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Henri Bergson nasceu em Paris em 1859. Estudou na Bole Normale Supérieure de 1877 a 1881 e passou os dezessets anos seguintes como professor de filosofia, Em 1900 tonou-se pro- fessor no Collage de France e, em 1927, ganhou 0 Prémio Nobel de Literatura. Bergson morreu em 1941, Entre outros livros, escre- veu O pensamento ¢ 0 movente, Materia e menscria, Orso e A eo0- lugto criadora (todos publicados por esta Editora). Henri Bergson Meméria e Vida Textos escolhidos por GILLES DELEUZE Mestre de conferéncias na Universidade de Paris VIII Tradugio CLAUDIA BERLINER Revisto técnica e da tradugto BENTO PRADO NETO Martins Fontes So Paulo 2006 ‘crf pint mo cone “edn err Petes Prem Prs ppt Pans Unt Pe ono sirshan Fos Ee, ‘So Ps pe ae ce Tratugio CLAUDIA RentaveR Revit Kenicn eda traagso ‘ens Pae Naa ‘Acompanherents etal, ‘Mar Ferra ines Tevises pleas Maran Roa sre ‘Sins Gai ore Dinwte Zoran Soe ‘Produgte pics ‘Gomis Papinagfftaion Slo 3 eset Eri Dd nteracinae de Caso na Png (CP (Gar ele do i SF Bal Baron Hear, TON, Mami vide / Hers enpon tse exclidos por Giles Dees radu Clie Beier revisor ‘da adugo Bento Prado Neto Paco. Mat Fee 2. = pce ‘hal ripe Meme ve Eevee 1. Flo ances? Marra 3, Vide Dees, ie, 1925195 I Tinla See cows cops Tres pare catoge dtm Tlsota acest 1 “Tes os drei desta eco pure 0 Brasil reseromios & Leraria Martins Fontes Editora Léa, Rua Consdiine Kamal, 330 01325-000. Sco Pewlo SP Brasil “a. (11) 3281 3677 Fax 03101 1012 emai infomrtnsones com ir Mp me martnsfontes.com. INDICE Bibliografia . svesniesven VEL I. A DURAGAO E O METODO....crecren 1 a) Natureza da duragio .. 1 ») Caracteristicas da duragéo. sl 9) A intuigao como métod 19 d) Ciéncia e filosofia..... 37 TI. AMEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURAGAO .. ee a) Principios da memétia «ner 47 b) Psicologia da meMEtia .ecnrnrnnnnnes 60 ©) O papel do corpo... sens 70 I. A VIDA OU A PENRO DA DU- RACAO rns 95 a) O movimento da vida 95 b) Vida e matéria..... 117 IV. CONDICAO HUMANA E FILOSOFIA ........ 137 a) A filosofia... 7 b) A condigio humana e sua superacao. ©) Conclusio... Indice reMisst00 «oo. BIBLIOGRAFIA Lidée de lieu chez Aristote, 1889 (tese em latim, traduzida por M. Mossé-Bastide, Etudes bergsoniennes, vol. Tl, Albin Michel). Essai sur les données immédiates de la conscience, PUE, 1889; En- saios sobre os dados imediatos da consciéncia, Edigdes 70, 1988. “Matibre et mémoire, PUR, 1896; Matéria e memadria, Martins Fontes, 1999. Lz rire, PUR, 1900; O riso, Martins Fontes, 2001. Lévolution créairice, PUB, 1907; A evolugio criadora, Martins Fontes, 2005. énergie spirituelle, PUF, 1919. ‘Durée et simultanéité, PUE, 1 Fontes, em preparacao, Les deux sources de la morale et de la religion, PUR, 1932. La pensée et le mouvant, PUF, 1934; O pensamento eo movente, Martins Fontes, em preparagi wagio e simultaneidade, Mastins Os livros dos quais us textos citados foram extrafdas sero designados pelas seguintes abrevieturas: DL (Données immédiates, 39° ed.) MM. ene (Matiore et mémoire, 54? ed.) R vn (Le rire, 97% ed.) vu ‘MEMORIA EVIDA - Cévolution eréatrice, 52° ed.) Ceénergie spirituelle, 58° ed.) LR. rma (LES dex sources, 762 ed.) PM, nnn (Ea pensée et le mouvant, 31! ed.) __ Queremos salientar que por ocasiio do centenério do nas- cimento de Bergson a editora Presses Universitaires de France publicou uma edicéo completa de suas obras num volume cos- turado, impresso em papel biblia (I* ed,, 1959; 2° ed, 1963). Apresentado por Henri Gouhier, esse volume contém, além do texto integral das obras cuja reedicio Bergson autorizara, notas de editor, uma bibliografia completa (com mengao de todas as tradugées), um aparato critico, notas historicas e notas de lei- tura, um indice das citagées e um indice das pessoas citadas, As anotages so de autoria de André Robinet. 1.A DURACAO E O METODO a) Natureza da duragio 1A duragao como experiéncia psicolégica A existéncia de que estamos mais certos e que me- Ihor conhecemos é incontestavelmente a nossa, pois de todos 0s outros objetos temos nogdes que podem ser jul- gadas exteriores e superficiais, ao passo que percebemos a n6s mesmos interiormente, profundamente. Que cons- tatamos entio? Qual é, nesse caso privilegiado, 0 sentido preciso da palavra “existir”?... Constato em primeiro lugar que passo, de um estado para outro. Tentho calor ou tenho frio, estou alegre ou es- tou triste, trabalho ou nao faco nada, olho o que est & minha volta ou penso em outra coisa. Sensagées, senti- mentos, voligGes, representacdes, so essas as modifica- ‘ges entre as quais minha existéncia se divide e que a co- lorem altemnadamente. Fortanto, mudo sem cessar. Mas {sso ndo é tudo. A mudanga é bem mais radical do que se poderia pensar num primeiro momento. 2 MEMORIA E VIDA Com efeito, falo de cada um de meus estados como se formasse um bloco. Embora diga que mudo, parece me que a mudanga reside na passagem de um estado ao estado seguinte: no que se refere a cada estado, toma- do em separado, quero crer que continua o mesmo du- ante todo o tempo em que se produz, Contudo, um leve esforgo de atengio revelar-me-ia que nao hé afeto, ndo hé representac&o ou voligéo que nao se modifique a todo instante; se um estado de alma cessasse de variar, sua du- ragio deixaria de fluir. Tomemos o mais estavel dos es- tados internos, a percepcao visual de um objeto exterior imével. Por mais que o objeto permanega o mesmo, por mais que eu olhe para ele do mesmo lado, pelo mesmo Angulo, sob a mésma luz, a visio que tenho dele nao di- fere menos daquela que acabo de ter, quando mais nao seja porque ela esta um instante mais velha. Minha me- ‘méria esta ai, empurrando algo desse passado para den- tro desse presente. Meu estado de alma, ao avancar pela estrada do tempo, infla-se continuamente com a dura- so que vai reunindo; por assim dizer, faz bola de neve consigo mesmo. Com mais forte razo isso ocorre con 08 estados mais profundamente interiores, sensacdes, afe- tos, desejos etc., que ndo correspondem, como uma sim- ples percepcao visual, a um objeto exterior invaridvel. Mas € cémodo nao prestar atengao a essa mudanga inin- terrupta e s6 noté-la quando se toma grande o suficien te para imprimir uma nova atitude ao corpo, uma nova diregao & atengao. Nesse momento preciso, descobrimos que mucamos de estado. A verdade é que mudamos sem cessar e que o préprio estado jé é mudanga. ‘Quer dizer que nao ha diferenca essential entre pas- sar de um estado a outro e persistir no mesmo estado, Se, por um lado, 0 estado que “continua 0 mesmo” é mais ‘A DuRACAO EO. METODO 3 variado do que achamos que seja, a passagem de um es- tado a outro, pelo contrario, parece-se mais do que ima- ginamos com um mesmo estado que se prolonga; a tran- siggo é continua. Mas, precisamente por fecharmos os olhos a incessante variagdo de cada estado psicol6gico, somos obrigados, quando a variagdo se tornou to con- siderdvel que se impGe & nossa atengio, a falar como se um novo estado tivesse se justaposto ao precedente. Su- pomos que este, por sua vez, permanece invaridvel, e as- sim por diante, indefinidamente. A aparente desconti- nuidade da vida psicolégica decom, pois, do fato de que nossa atengao se fixa nela por uma série de atos descon- tinuos: ali onde hé apenas uma suave ladeira, cremos perceber, ao seguirmos a linha quebrada de nossos atos de atengao, os degraus de uma escada. £ verdade que nossa vida psicolégica € cheia de imprevistos. Surge mil e um incidentes que parecem contrastar com 0 que 08 precede e no se vincular Aquilo que os segue. Mas a descontinuidade com que aparece destaca-se sobre a continuidade de um fundo onde cles se desenhar e ao qual devem os préprios intervals que os separam: sao 08 toques de timbale ressoando de quando em quando na sinfonia. Nossa atengao se fixa neles porque a interes- sam mais, mas cada um deles vem inserido na massa fluida de nossa existéncia psicolégica inteira. Cada um deles nao é sendo 0 ponto mais bem iuminado de uma zona movente que compreende tudo o que sentimos, pensamos, queremos, tudo 0 que somos, enfim, num de- terminado momento. E essa zona inteira que, na verd: de, constitui nosso estado. Mas, de estados assim defini- dos, pode-se dizer que no so clementos distintos. Con- tinuam-se uns aos outros num escoamento sem fim. EC, 1-3. 4 “MEMORIA EVIDA 2. A duragiio € 0 eu O que prova que nossa concepgao corrente da dura~ ‘so depende de uma invasio gradual do espaco no ter- eno da consciéncia pura é que, para privar 0 ett da fa- culdade de perceber um tempo homogéneo, basta retirar aquela camada mais superficial de fatos psiquicos que ele utiliza como reguladores'. O sonho nos coloca preci- samente nessas condigdes, pois o sono, ao diminuir a ve- locidade do funcionamento das fungSes orgénicas, mo- difica sobretudo a superficie de comunicagao entre o eu € as coisas exteriores. Entao, nao medimos mais a dura- Go, mas a sentimos; de quantidade ela retorna ao estado de qualidade; a avaliagio matemética do tempo trans- comrido deixa de ser feita, mas cede lugar a um instinto confuso, capaz, como todos os instintos, de cometer er- os grosseiros e as vezes também de proceder com uma extraordinéria seguranca. Mesmo em estado de vigilia, a experiéncia didria deveria nos ensinar a diferenciar entre a duragio-qualidade, aquela que a consciéncia atinge imediatamente, aquela que o animal provavelmente per cebe, e 0 tempo por assim dizer materializado, o tempo que se tornou quantidade por um desenvolvimento no espaco. No momento em que escrevo estas linhas, um re- 6gio na vizinhanga dé as horas; mas minha orelha dis traida s6 percebe isso depois de varias pancadas jé se terem feito ouvir; portanto, nao as contei. E, no entanto, basta-me um esforgo de atencao retrospectiva para fazer a soma das quatro pancadas que jé soaram e adicion4-las 1, Essa iusto que nos faz confundir a duragio com um tempo ho- ‘mogéneo, ou seja, com “uma representacio simbélica tirada da exten: ‘sio", € constantemente denunciada por Bergson. Encontraremos wma andlise detalhada disso nos textos 6,7 ¢ 8, A DuRAGAO EO METODO 5 4s que ouco. Se, entrando em mim mesmo, interrogar- me entio cuidadosamente sobre o que acabou de aconte- cer, percebo que os quatro primeiros sons tinham atin; do meu ouvido e até impressionado minha consciéncia, ‘mas que as sensagdes produzidas por cada um deles, em vez. de se justaporem, tinham-se fundido umas as outras de maneira que dotassem o todo de um aspecto proprio, de maneira que fizessem dele uma espécie de frase musical, Para avaliar retrospectivamente o ntimero de pancadas jé soadas, tentei reconstituir essa frase por meio do pensa- mento; minha imaginagdo deu uma pancada, depois duas, depois trés e, enquanto nao chegou ao nimero exato qua- tto, a sensibilidade, consultada, respondeu que o efeito total diferia qualitativamente. Portanto, tinha constatado a sua maneira a sucesso daquelas quatzo pancadas, mas de um modo totalmente diferente de uma soma e sem fa. zer intervir a imagem de uma justaposigio de termos di ‘intos. Em suma, o ntimero de pancadas dadas foi perce- bido como qualidade e ndo como quantidade; a duragao apresenta-se assim & consciéncia imediata e conserva essa forma enquanto ndo é substitufda por uma representa: cio simbélica, tirada da extensio. — Distingamos, enti para concluir, duas formas da multiplicidade, duas ava~ liagées bem diferentes da duracgo, dois aspectos da vida consciente. Sob a duracio homogénea, simbolo extensi- vo da duragéo verdadeira, uma psicologia atenta discerne uma duragdo cujos momentos heterogéneos se penetram; sob a multiplicidade numérica dos estados conscientes, uma multiplicidade qualitativa; sob um eu com estados bem definidos, um eu onde sucesso implica fusio ¢ or- ganizagdo. Em geral, porém, contentamo-nos com o pri- meiro, ou seja, com a sombra do eu projetada no espaco homogéneo. A consciéncia, atormentada por um insacia- 6 (MEMORIA EVIDA vel desejo de distinguir, substitui a realidade pelo simbo- lo, ou 86 percebe a realidade através do simbolo. Como 0 eu assim refratado e por isso mesmo subdividido presta- se infinitamente melhor as exigéncias da vida social em geral e da linguagem em particular, ela o prefere e perde Pouco a pouco de vista o eu fundamental. DI, 94-6. 3. Para além da psicologia: a duragiio é o todo +». A sucesso é um fato incontestével, mesmo no ‘mundo material. Por mais que nossos raciocinios sobre 0 sistemas isolados impliquem que a historia passada, pre- sente e futura de cada umn deles poderia ser aberta de gol- pe, em leque, nem por isso essa histéria deixa de se de- senrolar pouco a pouco, como se ocupasse uma duracdo andloga 4 nossa. Se eu quiser preparar-me um copo de gua com agticar, por mais que faca, terei de esperar que © aglicar derreta. Esse pequeno fato é rico em ensinamen- tos. Pois 0 tempo que tenho de esperar nao é mais o tem- po matemético que continuaria podendo ser aplicado a0 longo da hist6ria inteira do mundo material, mesmo que esta se esparramasse de golpe no espaco. Ele coincide ‘com minha impaciéncia, ou seja, com uma certa porgao de minha duragao propria, que ndo pode ser prolongada ou encurtada a vontade. Nao é mais algo pensado, mas algo vivido. Jé nao é uma relagao, é um absolute”. O que sig- nifica isso, seno que 0 copo de gua, o agiicar eo proces- 80 de dissolucao do agticar na 4gua sao sem ciivida abs- 2.Ce texto 10, ‘A DURACAO FO METODO 7 tragées e que o Todo no qual foram recortados por meus sentidos e meu entendimento talvez. progrida a maneira de uma consciéncia? E-certo que a operago por meio da qual a ciéncia iso- Jae fecha um sistema nao é uma operagio de todo artifi- cial. Se nao tivesse um fundamento objetivo, nao se po- deria explicar por que ela é totalmente indicada em certos casos e impossivel em outros. Veremos que a matéria tem uma tendéncia a constituir sistemas isoléveis, que pos~ sam ser tratados geometricamente’. E até mesmo por essa tendéncia que a definiremos. Mas é apenas uma tendén- cia. A matéria nao vai até o fim e o isolamento nunca é completo. Se a ciéncia vai até o fir e isola completamen- , € para facilitar 0 estudo. Ela subentende que o sistema, dito isolado, continua submetido a certas influéncias ex- ternas. Deixa-as simplesmente de lado, seja porque as considera suficientemente fracas para desprezé-las, seja porque se reserva a possibilidade de leva-las em conta mais tarde. Nem por isso deixa de ser verdade que essas influéncias sao, todas, fios que ligam o sistema a outro mais vasto, este a um terceiro que engloba os dois ¢ as- sim por diante até que se chega ao sistema mais objetiva- mente isolado e mais independente de todos, o sistema solar em seu conjunto. Mas, mesmo nesse caso, 0 isola- mento néo é absoluto. Nosso sol imadia calor e luz para além do planeta mais distante. E, por outro lado, move-se, arrastando consigo os planetas e seus satélites, numa dire~ ao determinada. O fio que o prende ao resto do univer- so € sem dtivida bem ténue. Contudo, é por esse fio que se transmite, até a mais infima parcela do mundo onde vi- ‘vemos, a durago imanente ao todo do universo. 3.CL textos 87,60 667. 8 (MEMORIA EVIDA Q universo dura. Quanto mais nos af Pa natureza do tempo, mals COM] eee ‘Tago significa invengao, criagao de formas, elabo comin doa salut € hove’. Os sistemas delimita- {68 pela ciéncia s6 duram porque esto indissoluvelmen- te ligados ao resto do universo. £ verdade que, no proprio uuniverso, é preciso distinguir, como diremos adiante, dois movimentos opostos, um de “queda”, outro de “eleva- 40. O primeiro nada mais faz que desenrolar um rolo jd pronto. Poderia, em principio, realizar-se de maneira quase instanténea, como ocorre com uma mola que se distende. Mas o segundo, que corresponde a um trabalho interior de maturagao ou de criac&o, dura essencialmente € impée seu ritmo ao primeiro, que é insepardvel dele. EC, 9-11, 4. O todo ea vida Responderemos que nao contestamos a identidade fundamental da matéria bruta e da matéria organizada. ‘A tinica questo é saber se os sistemas naturais que cha- mamos seres vivos devem ser assimilados aos sisternas attificiais que a ciéncia recorta na matéria bruta, ou se nao deveriam, antes, ser comparados a esse sistema natural que 6 0 todo do universo. Que a vida seja uma espécie de mecanismo é algo com que devo concordar. Mas tratar- se-ia do mecanismo das partes artificialmente isoléveis 4.CE texto 74, 5.CE texto 97. 6. Alguns bidlogos acusam a filasofia da vida de postulara distin- ‘do de duas matérias. Bergson vai mostrar que o problema de uma fi- Josofia da vida preocupada em salvaguardar a especificidade de seu ‘objeto ndo trata de forma algumna dessa questi. ‘ADURACAO £0 METODO 9 no todo do universo ou do mecanismo do todo real? todo real poderia muito bem ser, diziamos, uma continu dade indivisivel: os sistemas que nele recortamos ndo se- riam ento partes suas propriamente ditas; seriam vistas parciais do todo. E, com essas vistas parciais colocadas lado a lado, vocé nao obterd nem mesmo um comego de recomposicao do conjunto, assim como no reproduzi- 14 a materialidade de um objeto multiplicando suas fo- tografias sob mil aspects diversos. O mesmo se aplica & vida e aos fendmenos fisico-quimicos nos quais se pre- tenderia resolvé-la. A andlise certamente descobriré nos processos de criagdo orgénica uma quantidade crescente de fendmenos fisico-quimicos. E é a isso que se aterao 0s uimicos e os fisicos. Mas disso nao se conclui que a qui- mica e a fisica devam nos dar a chave da vida. Um elemento muito pequeno de uma curva é quase uma linha reta. Quanto menor ele for, mais se parecerd com uma linha reta, No limite, pode-se dizer, conforme © gosto, que faz parte de uma reta ou de uma curva. Em cada um de seus pontos, com efeito, a curva se confun- de com sua tangente. Do mesmo modo, a “vitalidade” é tangente em qualquer ponto as forcas fisicas e quimicas; mas esses pontos no so, em suma, mais que vistas de um espirito que imagina paradas em tais ou quais mo- mentos do movimento gerador da curva. Na verdade, a vida 6 to pouco feita de elementos fisico-quimicos quan- to uma curva é composta de linhas retas. EC, 30-1. 5.0 todo ea coexistincia das duragies A rigor, poderia nao existir outra duracéo além da nossa, tal como poderia nao haver no mundo outra cor 10 (MEMORIA EVIDA além do laranja, por exemplo. Porém, assim como uma consciéncia a base de cor que simpatizasse internamente com o laranja em vez de percebé-lo exteriormente senti- tia estar entre o vermelho e o amarelo, pressentiria quem sabe até, abaixo desta tiltima cor, todo um espectro no qual se prolonga naturalmente a continuidade que vai do vermelho ao amarelo, também a intuigéo de nossa dura- ‘do, longe de nos deixar suspensos no vazio como faria a pura andlise, pde-nos em contato com toda uma conti- nuidade de duragées que devemos tentar seguir, seja para baixo, seja para cima: em ambos os casos, podemos nos dilatar indefinidamente por um esforgo cada vez mais violento, em ambos os casos, transcendemos a ndés mes- mos. No primero, caminhamos para uma duragéo cada vez mais dispersa, cujas palpitacoes mais répidas que as nossas, ao dividirem nossa sensagao simples, diluem sua qualidade em quantidade: no limite estaria 0 puro ho- mogéneo, a pura repetigio pela qual definiremos a ma- terialidade. Caminhando no outro sentido, vamos para uma duracio que se tensiona, se contrai, se intensifica cada vez mais: no limite estaria a eternidade. Nao mais a eternidade conceitual, que é uma eternidade de morte, mas uma etemidade de vida. Eternidade viva e, por con- seguinte, ainda movente, onde a durago que nos é pré- ptia se encontraria como as vibragdes na luz, e que seria a coalescéncia de toda duragao assim como a materiali dade é sua dispersao. Entre esses dois limites extremos a intuigo se move e esse movimento é a metafisica’. PM,, 210. 7. CE. textos 17,22 & 26 ADURAGAO EO METODO n b) Caracteristicas da duragio 6.A duragio é 0 que muda de natureza Imaginemos uma linha reta, indefinida, e sobre essa linha um ponto material A que se desloca. Se esse ponto tomasse consciéncia de si mesmo, sentir-se-ia mudando j& que se move: perceberia uma sucesso. Mas essa su- ccessao se revestiria para ele da forma de uma linha? Sem. dtivida sim, contanto que ele pudesse elevar-se de algum modo acima da linha que percorre e perceber nela simul- taneamente varios pontos justapostos: isso, porém, 0 le- varia a formar a idéia de espaco, e é no espaco que veria desenrolarem-se as mudangas que sofre e nao na pura jue fengao Se Mais néla. Mas a lembranca € rente do estado que sugere e precisamente porque a sentimos por trés da sensagio sugerida, como o hipno- tizador por trés da alucinagiio provocada, que localizamos no passado a causa do que sentimos. A sensago, com efeito, é essencialmente atual e presente; mas a lembran- 62, que a sugere do fundo do inconsciente de onde ela mal emerge, apresenta-se com esse poder sui generis de suges- to que é a marca do que nao existe mais, do que ainda queria ser. Mal a sugestio tocou a imaginagio e a coisa sugerida se desenha em estado nascente, e é por isso que 6 tao dificil distinguir entre uma sensagio fraca que sen- timos e uma sensagao fraca que rememoramos sem da- té-la. Em nenhum grau, porém, a sugestio é 0 que ela sugere, a lembranca pura de uma sensagdo ou de uma percepcao nao é, em nenhum grau, a sensago ou a per- cepcfo elas mesmas, Caso contrério, teremos de dizer que a palavra do hipnotizador, para sugerir aos sujeitos ador- mecidos que eles tém na boca aciicar ou sal, j4 tem de ser ela mesma um pouco agucarada ou salgada... 52 ‘MEMORIA E VIDA . A Jembranga aparece duplicando a cada instante a percepgio, nascendo com ela, desenvolvendo-se ao mes- mo tempo que ela e sobrevivendo a ela, precisamente porque é de outra natureza. ES, 131-3, 135. 26. Os graus da duragio Concentremo-nos, pois, no que temos de mais afas- tado do exterior e, a0 mesmo tempo, de menos penetra- do de intelectualidade. Procuremos, no mais profundo de ne mesmos, 0 ponto em que nos sentimos mais interio- res A nossa propria vida. E na pura duracao que voltamos a mergulhar entdo, uma duragao em que o passado, sem- pre em andamento, se avoluma sem cessar de um presen- te absolutamente novo. Ao mesmo tempo, porém, senti- mos esticar-se, até seu limite extremo, a mola de nossa vontade. Seria preciso que, por uma contracao violenta de nossa personalidade sobre si mesma, apanhassemos nos- 0 passado que escapa, para empurré-lo, compacto e in- diviso, num presente que ele criaré ao nele se introduzit. Bem raros sao os momentos em que nos recuperamos a és mesmos a esse ponto: eles se confundem com nossas ages verdadeiramente livres. E nem mesmo entio so- ‘mos totalmente donos de nés mesmos. Nossa sensagio da duragio, ou seja, a coincidéncia de nosso eu consigo mesmo, admite gradacSes. Mas, quanto mais profunda a sensagéo e mais completa a coincidéncia, mais a vida onde elas nos recolocam absorve a intelectualidade, su- perando-a, Pois a inteligéncia tem por fungao essencial ligar 0 mesmo ao mesmo, e inteiramente adaptaveis a0 A MEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO 53 ‘campo da inteligéncia so 96 os fatos que se repetem. Ora, sobre os momentos reais da duragao real a inteligéncia certamente age a posteriori, econstituindo 0 novo estado com uma série de vistas dele tomadas de fora e que se as- semelham tanto quanto possfvel ao ja conhecido: nesse sentido, o estado contém intelectualidade “em poténcia”, por assim dizer. Extrapola-a, no entanto, permanece inco- mensurdvel com ela, sendo indivisivel e novo. Distendamo-nos agora, interrompamos 0 esforgo que empurra para o presente a maior parte possivel do passa- do. Se a distensdo fosse total, ndo haveria mais mem6- ria nem vontade: ou seja, nunca caimos nessa passivida- de absoluta, assim como tampouco podemos nos tornar totalmente livres. Mas, no limite, entrevemos uma exis- téncia feita de um presente que recomecaria sem cessar ~ no haveria mais durago real, apenas o instanténeo que morre e renasce indefinidamente. Seria isso a existéncia da matéria? Nao exatamente, sem dtivida, pois a andlise a resolve em abalos elementares, os mais curtos dos quais, so de uma duraco muito infima, quase evanescente, mas nao nula, Pode-se contudo presumir que a existéncia fisi- ca tende para esse segundo sentido, assim como a exis- téncia psiquica tende para o primeiro. No fundo da “espiritualidade’, por um lado, e da “materialidade” com a intelectualidade, por outro, haveria portanto dois processos de direcdo oposta, e se passaria do primeiro para o segundo por via de inversao, quem sabe até de uma simples interrup¢ao, se for verdade que inversdo e interrupgao sao dois termos que devem ser ti- dos aqui por sinénimos, como mostraremos em detalhes ‘um pouco mais adiante. Essa suposigao se confirmard se considerarmos as coisas do ponto de vista da extenséio e nao mais apenas da duracao. 54 “MEMORIA EVIDA ‘Quanto mais tomamos consciéncia de nosso progres- so na pura duracdo, mais sentimos as diversas partes de nosso ser entrarem umas nas outras e toda a nossa per- sonalidade se concentrar num ponto, ou melhor, numa ponta, que se insere no porvir, encetando-o sem cessar. Nisso consistem a vida ¢ a ago livres. Abandonemo-nos, a0 contrério; em vez de agir, sonhemos. Imediatamente nosso eu se dispersa; nosso pasado, que até ento se con- traia sobre si mesmo na impulsao indivisivel que nos co- municava, decompde-se em mil e uma lembrangas que se exteriorizam umas com relagao As outras. Estas desis- tem de se interpenetrar a medida que vao se enrijecendo ‘mais. Nossa personalidade torna a descer assim na di- regio do espago. Na sensagio, alids, ela o ladeia ser ces- sar. Nao nos demoraremos aqui sobre um ponto que jé aprofundamos em outro lugar. Limitemo-nos a lembrar ‘que a extenso admite graus, que toda sensagio é exten- siva em certa medida e que a idéia de sensagées inexten- sas, attificialmente localizadas no espago, é uma simples construgio mental, sugerida bem mais por uma metalfisi- a inconsciente do que pela observacao psicolégica. ‘Nés, sem diivida, damos apenas os primeiros pasos na direcdo da extensao, mesmo quando nos abandona- mos o maximo possivel. Mas suponhamos, por um ins- tante, que a matéria consista nesse mesmo movimento le- vado mais longe, e que o fisico seja simplesmente o psfqui- co invertido. Seria compreensfvel, entdo, que o espirito se sinta to a vontade e circule tao naturalmente no espaco, assim que a matéria lhe sugere a representacao mais cla- ra dele, Tinha a representacao implicita dese espaco na prépria sensagao que extraia de sua eventual distensao, isto é, de sua extensdo possivel. Reencontra-o nas coisas, mas té-lo-ia obtido sem elas se tivesse tido a imaginagao poderosa o suficiente para levar até o fim a inversio de A MEMORIA OUI OS GRAUS COEKISTENTES DA DURACAO 35 scu movimento natural. Por outro lado, assim se explica- ria que a matéria acentue ainda mais sua materialidade sob 0 olhar do espirito. Comecou ajudando este titimo a descer novamente a jadeira dela, deu-Ihe o impulso. Mas, ‘uma vez langado, o espirito continua. A representagao que forma do espaco puro nao é mais que o schéma do termo aque esse movimento chegaria. Uma vez de posse da for- ma de espaco, serve-se dela como de uma rede de malhas que podem ser feitas e desfeitas ao bel-prazer, e que, jo- gada sobte a matéria, divide-a tal como as necessidades de nossa aco exigirem. Por isso, o espaco de nossa geo- metria e a espacialidade das coisas geram-se mutuamen- te pela agdo e reagao reciprocas de dois termos que sio de ‘mesma esséncia, mas que caminham em sentido inverso um do outro. Nem o espaco ¢ tdo estranho & nossa na- ‘tureza quanto pensamos, nem a matéria é téo completa- mente extensa no espago quanto nossa inteligéncia e nossos sentidos a imaginam. EC, 201-4. 27..A meméria como coexisténcia virtual dos graus Portanto, tudo acontece como se nossas lembrangas se repetissem um nuimero indefinido de vezes nessas mil ¢ uma redugGes possiveis de nossa vida passada. Adqui- rem uma forma mais banal quando a meméria se estrei- ta mais, mais pessoal quando se dilata, e dessa forma par- ticipam de uma quantidade ilimitada de “sistematizagbes’ diferentes. Uma palavra de uma lingua estrangeira, pro- rnunciada ao meu ouvido, pade me fazer pensar nessa lin- gua em geral ou em uma voz que a pronunciava outrora Ge certa maneira, Essas duas associacdes por semelhan- 56 MEMORIA EVIDA ca no se devem & chegada acidental de duas representa- des diferentes que 0 acaso teria trazido sucessivamente para 0 campo de atragao da percep¢ao atual. Correspon- dem a duas disposigées mentais diversas, a dois graus dis- tintos de tensio da meméria, aqui mais proxima da ima- gem pura, ali mais disposta 4 réplica imediata, ou seja, & cao. Classificar esses sistemas, procurar a lei que os une respectivamente aos diversos “tons” de nossa vida men- tal, mostrar como cada um desses tons est determinado pelas necessidades do momento e também pelo grau va- ridvel de nosso esforgo pessoal, seria uma tarefa diff toda essa psicologia ainda est por fazer e, por ora, nao queremos nem tentar. Mas cada um de nés sente per- feitamente que essas leis existem e que existem relagdes estdveis desse tipo. Ao ler um romance psicolégico, por exemplo, sabemos que certas associagdes de idéias que nos descrevem sao verdadeiras, que podem ter sido vivi- das; outras nos chocam ou nao nos dio a impressio de realidade, porque sentimos nelas o efeito de uma proxi- midade mecanica entre estagios diferentes do espirito, como se o autor no tivesse conseguido se manter no plano da vida mental que escolheu. A meméria tem, por- tanto, graus stcessivos e distintos de tensao ou de vita- lidade, certamente dificeis de definir, mas que o pintor da alma nao pode misturar impunemente. Aliés, a patologia vem confirmar—embora com exemplos grosseiros—uma verdade que todos conhecemos por instinto, Nas “amné- sias sistematizadas” dos histéricos, por exemplo, as lem- brangas que parecem abolidas estao na verdade presen- tes; mas estao todas decerto ligadas a um determinado tom de vitalidade intelectual no qual o sujeito ndo conse- gue mais se situar. MM,, 188-9. ‘A MEMORIA OU 0S GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO 87 28. Os graus da memséria e a atenciio Concebemos sem dificuldade a percepgio atenta como uma série de processos que avancariam ao longo de sum tinico fio, o objeto excitando sensagdes, as sensacies fazendo surgir diante delas idéias, cada idéia abalando pontos cada vez mais recuados da massa intelectual. Ha- veria portanto ai um andar em linha reta por meio do qual o espitito se afastaria cada vez mais do objeto para nao mais voltar a ele. Afirmamos, ao contrario, que a per- cepgao refletida é um circuito onde todos os elementos, inclusive o prdprio objeto percebido, mantém-se em es- tado de tensao mitua como num circuito elétrico, de sor- te que nenhum abalo oriundo do objeto pode deter-se, no meio do caminho, nas profundezas do espitito: deve sempre retornar ao préprio objeto. Que nao se veja nisso uma mera questo de palavras. Séo duas concepgses ra- dicalmente diferentes do trabalho intelectual. De acordo com a primeira, as coisas se passam mecanicamente e pot uma série totalmente acidental de adicdes sucessivas. A cada momento de uma percep¢io atenta, por exemplo, elementos novos, que emanam de uma regio mais pro- funda do espirito, poderiam juntar-se aos elementos an- tigos sem criar uma perturbago geral, sem exigit uma transformagio do sistema. Na segunda, ao contrario, um ato de atengéo implica tal solidariedade entre o espirito e seu objeto, é um circuito tao bem fechado, que nao se poderia passar a estados de concentragdo superior sem criar um mesmo niimero de circuitos novos e completos que envolvem o primeiro e que sé tém em comum entre si o objeto percebido. Desses diversos circulos da memé- ria, que estudaremos detalhadamente mais adiante, o mais estreito, A, é o mais préximo da percepcao imediata. 58 ‘MEMORIA EVIDA Contém apenas o proprio ob- jeto O com a imagem conse- ‘cutiva, que volta para cobri-lo. Atrés dele, os circulos B, C, D, cada vez, mais amplos, corres- pondem a esforgos ctescentes de expansio intelectual. E a memiéria toda, como veremos, que entra em cada um desses ‘ircuitos, jf que a meméria es- td sempre presente; mas essa meméria, que pode ser inde- finidamente dilatada devido sua elasticidade, reflete so- bre o objeto um ntimero cres- cente de coisas sugeridas — ora detalhes do prdprio ob- jeto, ora detalhes concomi- tantes que podem contribuir para esclarecé-lo. Assim, de- pois de ter reconstituido o objeto percebido, a maneira de um todo independente, reconstitufmos com ele as con- digdes cada vez mais longinquas com as quais ele forma um sistema, Chamemos B’, C’e D’ essas causas de pro- fundidade crescente, situadas atrés do objeto e virtual- mente dadas com o préprio objeto. Nota-se que 0 pro- gtesso da atengio tem por efeito criar de novo, nao s6 0 ‘objeto percebido, mas os sistemas cada vez mais amplos, aos quais pode se vincular; de sorte que, 4 medida que os, circulos B, Ce D representam uma expansao mais elevada da meméria, o reflexo deles atinge em B’, C’e D’camadas, mais profundas da realidad Amesma vida psicoldgica se repetiria, pois, um né- mero indefinido de vezes nos estagios sucessivos da me- _A MEMORIA OU OS GRALIS COEXISTENTES DA DURACAO 59 méria, ¢ 0 mesmo ato mental poderia se dar em varias al- turas diferentes. No esforgo de atenco, o espirito sempre se dé inteiro, mas se simplifica ou se complica conforme o nivel que escolhe para realizar suas evolucées, Geral- mente, é a percepgdo presente que determina a orientagao de nosso espirito; mas, conforme o grau de tensdo que nosso espirito adote, segundo a altura onde se coloque, essa percepcao desenvolve em nés um néimezo maior ou menor de lembrangas-imagens. Em outras palavras, enfim, as lembrangas pessoais, exatamente localizadas e cuja série desenharia o curso de nossa existéncia passada, constituem, reunidas, 0 iltimo e mais amplo invéhucro de nossa meméria. Essencialmente fugazes, 36 se materializam por acaso, seja porque uma de- terminagao acidental precisa de nossa postura corporal as atraia, seja porque a propria indeterminagao dessa postura deixa campo livre para o capricho de sua manifestacio. ‘Mas esse invélucro extrero se restringe e se repete em cit- culos interiores e concéntricos, que, mais estreitos, supor- tam as mesmas lembrancas diminuidas, cada vez mais afastadas de sua forma pessoal e original, cada vez mais ca- pazes, em sua banalidade, de se aplicar & percepgio pre- sente e de determiné-la 4 maneira de uma espécie que engloba o individuo. Chega um momento em que a lem- branca assim reduzida se encaixa to bem na percepgio presente que nao se saberia dizer onde termina a percep- cdo e onde comega a lembranca. Nesse momento preci- 50, a memoria, em vez de fazer aparecer e desaparecer ca- prichosamente suas representagSes, regula-se pelos deta- Ihes dos movimentos corporais. MM, 113-6. 60 MEMORIA EVIDA b) Psicologia da memoria 29, Movimento na diregtio da imagem Mas interroguemos nossa consciéncia. Perguntemos a ela o que acontece quando escutamos as palavras de al- guém com a intencao de compreendé-las. Esperamos pas- sivos que as impressdes saiam em busca de suas imagens? Nao sentimos, antes, que nos pornos numa certa dispo- sigdo, varidvel dependendo do interlocutor, varidvel de- pendendo da lingua que ele fala, do tipo de idéias que ex- prime e sobretudo do movimento geral de sua frase, como ‘se comegéssemos por regular o tom de nosso trabalho intelectual? O esquema motor, ao sublinhar as entonacdes de nosso interlocutor, ao acomparhar, de desvio em des- vio, a curva de seu pensamento, indica caminho para 0 nosso pensamento. Ele é 0 recipiente vazio que determina, por sua forma, a forma para a qual tende a massa fluida que nele se precipita Mas hesitardo em compreender assim 0 mecanismo da interpretagdo por causa da invencive! tendéncia que nos leva a pensar, em qualquer ocasio, antes em coisas do ue em progressos. Dissemos que partiamos da idéia e que a desenvolviamos em lembrangas-imagens auditivas ca~ pazes de se inserir no esquema motor para recobrir os sons ‘ouvidos. Hé nisso um progresso continuo por meio do qual a nebulosidade da idéia se condensa em imagens audi- tivas distintas, que, ainda fluidas, terminardo por se so- lidificar em sua coalescéncia com os sons materialmente percebidos. Em nenhum momento se pode dizer com pre- iso onde a idéia ou a imagem-lembranga termina e onde comega a imagem-lembranga ou a sensacao. Com efeito, onde ésté a linha de demarcacio entre a confusao dos sons ‘A MEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO 61 percebidos em massa e a clareza que as imagens audi- tivas rememoradas a eles acrescentam, entre a descon- tinuidade dessas proprias imagens rememoradas e a conti- ruuidade da idéia original que elas dissociam e refratam em palavras distintas? Mas 0 pensamento cientifico, a0 ana~ lisar essa série ininterrupta de mudangas e cedendo a uma irresistivel necessidade de figuragao simbélica, detém e so- lidifica em coisas acabadas as principais fases dessa evoltu- ‘cdo. Erige os sons brutos ouvidos em palavras separadas e completas, e depois as imagens auditivas rememoradas em entidades independentes da idéia que elas desenvol- vem: esses trés termos, percepcao bruta, imagem auditiva © idéia, vao, assim, formar totalidades distintas que se bas- tardo cada qual a si propria. B, embora, para se ater & ex- perincia pura, era da idéia que se devia necessariamente ter partido, j4 que as lembrangas auditivas devem a ela sua soldadura ¢ jé que os sons brutos, por sua vez, s6 se completam com as lembrangas, nao se vé nenhum incon veniente, depois de ter arbitrariamente completado o som bruto e também arbitrariamente soldado as lembrancas todas juntas, em inverter a ordem natural das coisas, em afirmar que vamos da percepgao as lembrancas e das lem- brangas & idéia. MM,, 134-6. 30. Por que a lembranca se tora imagem Demodo geral, de dreito, o passado s6 retoma a cons- ciéncia na medida em que possa ajudar a compreender © presente e a prever o porvir: é um batedor da ago. To- ‘mamos o caminho errado quando estudamos as fungdes 62 [MEMORIA EVIDA de representagao em estado isolado, como se elas fossem em si mesmas seu proprio fim, como se fOssemos puros espiritos, ocupados em ver passar idéias e imagens. A per- cepcao presente atrairia entdo para si uma lembranca si- milar, sem nenhuma segunda intengdo utilitéria, por nada, por prazer — pelo prazer de introduzir no mundo mental uma lei de atracdo andloga & que governa o mun- do dos corpos. Certamente nao contestamos a “lei da si- milaridade”, mas, como observamos em outro lugar, duas idéias quaisquer e duas imagens tomadas ao acaso, por mais distantes que as suponhamos, sempre se parecerao por algum aspecto, porque sempre se encontrar um gé- nero comum no qual encaixé-las: de modo tal que qual- quer percep¢ao lembraria qualquer lembranca se houves- se apenas uma atra¢do mecanica do semelhante pelo se- melhante. A verdade é que, se uma percepgao evoca uma lembranca, é para que as circunstancias que precederam e acompanharam a situagao passada e seguiram-se a ela Iancem alguma luz sobre a situagdo atual e mostrem como sair dela. Séo possiveis milhares de evacagies de lem- brancas por semelhanca, mas a lembranga que tende a reaparecer é aquela que se parece com a percepcao por uum certo aspecto particular, aquele que pode esclarecer e dirigir 0 ato em preparacio. E, a rigor, essa lembranca po- deria até nao se manifestar: bastaria que evocasse, sem ela propria se mostrar, as circunstncias que se deram em contigiiidade com ela, o que precedeu e o que se seguiu, ‘em suma, 0 que importa saber para compreender o pre- sente e antecipar o porvir. Poder-se-ia até pensar que na- da de tudo isso se manifestasse na consciéncia e que s6 a conclusao aparecesse, ou seja, a sugestio precisa de um certo procedimento a adotar. E provavelmente assim que as coisas acontecem com a maioria dos animais. Porém, ‘A MEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURAGAO 6 quanto mais a consciéncia se desenvolve, mais ela escla- rece a operacao da meméria e mais, também, deixa trans- parecer a associago por semelhanga, que € 0 meio, por ‘rds da associaco por contigiiidade, que € o fim. Aquela, ‘uma vez instalada na consciéncia, permite que um mon- te de lembranas que nao passam de luxo se introduza em virtude de alguma semelhanca, mesmo que desprovida de interesse atual: 6 0 que explica que possamos sonhar um pouco enquanto agimos. Mas foram as necessidades da agdo que determinaram as leis da evocacio; 86 elas de- tém as chaves da consciéncia, e as lembrangas oniricas s6 se introduzem aproveitando-se do que hé de vago, de mal definido, na relagao de semelhanga que da a autorizacio para entrar. Resumnindo, embora a totalidade de nossas lembrangas exerga a todo instante uma pressao do fundo do inconsciente, a consciéncia atenta & vida s6 deixa pas- sar, legalmente, aquelas que podem concorrer para a aco presente, embora muitas outras se insinuem por intermé- dio dessa condicao geral de semelhanga que foi inevité- vel formular. ES, 144-6. 31. O sonho ‘Mas, embora nosso passado permanega quase intei- ramente oculto para nés porque é inibido pelas necessi- dades da ago presente, ird recuperar a capacidade de transpor o limiar da consciéncia sempre que nos desinte- ressarmos da aco eficaz para nos instalarmos novamen- te, de alguma forma, na vida do sonho. O sono, natural ou artificial, provoca justamente uma despreocupaciio desse 64 ‘MEMORIA EVIDA tipo. Recentemente, mostraram-nos, no sono, uma in- terrupgo de contato entre os elementos nervosos sen- soriais e motores. Mesmo que nao nos detivéssemos nes- sa engenhosa hipétese, é impossivel ndo ver no sono um relaxamento, ao menos funcional, da tensdo do sistema nervoso, sempre pronto durante a vigilia a prolongar a excitagao recebida em reagéo apropriada. A “exaltacao” da meméria em certos sonhos e em certos estados so- nambillicos é um fato de observago banal. Lembrancas «que acreditavamos enterradas reaparecem entio com uma exatidao impressionante; revivemos em todos os seus de- talhes cenas de infancia totalmente esquecidas; falamos Iinguas que nem lembrévamos mais de ter aprendido. Com relagio a isso, porém, nao h4 nada mais instrativo do que 0 que ocorre em certos casos de brusca asfixia, nos afogados ¢ enforcados. O sujeito, voltando vida, decla- ra ter visto desfilar diante de si, em pouco tempo, todos os acontecimentos esquecidos de sua histéria, com suas ‘mais infimas circunstancias e na propria ordem em que se produziram. ‘Um ser humano que sonhasse sua existéncia em vez de vivé-la certamente manteria o tempo todo diante dos olhos a multidao infinita dos detalhes de sua histéria pas- sada. E aquele que, ao contrdrio, repudiasse essa mem6- ria com tudo o que ela gera atuaria o tempo todo sua exis- téncia em vez. de se a representar verdadeiramente: au- tmato consciente, seguiria a propensio dos habitos iteis que prolongam a excitacdo em reacdo apropriada. O pri- meiro jamais sairia do particular ou mesmo do individual. Dando a cada imagem sua data no tempo e seu lugar no espago, veria em que ela difere das outras e no em que se parece com elas. O outro, ao contrario, sempre condu- Zido pelo habito, s6 distinguiria numa situago o aspecto ‘A MEMORIA OUI OS GRAUS COEXISTENTES DA DURAGAO 65 em que ela se assemelha praticamente a situagdes ante- riores. Incapaz, sem duivida, de pensar o universal, jé que a idéia geral supe a representacao ao menos virtual de uma multidao de imagens rememoradas, seria contudo no universal que ele se moveria, o hébito sendo para a ago o que a generalidade é para o pensamento. Mas esses dois estados extremos, um de uma meméria total- mente contemplativa que s6 apreende o singular na sua visio, 0 outto, de uma meméria totalmente motora que imprime a marca da generalidade & sua aca, s6 se isolam e se manifestam plenamente em casos excepcionais. Na vida normal, penetram-se intimamente, abandonando assim, cada qual, algo de sua pureza original. O primeiro se traduz pela lembranca das diferengas, o segundo pela percepsao das semelhancas: na confluéncia das duas cor- rentes aparece a idéia geral. MM, 171-3. 32.A idéia geral Acesséncia da idéia geral é, com efeito, mover-se 0 tempo todo entre a esfera da acao ¢ a da meméria pu- ra, Reportemo-nos, com efeito, ao schéma que jé traga- mos. Em § esté a percepgao atual que tenho de meu cor- po, ou seja, de um certo equilfbrio sensério-motor. So- bre a superficie da base AB estarin dispastas, se quiserem, minhas lembrancas em sua totalidade. No cone assim de- terminado, a idéia geral oscilaré continuamente entre 0 vértice $e a base AB. Em §, ela adotaria a forma bem ni- tida de uma atitude corporal ou de uma palavra pronun- ciada; em AB, iria se revestir do aspecto, nao menos nit 66 (MEMORIA EVIDA do, das mil e uma imagens individuais nas quais viria se romper sua unidade fragil. E é por isso que uma psicolo- gia que se limita ao jé pronto, que s6 conhece avisas e ig- Nora os progressos, 86 perceberd desse movimento as ex- tremidades entre as quais ele oscila; fard coincidir a idéia geral, ora com a ago que a desempenha ou a palavra que a exprime, ora com as miiltiplas imagens, em nimero in- definido, que sao seu equivalente na meméria, Mas a ver- dade é que a idéia geral nos escapa sempre que tenta- mos congelé-la em uma dessas duas extremidades. Ela consiste na dupla corrente que vai de uma para a outra ~ sempre prestes, quer a cristalizar-se em palavras pronun- ciadas, quer a evaporar em lembrangas. Figura 2 Isso significa que entre os mecanismos sensério-mo- tores figurados pelo ponto S e a totalidade das lembran- 628 dispostas em AB hé lugar, como pressentiamos no ca- pitulo anterior, para mil e uma repetices de nossa vida ‘A MEMORIA OU 0 GRAUIS COEXISTENTES DA DURAGAO o7 psicoldgica, figuradas por imimeras segdes AB’, A’B” ete. do mesmo cone. Tendemos a nos dispersar em AB & me- dida que nos desligamos mais de nosso estado sensorial e motor para viver a vida do sonho; tendemos a nos con: centrar em $ A medida que nos apegamos mais firme- mente & realidade presente, respondendo com reagées motoras a excitagdes sensoriais. Com efeito, o eu normal nunca se fixa em uma dessas posigdes extremas; move-se entre elas, adota sucessivamente as posigées representa~ das pelas segGes intermediérias, ou, em outras palavras, dé a suas representacées o estritamente necessario em termos de imagem e 0 estritamente necessdrio em termos de idéia para que clas possam concorrer utilmente para a.acdo presente. MM, 180-1. 33. O esquema .-- O schéma de que falamos nao tem nada de mis- terioso ou de hipotético; ndo tem nada tampouco que possa chocar as tendéncias de uma psicologia acostu- mada, sendo a resolver todas as nossas representacies em imagens, ao menos a definir toda representaco com relagéo a imagens, reais ou possiveis. E de fato em fun- sao de imagens reais ou possiveis que se define 0 esque- ma mental, tal como 0 conccbemos cm todo este estudo. Consiste numa expectatioa de imagens, numa atitude inte- lectual destinada ora a preparar a chegada de uma certa imagem precisa, como no caso da meméria, ora a organi- zat wm jogo mais ou menos prolongado entre as imagens capazes de vir a nele se inserir, como no caso da imagina- 6B (MEMORIA EVIDA sao criadora. Ele é em estado aberto, o que a imagem é em estado fechado. Apresenta em termos de devir, dina- micamente, o que as imagens nos dio como jd feito, em estado estatico. Presente e atuante no trabalho de evoca- Gio das imagens, ele se dissipa e desaparece por trés das imagens depois que estas foram evocadas, tendo cum- prido seu papel. A imagem de contomos fixos desenha 0 que foi. Uma inteligéncia que operasse apenas com ima- gens desse tipo 6 poderia recomecar seu passado tal qual, ou tomar dele os elementos rigidos para recompé- Jos em outra ordem, por um trabalho de mosaico. Mas, para uma inteligéncia flexivel, capaz. de utilizar sua expe- riéncia passada encurvando-a conforme as linhas do pre sente, é preciso, além da imagem, uma representaco de outra ordem sempre capaz de se realizar em imagens, mas sempre distinta delas. O esquema nada mais é que isso. ‘A existéncia desse esquema 6, portanto, um fato e, a0 contratio, é a redugo de toda representacao a imagens sélidas, calcadas no modelo dos objetos exteriores, que seria uma hipétese. Agreguemos que em nenhum lugar essa hip6tese manifesta t4o claramente sua insuficiéncia como na questo atual. Se as imagens constituem o todo de nossa vida mental, como o estado de concentragio mental poderd se diferenciar do estado de dispersio in- telectual? Ser preciso supor que em certos casos elas se sucedem sem intengao comum e que, em outros, por uma sorte inexplicdvel, todas as imagens simultaneas e sucessi- vas se agrupam de maneira que déem a solugio cada vez mais aproximada de um tinico e mesmo problema. Dirdo que nao é sorte, que é a semelhanca das imagens que faz com que elas se chamem umas 4s outras, mecanicamente, segundo a lei geral de associagao? Mas, no caso do esfor- 50 intelectual, as imagens que se sucedem podem justa- ‘A MEMORIA OUI OS GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO cy mente nio ter nenhuma similitude exterior entre si: sua semelhanca é totalmente interna; é uma identidade de sig- nificacdo, uma mesma capacidade de resolver um certo problema com relago ao qual elas ocupam posigées and~ logas ou complementares, a despeito de suas diferencas de forma concreta. Portanto, é preciso que o problema es- teja representado no espirito e de uma forma totalmente outra que a de imagem. Imagem ele mesmo, evocaria ima- gens parecidas com ele e que se parecem entre si. Mas, como, ao contrério, seu papel é o de chamar e agrupar imagens segundo sua capacidade de resolver a dificulda- de, tem de levar em conta essa capacidade das imagens e nao sua forma exterior e aparente. £, portanto, um modo. de representacio diferente da representacio por imagens, embora s6 possa se definir por referéncia a esta. Em vao objetariam a dificuldade de conceber a acdo do esquema sobre as imagens. A da imagem sobre a ima- gem é mais clara? Quando se diz que as imagens se atraem ‘em razo de sua semelhanca, vai-se além da constatago pura e simples do fato? O que pedimos é que nao se des- considere nenhuma parte da experiéncia. Além da in- fluéncia da imagem sobre a imagem, hé a atrasio ou a impulso exercida sobre as imagens pelo esquema. Além do desenvolvimento do espirito num tinico plano, super- ficialmente, hé 0 movimento do espitito que vai de um plano a outro, em profundidade. Além do mecanismo de associacao, hd o do esforgo mental. As forcas que traba- Tham em ambos os casos nao diferem apenas pela inten sidade; diferem pela diregdo. Quanto a saber como elas trabalham, é uma questo que ndo é da algada apenas da psicologia: vincula-se ao problema geral e metafisico da causalidade. Entre a impulsdo e a atragao, entre a causa “eficiente” e a “causa final”, hd, acreditamos, algo de inter- 70 (MEMORIA EVIDA mediério, uma forma de atividade de onde os flsofos ti- raram por meio de empobrecimento e de dissociagio, pas- sando aos dois limites opostos e extremos, a idéia de cau- sa eficiente, por um lado, e a de causa final por outro. Essa operagao, que é a operagao da vida, consiste numa pas- sagem gradual do menos realizado ao mais tealizado, do intensivo ao extensivo, de uma implicagio recfproca das partes & sua justaposicao. O esforco intelectual € algo des- se género. Ao analis4-lo, cercamos tanto quanto pude- mos, a partir do exemplo mais abstrato e, por conseguin- te, também o mais simples, essa materializagio crescente do imaterial que é caracteristica da atividade vital. ES,, 187-90. ©) O papel do corpo 34. O pensamento eo cérebro © pensamento esté orientado para a agio; e, quan- do nio desemboca numa agao real, esboga uma ou vé- rias ages virtuais, simplesmente possiveis. Essas ages reais ou virtuais, que sao a projecdo reduzida e simplifi- cada do pensamento no espaco e que marcam suas arti- culacées motoras, so 0 que esté desenhado na substa cia cerebral. A relagao do cérebro com 0 pensamento 6, portanto, complexa e sutil. Se me pedissem para expri mi-la numa férmula simples, necessariamente grosseira, eu ditia que o cérebro é um drgio de pantomima, e ape- nas de pantomima. Seu papel é mimicar a vida do espi- rito, mimicar também as situagdes externas As quais 0 espitito tem de se adaptar. A atividade cerebral é para a ‘A MEMORIA OU OS GRAUIS COEKISTENTES DA DURACAO n atividade mental o que os movimentos da batuta do re- gente de orquestra sdo para a sinfonia. A sinfonia extra- pola por todos os lados os movimentos que a escandem, a vida do espirito também excede a vida cerebral. Mas 0 cérebro, justamente porque extrai da vida do espirito tudo © que nela pode ser representado através de movimen- tos e materializado, justamente porque constitui o ponto de insergdo do espirito na matéria, garante a todo instan- te a adaptagdo do espirito as circunstancias, mantém o tempo todo o espirito em contato com realidades. Portan- to, rigorosamente falando, ele nao é érgio de pensamen- to ou de sentimento ou de consciéncia; mas faz com que consciéncia, sentimento e pensamento permanecam apli- cados a vida real e, conseqtientemente, capazes de acio eficaz. Digamos, se quiserem, que o cérebro é 0 érgio da atencio para a vida, ¥ por isso que basta uma ligeira modificagao da subs- tancia cerebral para que todo 0 espirito pareca afetado, Falamos do efeito de certos t6xicos sobre a consciéncia e, de forma mais geral, da influéncia da doenca cerebral s0- bre a vida mental. Nesses casos, 6 0 prOprio espirito que fica perturbado ou nao seria, antes, o mecanismo da in- sercao do espitito nas coisas? Quando um louco delira, seu raciocinio pode estar de acordo com a logica mais es- trita: ao ouvir um paranéico falar, vacé poderia dizer que ele peca por excesso de légica. Seu erro nao esta em ra- ciocinar mal, mas em raciocinar longe da realidade, fora da realidade, como um homem que sonha. Suponhamos, como é bem possivel, que a doenca seja causada por uma intoxicagdo da substancia cerebral. Nao se deve pensar que o veneno tenha ido buscar o raciocinio nessa ou na~ quela célula do cérebro, nem, por conseguinte, que haja, nesse ou naquele ponto do cérebro, movimentos de Ato~ nm (MEMORIA EVIDA ‘mos que correspondem ao raciocinio. Nao, é provavel que seja 0 cérebro todo que é afetado, assim como é a corda esticada toda que se distende e nao essa ou aquela de suas partes, quando o né foi malfeito, Mas, assim como basta um levissimo relaxamento da amarra para que 0 arco se ponha a dangar sobre a onda, também uma mo- dificagao, ainda que minima, da substdncia cerebral in- teira poderd fazer com que o espirito, ao perder contato com 0 conjunto das coisas materiais em que geralmen- te se apéia, sinta a realidade fugir debaixo dele, titubeie ¢ seja tomado de vertigem. Com efeito, é por um senti- mento compardvel a sensagio de vertigem que a loucu- ra comega em muitos casos. O doente fica desorientado. Dird que os objetos materiais deixaram de ter para cle a solidez, 0 relevo ou a realidade que tinham antes. Um re- laxamento da tensio, ou melhor, da atenc&o, com a qual © espitito se fixava na parte do mundo material com que lidava, eis, na verdade, o tinico resultado direto do dis- ttirbio cerebral - sendo o eérebro 0 conjunto dos dispo- sitivos que permitem ao espfrito responder & ago das coisas por reagdes motoras, efetuadas ou simplesmente nascentes, cuja exatidao garante a perfeita insercéo do es- pitito na realidade. 47-9. 35. Lesies cerebrais Os distiirbios da meméria imaginativa que corres- pondem a lesGes localizadas do cértex so sempre doen- gas do reconhecimento, seja do reconhecimento visual ‘ou auditivo em geral (cegueira ou surdez ps{quicas), seja ‘A MEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO 73 do reconhecimento das palavras (cegueira verbal, sur- dez verbal etc). Tais sao, pois, os distiirbios que deve- mos examinar. Mas, se nossa hipétese for correta, essas lesdes do re- conhecimento de modo algum decorrerao do fato de que as lembrancas ocupavam a regio lesada, Deverio pren- der-se a duas causas: ou nosso corpo nao consegue mais adotar automaticamente, em presenga da excitagao vinda de fora, a atitude precisa por intermédio da qual se ope- raria uma selegao entre nossas lembrangas, ou as lem- brangas nao encontram mais no corpo um ponto de apli- cago, um meio de se prolongar em ago. No primeiro caso, a lesdo incidiré sobre os mecanismos que dao con- tinuidade ao abalo regisirado na forma de movimento automaticamente executado: a atencao nao conseguiré ais ser fixada pelo objeto. No segundo, a lesdo afetaré os centros particulares do cdrtex que preparam os movimen- tos voluntarios fornecendo-Ihes o antecedente sensorial necessério e que sao chamados, com ou sem razio, de centros da imaginacdo: a atengao néo poderé mais ser fixada pelo sujeito. Mas, em ambos os casos, so movi- mentos atuais que serao lesados ou movimentos por vir que cessardo de ser preparados: nao tera havido destrui- cio de lembrangas. Ora, a patologia confirma essa previsio. Ela nos re vela a existéncia de dois tipos absolutamente diversos de cegueira e surdez psiquicas, de cegueira e surdez verbais. ‘No primeiro, as lembrangas visuais ou auditivas ainda siio evocadas, mas néo podem mais ser aplicadas As percep- ges correspondentes. No segundo, a propria evocacéo das lembrangas fica impedida. MM., 118-9. 74 ‘MEMORIA E VIDA 36. As doengas da meméria ‘Ha um ponto sobre o qual todo o mundo concorda, © de que as doengas da meméria das palavras so causa~ das por lesdes do cérebro mais ou menos claramente lo- calizaveis. Vejamos, pois, como esse resultado é interpre- tado pela doutrina que faz do pensamento uma fungio do cérebro, e, de forma mais geral, por aqueles que acre- ditam num paralelismo ou numa equivaléncia entre 0 trabalho do cérebro eo do pensamento, ‘N&o hé nada mais simples que a explicaco deles. ‘As lembrangas esto ai, acumuladas no cérebro na forma de modificagées imprimidas a um grupo de elementos anatémicos: se elas desaparecem da memoria é porque os elementos anatémicos em que repousavam foram altera~ dos ou destruidos. Falavamos ha pouco de negativos fo- togréficos, de fonogramas: sdo essas as comparagSes que encontramos em todas as explicagées cerebrais da me- méria; as impresses feitas por objetos exteriores sub- sistiriam no cérebro, tal como no filme sensibilizado ou no disco fonografico. Um exame mais atento mostraria 0 quanto essas comparagdes so decepcionantes. Se minha Iembranca visual de um objeto, por exemplo, fosse real- mente uma impressdo deixada por esse objeto no mex cérebro, eu jamais teria a lembranga de um objeto, teria milhares, milhGes, pois o mais simples e o mais estavel dos objetos muda de forma, de dimensio, de nuanga, se- gundoo ponto de onde o percebo. Portanto, a menos que eu me condene a uma fixidez, absoluta ao olhar para ele, menos que meu olho se imobilize na sua érbita, incon- taveis imagens, ndo superponiveis, irdo se desenhar su- cessivamente sobre minha retina e serdo transmitidas a meu cérebro. Quanto mais caso se trate da imagem visual ‘A MEMORIA OUI 0S GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO 5 de uma pessoa, cuja fisionomia muda, cujo corpo é mé- vel, cujas roupas e 0 meio em que se encontra sio dife- rentes a cada vez que a revejo. No entanto, é incontesta- vel que minha consciéncia me apresenta uma imagem Sinica, ou quase tinica, uma lembranca praticamente in- varidvel do objeto ou da pessoa: prova evidente de que aqui ocorreu algo totalmente diferente de uma gravacéo mecénica. Poderia, als, dizer o mesmo da lembranca att- ditiva. A mesma palavra articulada por pessoas diferentes ou pela mesma pessoa em momentos diferentes, em fra~ ses diferentes, dé fonogramas que nao coincidem entre si como poderia a lembranca, relativamente invaridvel e tni- ca, do som da palavra ser comparada com um foniograma? S6 essa consideracao jé bastaria para tomar suspeita a teoria que atribui as doengas da meméria das palavras a uma alteracdo ou a uma destruigao das préprias lembran- gas gravadas automaticamente pelo cortex cerebral. ‘Vejamos o que ocorre nessas doencas. Quando a le- sio cerebral é grave e a meméria das palavras é profun- damente afetada, uma excitagdo mais ou menos forte, uma emogao, por exemplo, pode subitamente trazer de volta a lembranga que parecia perdida para sempre. Se- tia isso possivel se a lembranga tivesse sido depositada na matéria cerebral alterada ou destruida? Pareceria, antes, que as coisas se passam como se o cérebro servisse para recordar a lembranga e nao para conservi-la. O afasico tora-se incapaz de encontrar a palavra quando precisa dela; parece ficar dando voltas, nao ter a capacidade es- perada para se aproximar do ponto preciso; no campo psicolégico, com efeito, o sinal exterior da capacidade é sempre a preciso. Mas a lembranga parece estar lé: 3s ‘vezes, tendo substituido por perifrases a palavra que con- siderava desaparecida, 0 afésico farg entrar em uma delas 76 ‘MEMORIA EVIDA a propria palavra. O que fraqueja nesse caso 0 ajusta- ‘mento a situagio que o mecanismo cerebral deve garantir. Mais precisamente, o que ¢ afetado 6 a faculdade de tor- nat a lembranga consciente esbocando de antemao os movimentos pelos quais a lembrartca, se fosse conscien- te, se prolongaria em ato. Quando esquecemos um nome pr6prio, como fazemos para nos lembrar dele? Experimen- tamos todas as letras do alfabeto, uma depois da outra; pri- meiro as pronunciamos internamente; depois, se isso ndo bastar, as articulamos em voz alta; colocamo-nos, pois, sucessivamente, em todas as disposigdes motoras entre as quais ser preciso escolher; uma vez encontrada a ati- tude desejada, o som da palavra buscada nela se introduz suavemente como se fosse num quadro preparado para tecebé-lo. F essa mimica real ou virtual, efetuada ou esbo- gada, que o mecanismo cerebral deve garantir, E é sem diivida ela que a doenca afeta. Reflitam agora no que se observa na afasia progres- siva, isto é, nos casos em que o esquecimento das palavras se agrava cada vez mais. Em geral, as palavras desapare- cem numa ordem determinada, como se a doenga conhe- cesse a gramética: os nomes préprios so os primeiros a se eclipsar, depois os nomes comuns, seguidos dos adje- tivos e, por fim, dos verbos. Num primeiro instante, isso pareceria confirmar a hipétese de uma acumulacao de Jembrancas na substancia cerebral. Os nomes préprios, ‘05 nomes comuns, 0s adjetivos e os verbos constituiriam camadas superpostas, por assim dizer, e a lesio afetaria essas camadas uma depois da outra. Sim, mas a doenca pode decorrer das mais diversas causas, adotar as mais variadas formas, comegar num ponto qualquer da regio cerebral envolvida e progredir em qualquer ditegao: a or- dem de desaparecimento das lembrangas continua a mes- ‘A MEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURAGAO 7 ma. Seria isso possivel caso fossem as pr6prias lembran- as que a doenga atacasse? Portanto, esse fato deve ter outra explicacao. Fis a explicagao bem simples que lhes proponho. Em primeiro lugar, se os nomes préprios desa- parecem antes dos nomes comuns, estes antes dos adje- tivos e os adjetivos antes dos verbos, é porque é mais di- fcil lembrar-se de um nome préprio do que de um nome comum, de um nome comum do que de um adjetivo, de um adjetivo do que de um verbo: a fungo de recordar, com a qual o cérebro evidentemente colabora, ter por- tanto de se limitar a casos cada vez mais faceis 4 medida que a lesdo do cérebro se agrava. Mas de que depende a maior ou menor dificuldade da lembranga? E por que 08 verbos so, dentre todas as palavras, aquelas que te- mos menos dificuldade de evocar? Simplesmente porque 08 verbos exprimem agées ¢ uma ago pode ser expres- sa por mimica. O verbo pode ser mimicado diretamente, © adjetivo s6 por intermédio do verbo que ele envolve, 0 substantivo pela dupla mediacio do adjetivo que exprime um de seus atributos e do verbo implicado no adjetivo, 0 nome préprio pela tripla mediagio do nome comum, do adjetivo e também do verbo. Portanto, & medida que va mos do verbo ao nome préprio, afastamo-nos cada vez mais da agao imediatamente imitével, encenével pelo cor- po; um artificio cada vez. mais complicado vai se tornan- do necessério para simbolizar em movimentos a idéia expressa pela palavra que se busca; e como é ao cérebro que compete a tarefa de preparar esses movimentos, como seu funcionamento diminui, se reduz, se simplifica quan- to mais profundamente lesada estiver a regio envolvida, no 6 de espantar que uma alteracZo ou uma destruicao dos tecidos, que tome impossfvel a evocagao dos nomes préprios ou dos nomes comuns, deixe subsistir a do ver- 78 ‘MEMORIA EVIDA bo, Nesse caso bem como em outros, os fatos nos convi dam a ver na atividade cerebral a mimica de um extrato da atividade mental e no um equivalente dessa atividade. ES, 51-5. 37. O que 60 cérebro? Basta comparar a estrutura do cérebro 4 da medula para se convencer de que hé apenas uma diferenca de complicagio, e nao uma diferenca de natureza entre as fun- des do cérebro e a atividade reflexa do sistema medu- lar. O que ocorre, de fato, na agio reflexa? O movimento centripeto comunicado pela excitacao reflete-se imedia- tamente, por intermédio das células nervosas da medula, num movimento centrifugo que determina uma contra sao muscular. Em que consiste, ademais, a funco do sis- tema cerebral? O abalo periférico, em vez de se propagar diretamente para a céluia motora da medula e imprimir ao maisculo uma contracao necessétia, sobe primeiro para 0 encéfalo, depois volta a descer para as mesmas células motoras da medula que intervinham no movimento re- flexo. © que foi que ele ganhou com esse desvio e 0 que foi buscar nas chamadas células sensitivas do cértex ce- tebral? Nao compreendo e nunca compreenderei que ele v4 buscar ali o miraculoso poder de se transformar em re- presentagio de coisa e, alids, considero essa hipétese inti- til, como veremos daqui a pouco. Mas o que entendo per- feitamente bem é que essas células das diversas regides ditas sensoriais do cértex, células interpostas entre as ar- borizacdes terminais das fibras centripetas e as células ‘motoras da zona rolandica, permitam que o abalo recebi- do ganhe @ vontade esse ou aquele mecanismo motor da ‘A MEMORIA OUI 05 GRAUIS COEXISTENTES DA DURACAO 9 medula espinhal e escolha assim seu efeito. Quanto mais se multiplicarem essas células interpostas, mais elas emi- tira prolongamentos amebéides capazes, por certo, de se aproximarem uns dos outros de diversos modos, mais numerosas e mais variadas serdo também as vias passi- veis de se abrir diante de um mesmo abalo vindo da pe- riferia e, conseqiientemente, haveré mais sistemas de mo- vimento entre 0s quais uma mesma excitagdo deixard a escolha. Portanto, a nosso ver o cérebro nao deve ser ou- tra coisa senao uma espécie de central telefénica: seu pa- pel é “dar linha” ou fazer com que seja aguardada. Nao acrescenta nada ao que recebe; mas, como todos os gos de percepeao enviam para ele seus iltimos prolon- gamentos e todos os mecanismos motores da medula e do bulbo tém ali sous representantes titulares, ele cons- titui realmente um centro, onde a excitagdo periférica poe-se em contato com esse ou aquele mecanismo mo- tor, escolhido e néo mais imposto. Por outro lado, como uma enorme quantidade de vias motoras pode se abrir nessa substncia, todas juntas, para um mesmo abalo vin- do da periferia, esse abalo tem a faculdade de ali se dividir ao infinito e, por conseguinte, de se perder em inconté- veis reagdes motoras, simplesmente nascentes. Por isso, © papel do cérebro é ora o de conduzir o movimento regis- trado a um érgio de reagao escolhido, ora o de abrir para esse movimento a totalidade das vias motoras para que desenhe nelas todas as reages possiveis de que esta pre- nhe e para que se analise a si mesmo ao se dispersar. Em outras palavras, o cérebro é a nosso ver um instrumento de anilise no tocante ao movimento registrado e um ins- trumento de selegio no tocante ao movimento executado. Em ambos os casos, porém, seu papel se limita a transmi- tir ea dividir movimento, E nem nos centros superiores do cértex nem na medula os elementos nervosos traba- 80 (MEMORIA EVIDA tham tendo em vista o conhecimento: apenas esbogam de repente uma pluralidade de agGes possfveis ou organizam uma delas. Isso significa que o sistema nervoso nada tem de um aparelho que serviria para fabricar ou mesmo para. pre- parar representacdes. Tem por funcdo receber excitagdes, montar aparelhos motores e apresentar 0 maior nime- ro possivel desses aparelhos para uma excitacéo dada. ‘Quanto mais se desenvolve, mais numerosos e mais afas- tados se tornam os pontos do espaco que ele pde em contato com mecanismos motores cada vez mais comple- xos: assim cresce a latitude que dé a nossa aco e nisso consiste, justamente, sua perfeicaio crescente. No entan- to, se o sistema nervoso esté construido, de uma ponta a outra da série animal, tendo em vista uma aco cada vez ‘menos necessaria, nao se deveria pensar que a percep- ‘Gao, cujo progresso se regula de acordo com o dele, est, também, toda ela orientada para a aco e ndo para o co- nhecimento puro? E, nesse caso, a riqueza crescente des- sa propria percepgao nao deveria simbolizar simplesmen- te a patcela crescente de indeterminacdo que caracteriza as escolhas do ser vivo na sua conduta com relagao as coi- sas? Partamos, portanto, dessa indeterminagaio como sen- do 0 verdadeiro principio M.M., 25-7. 38. Significagto da pereepeao Eis as imagens exteriores, em seguida meu corpo, €, finalmente, as modificagSes produzidas por meu corpo nas imagens circundantes. £ facil ver como as imagens exteriores influem sobre a imagem que chamo meu cor- ‘A MEMORIA OU OS GRAUS COEXISTENTES DA DURAGAO, 81 po: elas lhe transmitem movimento. Também é facil ver como esse corpo influi sobre as imagens exteriores: ele hes restitui movimento. Portanto, no conjunto do mun- do material, meu corpo é uma imagem que atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a tinica diferenga, talvez, de que meu corpo parece escolher, em certa medida, a maneira de devolver o que recebe. Mas como meu corpo em geral e meu sistema nervoso em particular poderiam gerar toda ou parte de minha representagéo do universo? Quer digam que meu corpo é matéria, quer digam que é imagem, pouco impor- taa palavra. Se for matéria, faz parte do mundo material, © omundo material, por conseguinte, existe em tomo dele e fora dele. Se for imagem, essa imagem s6 poderé mos- trar 0 que foi posto nela e, como, por hipétese, ela é a ima~ gem apenas de meu corpo, seria absurdo querer tirar dela a de todo 0 universo. Meu corpo, objeto destinado a mover objetos, € portanto um centro de aciio; iio poderia fizer nascer uma representagiio. ‘Mas, se met: corpo é um objeto capaz de exercer uma agio teal e nova sobre os objetos que o rodeiam, deve ocuper relativamente a eles uma situacdo privilegiada. ‘Em geral, uma imagem qualquer influencia as outras ima- gens de uma maneira determinada, calculdvel até, em conformidade com as chamadas leis da natureza. Jé que no tera de escolher, tampouco precisa explorar a regio circunvizinha nem se exercitar previamente em vérias ages simplesmente possiveis. A ago necessaria ird se realizar por sis6, na hora ceita. Mas supus que o papel da imagem que chamo meu corpo era o de exercer sobre outras ima- gems uma influéncia real e, por conseguinte, decidit-se en- tre varios procedimentos materialmente possiveis. E, uma ‘vez que esses procedimentos certamente Ihe so sugeri dos pela maior ou menor vantagem que possa tirar das. 82 (MEMORIA EVIDA imagens circundantes, é preciso que essas imagens dese- nhem de alguma maneira, sobre a face que voltam na Tego de meu corpo, o partido que meu corpo poders ti- rar delas. Com efeito, observo que a dimensio, a forma, até a cor dos objetos exteriores se modificam conforme ‘meu corpo se aproxima ou se afasta deles, que a forca dos cheitos, a intensidade dos sons aumentam e diminuem. com a distdncia, em suma, que essa propria distancia re- presenta sobretudo a medida em que os corpos circun- dantes esto, de certa forma, garantidos contra a acio imediata de meu corpo. A medida que meu horizonte se amplia, as imagens que me rodeiam parecem se desenhar sobre um fundo mais uniforme e tornarem-se indiferen- tes para mim. Quanto mais estreito esse horizonte, mais 108 objetos que ele circunscreve se escalonam diversamen- te conforme a maior ou menor facilidade que meu corpo tem de tocd-los e mové-los. Portanto, devolvem ao meu corpo, tal como o faria um espelho, sua eventual influén- cia; ordenam-se segundo as capacidades crescentes ou decrescentes de meu corpo. Os objetos que cercam meu cor- po refletem a agio posstvel de meu corpo sobre eles. MM, 14-6. 39. A percepeiio ¢ 0 corpo Quando uma lesao dos nervos ou dos centros inter- rompe o trajeto do abalo nos nervos, a percepco diminui proporcionalmente. Isso deveria surpreender? O papel do sistema nervoso é utilizar esse abalo, converté-lo em atitudes préticas, real ou virtualmente realizadas, Se, por um motivo ou outro, a excitagio deixa de passar, seria es- A MEMORIA OU 0S GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO 83. tranho que a percep¢ao correspondent ainda tivesse li- ar, j4 que nesse caso essa percepgao poria nosso corpo em contato com pontos do espaco que nao a convidariam mais diretamente a fazer uma escolha. Seccionem o ner- vo éptico de um animal; 0 abalo que parte do ponto Iu- minoso nao é mais transmitido ao cérebro e, dai, aos ner- vos motores; 0 fio que ligava o objeto exterior aos meca- nismos motores do animal, englobando o nervo éptico, rompeu-se: a percepgio visual tomou-se, pois, impotente e € precisamente nessa impoténcia que consiste a incons- ciéncia. Que a matéria possa ser percebida sem a colabo- ragio de um sistema nervoso, sem érgaos dos sentidos, & algo que nao é teoricamente inconcebivel; mas é impos- sivel na pratica, porque uma percepgo desse tipo no ser- viria para nada. Conviria para um fantasma, ndo para um ser vivo, isto é, ativo. Concebe-se 0 corpo vivo como um império dentro de um império, o sistema nervoso como ‘um ser & parte, cuja principal fungo seria elaborar per- cepgdes e em seguida criar movimentos. A verdade é que meu sistema nervoso, interposto entre os objetos que aba- lam meu corpo e aqueles que eu poderia influenciar, de- sempenha o papel de um simples condutor, que trans mite, distribui ou inibe movimento. Esse condutor esté composto de uma enorme quantidade de fios estendidos da periferia para o centro e do centro para a periferia. Fxis- te a mesma quantidade de fios que vao da periferia para 0 centro e de pontos do espaco capazes de solicitar mi- nha vontade e de fazer, por assim dizer, uma pergunta clementar & minha atividade motora: cada pergunta fei- ta é justamente o que se chama percepso. Por isso, a percepcao perde um de seus elementos cada vez que um dos chamados fios sensitivos cortado, porque entio alguma parte do objeto exterior torna-se impotente para 84 (MEMORIA EVIDA solicitar a atividade, e também cada vez que se contrai um habito estavel, porque dessa vez a réplica jé pronta toma a pergunta inttil. © que desaparece em ambos os casos €a aparente reflexao do abalo sobre ele mesmo, o retor- no da luz a imagem de onde ela parte, ou antes, essa dis- sociagio, esse discernimento que faz. com que a percep¢ao se separe da imagem. Pode-se portanto dizer que o deta- Ihe da percepcaio molda-se exatamente de acordo com o dos chamados nervos sensitivos, mas que a percepgo, em seu conjunto, tem sua verdadeira razao de ser na tendén- cia do corpo a se mover. MM, 42-4, 40.A percepciio ¢ a afeicio ¥ preciso olhar as coisas mais de perto e entender corretamente que a necessidade da afeigéo decorre da propria existéncia da percepgao. A percepcio, tal como a entendemos, mede nossa ago possivel sobre as coisas e, Por isso, inversamente, a acdo possivel das coisas sobre nés. Quanto maior a capacidade de agir do corpo (sim- bolizada por uma complicacao superior do sistema ner- vvoso), mais vasto 0 campo que a percepsao abarca. Por- tanto, a distancia que separa nosso corpo de um objeto percebido mede realmente a maior ou menor iminéncia de um perigo, o cumprimento mais ou menos préximo de uma promessa. E, conseqiientemente, nossa percepgaio de um objeto distinto de nosso corpo, separado de nos- 80 corpo por um intervalo, nunca exprime outta coisa se- ndo uma agao virtual. Contudo, quanto mais diminui a distancia entre esse objeto e nosso corpo, quanto mais, ‘A MEMORIA OU OS GRAUIS COEXISTENTES DA DURAGAO 85 em outras palavras, o perigo se torna urgente e a promes- sa imediata, mais a aso virtual tende a se transformar em ago real. Va agora ao limite, suponha que a distancia se torne nula, ou seja, que o objeto a perceber coincida com nosso corpo, ou seja, em suma, que nosso proprio corpo seja o objeto a ser percebido. Entao, nao é mais uma acao virtual, mas uma ago real que essa percep¢ao muito es- pecial exprimiré: o afeto consiste exatamente nisso. Nos- sas sensages sao, portanto, para nossas percepgoes o que a ago real de nosso corpo é para sua acdo possivel ou virtual. Sua ago virtual conceme aos outros objetos e se desenha nesses objetos; sua aco real concerne a ele mesmo e, por conseguinte, se desenha nele. Em suma, tudo se passard como se, por um verdadeiro retorno das ages reais e vittuais a seus pontos de aplicagéo ou de otigem, as imagens exteriores fossem refletidas por nos- 80 COIpo No espaco que o cerca, e as acdes reais detidas por ele no interior de sua substancia. E é por isso que sua superficie, limite comum ao exterior e ao interior, 6a tini- ca porgio da extensdo que é ao mesmo tempo percebida esentida. Isso sempre significa que minha percepgao esté fora de meu corpo e meu afeto, a0 contrério, dentro do meu corpo. Assim como os objetos exteriores sao percebidos por mim ali onde esto, neles e no em mim, meus esta- dos afetivos so sentidos ali onde se produzem, isto 6, num ponto determinado-de meu corpo. Considerem 0 sistema de imagens que se chama mundo material. Meu corpo é uma delas. Em torno dessa imagem dispoe-se a Tepresentacao, isto é, sua eventual influéncia sobre as ou- tras. Nela se produz.o afeto, ou seja, seu esforco atual so- bre si prdpria. Essencialmente, é essa a diferenca que cada um de nés estabelece naturalmente, espontaneamente, 86 (MEMORIA EVIDA entre uma imagem e uma sensag&o. Quando dizemos que a imagem existe fora de nés, queremos dizer que é exte- rior ao nosso corpo. Quando falamos da sensacio como sendo um estado interior, queremos dizer que surge no nosso corpo. E é por isso que afirmamos que a totalidade das imagens percebidas subsiste, mesmo que nosso corpo desapareca, a0 passo que nao podemos suprimir nosso corpo sem fazer desaparecer nossas sensagies. MM, 57-9. 41. Como a memdria se insere na percepetio De fato, nao ha percepgio que nao esteja impregna- da de lembrancas. Aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos misturamos milhares de detalhes de nos- sa experiéncia passada. Em geral, essas lembrancas deslo- cam nossas percepcdes reais, das quais no conservamos entao mais que algumas indicagées, simples “sinais” des- tinados a nos lembrar antigas imagens. E esse 0 prego da comodidade e da rapidez, da percepcao; mas é também daf que nascem as ilusdes de todo tipo. Nada impede substituir essa percepgio, toda penetrada de nosso pas- sado, pela percepeao que teria uma consciéncia adulta ¢ formada, mas encerrada no presente, e absorta, com excluséo de qualquer outro trabalho, na tarefa de se mol- dar ao objeto exterior. Dirdo que levantamos uma hip6- tese arbitraria e que essa percepgao ideal, obtida pela eli- minagdo dos acidentes individuais, jé nao corresponde & realidade? Mas esperamos mostrar precisamente que os acidentes individuais estéo enxertados nessa percepco impessoal, que essa percepeio est na propria base de nos- A MEMORIA OU 05 GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO a7 so conhecimento das coisas e que é por té-la ignorado, por néo ter distinguido entre o que a meméria acrescen- ta acla ou dela retira, que se fez. da percepeao inteira uma espécie de visio interior e subjetiva, que diferiria da lem- branga apenas por sua maior intensidade. Fortanto, esta seré nossa primeira hipétese. Mas ela acarreta natural- mente outra. Com efeito, por mais curta que se suponha ser uma percep¢do, ela sempre ocupa uma certa duracéo © exige, por conseguinte, um esforgo da meméria, que pro- longa uns nos outros uma pluralidade de momentos. Como tentaremos mostrar, mesmo a “subjetividade” das qualidades sensiveis consiste sobretudo numa espécie de contrago do real, operada por nossa meméria. Em suma, a meméria nessas duas formas, quando recobre com uma camada de lembrangas um fundo de percepgao imediata e também quando contrai uma multiplicidade de momen- tos, constitui a principal contribuigao da consciéncia dividual para a percepgao, 0 lado subjetivo de nosso co- nhecimento das coisas... MM, 30-1. 42, A percepgio tal como & penetradia de memsria Na realidade, no ha um ritmo tinico da duragio; po- dem-se imaginar muitos ritmos diferentes, que, mais lentos ou mais répidos, mediriam o grau de tenso cu de relaxa- mento das consciéncias e, assim, fixariam seus respectivos lugares na série dos seres. Essa representagio de duragdes com elasticidade desigual talvez seja penosa para nosso espitito, que contraiu o habito stil de substituir a duragio verdadeira, vivida pela consciéncia, por um tempo homo- 88 (MEMORIA EVIDA géneo ¢ independente; mas, em primeiro lugar, é fécil, como mostramos, desmascarar a ilusdo que toma tal re~ presentagio penosa e, em segundo, essa idéia conta, no fundo, com o consentimento tacito de nossa consciéncia. Nao nos acontece perceber em nés mesmos, durante 0 sono, duas pessoas contempordneas e distintas, uma das quais dorme alguns minutos ao passo que 0 sonho da outra ocupa dias e semanas? E a historia inteira no ca- beria num tempo muito curto para uma consciéncia mais tensa que a nossa, que assistiria ao desenvolvimento da humanidade contraindo-o, por assim dizer, em grandes fases de sua evolucao? Em suma, perceber consiste em condensar periodos enormes de uma existéncia infinita- mente diluida em alguns momentos mais diferenciados de uma vida mais intensa, e em resumir assim uma hist6- ria muito longa. Perceber significa imobilizar. Equivale a dizer que, no ato da percepcao, apreende- mos algo que vai além da prépria percep¢ao, sem que no entanto 0 universo material se diferencie ou se distinga essencialmente da representacéio que temos dele. Em cer- to sentido, minha percepcao me é efetivamente interior, j@ que contrai num momento tinico de minha duracéo o que, em si, se distribuiria por um ntimero incalculdvel de momentos. Contudo, se vocé suprimir minha consciéncia, © universo material subsistiré tal qual era: com a tessalva de que, como foi feita abstragio desse ritmo particular de duragéo que era a condigao de minha aco sobre as coi- Sas, essas coisas retornam a si mesmas para se escandir ‘em quantos momentos a ciéncia distinguir nelas,e as qua- lidades sensiveis, sem desaparecer, estendem-se e diluem- se numa duragao incomparavelmente mais dividida. A matéria resolve-se assim em inumeraveis abalos, todos ligados numa continuidade ininterrupta, todos solidarios ‘A MEMORIA OU OS GRAUIS COEXISTENTES DA DURACAO 89 entre sic que se espalham em todos os sentidos como es- tremecimentos. -Volte a ligar uns aos outros, em uma pa- lavra, os objetos descontinuios de sua experiéncia didtia; resolva em seguida a continuidade imével de suas quali- dades em abalos locais; ligue-se a esses movimentos des- vencilhando-se do espaco divisivel que os subtende para considerar apenas sua mobilidade, esse ato indiviso que a sua consciéncia apreende nos movimentos que vocé mesmo executa: vocé obteré da matéria uma visio talvez cansativa para a sua imaginacao, mas pura e livre do que as exigéncias da vida fazem vocé acrescentar a ela na per- cep¢ao exterior. — Restabelega agora minha consciéncia e, com ela as exigéncias da vida: a grandes intervalos e trans- pondo a cada vez enotmes periodos da hist6ria interior das coisas, vistas quase instanténeas serdo tomadas, vistas dessa vez pitorescas, cujas cores mais nitidas condensam uma infinidade de repetigoes e de mudangas elementa- res, E assim que as mil e uma posigdes sucessivas de um corredor se contraem numa tinica atitude simbélica, que nosso olho percebe, que a arte reproduz e que se torna, para todo o mundo, a imagem de um homem correndo. O olhar que lancamos & nossa volta, momento apés mo- mento, 86 apreende portanto 03 efeitos de uma multidao de repetigies e de evolucdes interiores, efeitos por isso mesmo descontinuos e cuja continuidade restabelecemos pelos movimentos relativos que atribuimos a “objetos” no espaco. A mudanga esta por toda parte, mas em profun- didade; nés a localizamos aqui e acolé, mas na superfi- cig; € constituiinos assim corpos ao mesmo tempo estaveis quanto a suas qualidades e méveis quanto a suas posi- ‘gGes, uma simples mudanga de lugar contraindo em si, a nossos olhos, a transformacao universal. MM., 232-4, 90 ‘MEMORIA E VIDA 43, A percepeio como grau extremo da meméria Mas como o passado, que, por hipétese, cessou de ser, poderia conservar-se por si mesmo? Nao ha ai uma verdadeira contradicao? — Respondemos que a questo consiste precisamente em saber se 0 passado deixou de existir ou se ele simplesmente deixou de ser titil. Vocé de- fine arbitrariamente o presente como 0 que existe, quando © presente é simplesmente 0 que se faz. Nada existe menos que 0 momento presente, se entender por isso esse limi- te indivisivel que separa 0 passado do porvir. Quando pensamos esse presente como devendo existr, ele ainda nao existe; e, quando o pensamos como existente, ele jé passou. Se, ao contrdrio, vocé considera o presente con- creto e realmente vivido pela consciéncia, pode-se dizer que esse presente consiste em grande parte no pasado imediato. Na fragdo de segundo que dura a mais curta percepgao possivel de luz, ocorreram trilhdes de vibra- (es, a primeira das quais estd separada da tiltima por um intervalo enormemente dividido. Sua percepgo, por mais instanténea que seja, consiste portanto numa incalculdvel quantidade de elementos rememorados e, na verdade, toda percepcao ja € meméria. Na prética, percebemos ape- nas 0 passado, sendo o presente puro o inapreensivel avan- 90 do passado roendo 0 porvir. Portanto, a consciéncia ilumina com seu brilho, a todo momento, essa parte imediata do passado que, debrucada sobre 0 porvir, trabalha para realiz-lo e agregé-lo a si Preocupada unicamente em determinar assim um porvir indeterminado, poderé espalhar um pouco de sua luz so- bre aqueles de nossos estados mais recuados no passado que poderiam se organizar de modo itil com nosso esta do presente, ot seja, com nosso passado imediato; 0 resto ‘A MEMORIA OU 05 GRAUS COEXISTENTES DA DURACAO 1 permanece obscuro. £ nessa parte iluminada de nossa historia que ficamos instalados, em virtude da lei funda- mental da vida que é uma lei de agao: dai a nossa dificul- dade de conceber lembrangas que se conservariam na sombra. Nossa aversao a admitir a sobrevivéncia integral do pasado decorre portanto da prépria orientagio de nos- sa vida psicol6gica, verdadeiro desenrolar de estados em que nos interessa olhar o que se desenrola e nao o que std totalmente desenrolado. Desse modo, depois de um longo desvio, voltamos 20 nosso ponto de partida. Ha, dizfamos, duas memérias profundamente distintas: uma, fixada no organismo, nao € outra coisa sendo 0 conjunto dos mecanismos inteli- gentemente montados que garantem uma réplica ade- quada as diversas interpelages possiveis. Ela faz com que nos adaptemos & situago presente e que as aces sofri- das por nés se prolonguem por si mesmas em reagées, ora realizadas, ora simplesmente nascentes, mas sempre mais ou menos apropriadas. Habito mais que meméria, ela atua em nossa experiéncia passada, mas no evoca stia imagem. A outra é a meméria verdadeira. Coextensiva a consciéncia, retém e alinha uns apés outros todos os nos- 808 estados a medida que se produzem, reservando para cada fato seu lugar e, por conseguinte, marcando-lhe sua data, movendo-se realmente no passado definitivo e nao, como a primeira, num presente que recomega incessan- temente. Porém, ao distinguir profundamente essas duas formas de meméria, nao haviamos mostrado o que as liga. Acima do corpo, com seus mecanismos que simbolizam © esforco acumulado das ages passadas, a meméria que imagina e que repete pairava, suspensa no vazio. No en- tanto, se nunca percebemos outra coisa sendo nosso pas- sado imediato, se nossa consciéncia do presente jé é me- 92, (MEMORIA EVIDA méria, os dois termos que tinhamos separado num pri- meiro momento irdo soldar-se intimamente. Considerado desse novo ponto de vista, com efeito, nosso corpo nao é outra coisa sendo a parte invariavelmente renascente de ossa representagio, a parte sempre presente, ou melhor, aquela que a todo momento acaba de passar. Imagem ele mesmo, esse corpo nao pode armazenar as imagens uma vez que faz parte das imagens; e é por isso que é quimé- Tico o intuito de querer localizar as percepgoes passadas, ‘ou mesmo presentes, no eérebro: elas nao esto nele; é ele que esta nelas. Mas essa imagem t&o particular, que persiste no meio das outras e que chamo meu corpo, constitui a cada instante, como diziamos, um corte trans- versal do universal devir. E portanto o lugar de passagem dos movimentos recebidos e enviados, o trago-de-uniao entre as coisas que agem sobre mim e as coisas sobre as quais ajo, a sede, numa palavra, dos fenémenos sens6 rio-motores... --Ameméria do corpo, constituida pelo conjunto dos sistemas sens6rio-motores que o habito orgenizou, é por- tanto uma meméria quase instanténea para a qual a ver- dadeira meméria do passado serve de base. Como elas. nao constituem duas coisas separadas, como a primeira 6, diziamos, apenas a ponta mével inserida pela segun- da no plano movente da experiéncia, é natural que essas duas fungSes se apdiem mutuamente. Por um lado, com efeito, a meméria do passado apresenta para os mecanis- mos sens6rio-motores todas as lembrangas capazes de guid-los em sua tarefa e de dirigir a reagéo motora no sentido sugerido pelas lig6es da experiencia: nisso con- sistem precisamente as associagdes por contigitidade ¢ por similitude. Mas, por outro lado, os aparelhos sens6- tio-motores fornecem as lembrangas impotentes, ou seja, ‘A MEMORIA OU OS GRAUS COENISTENTES DA DURAGAO. 93 inconscientes, o meio de ganhar um corpo, de se materia- lizar, de se tornarem presentes, em suma. Para que uma Jembranca reaparega na consciéncia é efetivamente pre- ciso que ela desca das alturas da meméria pura até o Ponto preciso em que se realiza a ago. Em outras pala- vras, do presente que parte o apelo a que a lembranca responde e é dos elementos sensério-motores da agéo presente que a lembranga empresta o calor que dé vida. MM,, 166-70. IIL AVIDA OU A DIFERENCIAGAO DA DURAGAO a) O movimento da vida 44, 0 ela vital Movimento da duragio que se diferencia O movimento evolutivo seria coisa simples, determi- narjamos rapidamente sua diregio se a vida descrevesse ‘uma trajet6ria tiniea, comparavel & de uma bala macica lan- gada por um canhao. Mas lidamos aqui com um obus que imediatamente explodin em fragmentos, os quais, sendo eles mesmos uma espécie de obus, explodiram por sua vez em fragmentos destinados a explodir também e assim por diante, durante muitissimo tempo. Percebemos somente 0 gue esta mais perto de nés, os movimentos dispersos dos fragmentos pulverizados. £ partindo deles que devemos rc montas, gradualmente, até o movimento original. Quando o obus explode, sua fragmentacao particular cexplica-se ao mesmo tempo pela forga explosiva da pélvo- ra que ele contém e pela resisténcia que o metal Ihe opée. ‘O mesmo se aplica 8 fragmentaco da vida em individuos 96 MEMORIA EVIDA e espécies. Esta, cremos, prende-se a duas séries de cau- sas: a resisténcia que a vida sofre por parte da matéria bruta e a forca explosiva — devida a um equilibrio instavel de tendéncias — que a vida traz em si. A resisténcia da matéria bruta é 0 obstéculo que foi preciso contornar primeiro. A vida parece té-lo consegui- do & forga de humildade, fazendo-se muito pequena e muito insinuante, tergiversando com as forcas fisicas e quimicas, consentindo até em percorrer com elas parte do caminho, como a agulha da via férrea quando adota por alguns instantes a direcdo do trilho de que quer se soltar. Dos fendmenos observados nas formas mais elementares da vida nao se sabe dizer se sao ainda fisicos e quimicos 0u se jé so vitais. Foi preciso que a vida entrasse assim nos habitos da matéria bruta para arrastar pouco a pouco para uma outra via essa matéria magnetizada. As formas animadas que apareceram primeiro foram portanto de uma extrema simplicidade. Eram sem diivida pequenas massas de protoplasma quase indiferenciado, comparé- veis, por fora, as amebas que observamos hoje, mas acres~ cidas do fantéstico impeto interior que iria guind4-las até as formas superiores da vida. Que em virtude desse impeto os primeiros organismos tenham procurado cres- cer o maximo possivel é algo que nos parece provével: ‘mas a matéria organizada tem um limite de expansio que é rapidamente atingido. Prefere duplicar-se a crescer alén de um certo ponto. Foram decerto precisos séculos de es- forgo e prodigios de sutileza para que a vida contornasse esse novo obstéculo. Conseguiu que um niimero crescen- te de elementos, prontos para se duplicar, permanecessem unidos. Pela divisao do trabalho, estabeleceu entre eles um vinculo indissohivel. O organismo complexo e quase descontinuo funciona tal como o faria uma massa viva continua que tivesse simplesmente crescido. AVIDA OU A DIFERENCIACAO DA DURAGAO 7 Mas as verdadeiras e profundas causas de divisio eram aquelas que a vida trazia em si. Pois a vida é tendén- cia e a esséncia de uma tendéncia é desenvolver-se em forma de feixe, criando, pelo simples fato de seu cresci- mento, diregdes divergentes entre as quais seu ela iré di- vidir-se. 0 que observamos em nés mesmos na evolu¢ao dessa tendéncia especial que chamamos nosso cardter. Cada um de nés, ao passar uma vista d’olhos retrospecti- ‘va por sua histéria, constataré que sua personalidade de crianga, embora indivisivel, reunia nela pessoas diversas que podiam permanecer fundidas entre si porque esta- vam em estado nascente: essa indecisdo cheia de pro- messas € inclusive um dos maiores encantos da infancia ‘Mas as personalidades que se interpenetram tornam-se incompativeis ao crescer e, como cada um de nés vive uma vida 6, é forgoso fazer uma escolha. Na verdade, escolhe- mos sem cessar ¢ também sem cessar abandonamos mui- tas coisas. A estrada que percortemos no tempo esta jun- cada dos restos de tudo o que comecamos a ser, de tudo ‘© que poderiamos ter nos tornado. Mas a natureza, que dispOe de um néimero incalculdvel de vidas, nao esta ads- trita a semelhantes sacrificios. Conserva as diversas ten- déncias que bifurcaram ao crescer. Cria, com elas, séries divergentes de espécies que evoluirdo separadamente. EC, 99-101. 45, Exemplo: a planta e 0 animal Agora, que a célula animal e a célula vegetal derivam de um tronco comum, que os primeiros organismos vivos tenham oscilado entre a forma vegetal e a forma animal, participando de ambas ao mesmo tempo, nao é algo que 98 MEMORIA EVIDA nos parega duvidoso. Acabamos, com efeito, de ver que as tendéncias caracteristicas da evolucéo dos dois reinos, embora divergentes, coexistem ainda hoje, tanto na plan- tacomo no animal. E sé a proporcao que difere, Em geral, uma das duas tendéncias encobre ou esmaga a outra, mas, em circunstancias excepcionais, esta ultima se liber~ ta e recupera o espaco perdido. A mobilidade ¢ a cons- ciéncia da célula vegetal ndo estao tao adormecidas a ponto de nao poderem despertar quando as circunstén- Gias permitem ou exigem. E, por outro lado, a evolucao do reino animal foi incessantemente retardada, detida ou re- trogradada pela tendéncia a vida vegetativa que conser- vou. Por mais plena, por mais transbordante que possa, com efeito, parecer a atividade de uma espécie animal, © torpor e a inconsciéncia espreitam-na. $6 mantém seu papel mediante um esforco, ao prego de uma fadiga. Ao Jongo da estrada pela qual o animal evoluiu, desfaleci- mentos sem conta se produziram, decaimentos vincula- dos em sua maiotia a hébitos parasitarios; so todos en- carrilhamentos na via da vida vegetativa, Portanto, tudo nos leva a supor que o vegetal e 0 animal descendem de um ancestral comum que reunia, em estado nascente, a5 tendéncias de ambos. Mas as duas tendéncias que se implicavam recipro- camente sob essa forma rudimentar dissociaram-se a0 crescer. Dai provém o mundo das plantas com sua fixidez e sua insensibilidade, daf provém os animais com sua mo- bilidade e sua consciéncia, Alids, para explicar esse des- dobramento, nao é preciso fazer intervir uma forga mis- teriosa, Basta notar que o ser vivo vai naturalmente para © que lhe é mais cémodo e que vegetais e animais opta- ram, cada um por seu lado, por dois tipos diferentes de comodidade na maneira de obter o carbono e 0 azoto de AVIDA OU A DIFERENCIAGAO DA DURACAO 9 que necessitavam. Os primeiros tiram, continua e maqui- nalmente, esses elementos de um meio que os fornece sem cessar. Os segundos, mediante uma acao descon- tinua, concentrada em alguns instantes, consciente, vio buscar esses corpos em organismos que jé os fixaram, Sao duas maneiras diferentes de entender o trabalho ou, se preferirem, a preguica. Por isso, parece-nos duvidoso que se venha algum dia a descobrir na planta elementos netvosos, por mais rudimentares que se os suponha. O que nela corresponde a vontade diretriz do animal é, cre- mos, a diredo em que inflete a energia da radiagao solar quando dela se serve para romper as ligagdes do carbono com 0 oxigénio no acido carbénico. O que nela corres- ponde a sensibilidade do animal é a impressionabilidade toda especial de sua clorofila & luz. Ora, como um sistema nervoso é, antes de mais nada, um mecanismo que ser- ve de intermedidrio entre sensag6es e voligies, 0 verda- deiro “sistema nervoso” da planta nos parece ser o me- canismo, ou melhor, o quimismo sui generis que serve de intermediario entre a impressionabilidade de sua cloro- fila a luz € a produggo do amido. O que significa que a planta nao deve ter elementos nervosos e que o mesmo eld que levou o animal a se dar nervos e centros nercosos deve ter desembocado, na planta, na funcio clorofilica, EC, 113-5, 46, Exemplo: a inteligéncia e 0 instinto Se a forga imanente a vida fosse uma forga ilimitada, talvez tivesse desenvolvido indefinidamente nos mesmos organismos o instinto e a inteligéncia. Mas tudo parece 100 MEMORIA. EVIDA indicar que essa forca é finita e que se esgota muito ré- pido ao se manifestar. E-Ihe dificil ir longe em varias di- regSes ao mesmo tempo. Ela tem de escolher. E pode es- colher entre duas maneiras de agit sobre a matéria bru- ta. Pode fornecer essa ago imediatamente criando para si um instrumento organizado com o qual trabalhard; ou en- Go mediatamente, num organismo que, em vez. de possuir naturalmente o instrumento necessério, o fabricara ele mesmo moldando a matéria inorgénica. Daf a inteligén- cia eo instinto, que divergem cada vez mais ao se desen- volverem, mas que jamais se separam totalmente um do outro. De um lado, com efeito, o mais perfeito instinto do inseto vem acompanhado de alguns lampejos de in- teligéncia, quando mais nao seja na escolha do lugar, do momento e dos materiais da construgao: quando, extraor- dinariamente, abelhas nidificam ao ar livre, elas inventam dispositivos novos e verdadeiramente inteligentes para se adaptar a essas novas condigdes. Mas, por outro lado, a inteligéncia precisa ainda mais do instinto do que o ins- tinto da inteligéncia, pois moldar a matéria bruta jé pres- supée no animal um grau superior de organizacZo, ao qual 86 se péde elevar pelas asas do instinto. Por isso, enquan- toa natureza evoluiu francamente em direcao ao instinto nos artrépodes, em quase todos os vertebrados assistimos antes & procura do que ao pleno desenvolvimento da in- teligéncia. Continua sendo o instinto que forma o subs trato de sua atividade psiquica, mas a inteligéncia esta 1é e aspira a suplanté-lo. Ela nao chega a inventar instru- mentos: ao menos tenta, executando o maximo de varia: Bes possiveis sobre o instinto, do qual gostaria de presci dir. Sé se apossa totalmente de si no homem, e esse triun- fo se afirma pela propria insuficiéncia dos meios naturais de que o homem dispée para se defender contra seus ini- AVIDA OU A DIFERENCIACAO Da DURAGAO 101 migos, contra o frio e contra a fome. Essa insuficiéncia, quando lhe procuramos decifrar o sentido, adquire o va~ lor de um documento pré-histérico: & a dispensa defini- tiva que o instinto recebe por parte da inteligéncia. Nao € menos verdade que a natureza deve ter hesitado en- tre dois modos de atividade psiquica, um assegurado do ‘sucesso imediato, mas limitado em seus efeitos, o outro, aleatorio, mas cujas conquistas, se alcancasse a indepen- déncia, poderiam se estender indefinidamente. lids, tam- bém aqui o maior sucesso foi obtido do lado onde estava © maior risco. Instinto e inteligéncia representam portanto duas solugées divergentes, igualmente elegantes, para um ti co e mesmo problema. EC, 142-4, 47. Diferenciagio ¢ compensacto: a religitio Imaginemos entZo uma humanidade primitiva e so- ciedades rudimentares. Para garantir a esses agrupamen- tos a coesio desejada, a natureza disporia de um meio bem simples: 56 tetia de dotar o homem de instintos apr priados. Foi o que fez. com a colméia e 0 formigueizo, aids, com pleno sucesso: neles, os individuos vivem exclusiva- mente para a comunidade. E foi um trabalho facil, pois 56 teve de seguir seu método habitual: o instinto é, de fato, coextensivo a vida, e 0 instinto social, tal camo a encon- tramos no inseto, é apenas o espirito de subordinagdo e de coordenagao que anima as células, tecidos e érgaos dos corpos vivos. Mas é para o desabrochar da inteligéncia e nao mais para o desenvolvimento do instinto que tende 0 impulso vital na série dos vertebrados. Quando 0 termo 102 MEMORIA EVIDA do movimento é atingido no homem, o instinto nao é su- primido, mas eclipsado; resta dele apenas um vago lam- pejo em torno do nticleo, totalmente iluminado, ou antes, luminoso, que é a inteligéncia. Doravante, a reflexéo per- mitiré ao individuo inventar, & sociedade progredir. Mas, para que a sociedade progrida, ainda é preciso que sub- sista. Invengao significa iniciativa, e um apelo a iniciati- va individual j4 ameaca por em risco a disciplina social. Quanto mais se o individuo desviar sua reflexo do obje- tivo para o qual ela é feita, ou seja, da tarefa a cumprir, a aperfeigoar, a renovar, e dirigi-la para si mesmo, para o incémodo que a vida social Ihe impée, para o sactificio que faz & comunidade? Entregue ao instinto, como a formi- ga ou a abelha, teria ficado voltado para o fim exterior a atingir; teria trabalhado para a espécie, automaticamente, sonambulicamente. Dotado de inteligéncia, desperto para a reflexao, ird se voltar para si mesmo e sé pensaré em vi- ver agradavelmente. Um raciocinio bem formulado certa- mente Ihe demonstraria que é de seu interesse promover a felicidade alheia; mas séo precisos séculos de cultura para produzir um utilitarista como Stuart Mill, e Stuart Mill ndo convenceu todos os fil6sofos e menos ainda os homens comuns. A verdade é que a inteligéncia aconse- Thar primeiro 0 egoismo. £ para esse lado que o ser inte- ligente se precipitaré se nada o detiver. Mas a natureza esté vigilante, Faz pouco, diante da barreira aberta, surgi- ra um guardiao, proibindo a entrada e empurrando o con- traventor. Aqui, sera um deus protetor da cidade que de- fenderé, ameacaré, reprimird. A inteligéncia, com efeito, regula-se por percepgdes presentes ou por esses resfduos de percepcdes mais ou menos recheados de imagens que chamamos lembrangas. Como o instinto nao existe mais, a ndo ser em estado de vestigio ou de virtualidade, como AVIDA OILA DIFERENCIAGAO DA DURAGAO 103 nao é forte o suficiente para provocar atos ou impedi-los, deverd suscitar uma percepcdo iluséria ou pelo menos uma contrafagao de lembran¢a bastante precisa, bastante impressionante para que a inteligéncia se determine por ela. Considerada desse primeiro ponto de vista, a religiao € portanto uma reagio defensioa da naturean contra o poder dis- solvente da inteligéncia, MR, 125-7, 48, Diferenciacio e teoria da evolugiio Ao submeter assim as diversas formas atuais do evo- lucionismo a um teste comum, ao mostrar que todas elas vém se chocar contra uma mesma e intransponivel difi- culdade', néo tinhamos de modo algum a intengo de re- jeité-las em bloco. Cada uma delas, 20 contrario, apoiada num niimero considerdvel de fatos, deve ser verdadeira & sua maneira. Cada uma delas deve corresponder a um certo ponto de vista sobre o processo de evolugao. Alids, talvez seja preciso que uma teoria se atenha exclusiva- mente a um ponto de vista particular para que perma- nega cientifica, isto é, para que dé uma direcdo pre sa is pesquisas minuciosas. Mas a realidade, da qual cada uma dessas teorias adota uma visio parcial, deve exce- der a todas. E essa realidade é 0 objeto proprio da filo- sofia, que nao esté adstiita a precisdo da ciéncia, jé que nao visa nenhuma aplicacdo. indiquemos, puis, em pou- cas palavras, o que, a nosso ver, cada uma das trés gran- 1. "O teste” consiste no seguinte: dar conta da existéncia de apa: relhos idéntices (0 olho, por exemplo), obtides mediante meios desse- rmethantes, por linhas de evolucio divergentes. CE. texto 49. 104 MEMORIA E VIDA des formas atuais do evohucionismo traz de positivo para a solugo do problema, o que cada uma delas deixa de lado e para que ponto, no nosso entender, seria pret fazer convergir esse triplo esforgo pata obter uma idé mais abrangente, embora por isso mesmo mais vaga, do proceso evolutivo. ‘Acreditamos que os neodarwinistas provavelmente tém razdo quando ensinam que as causas essenciais de variagao s80 as diferencas inerentes ao germe de que 0 individuo é portador e no as atitudes desse individuo ao Tongo de sua carreira. O ponto onde nos custa acompa- nhar esses bidlogos 6 quando tomam as diferengas ine- rentes ao germe por puramente acidentais e individuais. Nao podemos nos impedir de pensar que elas sa0 0 de- senvolvimento de uma impulsao que passa de germe para germe por meio dos individuos, que, por conseguinte, no so puros acidentes e que poderiam muito bem apare- cer a0 mesmo tempo, sob a mesma forma, em todos os representantes cle uma mesma espécie ou, pelo menos, num certo néimero deles. Aliés, a teoria das mutagdes j4 modifica profundamente o darwinismo no que a isso se refere. Ela diz que num determinado momento, transcor- rido um longo periodo, a espécie inteira é tomada de uma tendéncia a modificar-se. Isso significa, portanto, que a tendéncia a modificar-se nao é acidental. Acidental, é verda- de, seria a mudanga em si, se a mutaco operasse, como quer De Vries’, em direcdes diferentes nos diferentes re- presentantes da espécie. Primeiro, contudo, seré preciso ver se a teoria se confirma em varias outras espécies vege- tais (DeVries s6 a verificou na Oenothera Lamarckiana) e, 2. Botanico holand@s que, por volta de 1900, introduziu em biolo- gia a idéia de variagdes bruscas ou “mutacic”. AVIDA OU A DIFERENCIACAO Da DURAGAO 105 depois, nao é impossivel, como explicaremos mais adian- te, que a parte que cabe ao acaso seja bem maior na varié ‘Go das plantas do que na dos animais, porque, no mun- do vegetal, a fungao nao depende to estreitamente da forma. Como quer que seja, os neodarwinistas estao em via de admitir que os periodos de mutacdo so determi- nados. Portanto, a direg4o da mutagao também poderia s@-lo, a0 menos nos animais e ao menos em certa medi- da, que ainda teremos de indicar. Desembocarfamos assim numa hipétese como a de Eimer, segundo a qual as variacdes das diferentes carac- teristicas prosseguiriam, de geragdo em geracio, em dire- ‘Ses definidas. Essa hipétese nos parece plausivel, den- tro dos limites em que o proprio Eimer a encerra. E. certo que a evolugéo do mundo organico nao deve ser prede- terminada em set conjunto. Afirmamos, ao contrério, que aespontaneidade da vida nela se manifesta por uma con- tinua criagdo de formas que se sucedem urnas is outras. Mas essa indeterminagao nao pode ser completa: deve deixar uma certa parte para a determinago. Um 6rgio como o olho, por exemplo, ter-se-ia constituido precisa- ‘mente por uma variagao continua numa direcdo definida. ‘Nao vemos como se explicaria de outro modo a similitude de estrutura do olho em espécies que nao tém de modo algum a mesma histéria. O ponto em que nos separamos de Eimer é quando ele afirma que combinagées de causas fisicas e quimicas bastam para garantir o resultado, Nos, pelo contrério, tentamos estabelecer acima, com relacio a0 exemplo preciso do olho, que, se hé aqui “ortogénese”, € porque uma causa psicolégica intervém’. 3. Fimer propusera a palavra “ortogtnose” para designar a eveli- ‘edo que se realiza misma determinada direglo (1888). 106 (MEMORIA E VIDA & precisamente a uma causa de ordem psicolégica que alguns neolamarckianos recorrem. Af reside, a nos- 50 ver, um dos pontos mais sélidos do neolamarckismo, Contudo, se essa causa ndo for mais que o esforgo cons- ciente do individuo, poderd operar somente num niimero bastante restrito de casos; interviré no méximo no animal endo no mundo vegetal. No prdprio animal, agird apenas nos pontos direta ou indiretamente submetidos a influén- cia da vontade. E mesmo onde age no se vé como obte- ria uma mudanga to profunda como é um aumento de ‘complexidade: no maximo, isso seria concebivel se as carac- tevisticas adquiridas se transmitissem regularmente, de mo- do que se somassem umas 4s outras; mas essa transmissio parece ser antes a excegdo que a regra. Uma mudanga hereditéria e de diregao definida, que vai se acumulando e se compondo consigo mesma de modo que construa uma méquina cada vez mais complicada, deve certamente es- tar relacionada com algum tipo de esforgo, mas com um esforco muito mais profundo do que o esforgo individual, muito mais independente das circunstancias, comum a maioria dos representantes de uma mesma espécie, ine- rente antes aos germes que estes carregam que a sua subs- tancia apenas, garantindo-se assim que seja transmitido a seus descendentes. ‘Voltamos assim, depois de um longo desvio, & idéia de onde partimos, a de um elf original da vida, pasando de uma geracio de germes & geracdo seguinte de germes por intermédio dos organismos desenvolvidos que fun- cionam como traco-de-unido entre os germes. Esse ela, conservando-se nas linhas de evalugao entre as quais se divide, é a causa profunda das variagdes, pelo menos da- quelas que se transmitem regularmente, que se somam, que criam espécies novas. Em geral, quando as espéci AVIDA OLA DIFERENCIAGAO DA DURAGAO 107 comegam a divergir a partir de um tronco comum, clas acentuam sua divergéncia 3 medida que avangam em sua evolucdo. No entanto, em determinados pontos, poderao e até deverao evoluir de modo idéntico se aceitarmos a hipétese de um eld comum. £ 0 que nos resta mostrar de uma maneira mais precisa no proprio exemplo que esco- Themos, a formagio do olho nos moluscos e nos vertebra- dost. Ademais, desse modo a idéia de um “ela original” poderé tomar-se mais clara. E.C,, 85-8. 49, Diferenciagio e resultados similares Dizfamos que a vida, desde suas origens, é a conti- rnuago de um tinico e mesmo el que se dividiu entre li- nhas de evolucao divergentes. Algo cresceu, algo se de- senvolveu por uma série de adigbes que foram, todas elas, criagdes. Foi esse préprio desenvolvimento que levou a se dissociarem tendéncias que nao podiam crescer além de um certo ponto sem se tornarem incompativeis entre si. A rigor, nada impediria imaginar um individuo tinico no qual, em decorréncia de transformagSes espalhadas por milhares de séculos, se houvesse efetuado a evolucéo da vida. Ou ainda, na falta de um individuo tinico, po- der-se-ia supor uma pluralidade de individuos suceden- do-se numa série unilinear. Em ambos os casos, a evolu- co teria tido, se assim nos podemos exprimir, apenas uma dimensao. Mas a evolugao na realidade se fez por intermédio de milhdes de individuos por linhas divergen- 4. Ch textos 50. 52. 108 (MEMORIA EVIDA tes, cada uma das quais desembocava, por sua vez, numa encruzilhada de onde irradiavam novas vias, e assim por diante, indefinidamente. Se nossa hipstese é bem funda da, se as causas essenciais que trabalham ao longo desses diversos caminhos so de natureza psicol6gica, devern conservar algo de comum a despeito da divergéncia de seus efeitos, tal como amigos separados ha muito tempo guardam as mesmas lembrangas de infancia. Por mais que se tenham produzido bifurcagGes, que se tenham aberto vias laterais onde os elementos dissociados se desenro- lavam de modo independente, nem por isso deixa de ser pelo eld primitivo do todo que o movimento das partes se prolonga. Portanto, algo do todo deve subsistir nas suas partes. E esse elemento comum poderd tomar-se visivel de certa maneira, talvez pela presenca de érgios idénticos em organismos muito diferentes. Suponhamos, por um instante, que 0 mecanicismo seja a verdade: a evohuc3o tera se dado por uma série de acidentes que foram se actescentando uns aos outros, sendo que cada acidente novo se conserva por selegdo se for vantajoso para essa soma de acidentes vantajosos anteriores representada pela forma atual do ser vivo. Qual a chance de duas evo- lugGes completamente diferentes desembocarem, atra- vvés de duas séries completamente diferentes de acidentes que se adicionam, em resultados similares? Quanto mais duas linhas de evolugio divergirem, menos probabilida- des haveré de que influéncias acidentais exteriores ou va- riag6es acidentais internas tenham determinado nelas a construcao de aparelhos idénticos, sobretudo se no ha- via qualquer vestigio desses aparelhos no momento em que a bifurcagao ocorreu. Essa similitude seria natural, a0 contrério, numa hipétese como a nossa: deveriamos reen- contrar, até nos tiltimos riachinhos, algo da impulséo re- AVIDA OU A DIFERENCIACAO DA DURAGAO 109 cebida na fonte. O puro mecanicismo seria portanto refutd- vel, ea finalidade, no sentido especial em que a entendemos, seria demonstrével por um certo lado, caso pudéssemos esta~ belecer que a vida fabrica certos aparelhos idénticos, por meios dessemethantes, em linhas de evolugtio dtvergentes. A forca da prova seria, alids, proporcional ao grau de afastamento das li- tmhas de evoluglo escothidas e ao grau de complexidade das es- ‘ruturas similares que nelas encontrissemos. E.C,,53-5. 50. Exemplo: a visio ‘Quanto mais considerével for 0 esforgo da mao, mais Jonge ira para dentro da limalha. Mas, seja qual for o pon- to em que se detenha, instantnea e automaticamente 08 gros se equilibram, coordenam-se entre si, O mesmo acontece com a visio e com seu 6rgio, Conforme o ato indiviso que constitui a visao vai mais ou menos longe, a materialidade do érgio ¢ feita de um niimero mais ou menos considerdvel de elementos coordenados entre si, mas a ordem é necessariamente completa e perfeita. Nao poderia ser parcial porque, mais uma vez, o processo real que the da origem nao tem partes. E isso que nem o me- canicismo nem o finalismo levam em conta e também é nisso que nao prestamos'atengdo quando nos espanta- mos com a maravilhosa estrutura de um instrumento come o olho. No fundo de nosso espanto ha sempre a idéia de que apenas uma parte dessa ordem poderia tet sido realizada, de que sua realizagao completa é uma espécie de graca. Para os finalistas, essa graca é dada de uma s6 vez. pela causa final; os mecanicistas pretendem obté-la pou- 110 MEMORIA E VIDA ‘c0a pouco pelo efeito da selegdo natural; mas ambos véem nessa ordem algo positivo e na sua causa, conseqiien- temente, algo fraciondvel, algo que comporta todos 0s graus possiveis de acabamento. Na realidade, a causa é mais ou menos intensa, mas s6 pode produzir seu efeito em bloco e de maneira acabada. Conforme for mais ou menos longe no sentido da visdo, resultaré nos amon- toados pigmentétios de um organismo inferior, ou no olho rudimentar de uma Serpula, ou no olho jé diferen- ciado do Aleiope, ou no olho maravilhosamente aperfeigoa- do de um péssaro, mas todos esses rgaos, de complica- Go muito desigual, apresentarao necessariamente uma coordenacdo igual. E por isso que, por mais que duas es- pécies animais estejam afastadas uma da outra, se emam- bas, a marcha para a visio tiver ido igualmente longe, ha- verd de ambos os lados o mesmo érgao visual, pois a for- ma do érgio apenas exprime em que medida se obteve © exercicio da funcao. Contudo, ao falar de uma marcha para a visio, néo voltamos & antiga concepeao da finalidade? Seria assim, sem diivida nenhuma, se essa marcha exigisse a represen- tagao, consciente ou inconsciente, de um objetivo a atin- git. Mas a verdade é que ela se efetua em virtude do el original da vida, que ela esta implicada nesse proprio mo- vimento e que é precisamente por isso que a reencontra- mos em linhas de evolugéo independentes. Mas, agora, se nos perguntassem por que e como essa marcha esta implicada nele, responderiamos que a vida 6, antes de mais nada, uma tendéncia a agir sobre a matéria bruta. A diregao dessa acdo certamente nao é predeterminada: daf a imprevisivel variedade das formas que a vida, a0 evoluir, semeia em seu caminho. Mas essa ago sempre apresenta, num grau mais ou menos elevado,o cardter de AVIDA OLA DIFERENCIAGAO DA DURACAO a contingéncia; implica ao menos um rudimento de esco- tha. Ora, uma escolha supe a representacdo antecipada de varias ages possfveis. Portanto, possibilidades de agao tem de se desenhar para o ser vivo antes da prdpria acio. ‘A percepgio visual nao é outra coisa: os contomos visiveis dos corpos so o desenho de nossa eventual agao sobre eles. A visio serd encontrada, entdo, em diferentes graus, nos mais diversos animais, e se manifestard pela mesma complexidade de estrutura em toda parte onde tiver atin- gido o mesmo grau de intensidade. EC, 96-8. 51. A diferenciagio em historia Nao cremos na fatalidade em histéria. Nao existe obs~ tdculo que vontades suficientemente tenazes nao possam vencer, se nisso se empenharem a tempo. Nao hé, por- tanto, lei hist6rica inelutdvel. Mas existem leis biol6gicas; eas sociedades humanas, na medida em que a natureza as quer de certo ponto de vista, dependem da biologia nesse aspecto particular. Se a evolugéo do mundo orga- nizado se dé segundo certas leis, ou seja, em virtude de cettas forcas, é impossivel que a evolugao psicolégica do homem individual e social renuncie totalmente a esses hébitos da vida. No entanto, mostramos faz muito tempo que a esséncia de uma tendéncia vital é a de se desenvol- ver em forma de feixe, criando, pelo simples fato de seu crescimento, diregdes divergentes entre as quais seu eld ird dividir-se... No entanto, na evolugdo geral da vida, as tendéncias assim criadas por via de dicotomia desenvolvem-se usual- n2 (MEMORIA EVIDA mente em espécies distintas; cada uma por seu lado, saem em busca de fortuna no mundo; a materialidade que ad- quiriram as impede de voltar a se fundir para restaurar de maneira mais forte, mais complexa, mais evoluida, a ten- déncia original. O mesmo no acontece na evolucao da vida psicolégica e social. E no mesmo individuo, ou na mesma sociedade, que, nesse caso, evoluem as tendéncias que se constitufram por dissociacao. E, em geral, elas 36 podem se desenvolver sucessivamente. Se forem duas, como costuma ocorrer com mais freqiiéncia, é sobretudo a.uma delas que nos ligaremos primeiro; com ela iremos mais ou menos longe, geralmente © mais longe possivel; depois, com o que tivermos ganhado durante essa evolu- $0, voltaremos para buscar aquela que deixamos para trds. Iremos desenvolvé-la, por sua vez, negligenciando agora a primeira, e esse novo esforgo se prolongara até que, reforgados por novas aquisig6es, possamos retomar aquela ¢ leva-la ainda mais longe. Como durante a ope- ago estamos inteiros em uma das duas tendéncias, como € 86 ela que conta, dirfamos de bom grado que sé ela 6 positiva e que a outra nao é mais que a sua negago: caso se queira por as coisas nesses termos, a outra € efetiva- mente 0 contri. Constatar-se-4 — 0 que seré mais ou ‘menos verdade conforme os casos — que 0 progresso ocor- reu por uma oscilagao entre os dois contrérios e que, als, a situagao nao é a mesma e houve um ganho quando 0 balancim retornou a seu ponto de partida. Contudo, as veres é exatamente isso que acontece e foi efetivamen- te entre contrarios que houve oscilagfo. E quando uma tendéncia, vantajosa em si mesma, é incapaz de ser mo- derada exceto pela ago de uma tendéncia antagonista, que desse modo revela-se igualmente vantajosa. A sensa- tez pareceria aconselhar, eno, uma cooperagao das duas AVIDA OU A DIFERENCIACAO DA DURAGAO 113 tendéncias, a primeira intervindo quando as circunstan- cias o exigirem e a outra contendo-a no momento em que vai passar da medida. Infelizmente, é dificil dizer onde co- mega 0 exagero e o perigo. As vezes, o simples fato de le- var mais longe do que parecia razodvel conduz a um novo meio, cria uma situagao nova, que suprime o perigo ao mesmo tempo que acentua a vantagem. Isso ocorre $0- bretudo com as tendéncias muito gerais que determinam a orientagéo de uma sociedade e cujo desenvolvimento se distribui necessariamente por um mimero mais ou menos considerdvel de geragées. Uma inteligéncia, mesmo so- bre-humana, ndo saberia dizer para onde seremos condu- zidos, uma vez que a ago em andamento cria sua pré- pria estrada, cria em grande parte as condigdes em que se realizard, e desafia assim 0 célculo. Portanto, iremos cada vez mais longe; muito freqiientemente, s6 nos deteremos diante da iminéncia de uma catéstrofe. A tendéncia anta- gonista ocupa entdo o lugar que ficou vazio; sozinha, por sua vez, ird tao longe quanto lhe for possivel ir. Sera rea Sfio, se a outra foi chamada agdo. Como as duas tendén- cias ter-se-iam moderado mutuamente se tivessem camni- nhado juntas, como sua interpenetragdo numa tendéncia primitiva indivisa é precisamente o que define a modera- do, 0 meto fato de ocupar todo 0 espaco comunica a cada uma delas um ela que pode chegar ao atrebatamento & medida que vao caindo os obstéculos; essa tendéncia tem algo de frenético. Nao abusemos da palavra “lei” num terreno que 6 0 da liberdade, mas usemos esse termo c6- modo quando estamos diante de grandes fatos que apre- sentam uma regularidade suficiente: chamaremos lei da dicotomia aquela que patece provocar a realiza¢ao, por sua simples dissociagao, de tendéncias que inicialmente eram apenas visdes diferentes de uma tendéncia simples. E pro- 14 (MEMORIA EVIDA poremos entéo chamar lei do duplo frenesi a exigencia, imanente a cada uma das duas tendéncias depois de rea- lizada por sua separasao, de ser seguida até o fim — como se houvesse um fim! Uma vez mais: € dificil ndo se per- guntar se a tendéncia simples nao teria feito melhor em crescer sem se duplicar, mantendo-se na justa medida pela prépria coincidéncia da forca de impulsao com uma capacidade de frear, que entdo seria apenas virtualmen- te uma forca de impulsdo diferente. Nao se teria cortido 0 tisco de cair no absurdo e se estaria garantido contra a catastrofe. De fato, mas nao se teria obtido 0 maximo de criagao em quantidade e em qualidade. E preciso embre- nhar-se a fundo numa das diregdes para saber no que ela vai dar: quando nao se puder mais avancar, voltar-se-4, com todo o conhecimento adquirido, para se lancar na di- tego negligenciada ou abandonada. Olhando de fora es- sas idas e vindas, é certo que s6 se vé o antagonismo das duas tendéncias, as tentativas vas de uma para contrariar © progresso da outa, o fracasso final desta e a revanche da primeira: a humanidade gosta de drama; colhe de bom grado no conjunto de uma histéria mais ou menos lon- a 0s aspectos que lhe imprimem a forma de uma hita en- tre dois partidos, ou duas sociedades, ou dois principios; cada um deles, alternadamente, teria safdo vitorioso. Mas, aqui, a luta é apenas o aspecto superficial de um progres- so. A verdade é que uma tendéncia sobre a qual so pos- siveis duas visdes 36 pode fornecer seu maximo, quantita tiva e qualitativamente, caso materialize essas duas pos- sibilidades em realidades moventes, cada uma das quais, se atira para a frente e toma conta do lugar, ao passo que ‘a outra espreita sem cessar para saber se chegou a sua vez. Assim se desenvolvera o contetido da tendéncia original, caso ainda se possa falar de contetido quando ninguém, ‘AVIDA OLA DIFERENCIAGAO DA DURAGAO 1s nem mesmo a prépria tendéncia que se tomou conscien- te, saberia dizer 0 que sairé dela. Ela do esforgo e 0 re- sultado é uma surpresa. Assim é a operago da natureza: as lutas cujo espetéculo ela nos oferece resolvem-se nao tanto em hostilidades como em curiosidades. E é preci- samente quando imita a natureza, quando se entrega a impulsdo primitivamente recebida, que a marcha da hu- manidade assume uma certa regularidade e se submete, muito imperfeitamente deve-se dizer, a leis como as que ‘enunciamos. Chegou a hora, porém, de fechar nosso pa- réntese longo demais. Mostremos apenas como se apli- cariam nossas duas leis no caso que nos fez abri-lo. ‘Tratava-se do interesse pelo conforto e pelo luxo que parece ter-se tornado a principal preocupacao da huma- nidade. Ao ver como o homem desenvolveu o espirito de invengao, como muitas invengGes séo aplicagées de nos- sa ciéncia, como a ciéncia est destinada a crescer infin- davelmente, ficar-se-ia tentado a crer que haveré progres- s0 indefinido na mesma direc. Com efeito, as satisfagdes que invengGes novas trazem para antigas necessidades nunca determinam a humanidade a parar por ali; sur- gem novas necessidades, igualmente imperiosas, cada ‘vez, mais numerosas. Vimos a corrida pelo bem-estar ir se acelerando por uma pista para a qual multiddes cada ‘vez mais compactas se precipitavam. Hoje é um tumulto. ‘Mas esse proprio frenesi nao deveria nos abrir os olhos? N&o haveria algum outro frenesi, a que aquele teria se se- guido e que teria desenvolvido, na direcéo contréria, uma atividade de que ele € 0 complemento? De fato, é a partir do século XV ou XVI que os homens parecem aspirar a uma ampliacao da vida material. Durante toda a Idade Média predominara um ideal de ascetismo. £ intitil lem- brar os exageros a que ele conduzira; jé tinha havido fre-

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