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Droga mais poderosa que o crack pode chegar ao Brasil

O abuso de drogas psicotrópicas sintéticas é um fato na Europa e nos EUA. O Brasil, um país
pouco “inovador” nessa área, tem seguido, com um certo atraso, as tendências de abuso de
drogas que ocorrem nessas regiões, tanto que o ecstasy, embora já utilizado desde 1980 nos
EUA, somente agora começa a ter adeptos brasileiros.

Porém, dentro dessa característica, destaca-se o consumo de metanfetamina (MT), um


derivado da anfetamina. Introduzida na terapêutica em 1930 como descongestionante nasal,
tornou-se uma droga largamente utilizada provocando várias “epidemias” de consumo no
mundo devido a suas propriedades euforizantes, assim como suas ações em diminuir o apetite
e o sono e aumentar o desempenho físico e intelectual. Um exemplo deu-se na Segunda
Guerra Mundial, quando foi consumida por soldados alemães, ingleses e americanos para
eliminar o cansaço e manter o vigor físico e a vigília. O Brasil não passou impune por essa
onda, e, na década de 60, a MT era aqui vendida na forma de um medicamento de nome
Pervitinâ, muito apreciado por jovens que dele faziam uso para aumentar sua capacidade
produtiva.

Em pouco tempo, o Pervitinâ passou a sofrer abuso, originando vários casos de dependência
descritos na literatura científica brasileira. Devido aos problemas causados, a MT foi banida no
Brasil e em vários países da Europa, assim como nos USA. Porém, ela retornou ao cenário
muito mais poderosa que anteriormente. Passou a ser fumada, da mesma forma como é feito
com o crack, e conhecida, por essa via, como ice, chalk, speed, meth, glass, crystal etc. Por
essa rota de administração, produz efeitos prazerosos intensos como: imensa euforia; aumento
do estado de alerta, da auto-estima, da sexualidade; e diminuição da fome, do cansaço e da
necessidade de dormir. Esses efeitos parecem ser desejáveis e controláveis, mas a droga tem
um enorme potencial de dependência, e a “fissura” instala-se rapidamente. É comum o usuário
que faz uso compulsivo apresentar: comportamento estereotipado, caracterizado por uma
hiperatividade com desenvolvimento repetitivo, por horas, de certas atividades sem significado,
às vezes acompanhada de ranger de dentes; síndrome coreica, com movimentos involuntários
convulsivos, principalmente dos membros superiores, combinados a movimentos faciais
assimétricos; confusão e delírios, e um progressivo estado psicótico indistinguível de
esquizofrenia também se desenvolve com o uso crônico. Esses sintomas psicóticos podem
persistir por meses ou anos, após o uso da droga ter cessado.

O uso crônico de MT também pode levar ao desenvolvimento de comportamento violento,


caracterizado por ser bem mais intenso do que aquele observado com o uso do crack, em
resposta aos delírios paranóides, expondo o usuário a situações de risco de vida. Nesses
casos, é nítida a alteração da personalidade com irritabilidade e desconfiança de tudo e de
todos. Com uso mais freqüente e prolongado, desenvolve-se a tolerância à sua ação
euforizante; no entanto, o aumento crescente das doses produz um crescimento progressivo
em seus efeitos comportamentais, como atividade locomotora, e também um aumento da
ansiedade e da paranóia. Esse fenômeno é chamado de sensibilização e pode persistir por
muito tempo, mesmo após a interrupção da droga.

O usuário de ice caracteriza-se por fazer uso da droga por horas ininterruptas ou mesmo dias,
seguido por um período de parada, durante o qual sente extrema fadiga, exaustão,
desorganização de idéias, hipersonolência, depressão e fissura, além de uma progressiva
deterioração social e ocupacional. Problemas cardiovasculares são observados como:
taquicardia, aumento da pressão arterial, podendo causar acidente vascular cerebral e infarto
do miocárdio, ambos com risco de morte.

Os efeitos da abstinência da droga são prolongados, iniciados, numa primeira fase que pode
durar de 2-6 horas, por depressão, isolamento, hiperfagia, agitação, ansiedade e desejo
imenso de dormir. Quando finalmente o usuário consegue dormir, assim permanece por 24-36
horas ininterruptas. O desaparecimento desses sintomas pode levar dias ou semanas, com
freqüentes períodos de depressão, sonhos vívidos e “ fissura” pela droga.

A MT exerce seus efeitos indiretamente por elevar agudamente as quantidades de dopamina,


noradrenalina e serotonina na fenda sináptica, aumentando a neurotransmissão
monoaminérgica. O aumento da dopamina no sistema mesolímbico possivelmente é a origem
das bases farmacológicas das propriedades reforçadoras da droga. Esse aumento das
monoaminas na fenda sináptica dá-se por três mecanismos principais: bloqueia a recaptação
das monoaminas, ligando-se às proteínas transportadoras desses neurotransmissores;
promove a liberação desses neurotransmissores das vesículas armazenadoras localizadas nos
terminais axônicos; e inibe a MAO, enzima que metaboliza as monoaminas. Estudos recentes
em animais têm sugerido que a MT pode degenerar tanto neurônios dopaminérgicos quanto
serotoninérgicos. Permanece para ser determinado se humanos expostos à MT também
apresentam essa neurotoxicidade cerebral e quais as conseqüências funcionais dessa
toxicidade. Além disso, a droga pode afetar as estruturas termorregulatórias do sistema
nervoso central, podendo predispor os usuários à hipertermia.

Comparando-se os mecanismos de ação da MT e da cocaína, sabe-se que ambas bloqueiam a


recaptação das monoaminas. Entretanto, o mecanismo íntimo desse bloqueio difere entre as
duas drogas. De fato, a MT é capaz de ocupar o mesmo sítio que a dopamina na proteína
transportadora localizada na membrana pré-sináptica. Já a cocaína age em outro sítio dessa
proteína e, ao ocupá-lo, produz uma deformação alostérica do sítio da monoamina, impedindo,
assim, a recaptação da dopamina.

A MT, quando comparada à cocaína, exibe diferenças em várias áreas que incluem duração de
efeito, freqüência do consumo e duração do efeito compulsivo de repetir a droga. Por exemplo,
a MT, dependendo da via de administração, varia de 4-8 horas, enquanto o efeito da cocaína é
somente de 10-30 minutos. O crack (cocaína fumada) necessita ser consumido a cada 10-15
minutos, mas uma nova dose da MT, devido aos seus efeitos mais duradouros, só é necessária
após horas. A duração média de um uso ininterrupto de crack é de 12 horas, porém, para o
usuário de MT, é o dobro: 24 horas. O padrão de uso do ice é de 100-250 mg a cada 4-6 horas,
por um período de 24-48 horas.

O ice ainda não foi detectado no Brasil, embora a MT tenha tido um papel importante nas
décadas de 50 a 60 como droga de abuso. A sua detecção, como contaminante em
comprimidos de Ecstasy comercializados no Brasil, demonstra que uma nova epidemia de
consumo não está descartada. Porém, fica a pergunta ainda sem resposta: Por que o Ice ainda
não despertou o interesse do consumidor brasileiro de drogas? Considerando todas as suas
propriedades e seus efeitos de estimulante do sistema nervoso central, seria um forte
concorrente do crack. Portanto, as autoridades brasileiras de saúde pública deveriam estar
atentas para essa possibilidade.

Solange A Nappo
Departamento de Psicobiologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp/EPM)

Volume 34, número 2 abr ·jun 2001

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