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A Crise da Modernidade e a Barbarie MARILDO MENEGAT* RESUMO, Este ensaio procura analisar os impasses na fundamentacio da eticidade na modernidade. Parte do pressuposto que os autores clés- sicos do Huminismo viam nesse problema uma ameaca para o futuro da sociabilidade. Marx teve o mérito de articular o tema com as bases: objetivas da estrutura social. O século XX presenciou a tragicidade desta condigo como um destino da Humanidade. A partir de Ador- no-Horkheimer, procura-se analisar os desdobramentos dessa condi- go na chamada cultura pés-modema. A hipétese defendida € que a crise da modemidade, na auséncia de alternativas radicais para sua superago, se manifesta como um lento emergir da barbérie. Em pou- cas palavras: 0 desenvolvimento do capitalismo (e sua l6gica cultural) no apenas produz a barbérie, como esta the € necesséria para sua continuidade. Palavras-chave: Razdo-racionalidade; fetichismo da mercadoria; barbirie, * Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Bolsista do CNPG. PHYSIS: Rev, Saude Coleriva, Rio de Joncira, 1011): 197-216, 2000197 Marildo Menegat ABSTRACT The Crisis of Modernity and Barbarism This essay intends to analyse the deadlocks in setting up the foundations of ethicity in modernity. It is based on the assumption that the classic authors of Illuminism considered this problem a threat to the future of sociability, Marx had the merit of having articulated this subject with the objective bases of the social structure. The twentieth century has witnessed the tragedy of this condition as destiny of mankind. Grounded on Adorno- Horkheimer’s work, we intend to analyse the developments of this condition in the so-called post-modern culture. Tt defendes the hypothesis that the crisis of modernity, for lack of radical alternatives that could overcome it, manifests itself as a slow emergence of barbarism. In a few words, not only the development of capitalism (and its cultural logic) produces barbarism, but also the barbarism is necessary for its continuity. Keywords: Reason-rationality; fetishism of merchandise; barbarism. RESUME 198 La Crise de Ia Modernité et la Barbarie Cet essai prétend analyser les impasses dans les fondements de Veticité dans la modernité. L*hypothése que pour les acteurs classiques de I’Illuminisme ce probléme-la a été considéré comme une menace pour le futur de la sociabilité en constitue le point de départ. Dans ce sens, Marx a eu fe mérite d’articuler ce sujet avec des bases objectives dans la structure sociale. Le XX** sitcle a assisté 2 la teagicité de cette condition comme un destin de Vhumanité. A partir de oeuvre de Adorno-Horkheimer, on prétend analyser l'accomplissement de cette condition dans Ja culture “postmoderne”. L’hypothdse avancé c'est que la crise de la modernité, dans le manque d’une alternative radicale pour son dépassement, se manifeste comme une lente irruption de la barbarie. Autrement dit: le développement du capitalisme (et sa logique PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000 A Crise da Moderidade e a Barbarie culturelle) ne produit pas seulement la barbarie, mais celie-ci est la condition nécessaire pour sa continuité, Mots-clé; Raison-rationalité, fétichisme de la marchandise, barbaric. Recebido em 20/12/99. Aprovado em 2/5/00. PHYSIS: Rev. Sauide Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000199 Marildo Menegat Introdugio O conceito de razio no Ocidente, desde a tradigao grega, estd implicado em trés elementos constitutivos: o conhecimento cientifico, 0 estético e 0 ético. A razio na modernidade viu esses elementos se desenvolverem de forma auténoma e, em diversos aspectos, opostas. O Iluminismo, ou melhor — aceitando a observagiio de Habermas a respeito —, 0 seu projeto, for- mulou conscientemente esta oposi¢’o, como nas antinomias de Kant, osci- Jando entre uma tendéncia afirmativa destas, como um dado imprescindivel de uma determinada “natureza humana”, ou vendo-a com ceticismo, mas nao acreditando na possibilidade de outra configuragio do mundo social. A Escola de Frankfurt, principalmente Adorno e Hokheimer, & luz da critica marxista A configuragio desse mundo social, elaborou uma critica & concepgiio coisificada — isto é, dominada pelo fetichismo das relagdes sociais — da razao iluminista, na qual hd a prevaléncia do conhecimento cientffico (devido ao dominio dos interesses individuais articulados em tomo da busca do lucro, que tem no desenvolvimento das forgas objetivas do ser humano um dos seus pontos centrais). Este dado instaura nio apenas 0 dominio da ciéncia como critério de racionalidade, mas a prépria ciéncia passa a.ser dominada por uma concepgdo instrumental do seu uso. Diante dos impasses na constituigdo de uma critica ao projeto iluminista, impasses estes que se desdobram como fatos que marcam a histéria nos iltimos 150 anos, os aspectos céticos presentes em alguns momentos do Iluminismo comegam a se tornar evidentes, 0 que, por si sé, nio é uma novidade. Mas tornam-se alarmantes na medida em que estes impasses tém revelado uma impoténcia do projeto iluminista, no que ele tinha de mais emancipatério. A hip6tese que pretendo desenvolver neste ensaio é a de que a tendéncia afirmativa do Iluminismo, identificada com o Positivismo na atual configura- ¢ao do mundo social, passa a servir como substrato de uma cultura que prenuncia um paradoxo: o surgimento de uma razao barbara. A retomada dos impasses do Iluminismo — do seu projeto emancipatério — serd feita em trés perspectivas: 1) a andlise da insuficiéncia deste projeto; 2) a afirmagao da sua superagdo, feita pelo que se tem chamado de tendéncia pés-moderna da cultura contemporanea; 3) a critica a ambas, estabelecida nos marcos da Escola de Frankfurt, que podera nos dar elementos para uma conceitualizagao critica do lento emergir dessa razdo barbara. 200 PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000 A Crise da Modemidade © a Barbirie Os Impasses do Iluminismo & possivel perceber os impasses do Iuminismo, através da elaboragao do que poderiamos chamar de suas duas tendéncias. Creio haver uma relagdo que, apesar das imimeras declaragées de fé otimistas de Kant, o liga tematicamente a Rousseau, deixando transparecer os tragos céticos deste. A critica de Rousseau & civilizagiio moderna — ¢, é sempre bom repeti apesar de sua adesio a ela — se dé pela constatagiio da impossibilidade, pela forma de ser do mando social, de produzir “espontaneamente” uma agfio virtuosa dos individuos associados. As contradigdes da sociedade civil e a sua forma de legitimagao, através das leis de mercado, impedem que haja um apelo ético que possa mediar e governar estas agdes para um fim: a emancipagao humana. Porém, por outro lado, as relagdes da sociedade civil permitem um desenvolvimento impressionante das forgas objetivas da Humanidade, criando um progresso material que € imprescindivel a esta mesma emancipag&io humana. A contradig&o entre meios e fins € 0 ponto central das antinomias do Iluminismo. A elaboragio kantiana pretende fornecer, através de sua concepgio da ética centrada nos imperativos categéricos, um programa que, sem impedir o desenvolvimento dos meios (isto é, do progresso das forgas objetivas do ser humano), possa preparar ética ¢ politicamente 0 mundo para a realizagdo da emancipacdo. Esse micleo, que estou chamando de cético — tendo consciéncia que esta nao era, em momento algum, a intengdo desses pensadores —, é um momento de consciéncia aguda de que este nao seria o melhor dos mundos possiveis caso nfo houvesse a agao de uma razo critica que procurasse rever- ter seus aspectos mais desagregadores — ou instrumentais. A articulagao conceitual de tal programa pode ser estraturada a partir da concepgao de esclarecimento, entendido como um movimento pelo qual as sociedades ocidentais — ao menos as do Hemisfério Norte -- passam a pautar sua conduta por critérios racionais, isto é, légico-cientfficos, e nao mais pela fé (Cf. Kant, 1974). A ciéncia se desenvolveu suficientemente para explicar o mundo objetivo sem a intermediagio de uma forga transcendental de tipo divino. As técnicas de produgiio também se desenvol- veram ao ponto de permitir uma verdadeira revolugao produtiva. O esclareci- mento, como disse Kant, era a maioridade do homem, a realizagao estrita de suas potencialidades, sem a dependéncia de forcas sobrenaturais. A determina- ¢%o do destino do homem em sociedade dependia exclusivamente da obedi- éncia as razdes da ordem natural, na qual se inseria a cultura do esclare- PHYSIS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000 201, Marildo Menegat cimento como manifestagao da natureza humana e sua busca de progresso. Em Idéia de uma historia universal de um ponto de vista cosmopo- lita, essa perspectiva assume claramente a nogéo de progresso, ¢ este como sendo os desfgnios da ordem natural que apontam para um fim emancipatério, em que a Humanidade se reunird consigo mesma como um fim em si. Esta proposicao € a realizagio do terceiro imperativo categérico da Fundamen- tagdo da meiafisica dos costumes, em que Kant afirma que o homem nado deve servir de meio para a realizagao dos fins de outrem. Porém, o que liga a realizag&o do esclarecimento com os fins da emancipagao € a agao bu- mana marcada por sua maioridade, ou seja, uma aco marcada pela funda- mentagao de uma razao pura pratica centrada na nogdo de dever ser. Ora, a metafisica dos costumes é o termémetro a indicar que os fins também devem estar claros no concepgdo dos meios. No entanto, 0 progresso implica a livre manifestagio dos interesses individuais como um meio para o desenvol- vimento da Humanidade!. Meios e fins sio contraditérios, o que € evidente por si mesmo, porém isto implica a intervenco da vontade guiada por maximas. Os principios da subjetividade devem buscar a compatibilizagdio, uma vez que 0 homem fenoménico, deixado espontaneamente no fluxo de sua natureza insacidvel — em que pese ser esta uma condigaio para os fins necessdrios da emancipagio —, é incapaz de realizé-la enquanto tal. Num tempo de ténue manifestagio das conseqiiéncias de uma sociedade civil baseada na livre concorréncia, € natural que o dever ser seja apenas um guia da conduta moral, isto é, € ydlido universalmente mas deve ser obedecido estritamente de forma individual. 6 possivel também que um tal conceito esteja marcado pela nado compreensao do fetichismo das relagoes sociais, como o demonstra a contradigéo entre meios e fins. Porém, para além dessas questées — que por certo nao so menores — o dever ser € um conceito que guarda uma carga critico-ut6pica contra 0 desenvolvimento do progresso pelo progresso. E aqui reside um ponto da antinomia do Tluminismo que se choca com as justificagées positivistas da realidade, prin- cipalmente na época do capitalismo dos monopélios. Para Hegel, o dever ser nfo passava de sermao moralista, 0 que até certo ponto € correto. Na sua perspectiva, as relagdes entre subjetividade e objetividade nao poderiam ser marcadas, sob risco de serem irreais, por + “Q homem quer a concérdia, 1nas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie, ela quer a discérdia, Ele quer viver cOmoda ¢ prazerosamente, mas a natureza quer que ele abandone a indoléncia € © contentamento ocioso ¢ se lance ao trabalho ¢ & fadiga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem inteiramente dos ditimos” (Kant, 1986: 14). 202 PHYSIS; Rev, Saside Coletiva, Rio de faneira, 1O(1): 197-216, 2000 ‘A Crise da Modernidade a Barbérie dicotomias que transformassem a objetividade em algo distante do controle dos homens em sociedade. Alias, a vida social, como um elemento intrinseco da cultura humana, produz formas de eticidade — e nao de moralidade, como pensava Kant — que sio compativeis com o desenvolvimento do espirito e, conseqiientemente, do mundo objetivo. Uma determinada forma ou nivel de progresso implicaria necessariamente uma forma similar de subjetividade. Em outras palavras, 0 homem fenoménico, na busca de seus fins, dependia do desenvolvimento dos meios compativeis para tal. Assim, a eticidade, que € um imperativo coletivo, dado como manifestagdo do espirito, no é obedecida estritamente de forma individual, mas desobedecida de forma individual. A perspectiva hegeliana parte de uma fundamentacao da totalidade. Porém esta pode perder sua tessitura, tornando tanto a objetividade como a subje- tividade pontos sem ponte — quer dizer, elos de um mundo social em que a eticidade nado condiz mais com a medida da agdo dos individuos. Nesse contexto, o dever ser toma novas proporgdes, nao mais a de imperative categ6rico que serve de guia da conduta virtuosa dos individuos, mas de um imperativo coletivo da sociabilidade. As potencialidades da objetividade de- vem prevalecer em relagio as suas tendéncias autodestrutivas. Esta é a situag3o no capitalismo da livre concorréncia dos monopélios. No século XIX, apés a morte de Hegel, o tiltimo grande representante desse niicleo do Huminismo, e principalmente apés a grande derrota das revolugdes de 1848, desenvolveram-se duas vertentes do Iluminismo: o Positivismo, em diversas versdes, e as criticas & Ilustragdo, principalmente as de Marx e Nietzsche. Para o Positivismo, valia insistir no progresso e na necessidade dos imperativos da ordem, assim como elevar a ciéncia ao centro do modelo de racionalidade. O Positivismo nao € uma invengio ori- ginal, ele é apenas o desenvolvimento de um pélo das antinomias do projeto iluminista. Ele se articula com a perda do conceito de totalidade da razio ilustrada. Nao ha mais uma raz4io, mas apenas uma racionalidade cientifica. A importancia deste debate reside nos princfpios do Positivismo, este entendido como uma tendéncia do Iluminismo, que surgiu num determinado momento histérico, como resposta ao aprofundamento concreto das antinomias. © triunfo do Positivismo se deu por sua, digamos, operancia objetiva, em meio a uma conjuntura em que se manifestava politicamente a critica a certos aspectos do projeto iluminista, principalmente sua concepgao acritica do progresso. Nesse sentido, a legitimidade da sociedade civil — isto é, da esfera econdmica — e do Estado moderno se concentrava na justificativa dos meios desse progresso: 0 desenvolvimento das forgas objetivas da PHYSIS: Rev. Saude Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000 203 Marildo Menegat Humanidade. A autonomia da ética e da politica passaram a ter inimeras dificuldades para justificarem seus preceitos, que, no limite, implicavam uma intervencdo no desenvolvimento econémico do mundo social. Marx e 0s Impasses do Iluminismo A critica de Marx as antinomias do uminismo concentram-se no tema do fetichismo — e da alienagio, nas obras da juventude. Nao cabe nos limites deste ensaio expor com mais detalhes o tema*. A questo pertinente neste contexto é que, para Marx, a causa objetiva das antinomias se encon- trava na propria Iégica da estrutura e do desenvolvimento da sociedade burguesa. Assim, o dominio da objetivagio das faculdades humanas sobre a constituicdio da universalidade da espécie apenas poderia ser modificado através da propria transformagio dessas formas de objetivagao. Em outros termos, para Marx 0 dominio privado das forgas materiais, imprescindiveis para © progresso e, conseqiientemente, para a emancipagio humana no pensamento iluminista, era na verdade o dominio da servidao, caso seus preceitos no fossem superados. Na obra de Marx existiriam, como que concordo com Agnes Heller (1986), duas vertentes acerca da andlise do tema. O ponto de diferenciagao entre clas esté na necessidade, na primeira delas, da intervengio de uma forga subjetiva — isto é, constituida em toro de uma nova visio do mundo social, na qual a razdo se concentraria principalmente no conhecimento ético e estético — para superar as formas atuais de objetivagéo, Ou, na segunda vertente, se esse desenvolvimento da objetividade nao teria, em sua 6gica interna, inscrito um telos cujo esgotamento seria a propria realizagao da emancipagdo humana. Nos Grundrisse encontramos Marx mais preocupado com a primeira hipétese. A interveng&o é um dever ser. A superagio da sociedade burguesa e de suas antinomias implicaria uma ago de regaste do projeto emancipatério do Iluminismo —- evidentemente apenas no seu compromisso de emancipa- cao —, que apenas seria possivel através de uma intervencdo coletiva para modificar as “leis do progresso”. Anos depois, ao escrever O Capital, Marx teria apresentado uma sensivel mudanga em sua posigao. Mais proximo a concepgao hegeliana do desenvolvimento do progresso, ele acreditaria numa Para mais esclarecimento sobre ¢ tema, envio o leitor a minha dissertacdo de mestrado, O Otho da Barbérie, defendida no Departamento de Filosofia da UFRJ, em 1996, sob orien- tagio do prof, Luis Bicca (Menegat, 1996). 204 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): t97-216, 2000 A Crise da Modemidade © a Barbérie certa inevitabilidade de uma crise terminal do desdobramento légico do capital e, neste sentido, de sua superacio. Nesta segunda hipétese, o papel de uma agdo coletiva adere ao curso do desenvolvimento da objetividade, procurando sempre intervir no sentido de preparar e antever uma situagao que lhe parece inexordvel. Pode-se observar, entéo, que Marx também ficou preso as antinomias. Isto talvez explique parte dos impasses do marxismo no século XX, que oscilou entre uma absorcao do Positivismo e uma critica contundente a ele. A recuperagio do tema do fetichismo como elemento central da critica de Marx a sociedade burguesa, iniciada por Lukacs, teve na Escola de Frankfurt um momento fundamental. Poderiam ser destacados dois aspectos da elaboragao dos frankfurtianos para demonstrar sua importancia. Primeiro, na atualizagio do conceito de fetichismo, ou seja, a compreensio de seu papel estrutural na forma de ser da sociedade burguesa; mas, para além disso, das suas diversas formas histérico-conjunturais de manifestagao. O fetichismo na cultura dos anos 20 e subseqiientes, do nosso século, tinha caracterfsticas diversas daquela da segunda metade do século XIX. Em segundo lugar, Marx o havia elaborado como um ponto da sua critica & economia politica. Os frankfurtianos, seguindo as pistas de Lukacs, perce- beram seu espraiamento a todas as tnanifestagdes da vida social. E em meio a esses pontos de ligagio e continuidade a esta critica da sociedade burguesa contempordnea que analisaremos a possibilidade da hi- potese exposta na introdugdo deste ensaio. A Crise da Modernidade A partir da metade dos anos 70 iniciou-se um debate acerca da supera- ¢4%o0 — ou nfo — da modernidade enquanto projeto da Ilustragao. Os argu- mentos desenvolvidos desde entdo por pensadores como Lyotard, Vattimo & outros, é que vivemos na emergéncia de novos paradigmas da teoria, nao mais com o cardter totalizante, hierdrquico e com bases ontolégicas como era o Iluminismo, A nova abordagem do paradigma, que rapidamente influenciou as mais diversas esferas do saber, surgiu, ainda segundo esses pensadores, juntamente com um novo tipo de sociedade: a pés-industrial. Que transformagées ocorreram desde os anos 70 que poderiam levar a tais conclusdes? As transformagées teriam sido tao profundas que modifi- caram 0 ponto de tens&o das antinomias expostas pelo Iluiinismo ¢ suas criticas? Em esséncia, as modificagdes da sociedade burguesa foram de tal forma profundas que o tema do fetichismo nio faria mais sentido? PHYSIS: Rev. Sadde Coleuva, Rio de Janeiro. 10(1): 197-216, 2000208 Marildo Menegat A Dialética da Modernidade O retorno 4 andlise da Escola de Frankfurt (Adorno e Horkheimer) se deve justamente 4 clarividéncia de sua elaboragio do curto-circuito da modernidade. A proximidade de Adorno com Benjamin tornou-o muito aten- to ao tema da barbaric. Partindo da centralidade do conceito de decadéncia da cultura burguesa pés-1848, formulado por Lukacs (¢ também por Benjamim e Bloch, de diferentes pontos de vista), Adomo aceita a tese do fildsofo huingaro de que, nessas condigées, o conceito de falsa consciéncia se transmuta em falsidade de consciéncia, o que implica duas premissas. A primeira, 0 dominio asfixiante das relagdes de produgio sobre as possibilidades de cons- tituigao de um campo de relagées sociais livres. Em outros termos, a tese, um dos momentos da dialética hegeliana, se transforma na constituigdo da permanéncia do irracional; seja na forma do welfare state do pés-Segunda Guerra (a sociedade administrada) — seja na forma anti-hegeliana do Es- tado totalitério. A segunda premissa € o papel que as forgas produtivas passam a desempenhar dentro das relagées de produgio, isto é, de fonte do progresso em forgas de dominio — com um crescente papel destrutivo. Esta condigéo Adorno (1971) chamou de socializagao total. A perspectiva adorniana nao reside na formulagao da sua filosofia como uma critica aos erros de Kant, Hegel ou Marx, mas em atualizd-los através da critica, o que est4 implicito na relagao entre filosofia e histéria, ou, como pensava Benjamin, no cardter efetual da modernidade. O que separa Adorno do pensamento precedente é que a positividade se manifesta, no seu tempo, como cristalizago das antinomias. Subjetividade e objetividade nao estio mais apenas estranhadas, mas vivem numa verdadeira fratura, 0 que em outros termos significa a supressdo da categoria de contradig&ao, que era essencial para os pensadores anteriores. A objetividade estranhada nao reconhece mais nem sequer os critérios da critica; como diria Hamlet, “a razdo (Ihe) parece louca”. O conceito e a objetividade fetichizada se fundiram na naturalizagao de sua manifestago. Numa leitura dialética isto quer dizer, segundo Adorno, que a autoconsciéncia dos trés momentos do seu pér-se no mundo realiza apenas os dois primeiros: o ser-em-si e 0 ser-para-outro. A socializagao total €a impossibilidade da autoconsciéncia — determinada pela forma de ser da objetividade, na qual ela se reconhece —, de retornar para-si. O real se torna sistema do irracional. O momento da raz4o é eclipsado (cf. Horkheimer, 1962) porque tudo se transforma em meio-em-si, corolério da produgiio pela 206 PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Jeneira, 10(1): 197-216, 2000 ‘A Crise da Modernidade e a Barbérie produgao. Portanto, trata-se de entender as formas pelas quais o fendmeno se manifesta como esséncia da decadéncia da civilizagao burguesa. Para Adorno, o segredo est4 na prépria estrutura auto-explicativa ¢ autogerativa da moderi- dade, a qual esconde a sua vontade de dominio presente na sua objetividade como um dado natural ¢ anistérico. Os princfpios da raziio iluminista se tornariam insuficientes para a sua autocompreenso (cf. Adomo, 1978). Esta posig&o € a compreensio de que as relagées de produgio — “pro- dugio da vida material” —, que ocupam o espaco da produgdo material da vida social, destroem a constituigdo da vida social em qualquer dimens4o que va além dos lagos do contrato estabelecido pelas trocas da sociedade civil. Nao se produz uma experiéncia de comunidade nas formas estruturais. da modernidade. A cultura (a Bildung, em sua descaracterizagio) somente se realiza como um momento reprodutor da civilizagio’, isto é, das relages de produco. O homem se funde ao conceito de forga produtiva justamente no momento em que ele € desnecessdrio como tal. Esta fusio tem o sentido de organizar a distribuigao e o consumo nas mesmas formas da produgao; nesses momentos, 0 valor de uso, assim como o trabalho concreto, so subsumidos pelo valor de troca e o trabalho abstrato. A isto se soma a organizagio de setores irracionais da produgio — como o de armamentos — para a manutengdio do funcionamento equilibrado do todo. O individuo se torna a marca das vias que se cruzam em sua existéncia. Ele mesmo se transforma numa forga destrutiva sob o dom{nio irracional e submerge no que Adorno (1972) cha- mou de semicultura, que caracteriza a cultura de massas. Benjamin (1985) dizia que depois de 1848 todo monumento jd nascia como ruina. O mundo se produzia em sua incontida destrutividade. Adorno, ao pensar a semicultura como o gosto comum, a opinido na modernidade do século XX, buscou no conceito de mal-estar da psicandlise um ponto de aprofundamento para a compreenstio desse quadro. O ponto central pensado por Freud (1960) em Mal-Estar na Civilizagdo € a contraposigio entre o principio de realidade e a menoridade do individuo. Para Adomo e Horkheimer (1991), esta condi¢&o nao se colocava apenas como insuficiéncia do Ilaminismo, mas também como a revelacéo do seu sentido mais arcaico: mitico. Assim, num mundo em rufnas a vida era danificada a priori (Adomo, 1994). Ao individuo nao estaria interditado apenas 0 uso da razio — em oposigiio a racionalidade * Parto da diferenciago que a cultura alema faz entre civilizagio e Bildung. Em Marx esta diferenga se expressa nos conceitos de forcas produtivas (civilizagao) ¢ relagées sociais (cultura, cticidade). Ver sobre isso a conhecida passagem do Manifesto Cumunista, cf. Menegat (1996). PHYSIS: Rev. Saiide Coleriva, Rio de Janeito, 10(1): 197-216, 2000 207 Marildo Menegat da ciéncia —, mas também a maioridade de sua estrutura de personalidade. Essa condigio humana da modernidade, cujo sentido se encontra na irracionalidade de sua racionalidade, se reproduz através da indiistria cultu- ral, que € um conceito no qual se fundem essas tendéncias. A industria cultural transforma a légica da vida econdmica em légica da cultura, e a cultura numa extensao da vida econdmica. A socializagao total é a peste de Camus que, de modo invisivel, vai ocupando todos os espagos da existéncia humana. A mediag&o, que é uma categoria fundamental da dialética da raz&o (conforme a entendiam Kant e Hegel, com a fungao insubstitufvel do juizo reflexivo, no qual o individuo produzia em comunidade a representagao desta e © seu lugar dentro dela), € assumida pelos artefatos da indiistria cultural e desaparece da vida social. O indivéduo ndo se individualiza, a vida nao vive e a razio sucumbe A irracionalidade da ordem social. Para a Escola de Frankfurt, na modernidade a barbdrie se insinua como uma estrutura. Em alguns momentos se manifesta abertamente, em outros se dilui; mas em esséncia est4 sempre presente. O projeto da emancipagao niio é mais a luta contra o obscurantismo da f€ e do absolutismo politico, mas a luta contra a transfiguragao da velha barbérie na sua nova configuragio. Nao se compreende a modernidade apenas pela idéia que esta faz de si, mas também pela manifestagio de sua positividade. Do Retorno a Barbarie O filésofo italiano Giambatista Vico formuiou conceitualmente 0 perfodo que segue a queda do Império Romano, no século IV, como sendo a barbarie retornada (Cf. Croce, 1962}. O conceito frankfurtiano de barbarie € a com- preensdo da sua atualidade na era moderna, como o definiu Incidamente Rosa Luxemburgo. Essa tendéncia se realizou no perfodo das duas grandes guerras do século XX e, parcialmente, nas bombas sobre Hiroshima e Nagasaky, na Guerra do Vietnd e nos Gulags soviéticos. Sao referéncias de catdstrofes que, como no conceito frankfurtiano, demonstram a tenséo de sua constante insinuagdo. O desafio pata pensar o conceito na contemporaneidade esté na avaliacao das profundas transformagées da época. Uma novidade, neste sentido, na filosofia pés-Segunda Guerra, é a filo- sofia analftica. Uma interpretagdo possfvel para ela é a sua leitura como uma guinada do Positivismo em busca de lucidez apés a experiéncia dos retornos a barbarie. O welfare state era uma trégua que deveria ser consolidada. No mesmo caminho da filosofia analftica se encontrava a fenomenologia 208 —_-PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Saneiro, 10(1): 197-216, 2000 A Crise da Modemidade ¢ a Barbérie husserliana, com o seu conceito de mundo da vida. Em ambas nfo se tratava apenas de aceitar 0 conceito de decadéncia, mas em salvar parte da mobilia da modernidade. Neste cendrio, a perspectiva frankfurtiana se poderia manter, mas o seu radicatismo deveria passar por um enfraquecimente conceitual para poder encontrar aliados e evitar 0 que nao € mais uma impostagio de um estilo de vida intelectual, mas uma realidade latente. Esse movimento permitiria produzir uma estratégia de aco sob um terreno universal que fosse ao mesmo tempo uma critica & barbarie ocidental, assim como & oriental. Esta pode ser uma interpretagdo da guinada pragmatica de Habermas, © mais reconhecido dos herdeiros da Escola de Frankfurt. A mudanga fundamental de Habermas est4 no reconhecimento de que o projeto emancipatério da modernidade pode ser recuperado contra a positividade de sua manifestagdo — e isto implica uma diferenga com Adomo e Horkheimer quanto ao conceito de esclarecimento e de praxis, entre outros. Esse projeto seria um campo comum de referéncias de uma tradigao que, bem ou mal, se produziu nesta época. Habermas, nesse sentido, retorna para um momento anterior 4 conclusao da Escola de Frankfurt; porém, o seu movimento nao pretende ser uma capitulacZo, mas uma esperanga de que & possivel uma politica positiva contra 0 retorno definitivo da barbarie. Mantendo da Escola de Frankfurt 0 conceito de critica, Habermas in- corpora & formulagio analitica da linguagem 0 conceito de mundo da vida de Husserl. Diante da tese de Adorno, de socializagao total, Habermas (1990) procura um espago da vida social que é anterior a0 momento ana- lisado pelo primeiro, concebendo elementos positives de uma socializagao que se furtariam ao dominio. Os atos de fala ilocuciondrios, que estéo na base do agir comunicativo, guardariam o telos do entendimento, ou seja, estariam A margem do agir instrumental, cuja sustentagdo da vida social seria impossfvel sem a existéncia de sua dimensao. Com isso, Habermas se afasta tanto da dialética negativa, como também da interpretagio critica da modemidade, que se reduz A critica das relagdes de produgdo. Na sua propria formulagao, trabalho e interagdo se desdobram em momentos ana- liticos distintos do processo de socializag&o (Habermas, 1974). Para além de uma possibilidade interpretativa inscrita na filosofia da modernidade, a estratégia de Habermas est4 de fato diante de uma grande questio do capitalismo tardio, que € 0 seu impressionante desenvolvimento técnico-cientifico e o papel cada vez mais importante dos setores “ndo- produtivos” da economia. Recuperando 0 discurso de Agnes Heller, 0 que se coloca em jogo nessas condigdes é 0 emergir de outra forma de valori- PHYSIS; Rev, Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 10{1): 197-216, 2000 209 Marildo Mencgat zagio das relagées humanas, cujo conceito de tempo livre é a sua possibi- lidade positiva. Na formulagdo de Adorno e Horkheimer, este se integra na reprodugio de capital. Para Habermas, este permitiria tragar uma estratégia comunicativa de democratizagio da sociedade. A pressuposta esclerose do paradigma do conceito de produgao (Cf. Habermas, 1992) é incorporada também pela sociologia pés-moderna, que cunhou 0 conceito de sociedade pés-industrial, sem no entanto nele incorpo- rar uma estratégia de democratizacdio da sociedade, mas afirmando-o como a prépria democratizagio desta. O fenédmeno é percebido também pela filosofia p6s-moderna como sendo a dissolugio de uma estrutura que per- mitiria a aproximagio a um ponto de niilismo que foi anunciado por Nietszche e Heidegger como sendo a superagio da cultura metafisica (Cf. Vattimo, 1991). Assim, este € um tema que apenas se poderd avaliar a partir da compreensio da positividade em desdobramento desde os anos 70. Das Mudangas Estruturais do Capitalismo Tardio Num trabalho exaustivo dos anos 50, intitulado Autommazione, F. Pollock fez um recenseamento das transformagdes que a automagdo colocava & industria. As criagdes da eletrénica permitiriam uma elevada poupanga de forca de trabalho e, segundo Pollock, isso produziria um desemprego estru- tural no seio do Estado de pleno emprego, que apenas poderia evitar as suas conseqiiéncias imediatas e por um tempo nao muito longo, investindo maci- gamente na industria de armamentos. A descrig&o desse processo aponta para a realizagao do que Marx chamou de general intellect (Marx, 1973: 593). Porém, a mobilizacao militar de parte da populagao e o desenvolvimen- to sem precedentes da indtistria de armamentos sio os desvios que esta possibilidade (expressa como esperanca utépica no conceito de Marx) ex- perimenta — sendo também a exata medida de como as tensdes da moder- nidade tendem a ser solucionadas e positivadas. Como previu Pollock, o financiamento desse arranjo social nao resistiu aos anos sessenta. No inicio dos setenta o (des)actimulo polftico, econémico e (sub)cultural das relagdes de producgio dominantes se impée como uma saida as crises de financiamento do welfare state, desconstruindo-o em nome da sobrevivéncia de seu telos. A desregulamentagao dos direitos sociais ea flexibilizago do mundo do trabalho permitiram a continuidade da revo- lugdo tecno-cientifica (contra o pleno emprego), mantendo todos os seus tragos de irracionalidade da produgdo destrutiva. Uma corrente de alta in- 210 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000 A Crise da Modernidade © a Barbérie tensidade percorre degrau por degrau as necessidades do fenémeno. Do desemprego estrutural ao esvaziamento dos clos de solidariedade — sob os quais se constituiram o grande aciimulo positivo da critica as relagdes de produgao ¢ a identidade de uma comunidade do mundo do trabalho como parte da sociedade modema, as vezes a ela oposta, as vezes a ela integrada, mas fundamentalmente identificada no seu destino comum — se vai produ- zindo uma nova topologia do mundo social que, @ luz de uma relativa nor- malidade, acumula camadas crescentes de barbarie. O dominio do capital na sua expansdo abertamente predatéria comega a se constituir na critica de seus préprios fandamentos. A mercadoria, anali- sada por Marx (1985) como a unidade de todo 0 processo de manifestagio da objetividade fetichizada, perde sua centralidade para o seu equivalente — © dinheiro —, que adquire o estranho poder de se reproduzir sem se mate- rializar — fendmeno que obriga a sua leitura a partir das categorias da filosofia da religido! A financeirizago da economia e a sua organizacaéo em nivel global séio, por certo, a nova forma de equilibrio da irracional racionalidade que Adomo denunciava no perfodo anterior. A capacidade que esse sistema terd de contornar suas crises dependerd tanto do quanto estas coloquem em jogo os centros de seu poder, como também da capacidade de acomodar as diferengas dos setores que dentro dele se digladiam. As disputas entre os oligopélios ¢ o fundamentalismo terrorista parecem ser as tinicas formas admissiveis de oposicdo desse perfodo. Assim sendo, parece que viveremos de fato num mundo de crises sem fim, cuja superagdo dependera da imagem que essa época faz de si mesma, ou seja, da sua capacidade critica. Diversamente das grandes crises ¢ depressées de épocas anteriores, 0 sistema da globalizagao permite a distribuigao dos ciclos econdémicos sobre (e sob) 0 tapete do mundo. Os pafses centrais acomodam entre si o papel das recessées e das retomadas do crescimento — Japao, Estados Unidos e Comunidade Econémica Européia —, enquanto as economias que se enqua- dram na categoria de mercados emergentes passam por ciclos de milagres econémicos — cada vez menos espetaculares, como o demonstram os ciclos da economia brasileira, mexicana etc. — e recessdes que se confundem com depressdes localizadas — como ocorre hoje em alguns dos tigres asidticos. E este sistema que deve ser organizado politica e culturalmente. Pés-modernidade ‘A desconstrugao dos conceitos universais, em seu referimento obrigatério PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216. 2000211 Marildo Menegat ao Humanismo como base intransponfvel das relagdes humanas e do ser humano com a natureza, nado obedecem apenas ao esgotamento e as impos- sibilidades que as bases conceituais impuseram A realizagdo do particular, mas sao também a continuidade das realizagGes daquele universal, que nao admitia o patticular e que agora o admite para exclui-lo. Toda critica ao universal que ndo procure a sua reelaboragio — isto €, a aceitagao da contradi¢do como um momento da sua constituigao ¢ o particular como um dos seus momentos positivos — é um elogio as formas da positividade do novo retorno barbarie. A anilise do esgotamento simbélico, pensada pelos pés-modernos como sendo o esgotamento da estrutura cultural da modernidade ¢ a criagdo de uma nova cultura, no mais referida 4 imposigao de simbolos mas ao fluxo criativo dos signos (Cf. Canevacci, 1994), descuida do detalhe que os sim- bolos podem ser constitufdos como identidades nao impositivas, mas criadas em processos dialégicos de referimentos comuns, e que a cria¢o de signos, na época atual, depende essencialmente do dominio dos mecanismos de sua criagio e posse. Além disso, os signos transformaram-se em mercadorias, cujo fetichismo se impée na imaterialidade de uma economia dominada pelas relagGes financei- ras. Séo os signos que permitem o suporte de relagdes de produc&o num mundo em que seus beneficios j4 nao podem mais ser universalizados (nem mesmo enquanto ideologia). O seu dominio obedece & forma de ser da distingdo social e da aceitagio da imposicao dos seus limites. Baudrillard (1998) observa que o fenémeno se relaciona com o que tem sido um conceito extremamente operacional da desconstrugdo pés-moderna, que é o virtual. Em sua definigdo, dada por Borradori (1998), o virtual é um campo de forgas em que algumas forgas se impdem e outras silenciam. Para além da concep¢ao “cléssica” de espago, no espago virtual o real se sobrepde ao possivel. O tempo futuro, que guardava a categoria do possivel como algo de diverso do jogo de forgas do presente, se confunde com o presente, tornando o possivel desnecess4rio, por comportar uma compreensao metatemporal do tem- po ou, em outras palavras, para além do previsivel. Percebe-se com isso quais so as forgas que silenciam (Cf. andlises de Pollock, acima). O sentido mais obscuro que descansa 4 sombra dessa formulacio categorial 6 a produgdo de uma nova compreensao do principio de realidade. Da classica contradigéo do individuo com as formas da cultura (como emanagées do universal), que se sustentava no realismo de um sistema comum de necessidades (€ certo que nunca realizado como sistema comum, mas sempre referido pela ideologia como um universo comum), produz-se 212 PHYSIS: Rev. Sadde Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1}: 197-216, 2000 A Crise da Modcrnidade e a Barbérie agora a justificagéo da naturalidade de distintas dimensdes do real. O mal- estar se resolve na mitologizacéo do consumo, como uma forma de ser em que as dimensdes mais insuportaveis dessa contradig&o sao substituidas por rituais estetizantes (como o do consumo) ou pela ingestdo de pilulas que a asticia da psicofarmacologia “descobriu” como sendo a cura para as ma- nifestagées “organicas” de um corpo que nao se rende as novas formas de ser da cultura. Tudo se efetua num deixar-se levar pelo fluxo, como se este fosse a “realizagio suprema da diferenga”. Nao por acaso, a psicandlise vive uma crise profunda de seus fundamentos. Como afirma Joel Birmam (1997), seres mutantes nao tém pulsdes. A nova Antropologia (Cf. La Cecla, 1998) curiosamente dedica uma parte considerével do seu esforgo para estudar o que ela tem chamado de neofetichismo, que seriam as relagdes particulares do consumidor com a mercadoria. Em outros termos, segundo a nova Antropologia, existe um ato cultural que transcende o valor de uso de uma mercadoria (!}, que € a propria cultura do consumo, na qual se realizam formas de identidade nao concebidas no uso dado a elas pela indtistria (Cf. La Ceca, 1998; Colombo, 1998). Tem-se a impressiio de que a separagdo do valor e do valor de uso se consuma na prépria separagdo, no individuo, entre as suas necessidades ea imposicao sublimada de outras necessidades que poderiamos compreen- der como a tealizagao da famosa metafisica da goma de mascar sugerida por Horkheimer ha muitos anos. A formulacdo conceitual de boa parte da autoproclamada cultura pés- moderna procura elaborar as novas condig6es da experiéncia. Contudo, seu pressuposto é a aceitagiio dessas condigdes. Neste quadro sao significativas as formulagées de Lyotard e do coletivo italiano que assinaram, na primeira. metade dos anos 80, os ensaios do livro que os define como HI pensiero debole. O conceito de postmodernita de Lyotard (1979) € 0 ponto de partida para a reconstrugao da visio que essa época tem de si mesma. A continuidade da andlise é dada pela formulagao das moralidades pés-moder- nas e pelo cardter das novas experiéncias de tempo ¢ espago que se se- guem. A curiosa aproximag3o dessa cultura ao que ela acusa de barbaro, assim como aos momentos de barbarizacéo do mundo social (que em Canevacci & expresso por um “fa mal al cuore”, e em Lyotard por “cela n'est pas bien”) nos permite a constatagio da inconsisténcia regressiva a que as ciéncias humanas foram submetidas pela hegemonia das novas con- cepgdes. Pode-se deduzir de tal quadro 0 quanto a compreensao do sentido dos fenémenos se combina com uma accitagdo passiva destes. Se acima PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000213, Marildo Menegat dizfamos que a nova ordem econémica exigia uma nova cultura, podemos dizer agora que a cultura pés-moderna se formulou para este fim. A exem- plo do estoicismo, a luz das rufnas anunciadas do Império Romano, esta cultura pretende a mesma fung’o, sem ao menos nos oferecer as boas contribuigdes tedricas da primeira. Habitus ¢ Sensologia Tanto o conceito de habitus, desenvolvido por Bourdicu (1984), quanto o de decadéncia da esfera piblica, de Habermas (1981), permitem uma leitura dessa cultura como uma pritica social que tende a sedimentar lentamen- te as transformacées do capitalisme tardio como uma deformacao que inviabiliza qualquer sentido da vida social que va além da permanéncia do dominio do valor de troca. FB possivel, a partir desses conceitos, a compreensao dos movimentos de renovagio das classes sociais e das implicag6es culturais dessas mudangas nos Ultimos anos. Também é possivel apreender as formas pelas quais as ruinas das relagGes humanas sao assimiladas nas relagdes de produgao e, dessa forma, como sio transformados os horizontes de expectativas hist6ricas anteriormente produzidos. O abandono ou a readequago de valores, que perdem 0 seu con- texto de criagio e suas estruturas de referéncia, sio formulas pelas quais as camadas de barbarie se tornam naturais. Num plano mais microscépico, o conceito de “sensologia” de Perniola (1991) permite a aproximago do conceito de socializago total de Adorno ao de habitus, em que tais camadas de barbaric se consolidam, abrindo vias de compreensao do destino das mediagées sociais na pés-modernidade. Para Perniola, a socializacao no final do século XX passa pela socializagao dos sentidos. Diferente da ideologia, que pretendia dominar a natureza humana, e da burocracia, que dominava as formas de pensamento independente, a “sensologia” seria o dominio social pelos sentidos, cuja manifestagdo € a sensagio comum do “jé sentido”. E certo que as separagées rigidas que o autor faz entre ideologia e burocracia sio pouco pertinentes. E melhor, analiticamente, compreendermos a falsa consciéncia como algo em mutacio, mas dentro-de uma estrutura histérica ainda nao ultrapassada. Se assim é, a sensologia é 0 grau de redugao a que chegou a ideologia em nosso tempo. © dominio pela produgio mediética da atual pobreza da experiéncia dos individuos coloca duas novidades, se comparada ao perfodo anterior. Em primeiro Ingar, o espaco e a importincia que ocupam as formas de comu- nicagdo de massa. Elas sto um elo virtual de coesio social. Segundo, a nova 214 PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 10(1): 197-216, 2000 A Crise da Modemidade © a Barbarie descapitalizagao da subcultura produzida pela industria cultural, que apela cada vez mais abertamente aos instintos primdrios. A dessublimagio da cultura e dos meios de socializagdo se produzem como um espetéculo digno do fim deste breve século. Retornando a Habermas, & guisa de uma conclusio precdria, poderfamos perguntar se o agir comunicativo pode de fato prescindir de uma estratégia articulada com 0 mundo das necessidades — como chama Heller a socia- lizag3o do mundo do trabalho. O caminho que se aprescnta, produzido na soleira da naturalizagao da barbdrie, esté no reconhecimento de que esta se coloca entre a tensdo de uma socializagao total e um mundo da vida e das necessidades, permanentemente danificados pelo seu telos, que, na auséncia de outro, se impde com um determinismo de dar inveja a todos os prognésticos positivistas. Em resumo, a barbdrie nos coloca diante da questo que nenhuma dimensio utépica pode ser reduzida a uma positividade unilateral, mas que também nenhuma utopia pode prescindir dos lacos do mfnimo divisor comum das suas promessas a partir do presente e seus limites para a praxis. Enquanto esses nés nao s&o desatados, a vida social se vai asfixiando ao som de um réquiem que se ouve sair das janelas dos apartamentos — a mdsica finebre da vida danificada diante de televisdes, 4 qua! nao faltam “analistas simbélicos” para Ihe dar um signo cult. Dizem que os perus pressentiam o seu fim na véspera do Natal. Bem, mas esses cram outros tempos... Referéncias Bibliograficas ADORNO, T. W. Minima moralia. S80 Paulo: Atica, 1994. . Dialectique négative. Paris: Payot, 1978. Tre studi su Hegel. Bologna: Tl Mulino, 1971 . Prismi. Saggi su cultura. Torino: Binaudi, 1972. ‘ADORNO, T. W.; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991. BAUDRILLARD, J. 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