René Passeron 5. A patologia mental'® tem todo Interesse em distinguir criagdo e ex- pressdo: os afasicos, por exemplo, s40 capazes de se expressar por outros melos que néo a lingua falada, ainda que a atividade criadora dependa de uma sintese cerebral 40 complexa quanto a sintese pessoal. O ato criador nao sofrenco quase os déficits graves ica pode contribuir nesse nivel, a poi para seu diagnéstico. 6. Na escala da historia das civi zagGes, a distingao entre Mistérla, que € uma narrativa evidentemente composta por um autor, e Geschichte permitiu- nos formular a questo de saber o que, na prépria Geschichte, depende de uma vontade criadora € organizadora, que nao se poderia reduzir ao funcio- namento mais ou menos determinista de uma “fisica social”. Nossa resposta levou-nos a uma proposigao ética de grande importéncia: sendo os homens parcialmente responsaveis por sua his- toria, a poiética desemboca em uma filosofia da responsabilidade.'" 7. Ora, dentre as diferentes obras que 0 homem elabora ha as que de- pendem de uma poiética do mal. Quantas instituiges ndo visaram senao a exploracdo do homem pelo homem, quantos palacios e templos foram obras-primas de arrogancia e de orgu- Iho, quantas invengées_tecnologicas no tiveram como fim sendo o assassi- nato € 0 gen Sera preciso insis- Defendemos a idéia de que as obras Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997. do espirito, as artes literérias especial- mente, esto aptas a canalizar as pul- sdes agressivas e a Schadenfreude para © mundo da fico e para os artefatos que estancariam o sangue da historia. Dando uma imagem do mal no nivel superior da cultura, a arte se responsa- bilizaria, na facticidade das obras, pelas pulses egoistas do Urmench. A supera- 0 da poiética do mal? quase ndo se pode realizar senao por obras que, nao satisfeitas de estetizar o mal para se possa fruf-lo mentalmente, suscitam antes uma consciéncia ética em que 0 mal se toma um objeto de meditacao sobre a condi¢o humana. 8. Assim, a poiética, capaz cer- tamente de servir a estética através das obras criadas, abre-se a uma ética da ctiagdo em que as obras, mesmo com- postas para o exercicio do mal, nao podem, enquanto obras chegadas a existéncia plena, sendo exonerar a arte dos servicos odiosos aos quals a hist6- tia a obriga ~ sendo a arte, como pen- sava a Escoléstica, perfeita em seu gé- nero (sendo a obra no virla a existir) € constituindo as virtudes poléticas, na pratica, uma recta ratio factibilium. Seria especialmente a exemplaridade da arte que permitiria a ética impor uma virtu- de poiética como 0 respeito pelo ma- terial, transformado em respeito pelo homem, na mutacdo pedagégica do que ela visa tornar-se, quando € simul- taneamente 0 sujeito e o material de sua hist6ria como obra, v Esta consideracdo da responsabi- lidade na auto-poiética da pessoa, como no nivel da hist6ria, permite-me voltar a estética para algumas observacées finals que vo sem davida cavar 0 fosso que a separa da poiética. Por que € necessario que um apreciador de arte, visitando meu ate- lig, tenha dito um dia: “Prefiro esta tela, ela € menos estética"? Como eu Ihe pedisse que se explicasse, acrescentou: “ela € menos visual". O sentido pejora- tivo do epiteto estético retine a conde- nagdo de um apego excessivo as sedu- ges da aparéncia. Recorda-se que, para Duchamp, © impressionismo ¢ demasiado “retiniano”, Para os surrea- listas, a sensagdo, segundo a palavra do simbolista Odilon Redon, é “tolice”, a “logica da sensacéo” duplamente mar- cada de intelectualismo e de empirismo (a misica principalmente ndo € sendo cécegas de orelha), e a busca de uma “racionalidade da arte” vinculada de- mais as censuras do esteticamente correto. Entre a sensagao, que nos prende nas aparéncias e a sistematica do conceito, que nos atola muito fre- qientemente no verbalismo, a arte nao encontraria suas verdadeiras raizes se- nao nas fantasias interiores do Eros e no tragico da condi¢do mortal. E esta exi- géncia, levada tao longe por Artaud em sua busca de uma arte da crueldade, chega a condenar a propria nocao da @ i111 Da estética a poiética obra de arte, em razo de sua facticida- de fundamental. © “Jarg4o da autenti- cidade", reprovado por Adorno, nao diz respeito sendo a estética. Para a poiética, a dupla autenticidade do ma- terial tratado e do sujeito que age con- tinua um valor essencial. Que importa a estética a factici- dade da arte se ela af encontra o belo e © sublime, a verve e 0 tragico: suas ca- tegorias s4o elas proprias emanagdes do sentimento. Ora, ninguém é respon- savel por seus sentimentos, € bem sa- bido. A estética tem um coragao, tem uma cabega, mas ndo tem mao. Somos todos estetas capazes de cantar diante do incéndio de Roma. E por estetismo. que sentimos tanto prazer na descrigao do crime perfeito, ou no filme catastro- fe? Das Diaboliques de Clouzot ao Tita- nic de Cameron, 0 mal e a infelicidade nos ctispam e nos fazem chorar ~ que prazerl O mal, para a estética, ndo sera percebido sendo através das categorias de que faia Moutsopoulos,'? 0 demo- niaco e © saténico. Ao prazer do espe- taculo, a estética acrescenta 0 da dis- sertagAo... Para a poiética, 0 mal € 0 produto de uma conduta, sendo a de um artista chamado Sata, pelo menos a do lagarto arcaico que jaz no funco do cérebro de cada um. Assim, a estética esta situada do lado das ramificagdes do arco nervoso, 0 passo que a poiética se encontra do lado dos circuitos motores. Se ninguém € responsdvel por seus sentimentos, Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997 112 BB René Passeron mesmo por suas fantasias e até por seus pensamentos - com o isco de nem sempre comprazer-se nisso ~ cada um € responsavel por seus atos, até na espontaneidade criadora dos surrealis- tas... Esta diferenga muito banal, basta para legitimar a distinga0 da poiética, no no interior de uma estética geral, mas, fora, terminantemente. Esta alusdo A fisiologia, que € tao somente uma no situa obrigatoria- \c40 de colocacdo, mente a estética como aval da obra feita, a0 passo que a poiética estaria acima da obra a fazer. O artista tem um gosto e emogées que © mobilizam, uma vi- so do mundo em que os afetos prece- dem a criagao. A poiética reconhece perfeitamente que a estética fornece alimentos ao espirito, que as riquezas que ela contém so mesmo as vitami- nas da criatividade — todavia, com a condiggo de que ela os deixe ficar em estado bruto, sem sofistica-los através dos discursos eruditos. Se pensarmos que esses discursos sdo a propria esté. tica, eles se bastam, e a poiética se desvia deles. Os afetos que nutrem a crlagdo estado em estado nascente, e a polética ndo tem o que fazer com sen- timentos culturalmente pré-condiciona- dos. Todo criador € levado a liberar-se primeiro dos cédigos e das convencées para entao colocar-se em situacdo poi- tho, A estética esté lado da propriedade, ao passo que a poiética esta do lado do traba- {eicso que se pode, ética, corrente acima da obra que pro jeta. Desencadeia-se entéo um pro- cesso criador que se opde as vezes aos sentimentos e ao gosto do préprio ar- tista. Indmeros criadores anulam a es- tética no momento mais concentrado de seu trabalho, com © inconveniente de conceder-Ihe um papel, antes artifi- cial, sé nas fases de acabamento. Quando Picasso esboca Guernica € sob © impacto da célera. ‘do Em seguida, durante seis dias, trabalha sua obra mais friamente "para atingir uma per- certamente, dizer es- tética, no sentido do que seu olho a pensa e finalmente a constata na obra acabada, a0 passo que € sua ago, duramente desafiada por dificuldades plasticas, que a tera poiéti- camente levado a bom termo. Em ou- tros casos, mais radicais, a obra chega a chocar © artista: como Bellmer diante de sua Poupée. Ora, a admiracdo dé vontade de possuir. Foi a estética que encheu os museus ocidentais de tantas obras da AntigUidade egipcia, grega e romana. Quando o esteta age, el-lo predador. A estética esté do lado da propriedade, a0 passo que a poiética esta do lado do trabalho. O lugar da arte, disse um crfti- co," é a galeria. Na verdade, o lugar da arte €, primeiro, 0 atelié. E compreen- Porto Arte, Porto Alegre, v.8, n.15, p.103-116, nov. 1997, de-se que a sociologia da arte derrape diante de um fendmeno que ela nao pode centrar em seu nticleo rigido e em sua fonte principal: 0 trabalho, tao frequentemente clandestino, do artista. De Charles Lalo, cuja estética sociol6gi- ca considera a arte uma “disiciplina de luxo” a Pierre Bourdieu, que lastima amargamente que 0 dominio das artes seja “um mundo ao avesso”"* e a pre- tensa criagdo “a eufemizacao” de uma distingao vaidosa, a sociologia neo- durkheimiana — a0 contrario da “socio- logia da liberdade” proposta pela es- cola de Gurvitch ~ fica bloqueada em um determinismo em que 0 sujeito nao € sendo 0 escravo inconsciente das “ideologias dominantes”. A deixar es- capar desta maneira 0 que constitui a abertura criadora para o futuro, em que ‘0s homens, segundo Horkheimer “pro- duzem suas formas histéricas de vida",'* ‘© humano € estranhamente privado de dois tragos que Ihe s4o essenciais: a historicidade e a responsabilidade. Esses dois tragos sdo somente os prolongamentos de uma qualidacle mais profunda: © homem nao é tanto um animal racional quanto um animal cria- dor. Uma vez que a propria razéo € uma obra.'” E se os sentimentos contri- buem para os imperativos do direito, por exemplo,’ para a exigéncia de igual- dade perante a lel, s40 sentimentos morais fundadores da ética que inter- vem entao na formagao de uma “razio ardente” — ndo sentimentos estéticos, Dacstéticaapoigtica

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