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Página 16 • De 26/7 a 1º/8/2010

Em Roupa de Artista, a pesquisado-


ra mostra como o vestuário tem um
viés político. Esclarece, por exemplo,
como Paris se tornou o grande centro
da moda. “O casamento de Luís XIV
e Maria Teresa marcou o derradeiro
momento de esplendor espanhol antes
da aceleração de sua decadência e da
ascensão da França, que se tornaria a
nação hegemônica da Europa e um cen-
tro de criação e difusão da moda e das
artes, no século 18”, conta. “Luís XIV
estabeleceu sua corte em Versalhes,
onde trabalharam artistas como An-
toine Watteau, François Boucher, Jean-
Honoré Fragonart e Maurice Quentin
de Latour. Artistas que se deliciavam
com as possibilidades pictóricas das
vestimentas barrocas e rococós, cujas
obras são uma celebração do chique, da
harmonia e do prazer de viver.”

Vestuário e objeto – Nas 296 páginas,


a autora Cacilda Teixeira da Costa
propicia ao leitor a análise das obras
de diversos artistas até chegar na arte
contemporânea. Apresenta Marcel
Duchamp, que utilizou as vestimentas
para mudar de identidade e criar seus
LIVRO alter egos Belle Haleibne e Rrose
Sélavy, “mulheres glamorosas, que sub-
LEILA KIYOMURA
vertem a publicidade dos produtos que
apresentam, ridicularizam a cultura e a
hipocrisia dos comportamentos conven-

A moda
cionais”. Aponta também a abordagem
brasileira com a intervenção performá-
tica de Flávio de Carvalho em outubro
de 1956 para lançar um traje inusitado.
Explica que desde 1944, o artista vinha
pesquisando e refletindo sobre a histó-

que veste
ria da vestimenta. “O processo de refle-
xão e elaboração teórica culminou com
a criação de um modelo, a confecção
de alguns trajes e a realização de uma
performance na rua. Flávio caminhou
pelo centro de São Paulo, vestindo um

a arte
conjunto unissexual de saiote verde
pregueado, blusa amarela de náilon
com mangas bufantes e buracos sob as
axilas que permitiam a circulação do ar
entre o corpo e o tecido.”
A história dos Parangolés de Hélio
A historiadora e crítica Cacilda Teixeira Oiticica está no contexto do vestuário
compreendido como uma nova lingua-
da Costa apresenta no livro Roupa gem. Com estas vestimentas híbridas,
de artista – O vestuário na obra de arte o artista, como ele próprio justificava,
“conjugava a solenidade dos mantos
um estudo inusitado sobre as vestimentas aristocráticos com farrapos dos menos
interpretadas e transformadas pelos favorecidos”.
O livro tem o aval de Walter Zanini,
artistas em diferentes contextos historiador e diretor do MAC entre
1963 e 1978, que assina a apresentação.
“Uma profusão de informações e os

C
omo será que Edgar Degas teve de representar o traje com cera ou do europeu que, de uma forma muito comentários de terminologia precisa
a feliz ideia de vestir a sua Bai- bronze, ele o integrou com elementos simplificada, na Idade Média valorizava cercam as múltiplas faces de experi-
larina de Quatorze Anos (1879- reais, numa atitude identificadora de mais as coisas do espírito do que as da ências no vasto e mutável território
1881) com roupas de verdade? A saia diferentes camadas de realidade”, ex- vida terrena e, em sua arte, manifestava da “roupa de artista”, como nos per-
esvoaçante de tule, o corpete de seda, as plica Cacilda. uma preocupação dominantemente cursos contramodas das vanguardas e
sapatilhas de tecido e laço de fita sobre A pesquisadora vai acompanhando o celestial”, explica. “Mas no século 14, no inaugurado pela década de 1960 e
a peruca de cabelos verdadeiros. vestuário a partir do Renascimento até já se processara uma reversão nessa repercussões, com sua escala global, no
Com o olhar sensível e apurado, a os dias de hoje. “Dentro da vastidão da relação entre humanidade e espírito, desenvolvimento dos usos do corpo em
historiadora e crítica de arte, Cacilda arte, esse veio constitui apenas um en- e novamente o homem, o homem car- performances, instalações e em novas
Teixeira da Costa apresenta uma pes- tre muitos, mas dadas as suas relações nal, foi colocado no centro do mundo. tecnologias”. Afirma Zanini.
quisa inusitada que revela o empenho com o corpo, a identidade, o poder e a Questões terrenas como a roupagem
estético dos artistas na pintura e escul- sexualidade, tanto a indumentária como em voga no momento e a inclusão de
tura das roupas de seus personagens. adereços e seus desdobramentos são objetos supérfluos, que até então não
No livro Roupa de artista – O vestuário tão instigantes que poucos mestres do tinham lugar, passaram a permear os
na obra de arte, lançado pela Editora passado ou contemporâneos ficaram trabalhos dos artistas e a ancorar o
da USP (Edusp) e pela Imprensa Ofi- imunes ao seu extraordinário fascínio”, mundo celeste à terra.”
cial do Estado de São Paulo, ela conta argumenta. “Descrições pictóricas, Cacilda apresenta as imagens do
a história do vestuário e de como ele interpretações e apropriações do vestu- quadro focando os detalhes das roupas.
foi usado em diferentes contextos por ário estão presentes nos principais mo- Assim, o leitor pode observar figurinos
diferentes pintores. vimentos da história da arte por meio como o reproduzido pelo pintor francês
Edgar Degas, segundo a autora, foi da pintura, escultura, desenho, gravura, Jean Fouquet no quadro em A virgem e
um grande interessado por indumen- performance e outras categorias artísti- o menino cercado de anjos que subverte,
tária, chegando a sugerir ao editor cas em que foi elemento complementar, como a autora observa, as tradicionais
Georges Charpentier que o livro A tema principal, meio e suporte de obras representações da Virgem Maria. “Está
Felicidade das Mulheres, de Emile Zola, de arte.” vestida com um traje da época. As linhas
viesse com um encarte de miniaturas do corpete cujo efeito é de um espartilho
dos trajes, em vez de ilustrações. Esse Corpo, identidade, poder – Através apertado, amarrado por uma fita na fren-
interesse o levou a criar a elegante e do veio do vestuário, a autora leva o lei- te, acentuam a sensualidade de um seio
célebre bailarina. “Neste trabalho, De- tor a uma viagem pela história. Contex- nu, mostrado pela abertura do decote
gas opôs-se à gramática convencional, tualiza a arte com a realidade política, da blusa, que revela um detalhe de sua
recuperou os arcaísmos desusados das social e econômica. Lembra o início do roupa íntima.” A virgem é, na realidade, Roupa de artista – O vestuário na obra
imagens sacras vestidas dos séculos 17, Renascimento com as transformações Agnès Sorel, amante do rei Carlos VII de arte, de Cacilda Teixeira da Costa,
18 e formulou uma linguagem nova, em todas as áreas. ”Foi um momento que encomendou a obra no mesmo ano Edusp e Imprensa Oficial do Estado de
um léxico original com o qual, em vez de mudanças profundas na mentalidade em que ela havia morrido. São Paulo, 296 páginas, R$ 120,00.

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