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A ACGAO POPULAR: configuracao e valor no actual Direito portugués (*) Pelo Prof. Doutor Paulo Otero SUMARIO: | — Introdugdo: § 1.° - Preliminares. § 2.° - Origem e evolugio da acgo popular. § 3.° - Sequéncia. II —Configuragéo da acgo popular no actual Direito portugues: § 42 —A ac¢ao popular na Constituigdo. § 5.°— A acco popular na Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto. Ill — A acgao popular no contencioso administrativo: § 6.° - Quadro legislativo da aceSo popular em contencioso administrativo. § 7° — Principais inovacdes da ac¢o popular face ao regime do recurso contencioso de anulagdo. § 8.° - Significado da acco popu- lar no contexto do contencioso administrativo. I — Introducio §1.° - Preliminares 1.1. A acco popular, sendo sempre uma ac¢ao judicial e, neste sentido, a expressao do direito fundamental de acesso aos tri- bunais, distingue-se de todas as demais modalidades de acgdes (*)_ O presente texto corresponde a uma conferéncia que tivemos ocasido de pro- ferir na Ordem dos Advogados, em 23 de Novembro de 1999, no ambito de um semninério sobre “Teoria e Prética do Direito”, o qual foi realizado no contexto do protocolo de cola- boragio entre a Faculdade de Direito de Lisboa e a Ordem dos Advogados. 872 PAULO OTERO pela amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura. 1.2. Mediante a acgao popular, pode dizer-se que todos os membros de uma comunidade — ou, pelo menos, um grupo de pessoas nao individualizével pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal — estado investidos de um poder de acesso a justiga visando tutelar situagdes jurfdicas materiais que sao insus- ceptiveis de uma apropriacao individual. A acgao popular traduz, deste modo, uma forma de tutela jurisdicional de posigdes juridicas materiais que, sendo pertenca de todos os membros de uma certa comunidade, nao so, todavia, apropridveis por nenhum deles em termos individuais. Deparamos aqui, por isso mesmo, com um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisivel através de um processo de apro- priagdo individual. Neste sentido, deverd afirmar-se que o actor popular age sem- pre no interesse geral da colectividade ou da comunidade a que per- tence ou se encontra inserido, isto sem que tal meio de tutela judi- cial envolva a titularidade de qualquer interesse directo e pessoal. § 2.° - Origem e evoluco da acgao popular 2.1, Numa rdpida digressio histérica sobre a origem e a evo- lugdo da acgao popular no Direito portugués ('), podemos reter seis principais ideias: (A acgao popular encontra no Direito Romano a sua ori- gem, isto tanto a nivel penal como civil, gozando tam- bém de consagracao nas Ordenagées do Reino, especial- ()_ Sobre a matéria, eft. Jaciwro ANTONIO PERDIGAO, Acgdo Popular, in Aponta- mentos de Direito, Legislacao e Jurisprudéncia Administrativa e Fiscal, 1, Lisboa, 1883, P. 18 seg.; Marcetio Caetano, Manual de Direito Administrativo, Il, 9: ed., Coimbra, 1980, p. 1363; José Rosin DE Awprabe, A Accdo Popular no Direito Administrative Por- tugués, Coimbra, 1967, p. 6 seg.; NuNo SéRGio Marques ANTUNES, O Direito de Acgdo Popular no Contencioso Administrativo Portugués, Lisboa, 1997, p. 17 seg. A ACCAO POPULAR 873 mente no 4mbito penal, sem prejufzo de se reconhecer aplicabilidade expressa na defesa dos bens dos conce- lhos (?) e, por outro lado, se discutir a sua vigéncia por efeito da aplicac&o subsididria do Direito Romano no contexto das fontes internas; (ii) A Carta Constitucional de 1826, por seu lado, foi o pri- meiro texto constitucional portugués a conferir expressa referéncia a accao popular (artigo 124.°), isto apesar de circunscrever a sua propositura a certos crimes pratica- dos por juizes; (iii) Seria ao abrigo da Carta Constitucional, todavia, que a legislagao administrativa consagraria, pela primeira vez no Cédigo Administrativo de 1842, a acgio popular de natureza correctiva, isto é, visando o controlo jurisdicio- nal da legalidade de certos actos da Administragao, num primeiro momento circunscrito tal tipo de controlo a actos em matéria eleitoral e, num momento posterior, alargado a outros actos da Administragao local que se tivessem como contr4rios ao interesse publico e a lei; (iv) O Cédigo Administrativo de 1878, por seu lado, consa- graria a acgao popular de natureza supletiva, isto é, visando suprir as omissdes dos 6rgaos ptiblicos locais na defesa de bens e direitos da Administragao, observando- -se, por outro lado, que essa mesma figura se tornaria uma constante em toda a legislagao administrativa de Ambito local que foi emanada até ao presente; (v) A Constituigéo de 1976 viria a reconhecer expressa- mente o direito fundamental de acgao popular, inte- grando-o no dmbito dos direitos, liberdades e garantias de participacao politica, verificando-se que as revisdes constitucionais de 1989 e 1997 comportaram um signifi- cativo alargamento das modalidades de acgéo popular objecto de acolhimento na Lei Fundamental; ©) Cfr. Ordenagdes Manuelinas, liv. I, tit. 46, § 2.°; Ordenagées Filipinas, liv. 1, tit. 66, § 11.°, Para uma fundamentacdo doutrindria desta antiga concepgdo da acco popu- lar destinada & conservago ou defesa de bens piiblicos, efr., por todos, José Home Correa Tet.es, Doutrina das Accdes — Accommodada ao Foro de Portugal, 4." ed., Coimbra, 1853, p. 8, nota n.° 3. 874 PAULO OTERO (vi) A Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, por ultimo, imple- mentando o imperativo constitucional que, reconhe- cendo a aceao popular como direito fundamental, remete para a lei a respectiva configuragao, vem conferir o necessdrio desenvolvimento legislativo 4 acgao popular. 2.2, Numa breve excursao pela relevancia conferida 4 acco popular em algumas experiéncias juridicas estrangeiras em matéria administrativa, podemos extrair trés principais ensinamentos do direito comparado: (i) Em primeiro lugar, a acgdo popular é um instituto com expressa consagracdo constitucional no Brasil — pelo menos desde a Constituigao de 1934 —, sendo hoje con- siderado um importante meio de controlo da Adminis- tragdo Publica (3); (di) Em segundo lugar, a accao popular mostra-se um insti- tuto excepcional e de rara aplicagdo no Direito ita- liano (*) e no Direito espanhol (°), sem prejuizo de neste Ultimo ter expressa consagra¢do constitucional (°); (ii) Em terceiro lugar, independentemente da maior ou menor ampliacao jurisprudencial dos critérios aferidores da legitimidade processual do recorrente particular, a acgdo popular, enquanto tal (”), nao é admitida no Direito (@) Cf. Maria SyLvia ZANELLA DI Pietro, Direito Administrativo, 10." ed., Sd0 Paulo, 1999, p. 536 seg,; José AFonso pa Siva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 16. ed., S4o Paulo, 1999, p. 462 seg. (*) Cfr. Fuippo Satta, GiustiziaAmministrativa, 2." ed., Padova, 1993, p. 177. Nio obstante a excepcionalidade, sendo mesmo o cardcter “misterioso” (Micnone), a acgo popular no Direito italiano, podemos af encontrar diversos estudos sobre a figura, cfr. CrisaFutti, Azione Popolare, in Nuovo Digesto Italiano, II, Torino, 1937, p. 1 38 seg.. Pataoin, Azione Popolare, in Novissimo Digesto Italiano, II, Torino, 1958, p. 88 seg: Loco, Azione Popolare, parte generale, in Enciclopedia del Diritto, IV, Milano, 1959, P. 861 seg.; Massa, Azione Popolare, Diritto Penale, in Enciclopedia del Diritto, 1V, Milano, 1959, p. 871 seg.: CLavpto Mignone, Azione Popolare, in Digesto delle Discipline Pubblicistiche, Hl, Torino, 1987, p. 145 seg. (*) Cir. EDuARDO Garcia DE ENTERRIA / TomAs-RAMON FERNANDEZ, Curso de Dere- cho Administrativo, Il, 4." ed., Madrid, 1993, p. 518-519 e 600. (©) Cf artigo 125.° da Constituigdo espanhola de 1978. (©) Para uma s{ntese de outras situagbes, todas elas nao qualificdveis como accio Popular & luz das respectivas ordens juridicas, cfr. NUNo SéRGIO MARQUES ANTUNES, O Direito de Accdo Popular... p. 21 seg. A ACCAO POPULAR 875 francés (®), no Direito alemo (°) e no Direito sufgo (!°), tal como nao goza de qualquer relevancia no 4mbito do contencioso comunitério ('"). 2.3. Ao nivel do Direito Internacional Publico, por tiltimo, nao obstante certas hesitagdes da jurisprudéncia do Tribunal Inter- nacional de Justicga, o certo é que a tendéncia dominante vai no sentido de se reconhecer a admissibilidade de os Estados recorre- rem a acco popular visando obter a declaragao de nulidade ou de ilicitude de normas ou comportamentos gravemente violadores de obrigagdes resultantes de regras de ius cogens ('?). § 3.° - Sequéncia 3.1. Tracado um sumério enquadramento histérico-evolutivo da ac¢ao popular no Direito portugués e da relevancia desta figura no Ambito do direito comparado, vamos circunscrever a nossa and- lise imediata ao estudo da acgdo popular a luz do actual direito por- tugués, procurando responder a trés quest6es: (i) Como se configura a acgao popular hoje? (ii) Quais as particularidades ou especificidades do regime processual da acgao popular? (iii) Qual o significado juridico da acg4o popular no actual contexto do Direito portugués? (*) Criticando a auséncia da acco popular, considerando este instituto como instru- mento democritico, cfr. Gr.ues Lepreton, Droit Administratif, U, Paris, 1996, p. 141. ©) Cir. C. H. Ue, Verwaltungsprozessrecht, 9." ed., Minchen, 1986, p. 210 seg. (9) Cfr. BLAise KNAPP, Grundlagen des Verwaltungsrechts, 11, Basel, 1993, p. 484, (!') _ Especificamente sobre os problemas da legitimagdo processual de terceiros no recurso contencioso comunitério, cfr. GIaNDOMENICO FAaLcon, La Tutela Giurisdizionale, in Mario P. Car / Guin Greco, Trattato di Diritto Amministrative Europeo, 1, Milano, 1997, p. 357-358. (2) Sobre a matéria, ofr. EDvARDo Correia Barrista, lus Cogens em Direito Inter- nacional, Lisboa, 1997, p 493 seg. 876 PAULO OTERO 3.2. A circunsténcia de o tempo disponfvel limitar a ampli- tude do estudo sobre a configuracao e o valor da acgiio popular no actual Direito portugués determina que a nossa andlise comece por incidir em dois pontos: * Orecorte constitucional da accdo popular; * A configurago da ac¢o popular na Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto. Il — Configuragao da accao popular no actual Direito portu- gués § 4.°- A acco popular na Constituigao 4.1. Limitando as nossas consideragdes ao actual texto do artigo 52.°, n.° 3, da Constituigdo, enquanto expressao da revisao constitucional de 1997, podemos extrair trés principais aspectos sobre a configuragio da ac¢ao popular: a) Em termos de legitimidade activa, a Constituig&o consa- gra dois modelos de acg4o popular: (i) Temos, por um lado, a acco popular desencadeada em termos pessoais, representando aquilo que se pode chamar a acgdo popular individual; (i) Reconhece-se, por outro lado, a possibilidade de associagdes de defesa de certos interesses poderem também desencadear a acco popular, caso este que se reconduz a uma ac¢do popular colectiva; b) No que respeita aos bens tutelados pela ac¢&o popular, sem prejuizo de se deferir para o espaco da liberdade con- formadora do legislador a defini¢do de outros bens, a Constituigdo elenca os seguintes: * Satide ptiblica; * Direitos dos consumidores; * Qualidade de vida; A ACCAO POPULAR 877 * Preservaciio do ambiente (3); * Preservacao do patrimonio cultural; * Defesa dos bens de entidades piiblicas territoriais; c) Quanto ao objecto da acgao popular, a Constituigéo, uma vez mais sem excluir a intervencdo ampliativa do legisla- dor, estabelece que aquela se pode traduzir numa das cinco seguintes modalidades de ac¢io judicial: (i) Pode tratar-se de uma acgao que tem por objecto pre- venir infracgGes contra certos interesses gerais da colectividade, falando-se aqui em acgao popular preventiva; (ii) Podera ocorrer que a acgao popular sirva de instru- mento tendente a determinar a cessagio de tais infracgdes, existindo aqui uma acedo popular des- trutiva ou anulatéria; (iii) Pode a acg4o popular visar, por outro lado, a perse- guicdo judicial de certo tipo de infracgGes ou, talvez de modo mais rigoroso, dos agentes protagonistas de tais infracgdes, deparando-se aqui com uma ac¢do popular repressiva; (iv) A accgo mostra-se ainda susceptivel de visar 0 res- sarcimento de danos decorrentes da infracgao aos referidos interesses da comunidade, situagao em que depararemos com uma ac¢do popular indemniza- toria; Por tiltimo, a acco popular podera visar a defesa de bens integrantes do patrimonio de entidades publi- cas, especialmente em casos de omissdo ou negli- géncia de actuacao publica na sua defesa, situacao ) (®) Sobre a acedio popular ao nivel do ambiente, cfr. Micuet Tercera DE Sousa, Legitimidade Processual e Accdo Popular no Direito do Ambiente, in Dioco FRerras D0 AMARAL / MARTA TAVARES DE ALMEIDA (coord.), Direito do Ambiente, ed. Instituto Nacio- nal de Administragio, Ociras, 1994, p. 409 seg.; Jost Lesre De Frerras, A Accdo Popular a0 Servigo ao Ambiente, in Ab Vno ad Omnes —75 anos da Coimbra Editora 1920-1995, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 797 seg. 878 PAULO OTERO esta reconduzivel a tradicional acgao popular suple- tiva ou substitutiva ('4), 4.2. Quais as consequéncias que se podem extrair da confi- gura¢do constitucional da acco popular no artigo 52.°, n.° 3, da Constituigao? a) b) Em primeiro lugar, a accdo popular goza no Direito portu- gués e, sublinhe-se, por forca directa da Constituigao, de uma amplitude de operatividade sem paralelo nas princi- pais experiéncias juridicas europeias: a acco popular nao € entre nés configurada pela Constituic3o como um insti- tuto excepcional ('%), antes expressa um verdadeiro direito fundamental que permite a quem no é titular de um inte- Tesse pessoal e directo o acesso aos tribunais visando a defesa de certos interesses de toda a colectividade; Em segundo lugar, precisamente porque a acgao popular goza do estatuto de direito fundamental, traduzindo uma modalidade do direito de acesso aos tribunais previsto no artigo 20.°, n.° 1, da Constituicao, isto significa que, espe- cificamente ao nivel das garantias contenciosas dos admi- nistrados, o direito A impugnagdo dos actos administrati- vos e dos regulamentos lesivos de posigdes juridicas subjectivas — segundo o disposto no artigo 268.°, n.° 4 e 5, da Constituigéo — nao pode deixar de ser articulado com 0 direito de acgio popular: a crescente amplitude operativa da ac¢ao popular no contencioso administrativo por forga das ultimas revisdes constitucionais nao pode deixar, por conseguinte, de atenuar — senaio mesmo des- mentir — as alegadas orientacdes subjectivistas da confi- gura¢do constitucional das garantias contenciosas dos administrados; cy Sobre este tipo de acgo popular como forma de exercicio privado ocasional de fungdes publicas, cfr. Pato Otero, O Poder de Substituigdo em Direito Administra- tivo — Enquadramento dogmatico-constitucional, 1, Lisboa, Lex, 1995, p. 62. (°) _ No sentido de que a ac¢o popular se pode configurar “como acedo principal ¢ instrumento de defesa preferencial relativamente a outros meios processuais”, cft. GOMES Caxorn.Ho/ Vitat Moreira, Constituigdo da Reptiblica Portuguesa Anotada, 3." ed., Coimbra, 1993, p. 283. A ACCAO POPULAR 879 c) Em terceiro lugar, a dicotomia entre a acco popular cor- rectiva e a acco popular supletiva, desde sempre classica no Direito portugués, tal como a tradicional limitagao ope- rativa da accfio popular ao nivel da Administragao local, encontra-se hoje ultrapassada por forga da Constituigao: (i) Por um lado, sem prejuizo da prépria acgao popular supletiva ou substitutiva gozar agora de uma expressa garantia constitucional, tal como a tradicio- nal accdo popular correctiva de natureza anulat6ria ou destrutiva, verifica-se que a acgao popular passou a compreender trés novas realidades: * A accao popular preventiva; + A acgao popular repressiva; * A accdo popular indemnizatéria; (ii) Por outro lado, a actividade de todas as estruturas da Administragao Publica — incluindo, sublinhe-se, da Administracao central do Estado — passou a estar sujeita ao controlo contencioso através do meca- nismo da acgao popular; d) Em quarto lugar, sob pena de inconstitucionalidade — designadamente por omissao —, o legislador encontra-se vinculado a implementar 0 modelo constitucional de acgao popular, irradiando este instituto para toda a ordem jurfdica, fazendo da acgao popular um instrumento de tutela de interesses gerais da colectividade a nivel admi- nistrativo, civil e criminal (!°). (5) Questo controvertida neste Ambito consiste em saber se o legislador por criar uma “acgdo popular constitucional”, ou seja, um meio mediante o qual os cidadaos tives- sem acesso directo aos tribunais para efeitos de declaragéo de inconstitucionalidade de actos do poder piblico. Em sentido negativo pronunciam-se certos autores (cfr. Gomes CaNoTILHo/ Vita Moreira, Constituigdo..., 3."ed., p. 281). Entendemos, todavia, ser dis- cutivel uma tal exclusdo, seja por forga do prinefpio da méxima efectividade que se deve conferir aos direitos fundamentais em situagdes de divida entre solugSes mais ou menos ampliativas do seu Ambito, tanto mais que a Constituig4o prevé que o Tribunal Constitu- ional possa receber outras competéncias por forga da lei (CRP, artigo 223.°, n.° 3) € 0 pr6prio artigo 52.°, n.° 3, remete para a lei “os casos e termos” de configuragdo do direito de acco popular, abrindo a possibilidade, por isso mesmo, de ser criada por lei uma “acco popular de constitucionalidade”. 880 PAULO OTERO 4.3. Atendendo ao tltimo aspecto referenciado, isto é, ao grau de implementagao pelo legislador ordindrio do direito de ac¢ao popular consagrado pela Constituicao e cuja concretizagao € devolvida para a lei, importa averiguar 0 modo como a Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, configura a acgiio popular. Esse ser4, precisamente, o objecto imediato de andlise. § 5.°- A acco popular na Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto 5.1. Nao obstante ser cronologicamente anterior A revisio constitucional de 1997, a verdade é que se pode dizer que a Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, se mostra perfeitamente implementa- dora dos imperativos constitucionais na matéria, sendo até de sublinhar o seu papel como fonte directa da inclusio da protecgao dos interesses referentes ao dominio publico na actual redacgao do artigo 52.°, n.° 3, da Constituigao. Centremos a nossa atengdo, todavia, nos aspectos inovadores sobre a configuracao e o regime da accdo popular a luz da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto (!7), 5.2. Urge comegar por referir, em primeiro lugar, que o objecto ou a natureza da accao popular consagrada na Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, compreende duas (ou, talvez de modo mais rigoroso, quase trés) distintas espécies: a) A acg4o popular administrativa, a instaurar junto dos tri- bunais administrativos (*) — enquanto expressao de liti- gios emergentes de relacdes jurfdico-administrativas que, por forga do artigo 212.°, n.° 3, da Constituigdo, se inte- gram no Ambito da reserva de competéncia dos tribunais (") Para uma postura muito eritica ao regime da acco popular resultante da Lei 1n.° 83/95, de 31 de Agosto, cfr. Vasco PEREIRA Da Siva, Responsabilidade Administra- tiva em Matéria de Ambiente, in J. Luis MARTINEZ Lorez-Muniz / Antonio CALONGE VeLAzquez (Coords.), La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Piblicos — Ill Coléquio Hispano-Luso de Derecho Administrativo, Valladolid, 16-18 de octubre de 1997, Madrid, Marcial Pons, 1999, p. 482 seg. (Neste sentido, deve considerar-se terminologicamente incorrecta a designagao de “acg#o procedimental administrativa” utilizada no artigo 12.°, n.° 1, da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto. A ACCAO POPULAR 881 administrativos —, podendo albergar trés principais manifestagdes: (i) A acgao popular que se reconduz ao recurso conten- cioso com fundamento em ilegalidade contra actos administrativos lesivos dos interesses gerais da colectividade; (ii) A acgao popular que, visando o ressarcimento de danos provocados pela conduta por acgao ou omis- sao da Administracao, se consubstancia numa verda- deira acg4o de responsabilidade civil administrativa: (iii) A acgéo popular que, nado se reconduzindo ao recurso contencioso de anulacao ou a acgao de res- ponsabilidade civil, envolve outras formas ou meios de tutela contenciosa efectiva dos interesses a que se refere 0 artigo 52.°, n.° 3, da Constituigdo ou ainda dos interesses passiveis de gerar 0 direito de partici- pagdo popular em procedimentos administrativos; b) A acgao popular civil, naturalmente a instaurar junto dos tribunais civeis, pode revestir qualquer uma das formas previstas no Cédigo de Processo Civil ('%), havendo aqui a diferenciar duas principais situagdes: (i) A acgao popular civil visando a defesa do patrimé- nio da Administrac¢ao Ptiblica, hoje visando a defesa dos bens do Estado, das regides auténomas e das autarquias locais, consubstanciando a designada acg4o popular supletiva ou substitutiva que tem a sua origem entre nés nas Ordenacées Manuelinas; (ii) Todas as outras diversas situagdes de acgo popular civil cujo objecto respeita 4 defesa de interesses gerais da colectividade que nao se reconduzem aos bens de entidades ptblicas territoriais; c) Uma quase-acgdao popular penal, permitindo que os titu- lares do direito de acgio popular possam, por um lado, ('°) Cf. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 12.°, n.° 1. 882 PAULO OTERO exercer um direito de dentincia, queixa ou participacao ao Ministério Puiblico por violagéo com incidéncia criminal dos interesses gerais da colectividade mencionados no artigo 52.°, n.° 3, da Constituigdo, e, por outro lado, cons- titufrem-se como assistentes no respectivo processo (2°), 5.3. Observando 0 regime da accdo popular consagrado na Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto (?'), so cinco os principais aspec- tos que merecem destaque: a) Em primeiro lugar, a titularidade do direito de accdo popular ou, segundo outra perspectiva, a legitimidade activa da acco popular encontra-se distribuida nos seguintes termos: @ (ii) (iii) Quanto a acgdo popular individual, tém legitimi- dade para a desencadear quaisquer cidadaos no gozo dos seus direitos civis e politicos (); No que respeita 4 ac¢do popular colectiva, a lei con- feriu legitimidade as associagoes e fundagdes defen- soras dos interesses a que se refere 0 artigo 32.°, n.° 3, da Constituicao (7), isto desde que se verifi- quem certos requisitos em tais entidades (”); No ambito da liberdade conformadora do legislador conferida pela Constituigao, a Lei n.° 83/95 criou ainda, por outro lado, uma forma de acco popular piiblica, conferindo as autarquias locais legitimidade activa processual relativamente “‘aos interesses de que sejam titulares residentes na drea da respectiva circunscrigao” (?5); @°) Cfr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 25.°. ©) Cf, Nuno Senco Marques ANTUNES, O Direito de Accdo Popular..., p. 85 seg. @)_ Cir, Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 2.°, n.° 1. ©) Chr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 2.°,n.° 1. @*)_Os requisitos da legitimidade activa de tais associagdes e fundagdes resultam do artigo 3.° da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto. ©) Cir. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 2.°, n.° 2. d) o) e% ©) ° ° A ACCAO POPULAR 883 Em segundo lugar, salvo exercicio de um direito de auto- -excluso de representagao, todos os titulares de direitos ou interesses cujo actor popular faz valer em juizo se con- sideram automaticamente representados por este em ter- mos processuais (7°), circunstancia esta que acarreta alguns efeitos: (i) Desde logo, 0 actor popular representa por iniciativa propria todos os demais titulares de interesses ou direitos idénticos aos que ele pretende fazer em juizo, nao necessitando de qualquer mandato ou autorizacao destes (7); (ii) Isso permite compreender que se inverta o funciona- mento do modelo tradicional de representagao processual: somente aqueles que se querem excluir do processo € que tém de declarar essa vontade, valendo o seu siléncio ou passividade como declara- ¢4o no sentido de aceitarem a representagdo prota- gonizada pelo actor popular (**); (iii) Em consequéncia, salvo em casos de improcedéncia da acg4o por insuficiéncia de provas ou quando o julgador deva decidir por forma diversa fundado em motivagdes préprias do caso concreto, deparamos sempre com sentengas administrativas ou civeis cujo caso julgado goza de uma eficdcia subjectiva geral, salvo, naturalmente, em relago aos titulares que se auto-excluiram (%); Em terceiro lugar, verifica-se que o regime da accio popular confere uma maior interveng4o ou protagonismo processual do juiz, sendo isto aferivel a dois nfveis: @ Por um lado, o juiz goza de iniciativa propria ao nivel da recolha de provas, nao se encontrando vin- culado a iniciativa das partes (*°); Cfr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 14.°. Cfr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 14. Cfr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 15.°, n.° 1. fr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 19.°, n.° 1. Cfr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 17.° 884 (ii) PAULO OTERO Por outro lado, 0 juiz pode ainda determinar, por ini- ciativa propria, que certo recurso em ac¢do popular tenha efeito suspensivo, isto mesmo que a lei no Ihe atribua normalmente esse efeito, desde que isso evite um dano irrepardvel ou de dificil reparagao (3'); d) Em quarto lugar, a acco popular permite que o Ministé- tio Publico possa, simultaneamente, desempenhar dois Papeis processuais: e) e) @) © eC) Cc e” @) (ii) Por um lado, 0 Ministério Puiblico tem a seu cargo a fiscalizacao da legalidade (*), incluindo todo o tipo de comportamentos lesivos dos interesses em causa no processo e a propria possibilidade de exercer uma posi¢ao substitutiva do acto popular que desenca- deou o processo (*); Por outro lado, o Ministério Piblico tem ainda uma ampla fun¢éo de representag&o processual, aqui se integrando a representagdo do Estado, se este for Parte na causa, os ausentes, os menores e os demais incapazes (*4), além de poder também ser chamado a representar outras entidades piiblicas (°5); Em quinto lugar, por ultimo, merece ainda registo o regime especial que a lei concedeu a accao popular em matéria de preparos e de custas: @ Gi) Nio sao exigiveis preparos (°°); As custas ou nao sao exigiveis ou, sendo-o, tm um valor muito reduzido relativamente aquelas que nor- malmente seriam devidas (37). Cfr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 18.°. Cfr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 16.°, n.° 1. Cir. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 16.°, n.° 3. fr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 16.°, n.° 1. Cf. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 16.°, n.° 2. Cf. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 20.°, n° 1. Chr. Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, artigo 20.°, n* 2 3. A ACCAO POPULAR 885 5.4. Quais as ilagdes que se podem extrair sobre a configura- ao da ac¢ao popular resultante da Lei n° 83/95, de 31 de Agosto? a) Resulta evidente, desde logo, que a acgao popular agora prevista, expressando exigéncias de indole constitucional, se mostra dotada de um campo de operatividade muito superior aquele que resultava dos artigos 369.° e 822.° do Cédigo Administrativo de 1940: @ (i) (iii) A Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, transformou a acg4o popular de simples mecanismo de controlo da Administracio em instrumento de tutela jurisdicio- nal de certos interesses comuns da colectividade cuja lesao ou ameaga de lesio pode também ser pro- vocada pela actividade desenvolvida por entidades privadas; A tradicional operatividade vertical da acgao popu- lar foi objecto, deste modo, de um verdadeiro pro- cesso de horizontalizagao: a acgao popular surge hoje também como instrumento processual de parti- culares contra acgdes ou omissées de outros particu- lares; Ao lado da accfo popular individual e da acgao popular colectiva, a lei criou — isto sem que a Cons- tituig&o o exigisse, note-se — uma dupla acgao popular ptiblica: * Uma acco popular ptblica origindria, enquanto decorréncia do reconhecimento 4s autarquias locais de legitimidade processual activa; © Uma accdo popular ptiblica derivada ou superve- niente (8), expresso da possibilidade de interven- ¢4o processual substitutiva do Ministério Publico, designadamente em casos de desisténcia da lide ou de transac¢ao; @) Sobre a possivel concorréncia entre ac¢o popular e acco publica, off. Rui CHANCERELLE DE MACHETE, Algumas Notas Sobre os Interesses Difusos, o Procedimento e 0 Processo, in Estudos em Memoria do Professor Doutor Jodo de Castro Mendes, Lisboa, sd. p. 656. 886 PAULO OTERO b) A segunda ilacao é que estamos aqui diante de um meio garantistico dotado de significativas inovacdes proces- suais que se podem resumir em trés ideias centrais: (i) Existéncia de claros estimulos a utilizagao deste meio processual para a defesa dos interesses mate- riais em causa; (ii) Preocupagao de assegurar a maxima amplitude da eficdcia subjectiva do caso julgado; (ii) Reforgo da intervengao processual do juiz; c) A terceira ilagdo diz respeito as especiais inovagdes que a ac¢do popular comporta ao nivel do contencioso adminis- trativo: o regime legal da acco popular representa uma verdadeira revolugao no contexto do entendimento e da configuragao do recurso contencioso de anulagao. 5.5. Pela sua importancia e pela capacidade de inovagdo que comporta, ao ultimo aspecto mencionado restringiremos a sequén- cia da presente intervencao, abordando, por conseguinte, a projec- ¢4o da ac¢ao popular no contencioso administrativo. III — A accao popular no contencioso administrativo § 6.°- Quadro legislative da acco popular em contencioso administrativo 6.1. A andlise efectuada da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, no que respeita 4 projecco da acc4o popular ao nivel do conten- cioso administrativo deixou em aberto uma inevitdvel questao: ser que 0 artigo 822.° do Cédigo Administrativo de 1940 ainda hoje esté em vigor? Para uma resposta A questo colocada podemos partir de dois pontos firmes: ( Por um lado, nao existe qualquer norma revogatéria expressa: 0 artigo 822.° do Cédigo Administrativo nao foi objecto de revogaciio explicita por parte da Lei n.° 83/95; (i) A ACCAO POPULAR 887 Por outro lado, sem prejuizo de certos aspectos que con- tém uma regulacio diferente, operando-se aqui, por isso mesmo, uma revogacao parcial do citado artigo 822.°, a verdade é que o objecto da acg4o popular prevista na Lei n.° 83/95 nao esgota completamente o Ambito de operati- vidade da acco popular prevista no artigo 822.° do Cédigo Administrativo. Observemos com mais algum detalhe esta ultima afirmagao. 6.2. Centrando a nossa andlise num confronto entre o regime da acg4o popular prevista no artigo 822.° do Cédigo Administra- tivo e o regime da Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, podemos extrair as trés seguintes principais conclusées: a) b) Em primeiro lugar, 0 alargamento pela Lei n.° 83/95 dos titulares do direito de acco popular determina a revoga- ao implicita da parte do artigo 822.° que se refere a determinagio da legitimidade processual activa do actor popular; Em segundo lugar, nao existe completa identidade entre os destinatdrios, os meios e 0 objecto da accéo popular prevista na Lei n.° 83/95 e no artigo 822.° do Codigo Administrativo: (i) Se € certo que 0 artigo 822.° do Cédigo Administra- tivo restringe a utilizagdo da ac¢ao popular contra os actos da Administracao local, a verdade € que a Lei n.° 83/95 amplia a utilizagao da acco popular no Ambito do contencioso administrativo também aos actos praticados por todas as restantes entidades da Administragao Publica: a acco popular no € hoje, por isso mesmo, um simples instrumento de controlo contencioso da Administragao local, antes traduz um direito fundamental de acesso a justi¢a administrativa contra actos administrativos praticados por qualquer estrutura deciséria da Administragao Publica; (ii) Todavia, enquanto que a Lei n.° 83/95, apesar da natureza meramente exemplificativa dos interesses 888 PAULO OTERO referidos no seu artigo 1.°, n.° 2, circunscreve na pratica 0 objecto da ac¢4o popular no ambito do con- tencioso administrativo 4 tutela dos interesses res- peitantes a satide publica, ambiente, qualidade de vida, protecgao do consumo de bens e servigos, patriménio cultural e domfnio publico, 0 artigo 822.° do Cédigo Administrativo, pelo contrario, nao con- tém qualquer elenco de interesses fundamentadores do exercicio deste meio processual, bastando que se invoque a ilegalidade do acto recorrido, qualquer que ela seja ou qualquer que tenha sido a fonte ou a expressao da mesma; (iii) Apesar de tudo, enquanto que o artigo 822.° do Cédigo Administrativo circunscreve a accao popular em contencioso administrativo ao tradicional recurso contencioso de anulagdo, a Lei n.° 83/95, sem prejuizo da centralidade que continua a conferir ao recurso contencioso, permite que a acgao popular em contencioso administrativo tenha expresséo em outros meios processuais, desde a acgdo de respon- sabilidade civil extra-contratual da Administragao até todos os meios processuais que assegurem uma tutela jurisdicional efectiva dos interesses materiais em causa (v. supra, n.° 5.2.). c) Em terceiro lugar, a auséncia de especificidades legais quanto ao regime processual da ac¢ao popular prevista no artigo 822.° do Cédigo Administrativo determina que Passe a ser-Ihe aplicdvel o regime constante da Lei n.° 83/95, de 3 | de Agosto. 6.3. Em sintese, pode afirmar-se que o artigo 822.° do Cédigo Administrativo nao se encontra completamente revogado pela Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, circunstancia esta que permite dizer existirem hoje dois modelos de acgdo popular no contencioso administrativo: (i) Existe, por um lado, a acgdo popular prevista na Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, que compreende a actividade A ACCAO POPULAR 889 de toda a Administrag4o Ptiblica no ambito da tutela dos interesses previstos no seu artigo 1.° ou no artigo 52.°, n.° 3, da Constitui¢do, a qual permite a utilizagdo de todos os meios processuais tendentes a obter a respectiva tutela jurisdicional electiva no 4mbito do contencioso adminis- trativo °°); (ii) Continua a existir, todavia, a “velha” acgao popular pre- vista no artigo 822.° do Cédigo Administrativo (“°), cir- cunscrita ao tradicional recurso contencioso de anulagao — sem prejuizo da sua integracao pelo principio constitu- cional da tutela jurisdicional efectiva —, a qual pode ter como objecto quaisquer actos da Administragao local, tenham eles ou néo que ver com os interesses a que se refere o artigo 1.° da Lei n.° 83/95 ou 0 artigo 52.°, n.° 3, da Constituigao, bastando para o efeito que os mesmos se encontrem feridos de ilegalidade. Uma tal solugdo dualista, refira-se, sem prejuizo de poder sus- citar dtividas sobre o exacto alcance da intengao do legislador ao emanar a Lei n.° 83/95, de 31 de Agosto, além de se alicergar na auséncia de qualquer norma que expressamente revogasse 0 artigo 822.° do Cédigo Administrativo, mostra-se a interpretagaéo mais conforme com a maxima efectividade do direito fundamental de acgao popular: o reconhecimento da actual vigéncia do artigo 822.° do Cédigo Administrativo amplia a operatividade da accao popu- lar, sujeitando A sua intervencao, desde logo, todos os actos (nor- mativos e nao normativos) praticados pela Administragao local, isto independentemente de estarem em causa aqueles interesses gerais a que se refere 0 artigo 52.°, n.° 3, da Constitui¢ao. 6.4. Ainda no Ambito do contencioso administrativo merece referéncia, por ultimo, a verdadeira acco popular consagrada no artigo 59.°, n.° 1, da Lei de Processo nos Tribunais Administrati- vos, isto em matéria de contencioso eleitoral. (@®) Falando aqui em “acco popular social”, cfr. José CarLos VIEIRA DE ANDRADE, A Justica Administrativa (Ligdes), 2.* ed., Coimbra, 1999, p. 121. (®) Falando aqui em “acco popular local”, cfr. José CARLOS Vieita De ANDRADE, A Justiga Administrativa..., p. 121. 890 PAULO OTERO Na realidade, af se preceitua que a simples circunstancia de alguém ser leitor ou elegivel numa determinada eleigao lhe confere legitimidade para instaurar processos de contencioso eleitoral. Estamos aqui, alids, diante de uma 4rea tradicional de presenga da ac¢o popular, sabendo-se que foi até neste sector que a acgao popular de natureza correctiva teve a sua estreia no Direito portu- gués (v. supra, n.° 2.1.). Nao obstante também se poder afirmar que deparamos com uma outra modalidade de acg4o popular no 4mbito do contencioso administrativo (*!), a sua andlise encontra-se, todavia, exclufda da presente investigacao. § 7.° - Principais inovagées da acco popular face ao regime do recurso contencioso de anulagav 7.1. A circunstancia de vigorarem no Direito portugués dois principais modelos de ac¢ao popular nao impede que se procure tracar um recorte entre o regime desta figura eo tradicional recurso contencioso de anulagdo: quais so, afinal, as principais inovagdes que a accao popular comporta? Eis o que importa averiguar. 7.2. Num breve confronto entre o regime da acgao popular e o regime normal do recurso contencioso de anulagao, podemos elencar trés principais diferengas: a) Em primeiro lugar, na ac¢ao popular, bem ao invés do que sucede no recurso contencioso, prescinde-se da exigéncia de que o actor popular seja titular de um interesse pessoal e directo, assistindo-se aqui, por conseguinte, a um alar- gamento da legitimidade processual activa: a ac¢o popu- lar consubstancia, deste modo, um meio que permite a um maior ntimero de administrados exercerem uma fungao de controlo da Administragao, libertos que estao dos estrei- (“) Neste sentido, cfr. NuNo SERGIo Marques ANTUNES, O Direito de Ac¢do Popu- lar... p. 53 seg. A ACCAO POPULAR 891 tos critérios aferidores da legitimidade existentes ao nivel do tradicional recurso contencioso; b) Em segundo lugar, a ac¢ao popular, reforgando os pode- res processuais de intervengao do juiz, permite que o recurso de anulagao tenha efeito suspensivo, significando isto uma inova¢ao consideravelmente importante face ao regime da suspensao da eficdcia dos actos administrativos existente & luz da Lei de Processo nos Tribunais Admi- nistrativos: a accdo popular representa, por isso mesmo, um mecanismo de reforgo das garantias dos administra- dos em situagdes de perigo de dano irrepardvel ou de difi- cil reparagdo, podendo aqui desenvolver, tal como a Constituigao impde, uma fungao de natureza preventiva; c) Em terceiro lugar, a eficdcia subjectiva do caso julgado de sentengas de provimento emanadas no ambito da acgao popular goza de um campo de operatividade tendencial- mente superior aquele que resulta de tais sentengas no Ambito do tradicional recurso contencioso de anulagao: na acco popular, tal como antes se disse (v. supra, 5.3.), ape- nas quem expressamente se auto-excluiu do processo nao se encontra vinculado ao efeito de caso julgado, enquanto que no recurso contencioso interposto por quem € titular de um interesse directo, pessoal e legitimo a eficdcia sub- jectiva do caso julgado de sentengas de provimento pode depender do tipo dos fundamentos da prépria decisdo, sendo certo que nunca poderé produzir efeitos prejudi- ciais a terceiros que nao tiveram intervengdo processual. § 8.° - Significado da acco popular no contexto do contencioso administrativo 8.1. Tomando agora como referencial de andlise o significado genérico que a acco popular desempenha no Ambito do conten- cioso administrativo, podemos adiantar duas ideias de base: a) Primeira: a accao popular traduz um mecanismo de par- ticipagio dos administrados no controlo da legalidade da actuagdo administrativa; 892 b) PAULO OTERO Segunda: a acgao popular confere um cunho de natureza objectivista 4 fungao do contencioso administrativo. Vejamos cada uma destas duas ideias. 8.2. (a) O entendimento da acco popular como mecanismo de participagao dos administrados no controlo da legalidade da actua¢ao administrativa, constitucionalmente configurada como direito de participagdo politica e traduzindo, por isso mesmo, um instrumento da democracia participativa (“2), confere a este direito especial de acesso aos tribunais uma tripla fungdo: @ Gi) (iii) A acco popular transforma cada cidadao e as estruturas da sociedade civil representativas dos interesses em causa em defensores do interesse ptiblico e da legalidade admi- nistrativa (“): 0 actor popular torna-se um verdadeiro substituto funcional do Ministério Publico; A participagao dos administrados no se limita a fase pro- cedimental anterior 4 decisio administrativa: a accdo popular projecta essa participagao ao nivel da impugna- ¢4o judicial das decisdes administrativas, alargando a legitimidade processual activa muito para além daqueles que so titulares de um interesse directo e pessoal; A aceao popular deve representar, por tudo isto, um instru- mento privilegiado no contexto do Estado de Direito demo- cratico (“), permitindo a harmonia entre o reforgo da partici- pacao politica dos cidadéos e um maior controlo da legalidade ou uma reforgada fiscalizacao da actividade admi- nistrativa atentatéria de interesses gerais da colectividade insusceptiveis de apropriacdo ou titularidade individual. 8.3. (b) Numa outra perspectiva, pode afirmar-se que a acco popular confere uma indiscutfvel natureza objectivista A funga0 do @) Cfr, Nuno Serio MaRguss ANTUNES, O Direito de Accdo Popular..., p.29-30. (®) Neste sentido, cfr. Dioco Frerras Do AMARAL, Direito Administrative, IV, Policop., Lisboa, 1988, p. 177-178. “ Cfr. Diooo Frerras Do AMARAL, Direito Administrative, IV, p. 178. A ACCAO POPULAR 893 contencioso administrativo, isto de tal modo que nao se pode dizer que 0 contencioso administrativo em Portugal ou as sucessivas revisdes da Constituig&o tenham conduzido a uma pura “subjecti- vizacao” desse contencioso: @ (ii) (iii) Desde logo, aquilo que est4 em causa na ac¢ao popular é, em primeiro lugar, o prescindir da exigéncia de um inte- Tesse pessoal e directo como critério aferidor da legitimi- dade activa: a acgdo popular transforma os administrados em defensores da legalidade objectiva e do interesse publico (v. supra, n.° 8.2.), debilitando o entendimento de que 0 pedido de anulacao de uma decisdo administrativa tem sempre de se fundar na existéncia ou exigéncia de tutela jurisdicional de uma posigio jurfdica material reconduzivel a um direito subjectivo ou a um interesse directo pessoal; Por outro lado, o regime processual da ac¢4o popular, acentuando os poderes do juiz e, neste sentido, debili- tando a livre disponibilidade do processo pelo autor popu- lar e pela autoridade recorrida — seja em termos de reco- lha da prova ou de poderes de intervengao do Ministério Ptiblico —, mostra claramente que aquilo que est4 em causa € a defesa da legalidade em torno de um processo que tem por objecto uma decisdo administrativa, inexis- tindo qualquer processo entre partes; Por tiltimo, 0 relevo que a accao popular tem no sistema legal do contencioso portugués, isto por oposi¢do as prin- cipais experiéncias europeias, e, por outro lado, na cres- cente dignificagao constitucional que as tiltimas revisdes da Constituigao tém conferido ao direito de ac¢ao popu- lar, nunca permitem proceder a uma desvalorizagao da fungao objectivista que este meio de controlo judicial desempenha no contexto global do contencioso adminis- trativo portugués.

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